sábado, 26 de outubro de 2024

Grande Angular - Lisboa sempre, Lisboa nunca

 Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo. Olhem para ela a partir da ponte do Tejo, da outra Banda, do Panteão, do Castelo de S. Jorge, de Santa Justa ou dos mais altos edifícios da cidade: o deslumbramento é incansável. Veja-se Lisboa a partir das ruas da Madragoa, de Belém, da beira rio e até da Baixa: o encanto é inconfundível. Esta Lisboa, que já foi e quase não é mais, está a desaparecer. Sem ordem nem ideia, sem plano nem cuidado. Lentamente, os lisboetas adaptam-se e habituam-se a tudo: ao lixo nas ruas, à erva dos passeios, à calçada levantada, aos buracos nas ruas, aos abrigos rodoviários desfeitos, aos edifícios em ruína deliberada, ao estacionamento em segunda fila, às filas de carros evitáveis e às filas inevitáveis de cidadãos diante dos serviços públicos. Os lisboetas habituaram-se aos monumentos em ruínas, às casas abandonadas, às fachadas históricas deformadas e à publicidade luminosa de parolo e pechisbeque. Os lisboetas habituaram-se ao desmazelo, à fealdade e à sujidade. Tal como se habituaram ao pobre, ao sem abrigo e ao pedinte. 

 

Pior do que tudo, os lisboetas habituaram-se à desigualdade, à miséria, à imigração explorada, aos trabalhadores estrangeiros ilegais, aos alojamentos imundos, aos bairros segregados e aos novos guetos étnicos. Lisboa tem hoje a mais, sem previsão nem ordem, turistas, imigrantes, ilegais, pobres, comerciantes e outras populações errantes. Lisboa e Portugal podiam ter tudo o que têm, e muito mais, se fosse melhor, se estivesse previsto, se houvesse políticas e regras.

 

De repente, por causa de um incidente desastrado e fatal, em que um agente da polícia matou um cidadão, os lisboetas acordaram para uma Lisboa difícil, segregada, desmazelada, ilegal, drogada, explorada e pronta para a violência.

 

Não. Ainda não. Lisboa não está a arder. Mas queima. O que há muito se receava, mas que era adiado, aconteceu. Desacatos, violência, vandalismo e repressão. Em meia dúzia de localidades de outros tantos concelhos. Todos na área metropolitana de Lisboa. Estragos, incêndios, feridos e um morto. Discute-se, como era de prever, a morte de cidadão com bala de polícia. Não se sabe ainda e não se saberá talvez nunca em que circunstâncias exactas. Legítima defesa? Violência desproporcionada? Repressão com violência desnecessária? Agressão de ódio? Provocação descarada?

 

Rapidamente, começou a ver-se em funcionamento a tenaz do irracional. De um lado, a culpa dos incidentes reside na polícia, no governo, nos brancos, no racismo, na direita, no capitalismo, no regime democrático, na desigualdade social, na pobreza, no desemprego e na extrema-direita. Do outro lado, a responsabilidade é dos bandidos, dos marginais, dos negros, dos imigrantes, dos drogados, dos ladrões, dos ilegais, das minorias, dos muçulmanos, da complacência das autoridades, da permissividade do regime e da covardia dos dirigentes políticos. E não faltaram uns políticos tolos a propor que se matem alguns…

 

E não se pense que se trata de notícias falsas e de boatos sem identidade. Não. Nos jornais e nas televisões, grande parte daqueles preconceitos são apresentados com palavreado académico e mais ou menos verniz, sempre com estatísticas de apoio.

 

Nesta tenaz de preconceito, as generalizações são quase a regra. Os portugueses são racistas. Os africanos são ladrões. Os muçulmanos são violentos. Os chineses são mesquinhos. Os indianos são manhosos. Os brasileiros são aldrabões. Os romenos são ciganos. E os ciganos são mentirosos. 

 

Estas visões do mundo são geralmente obstáculos à compreensão e ao diálogo. O que quer dizer que tornam difícil, às vezes impossível, qualquer tentativa de resolver problemas e pacificar situações de conflito. Não só porque o preconceito é ele próprio uma barreira ao diálogo e à negociação, mas também porque vem acompanhado de juízos de contexto que tornam incompreensível a realidade. E que desviam para abstracções políticas os esforços para tratar de casos reais. Mas sobretudo eliminam o sentido de responsabilidade pessoal e individual, um dos fundamentos da civilização. 

 

A irrupção de violência nos bairros periféricos de Lisboa tem, para uns, causas evidentes: são os imigrantes, os africanos e os muçulmanos, que vivem da segurança social e da droga, que se aproveitam da escola e da saúde pública, que recebem toda a espécie de subsídios e que se acham com todos os direitos. Para outros, as causas, também evidentes, são as políticas dos governos, o comportamento dos portugueses, o racismo dos brancos, as empresas capitalistas, os bairros sórdidos, o ambiente de opressão nas fábricas e as casas esquálidas.

 

Uns e outros dizem o mesmo: a culpa é do contexto. Do quadro geral. Da política. Da sociedade. Como é evidente, todas as circunstâncias, toda a herança cultural e todo o ambiente comunitário têm importância decisiva, ajudam os fenómenos sociais, influenciam os comportamentos. Mas não justificam as acções individuais, não explicam o crime, não desculpam o delito, não absolvem a infracção.

 

É verdade que o meio social, o ambiente, o quadro geral, a classe social, a comunidade, o bairro e a vizinhança ajudam a compreender fenómenos e acções. Nada pode ou deve ser feito pela política ou pela reforma social sem ter isso em conta. Mas nunca, de todo, nunca esse contexto pode desculpar o crime e justificar o ódio. Estes são acções do individuo e como tal devem ser avaliadas, julgadas, recompensadas ou castigadas. Nada substitui a responsabilidade individual. Quem mata. Quem pega fogo. Quem dispara. Quem rouba. Quem viola. Quem tortura. Quem mente. Sem responsabilidade individual, não há cidadania nem direitos humanos.

 

Se a responsabilidade individual é o imediato, o mais vasto, a prazo, é o tratamento das questões gerais que ficam para resolver. As políticas de imigração, por exemplo. Sem essa discussão e sem as regras a definir democraticamente, nada se resolverá nunca. Mas tenhamos consciência de que o debate está, actualmente, inquinado. Está mergulhado no irracional. Os seus protagonistas são quase sempre os fanáticos. Sejam os racistas residentes e os nacionalistas integristas. Sejam os racistas imigrantes ou os defensores das portas abertas e da destruição da comunidade. Entre defensores da integridade da nação pura e adeptos da dissolução da comunidade nacional, não há meio termo. A discussão e as soluções só serão possíveis fora do dilema dos fanáticos.

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Público, 26.10.2024

sábado, 12 de outubro de 2024

Grande Angular - Fascismo e Antifascismo

 O debate orçamental foi muito rico. Tem sido, até agora. Não pelo conteúdo económico ou social, mas por alguns aspectos políticos. Não no sentido nobre do termo, mas na sua acepção de coreografia e comportamento. Nada revelou sobre o pensamento político dos principais partidos, mas muito exibiu das suas paixões menores, das suas armadilhas e provocações. Conhecemos hoje melhor, muito melhor, o PSD de Montenegro, o PS de Santos e o Chega de Ventura. Tal como disseram os seus protagonistas, bastou uma frase para iluminar todo o processo: “dado que não foi possível chegar a acordo, vamos ler o orçamento”!

 

A margem financeira de diferença entre o que seriam os orçamentos dos três grandes partidos poderá ficar muito perto do 1%! As diferenças entre concepções estavam diluídas na querela estritamente política. O importante era derrubar ou não o governo; aliar-se com a extrema-direita ou não; coligar-se com a extrema-esquerda ou não; convocar novas eleições ou não. O PSD pretende ficar sozinho ao centro, empurrando o Chega para o fascismo e o PS para o antifascismo. O PS quer atirar o PSD para o fascismo e ficar a liderar a esquerda antifascista. Mau grado o seu insignificante eleitorado, as esquerdas do Bloco e do PC querem que o PS abandone a direita e se junte a elas. O Chega quer tudo: estar fora e dentro, ser democrático e não democrático, aproveitar tudo o que é irracional e populista e designar-se a si próprio como reserva do nacionalismo.

 

Em menos de um ano, o Governo impressionou pelo activismo e pelo lançamento de projectos que se atrasavam. Mas sobretudo ilustrou-se pela multiplicação dos pães e dos peixes. Aumentou tudo o que estava à mão, prepara-se para aumentar ainda mais todas as profissões. Distribuiu benefícios e subsídios como ninguém. Deu incentivos. Fez descontos. Isentou de taxas e impostos. Deu mais um poderoso contributo para uma figura em crescimento que é a do “orçamento de geometria variável”. Há orçamentos e regimes fiscais conforme o sexo e o género, a idade, os estudos, os locais de residência, a origem e a actividade. Já se ultrapassou a fronteira do aceitável, isto é, da fiscalidade conforme ao rendimento. Estamos a entrar num novo mundo que é o da diferença de direitos e deveres de acordo com os estatutos sociais e a condição humana. Não só é a base de uma profunda desigualdade, como é a chave para o mais clientelar dos Estados. Isto é, os benefícios e os direitos dos cidadãos dependem das preferências dos governantes e do grau de reverência dos cidadãos. “Quem se porta bem, tem direitos, quem se porta mal tem deveres”, será a divisa do futuro.

 

Há, todavia, questões que ficam em aberto e ultrapassam largamente o pormenor orçamental. É, como alguns pretendem, a divisão da sociedade e da política. A dicotomia. A alternativa. O frente-a-frente. A classe contra classe. É o fascismo e o antifascismo. Há muita gente nos partidos que pretende esse género de vida. Repete-se a lengalenga de que o “centrão” é o ninho da corrupção, o caldeirão de interesses e o lugar-geométrico de todas as indecisões. Muitos desses defeitos serão reais. Mas é necessário garantir que as outras vias são menos isso tudo, o que está longe de ser seguro. Por outro lado, a catilinária contra o centro, ou contra as políticas de centro, esconde o que realmente se pretende: a política radical de oposição pela exclusão. 

 

O fascismo é detestável. O antifascismo também. O paralelo com o racismo e o anti-racismo é aceitável: ambos são igualmente detestáveis. Já agora, comunismo e anticomunismo estão na mesma categoria. Sabemos as razões pelas quais fascismo, racismo e comunismo são condenáveis. A pergunta é: então o anti é bom? O problema é mesmo esse. É que não é. Quem faz profissão de fé anti qualquer coisa está a fazer a economia da inteligência. Quem trata os seus opositores de anti isto ou aquilo está a poupar no rigor. Durante décadas, os comunistas trataram os seus adversários de anticomunistas: os perseguidos têm sempre razão, era essa a ideia. Durante décadas, os salazaristas trataram os opositores de comunistas: era um atalho do pensamento, o caminho mais curto para a ditadura. Há décadas também que os que a si próprios se designam por anti-racistas tratam todos os outros de racistas. Vivemos actualmente momento revelador: o anti-racismo militante, razão última de activismo, é sectário e assume-se como virtuoso. É como tal reconhecido. Para mal dos nossos pecados.

 

Estes insultos e outros (como antipatriótico, antinacionalista, antidemocrático, além de fascista, comunista e racista) têm como funções alinhar inimigos, dispensar o pensamento, regimentar distraídos e polarizar em duelos diferenças que têm outras naturezas. Quem se orgulha de incluir no seu currículo termos como antifascista, anti-racista ou anticomunista, está a designar-se da maneira mais deficiente e simplória que se pode imaginar.

 

Entre nós, a luta entre fascista e antifascista tem, por razões obvias, especial ressonância. Foi uma espécie de gazua para a acção política. A tal ponto que ainda hoje faz efeitos. E atrai políticos, apesar dos nos faltarem boas definições do fascismo. Da sua espécie fundadora, a italiana de Mussolini, não será difícil encontrar uma designação certeira. O pior é a sua generalização. Em poucos anos, fascista passou a ser tudo o que é nacionalista, católico, capitalista, conservador e autoritário. Melhor: tudo o que não era comunista ou socialista.

 

O regime de Salazar não foi fascista. Os melhores pensadores quase todos concordam com isso. As características próprias do Estado Novo faziam dele um regime autoritário, reaccionário, conservador, nacionalista e imperialista. Mas fascista, não. Aliás, não será atrevido afirmar que, fascista, só mesmo o italiano.

 

O antifascismo é um mistério ainda maior. A levar a sério certas esquerdas, antifascista é o que é socialista, comunista, contra a ditadura, contra o capitalismo, contra a iniciativa privada, contra a democracia parlamentar e contra a burguesia. As esquerdas não se deixam impressionar com o facto de, entre os principais regimes de esquerda antifascista, desde há cem anos, se contarem ditaduras, regimes totalitários, nacionalistas e conservadores. Mesmo mais: em cem anos de história das esquerdas no poder, há muito mais ditaduras do que democracias. Em cem anos de poder comunista, há só ditaduras, nem uma hora de democracia.

 

Tentar, hoje, refazer um bloco fascista e um grande movimento antifascista, é mais do que um regresso ao passado. É um pesadelo.

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Público, 12.10.2024

sábado, 5 de outubro de 2024

Grande Angular - A metamorfose do Partido Socialista

 É provável que tenha vencido a incerteza. Todos receavam as eleições. O PR não calculava o que poderia acontecer. O PSD e o Governo não tinham qualquer certeza quanto ao resultado. O PS não tinha consciência do que se seguiria a uma crise motivada pela falta de orçamento. Nestas condições, o mais acertado é adiar. O Governo cedeu. O PS prepara-se para ceder. O Governo aproveita para governar “fora do orçamento” e distribuir benefícios como nunca se viu. O PS enviou o recado à população: a estabilidade política e o governo dependem de si.

 

Entretanto, todos avistaram de repente e perceberam um drama que se desenha no horizonte: o PRR, o famoso Plano de Recuperação e Resiliência, com mundos e fundos indispensáveis para a economia e a administração pública, está pelas ruas da amargura, com pouco uso e mau proveito, um dos piores registos da Europa. Com nova crise de governo e novas eleições, esta espécie de desastre seria uma calamidade. Presidente, governo e partidos perceberam que sobre eles se abateria um justo e furioso vendaval. E de nada serve passar culpas: todos serão condenados.

 

Ainda faltam alguns dias para termos a certeza de todos os acontecimentos e para conhecer as surpresas que o Governo e os partidos nos prepararam. Mas o essencial parece estar assegurado: adia-se a crise, espera-se por mais certezas. Ainda é possível que as coisas não corram bem, veremos. De qualquer maneira, é útil olhar para além da espuma e do orvalho. As negociações em curso e o orçamento são importantes. Tal como o que se segue. Mas há, em profundidade, outras tendências e outros factos que merecem atenção. As relações entre as direitas do PSD e do Chega são de enorme importância e vão conhecer novos capítulos. Assim como as relações entre os centros de esquerda e de direita, o PS e o PSD, que vão talvez iniciar uma nova vida. Mais importante ainda, pelas suas repercussões, é o futuro do PS que parece estar em jogo.

 

Este futuro é ainda incerto. Mas já há quem o desenhe. Ou antes, quem revele possíveis traços de um futuro diferente para este grande partido. A frase de Pedro Nuno Santos (“prefiro perder eleições a abdicar das convicções”) pode ser um infeliz deslize a meio caminho entre o machismo e a ingenuidade. Mas pode também ser, com mais probabilidade, o anúncio de novos tempos para o partido. De que se trata na verdade? O que são convicções, profundas ou não? O que são crenças inabaláveis? Estaremos a falar da democracia, da liberdade individual e da dignidade humana? Da recusa de violência, da solidariedade e da luta contra a pobreza? Ou falamos também de um escalão de impostos, de um subsídio de IRS e de uma ajudinha de IRC? Misturar umas e outras, dar-lhes a mesma dignidade significa perder de vista o essencial.

 

Mas tal não é gratuito. Pelo contrário, tem ar de ser uma declaração solene da natureza do novo PS. A gradual e inexorável transformação do Partido Socialista num Bloco de Esquerda “mais” é o que parece estar nas cartas. Pedro Nuno Santos, o secretário geral, afirmou-o convictamente, sem tremer nas palavras e calculando os efeitos. Ele quer construir fronteiras, elevar obstáculos e definir linhas dogmáticas. Preferir perder a esquecer convicções é uma frase inútil, sempre certa, para dar nas vistas. Toda a gente dirá isso, acredite ou não. É retórica barata, para uso de conjuntura. Ou então… Ou então estamos diante de manifestação real de intenções, anúncio de processos de liderança, desejo de transformação do partido e de sua doutrina. Tudo a que o secretário-geral tem direito, com certeza. Mas deve ser mais sincero no seu propósito.

 

O grande objectivo parece ser o de ocupar o lugar do Bloco, do PC e do Livre. Em termos plebeus, encostar o PSD à direita. Ajudar a construir um grande bloco de direita e extrema-direita e contribuir para o noivado PSD/CHEGA. Para assim receber os votos sociais democratas do PSD transformado em direita radical. Com a finalidade de melhor separar esquerdas e direitas. Isto é, repensar uma esquerda ideológica, refazer um programa sectário e chamar-lhe convicção e doutrina. 

 

A revogação do estatuto do Partido Socialista como partido mediador ou “partido charneira” (como lhe chamava Mário Soares) é o gesto mais feroz de que o partido pode sofrer. Pior do que isso, só a liderança de José Sócrates, cujos efeitos se fazem sentir por anos e décadas. Querer fazer do PS “o” partido da esquerda, radical, da alternativa, federador dos grupos de esquerda e o partido de classe, como se dizia antigamente, significa romper com o que de melhor havia naquele partido. O que não seria grave se fosse só o partido a sofrer as consequências. O problema é que é o país, a sociedade e a democracia portuguesa que vão sofrer. 

 

O Partido Socialista, nestes cinquenta anos que leva a democracia, teve inesquecíveis momentos de grandeza e criatividade, como também conheceu momentos de baixa moral e incompetência. Mas o balanço da sua vida é singularmente positivo. Talvez tenha sido o partido central da democracia. Sem ele, tudo seria diferente, talvez pior. Outros partidos deram o seu contributo, a começar pelo Partido Social Democrata. Mas, em termos globais, há uma hierarquia entre os dois.

 

Desde a coligação implícita e explicita com os militares moderados e democratas de 25 de Abril, até à resistência frontal contra os revolucionários e os comunistas, o PS brilhou. Depois, da defesa de algumas conquistas sociais (como o SNS) à manutenção de um clima de paz e de diálogo com os parceiros sociais, igualmente o PS se distinguiu. Também na integração europeia o seu contributo é imperecível. Finalmente, tem relevo o seu papel como defensor das regras democráticas e das fronteiras de liberdade. Assim como a sua função de equilíbrio do regime.

 

Evidentemente, a sua folha de serviços não é apenas de brilho e glória. Também tem as suas nódoas negras. A tenaz incompetência para gerir o sector público empresarial é grandiosa. A sua complacência perante a corrupção é imperdoável. A excessiva volúpia nas relações financeiras com os grandes interesses merece nota. A incapacidade para reformar o sistema de justiça é lendária. Todos estes defeitos, aliás partilhados com outros partidos, não chegam para apagar o serviço prestado. É o partido imperfeito da liberdade.

 

Trocar o papel que foi o do PS durante as últimas décadas pelas “suas convicções”, fazer destas o critério de definição da doutrina e da estratégia do partido, é um acto de enorme presunção, a rondar a autocracia.

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Público, 5.10.2024

sábado, 28 de setembro de 2024

Grande Angular - Votos

 Tempos houve em que os votos e as eleições se percebiam, sobretudo ou também, por motivos políticos. Ou programáticos. Até ideológicos. Em todo o caso, doutrinários. Os programas dos partidos de esquerda eram de esquerda. Idem, para os de direita. Havia partidos e programas especialmente orientados para favorecer o capital, outros, evidentemente, o trabalho. A velha luta de classes influenciava muito as campanhas eleitorais e os votos. Houve sempre excepções, não faltaram aventuras imprevisíveis. Mas a clareza de propósitos e de doutrinas era uma qualidade.

 

Hoje, as coisas são muito distintas. Não! A luta de classes não desapareceu. Não! A divisão entre esquerda e direita também não se esfumou. Mas muitos outros factores e projectos vieram influenciar os programas, as campanhas eleitorais e as decisões dos eleitores. A questão religiosa, por exemplo. Assim como a questão racial. A demografia e as migrações. O centralismo de Estado e de sociedade versus a descentralização. A regionalização e o poder autárquico também. Sem falar no clima, na ecologia, na política internacional, na guerra e no terrorismo. 

 

Também as questões de género e de comportamentos sexuais dividem as esquerdas e as direitas. Há machismo, e não é pouco, dentro da esquerda e dentro da direita. Outras questões “existenciais”, como o suicídio assistido, a eutanásia e o aborto, dividem profundamente a esquerda e a direita. Talvez acima de tudo, a liberdade individual divide a esquerda e a direita. Esta pode ser defendida e ofendida pela direita e pela esquerda.

 

As coisas são hoje diferentes dos tempos claros de “preto e branco”, pois os valores tradicionais cruzam com valores sociais, morais e culturais, sem que a clássica divisão entre esquerda e direita se apresente nitidamente ao observador. Nas últimas décadas da política portuguesa, pudemos assistir a numerosos testemunhos destes cruzamentos e destas miscigenações. Houve governos socialistas, designadamente de Soares, Sócrates e Costa, que adoptaram valores habituais na direita e tomaram as respectivas decisões. Como houve governos de Sá Carneiro e Cavaco Silva que se ilustraram por medidas e princípios vulgarmente ditos de esquerda. São partidos, políticas ou governos “de centro” que, em geral, tiveram em Portugal mais êxito do que os sectários.

 

Imaginar que existe uma “política de esquerda” e uma “política de direita”, claras e bem definidas, para cada uma das questões acima referidas, e para cada um destes aspectos da vida, é pura e simplesmente não perceber o tempo contemporâneo ou, mais provavelmente, ter uma visão dogmática e fanática das suas próprias concepções. Há partidos, sobretudo de esquerda, mais doutrinários, que nunca hesitam em afirmar e garantir que as suas posições são de esquerda, com exclusão de todas as outras. Aliás, a primeira característica de uma política de esquerda, para um grupo ou movimento sectário, é que é de esquerda por ser a sua. Do outro lado, o hábito é diferente: um governo de direita nunca é de direita, é nacional. Ou do centro, pode acontecer.

 

A gestão do actual governo, desde há menos de um ano, acompanhada pela acção dos partidos de oposição, com especial relevo para o PS e o Chega, obriga-nos a reflectir e a perguntar: o que os faz correr? O que os leva a este comportamento estranho de negociar o orçamento sem nunca o ter visto? Onde está a esquerda e a direita?

 

O governo tem mostrado ser mestre em distribuição. Dá a toda a gente tudo o que pode. Dá mais do que os socialistas. Reembolsos, devoluções, subsídios, isenções e descontos. Promete mais, para os próximos anos, do que os sindicatos estavam à espera e do que os socialistas ofereciam. Como tantos outros governos antes dele, pode vir a falhar na concretização prática. Certo. Mas casas nas grandes cidades, compensações para as vítimas de incêndios, subsídios para recomeçar uma empresa, alojamento estudantil, devolução de propinas, aumentos de vencimentos dos professores, dos médicos, dos enfermeiros, dos militares, dos polícias e Deus sabe a mais quem… Nada tem faltado à chamada. As esquerdas estão envergonhadas. E os socialistas com ciúmes. Opõem-se com certeza a esta política que devem classificar de inconsistente, incoerente, oportunista e demagógica, pela simples razão de que o governo lhes está a tirar todos os argumentos para eles fazerem oposição. Um governo dito de direita a distribuir subsídios, pensões, compensações, reembolsos e cortes fiscais não é o que mais convém à oposição de esquerda.

 

Não se sabe, evidentemente, quanto tempo este “bodo” vai durar. Até porque há muitos outros “clientes”, nomeadamente empresários e proprietários, à espera do que lhes foi prometido e do que é justo esperarem de um governo dito de direita. Não sabemos se a União Europeia vai pagar tudo o que o governo pede, das bolsas de estudo aos comboios, da saúde ao investimento. Mas já se percebeu que, com a sua política criativa, destroçou grande parte do capital de queixa dos socialistas. Até porque estes, com mais de vinte anos de governo nas três últimas décadas, têm dificuldade em encontrar um dos maiores instrumentos da política: onde pôr o pé.

 

Como a situação política é frágil e os equilíbrios muito difíceis, o principal motor da acção do governo e dos partidos, especialmente do PSD, do PS e do Chega, é o voto. Puro e simples. O voto nas próximas eleições, que aliás ninguém sabe quando serão e poucos desejam. Ou antes, que nem sequer sabem se desejam. O voto expresso nas sondagens e o voto real nas próximas autárquicas como primeiro sintoma. Como é evidente, o voto é crucial em democracia. Mas é justo pensar que é tanto mais importante quanto serve para qualquer coisa: governar, melhorar, reformar e progredir. Cuidar do futuro. Garantir a segurança. O contrário é uma perversão democrática. Governar para ganhar votos. Opor-se para ganhar votos. Fazer o que quer que seja para ganhar votos.

 

O aparente debate sobre o orçamento do Estado tem algo de patético. Em primeiro lugar, repete-se, o orçamento não existe, ninguém o viu até agora. Em segundo, o governo gostaria de fazer, com este orçamento, tudo quanto a oposição desejaria fazer. E a oposição esforça-se por impedir que o governo faça o que ela gostaria de fazer. 

 

Parece complicado, mas não é. Os humoristas poderiam dizê-lo. Para que é que governas? Para ganhar votos. E para que é que queres ganhar votos? Para governar. E depois? Ganhar mais votos.

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Público, 28.9.2024

sábado, 21 de setembro de 2024

Grande Angular - Os KAMOV: Incompetência ou corrupção

 Talvez tenham sido adquiridos em 2006. Foram seis e terão começado a chegar a Portugal em 2008. Um deixou de trabalhar em 2012. Dois foram para a manutenção em 2015 e nunca mais de lá saíram. Três foram postos fora de serviço em 2018! Entre este último ano e 2024, data da doação à Ucrânia, estiveram os seis KAMOV encostados, sem manutenção, nas instalações do aeródromo de Ponte de Sor. Verdade? Quanto custou tudo? Quanto falta pagar? Quem são os responsáveis?

 

A partir de certa altura, a Protecção Civil recusou os KAMOV e não mais quis saber deles. O governo ordenou que fossem entregues à Força Aérea, que exigiu uma auditoria prévia. Passado um tempo, a Força Aérea recusou os KAMOV. Depois, foi-lhes retirada licença de voo. Algures, por volta de 2020, os helicópteros não tinham dono. Uma reparação necessária foi avaliada em 40 milhões. Quase tanto quanto tinham custado! No total, entre custo, manutenção, contratos, reparações e tudo o resto, os KAMOV poderão ter custado ao Estado português cerca de 300 a 400 milhões e passaram os seus últimos anos, em fase terminal, sem licença e incapazes de funcionar. Diz-se que, enquanto estavam imobilizados, o Estado alugava outros KAMOV a outros países por 5 milhões por ano. Entretanto, Portugal comprou seis helicópteros americanos BLACK HAWK, em segunda mão, por 43 milhões de euros. Verdade? E prepara-se ainda para, a preços incertos e desconhecidos, alugar e comprar aviões CANADAIR, não se sabe se novos se usados.

 

A história dos KAMOV em Portugal parece ter terminado. Parece! Na verdade, ninguém sabe se sobraram “rabos de palha”, dívidas por liquidar, compromissos não respeitados, processos pendentes, despesas imprevistas ou juros e comissões em falta. Esperemos por tudo. De qualquer maneira, o essencial é conhecido: os KAMOV vieram para combater os incêndios. Estiveram mais tempo parados por avaria, impossibilidade de voar, falta de manutenção e indisponibilidade de tripulações habilitadas do que passaram a trabalhar ou disponíveis.

 

Os KAMOV são um tratado de comportamento comercial e político, inesgotável de informações sobre o que se não deve fazer para respeitar os interesses nacionais. E exaustivo em lições sobre o que se deve fazer para aldrabar o Estado, defraudar a lei e recompensar os intermediários.

 

Os KAMOV são um manual de aprendizagem para os doutorandos em minas e armadilhas, para quem prepara carreira na gestão de negócios especiais, para quem se candidata a assessor de gabinete e para quem se quer especializar em transacções nas zonas crepusculares da democracia e dos negócios.

 

Os KAMOV são lições práticas para quem, com boas ou más intenções, estuda para ingressar em carreiras da polícia judiciária, dos fiscais de contribuições e impostos, dos inspectores de finanças e das brigadas de anticorrupção.

 

Os KAMOV são lanterna que alumia o caminho para perceber as relações entre Portugal, a União Soviética, a Rússia e a Ucrânia.

 

Os KAMOV são uma pérola a revelar alguns traços essenciais da identidade nacional, designadamente nas áreas cinzentas da legalidade, da transparência e da complacência.

 

Reconstruir ou estudar a história dos KAMOV em Portugal é tarefa quase impossível, digna do que de melhor se premeia nas áreas especializadas do jornalismo, das relações internacionais e do comércio paralelo. Percorrem-se os jornais e os arquivos da televisão e encontram-se milhares de factos, de denúncias, de estatísticas. Quase sempre contraditórias. Por intermédio dos órgãos de referência da comunicação e da informação, não é possível saber o que se passou. O Estado não verifica, não controla, não produz números indiscutíveis. Acusados de incompetência, interesse, corrupção, ignorância e covardia, vários governantes, responsáveis por todos os actos de vida destes KAMOV em Portugal, escondem-se, assobiam para o ar, calam, disfarçam e coçam a cabeça.

 

Quase todas as fontes referem o valor de 8 milhões para o preço de cada KAMOV. Isto é, cerca de 48 milhões para o pacote. Os problemas vêm depois. Prestações, serviço da dívida, abatimento de dívidas soviéticas, contratos de manutenção, aquisição de peças, comissões de intermediação e contratos de prestação de serviços elevam os preços, após doze anos, a montantes próximos dos 300 ou 400 milhões de euros. Não se percebe como. Não há matemática que resista. Mas é assim. É certamente um dos mais escandalosos casos da história portuguesa. A possibilidade de as despesas, os prejuízos e as perdas poderem oscilar entre tão altos limites não suscita acções e reacções de investigação e contestação?

 

Quantos foram alugados e comprados? A que preços? Quanto custaram os serviços financeiros, de manutenção, de reparação e de serviço? Quanto falta ainda pagar? Prestaram serviço proporcional aos custos? Quanto tempo estiveram os KAMOV imobilizados no solo? Quanto tempo prestaram efectivamente serviço? Quantas horas de voo realizaram? Quem foram os intermediários, comissários, auditores, advogados e outros prestadores de serviços em todo este negócio? 

 

Os KAMOV parecem estar numa linha tradicional de negócios particularmente chorudos, incompetentes, viciados e de más consequências: é uma sequência fatal de aquisições, alugueres, trocas, compras e vendas de aviões de passageiros, aeronaves de luta contra os incêndios, submarinos, comboios e catamarãs. De comum entre eles? O comprador é o Estado. E há sempre uma zona escura e um capítulo de dúvida.

 

Se as autoridades não esclarecerem este caso dos KAMOV, poderão ser acusadas de má gestão política. De covardia governamental que não assume as suas responsabilidades. De intervenção ilegítima de agentes e intermediários. De pagamento de luvas excessivas. De desatenção com a manutenção. De desprezo pela utilidade social dos equipamentos comprados. De falta de respeito pelo erário público. De falta de controlo por entidades competentes. De falta de honestidade.

 

Não há responsáveis? Políticos? Governantes? Dirigentes de instituições públicas e de empresas privadas? Advogados? Intermediários? Peritos? Empresários? De uma coisa podemos estar certos: ninguém se assume como responsável por qualquer decisão relativa aos KAMOV durantes os últimos dezoito anos. É pelo menos suspeito.

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Público, 21.9.2024

sábado, 14 de setembro de 2024

Grande Angular - Valores mais altos do que telemóveis

 Há mais de cinquenta anos, um estranho acontecimento ocupou as primeiras páginas dos jornais de todo o país. Em Lamego, no Liceu, um aluno tinha sido apanhado a copiar, num exame, de maneira especialmente original e moderna. Não propriamente a copiar, mas sim a burlar com métodos criativos. Aparentava sinais de ferimentos na cabeça, por cima dos quais uma ligadura dava o toque realista. Na verdade, o truque escondia um minúsculo receptor de rádio que recebi indicações para resolver as questões do exame. Em casa, seu irmão, pequeno génio de tecnologia, tinha desenvolvido um transmissor artesanal de grande eficácia. Cinco minutos depois de começada a prova, dirigia-se ao Liceu, pedia uma cópia do enunciado, corria para casa e ditava ou inspirava as respostas. Um comerciante vizinho, no seu rádio, ouviu vozes que identificou como respostas a um exame. Foi ao Liceu e denunciou a marosca. Os professores foram ver e rapidamente detectaram a aldrabice. O aluno chumbou, mas foi reabilitado no ano seguinte. O irmão foi rapidamente recrutado por uma empresa especialista naquelas técnicas. Toda a gente compreendeu o castigo do burlão, mas o país inteiro simpatizou com os irmãos e seu feito. A tal ponto que, nessa noite, a loja do denunciante foi apedrejada e vandalizada. Nunca mais reabriu.

 

Esta pequena história serve, entre outros usos, para perceber o imenso abismo tecnológico, pedagógico e moral que nos separa daqueles dias. Os telemóveis de hoje, ou antes, os smartphones são poderosas armas ao alcance de toda a gente, que servem para todos os fins imagináveis: burla, jogo, invenção, cultura e lazer. Investigação, cálculo, informação, espionagem e roubo. Meditação, namoro, organização, controlo e gestão. Banditismo, terrorismo, filantropia e solidariedade. Os smartphones são portas abertas de cada um para o mundo e deste para cada um.

 

A discussão actual sobre o uso dos telemóveis nas escolas não é mais do que a repetição, actualizada, da mesma questão debatida há vinte anos. Pode ou deve proibir-se ou admitir os smartphones nas escolas? A sua proibição não vai atentar contra direitos fundamentais, a liberdade de expressão e o direito à informação? A sua admissão, pelo contrário, não vai liquidar o espírito da escola, a autoridade dos professores, o esforço de aprendizagem e o recato necessário para pensar e estudar? Convém notar que, há trinta anos, estes aparelhos pouco mais eram do que telefones e canais de mensagens escritas. Hoje, são tudo o que se sabe e ainda se não conhece.

 

O dilema não se limita à alternativa habitual, sim ou não. Na verdade, o problema é muito mais complexo. Todas as questões particulares são pertinentes. Quem deve ou pode ter a autoridade para tomar esta decisão? O Parlamento, o Governo, o Ministério, a Escola ou o professor?

 

A que se deve circunscrever a decisão? À escola no seu todo? Às salas de aula? Aos recreios e cantinas? Às salas de estudo e convívio?

 

As decisões sobre os smartphones são equiparáveis às que dizem respeito às tabletes, aos computadores e outros dispositivos? Que fazer com as necessidades evidentes de utilização destes para mil e uma funções educativas? Mesmo admitindo que a qualidade e a beleza das aulas magistrais são insubstituíveis, é evidente que há muitas outras formas de aprendizagem que não se limitam às aulas.

 

Além de troca de correspondência e de comunicação verbal, o smartphone também pode servir de dicionário, vocabulário, máquina de calcular, biblioteca, máquina de fotografia e cinema, reprodução musical, arquivo, compra e venda do que se quiser, actividade bancária e bolsista, aposta e vidência. Sem falar nas redes sociais e em todas as funções (saúde, estacionamento, informações, turismo, horários, mercado, etc.) essenciais para a vida quotidiana. É possível proibir umas funções e admitir outras?

 

Nada se passa sem que atravesse também os smartphones. Tudo o que é importante e tudo o que não é importante começa, acaba ou passa pelos smartphones. É o mais esplendoroso instrumento de liberdade, de morte, de conhecimento e de destruição. Faz algum sentido tomar uma qualquer decisão sobre o uso destes aparelhos nas escolas?

 

Faz todo o sentido. O uso intensivo e permanente do smartphone é absolutamente destruidor do que de melhor se pode passar na escola. O ensino, o diálogo e o debate são incompatíveis com o smartphone. O recato, o silêncio e a reflexão são destruídos pelo smartphone. A imaginação, a criatividade e o esforço pessoal são substituídos por todos os recursos “fast” que os smartphones proporcionam. O processo educativo inclui dimensões, qualidades e métodos não substituíveis por ciência esquemática, ensino plastificado e cultura empacotada.

 

Sei bem que a liberdade de expressão e o direito à informação, as duas flores mais frágeis da democracia, também estão ligadas ou podem beneficiar dos smartphones. Como sei que os ataques contra as redes sociais e o uso doloso das mesmas são ameaças contra as liberdades. Mas também sei que, tal como tantos outros instrumentos, aparelhos e funções, também estes podem e devem ser regulados. Guiar automóveis, usar armas, pilotar barcos e aviões, beber álcool ou consumir certas substâncias medicinais ou recreativas, exigem autorização, têm regras, só estão acessíveis em certas condições, segundo os locais e as idades. Regular o uso dos smartphones nas escolas, eventualmente também noutros locais de carácter reservado ou privado, é aceitável do ponto de vista da liberdade, desde que não seja instrumento de opressão de qualquer espécie (por exemplo, proibir uns e permitir outros). Nas escolas, muito especialmente nas salas de aula, os smartphones são instrumentos de perturbação e de destruição de valor superior, naquele momento e naquela ocasião, o da aula. A sua proibição nas salas de aula, com ressalvas excepcionais, justifica-se do ponto de vista da liberdade individual, do pensamento e do conhecimento.

Permitir ou proibir crianças de dez anos ou adolescentes de quinze de usar smartphones onde quiserem e quando quiserem são prerrogativas e deveres dos pais e dos familiares. Mas, nas salas de aulas, não são eles que têm autoridade para tanto. Nenhuma máquina desempenha com vantagem as funções da aula e do ensino. Nenhuma cópia é superior ao diálogo e ao estudo. Nada substitui o carácter humano do processo educativo.

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Público, 14.9.2024

sábado, 31 de agosto de 2024

Grande Angular - Referendar a imigração

 Pretender, de um dia para o outro, referendar a imigração, um dos mais complexos problemas de Portugal e da Europa, revela as intenções dos seus proponentes. Que são demagógicas e oportunistas. Oferecer-se para trocar a iniciativa de um referendo por um voto do orçamento exibe a baixeza moral e o cinismo dos seus autores. Felizmente que Ventura e Chega fizeram esta proposta, pois ela acaba definitivamente com as dúvidas que poderiam subsistir quanto aos seus planos. Fazem tudo o que podem e lhes deixam fazer para possuir a democracia, capturar o regime e sentar-se no poder. Nem sequer têm vergonha para esconder as suas intenções: revelam-nas abertamente, na convicção de que a provocação paga dividendos. O que não impede que tenham trazido a público dois problemas importantes. Primeiro: para que servem e como se convocam os referendos. Segundo: a necessidade urgente de uma política de imigração séria e consequente.

 

Os portugueses em geral e a classe política em particular não têm mostrado especial afecto pelo referendo. Foi recusado na Constituição e pudicamente aceite, mais tarde, numa sua revisão. Foi utilizado duas vezes para o aborto e uma para a regionalização. A participação eleitoral ficou abaixo dos 50%, o que é insuficiente: a lei considera o referendo não vinculativo.

 

A grande oportunidade histórica para realizar um referendo, a aprovação da primeira Constituição democrática, foi deliberadamente perdida, os poderes não quiseram e a opinião pública não se importou. Outras oportunidades de semelhante poder simbólico foram as duas mais importantes revisões constitucionais (1982 e 1989), igualmente afastadas. Outra hipótese, bem calhada, era a adesão plena à União Europeia: foi posta de parte pelos partidos e pelas autoridades do seu tempo. As razões pelas quais não se gosta de referendos são difíceis de determinar. Receio de que a opinião pública critique os partidos? É possível. Confiança absoluta nos mecanismos partidários clássicos da democracia representativa? É crível, mesmo sabendo que muitos países com pergaminhos democráticos recorrem ao referendo e à iniciativa popular com frequência. Receio do veredicto popular que possa contrariar os poderes do dia? Certamente. E muitas mais razões. Na verdade, o referendo não é por si próprio um vício. Nem uma virtude. É aceitável que certos temas não possam ser referendados em qualquer situação, por razões de ordem constitucional, legal e até moral. Por exemplo, não se pode referendar a perda de independência. Nem o estabelecimento de ditadura. Nem a declaração de guerra. Mas poderia em teoria referendar-se a maior parte dos grandes temas da política nacional. O que não é o caso entre nós. Na verdade, a Constituição exclui da possibilidade de referendo uma quantidade excessiva de matérias.

 

É frequente ouvir quem tolere o referendo, desde que não se aplique a certas condições. É natural que assim seja. Mas é forçoso pensar que não se deve aceitar o referendo apenas quando não há risco de perder. Quem luta contra o referendo sobre matéria constitucional, a integração europeia, a liberdade religiosa ou a imigração teria o dever de estar disposto a qualquer resultado, favorável ou não às suas opiniões.

 

Outra coisa é a condição concreta. Um referendo sob pressão dos acontecimentos é condenável. Referendar a prisão perpétua ou a pena de morte, depois de crimes hediondos, é demagógico. Referendar qualquer tema no seguimento de factos que comoveram a opinião e que tenham uma qualquer relação com o terrorismo, o conflito social, o crime abominável, a perseguição religiosa, a violência familiar, o tráfico sexual, o racismo e a imigração ilegal é o mesmo que procurar soluções preconceituosas para problemas complexos. 

 

Referendar qualquer princípio ou política a título de compensação política é igualmente negativo. Por isso, é razoável que a legislação preveja condições especiais para realização de um referendo. Por exemplo, entre a apresentação de uma proposta e a sua realização deveria mediar um longo prazo de pelo menos três a cinco anos, para que haja reflexão, debate, estudo e ponderação. E ânimos acalmados. Além disso, uma proposta de referendo deverá recolher pareceres circunstanciados das autoridades parlamentares, governamentais e presidencial, além de apreciações fundamentadas das grandes instituições judiciais, científicas, religiosas e outras. Sobre o conteúdo e a oportunidade.

 

Neste aspecto, o tema da imigração, proposto pelo Chega, é uma aberração. Pretendem os seus autores realizar o referendo o mais rapidamente possível, quando na sociedade há questões de vivacidade excessiva, isto é, a conjuntura não é favorável. Além disso, os seus proponentes não estão interessados nos resultados, nem sequer convencidos da justeza das suas opiniões. Com efeito, eles próprios anunciaram as suas condições, em especial o facto de renunciarem à sua proposta no caso de obterem um ganho de causa na votação do orçamento! 

 

Por outro lado, é sabido que uma parte dos problemas da imigração reside na percepção dos residentes nacionais e dos imigrantes. Há ou não racismo nas instituições e na política? A imigração está ligada ao trabalho clandestino, às más condições de vida e à marginalidade? A imigração é fonte de comportamentos ilegais perante os trabalhadores, as crianças, os velhos e as mulheres? A imigração tem correlação com o tratamento desumano de animais? Há ou não há relações entre as comunidades imigrantes e o recrutamento e treino de actividade terroristas? Em que condições é que os residentes nacionais têm comportamentos desumanos, odiosos e violentos para com os imigrantes? A imigração é fonte de dispêndio excessivo e injusto em saúde e educação? 

 

Nada disto está devidamente estudado. Há opiniões sobre tudo e mais qualquer coisa, dependendo das crenças de quem as exprime. Sobre todas estas realidades, há percepções, desconfiança, generalizações e medos, quase não há factos nem certezas. A ideia de não estudar estes assuntos, nomeadamente de não inquirir a naturalidade, a prática religiosa e a pertença a certas comunidades, constitui erro inadmissível. Deriva de uma boa intenção, a de não estabelecer desigualdades, mas resulta exactamente no seu contrário, aumenta o preconceito e provoca o comportamento irracional.

 

A obscura proposta de Ventura e Chega vai adiar e criar dificuldades à definição de uma política de imigração, necessidade indiscutível.

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Público, 31.8.2024

sábado, 24 de agosto de 2024

Grande Angular - Ao serviço do povo. Ou do público.

 Antigamente, dizia-se, com orgulho, que a política devia ser feita “ao serviço do povo”. Era sobretudo a esquerda que assim se exprimia, mas também por vezes a direita. Com o tempo e as modas, “serviço público” foi ganhando o favor dos políticos. Povo era mais trabalhador, mais combativo… A merecer atenção. Público ficou a ser mais neutro, mais interclassista, mais “toda a gente” … Mais consumidor e eleitor. O “interesse público” ou o “serviço público” são expressões mais pacíficas e menos reivindicativas. Quase todos os partidos rectificaram a sua linguagem e substituíram povo por “público”. Nos extremos, à esquerda e à direita, ainda se prefere “povo”, mais popular ou mais populista.

 

Assim é que “fazer política” é servir o povo ou servir o público. Em doses variáveis, também pode ser servir os seus amigos, uma classe social, a si próprio ou instituições e empresas. É aqui que surge uma equação ou uma questão dramática. Conquista-se o poder político (os votos e os respectivos mandatos) para servir o povo e o público? Ou serve-se o povo e o público para conquistar o poder político? E quando se está a servir o povo e o público, estamos a falar de quem? Da população? De uma classe social? De um partido? De certas famílias, grupos e empresas? Qualquer político ou todos os políticos responderão de modo equivalente. Dizem que se conquista o poder político para servir o povo e o público. Consideram os seus adversários apenas interessados em beneficiar a sua classe social, os seus amigos e os seus clientes. E reservam para si próprios o estatuto de impoluto servidor. Nada de novo.

 

No entanto, a situação que vivemos é exemplar. Ninguém tem a maioria parlamentar. Ninguém pode, sozinho, aprovar qualquer coisa de jeito. Mas ninguém quer ficar com o ónus sem ter o mérito. Para o PS, aprovar os planos do governo, sem nada retirar, é fonte de angústia. Reprovar os projectos demagógicos do governo não é compreensível pelos beneficiários. Não aprovar os bons projectos do governo também é nefasto para as intenções do partido. Para a oposição, um recurso possível consiste em aprovar as suas medidas que obriguem o governo a fazer o que não quer. Mas isto tem dificuldades, a começar pelo facto de o governo ter meios para adiar as medidas da oposição. Mas também por causa da insuficiência de votos: o PS e o Chega não têm, sozinhos, votos suficientes. Juntar esforços é mau para os dois… 

 

A distribuição de dinheiro é um dos mais velhos expedientes utilizados para ganhar votos e apoios ou para incomodar as oposições que não têm esse recurso. Também é instrumento de demagogia, dado que as oposições não conseguem ou têm dificuldade em votar contra os “bodos aos pobres”. Assim como não lhes é fácil arranjar votos para os seus próprios “bodos”. O PSD e o governo dedicam-se agora a exactamente este exercício: distribuir a fim de mais tarde recolher. Sem tirar nem pôr. Dar o mais possível ao maior número, dar cheques e vantagens, à procura de benefícios ulteriores e na tentativa de retirar argumentos à oposição e aos populistas.

 

Apesar de não ser inédito, nem original, o Chega é um caso à parte. Não quer gerir a democracia. Pretende capturá-la ou destruí-la. Por “dentro” ou por “fora”. Com ou sem eleitorado. Com ou sem protesto nas ruas. Tudo o que este partido faz tem um sentido: incomodar os partidos democráticos, prejudicar o governo, dar voz e força a tudo o que seja protesto, criar fontes de conflito e liquidar as vias democráticas de governo. Isso já se sabe. Todos sabemos. Só que, como sempre acontece nestes casos, o Chega tem razões. Todas as fontes de descontentamento são as suas razões. Todos os protestos são também seus. As reivindicações de todas as populações são suas. Sobretudo quando os governos ou os partidos democráticos não ouvem essas razões e nada fazem para as tratar e resolver. Em vez disso, reclamam contra o Chega e garantem que este é fascista, racista e xenófobo. É possível que o Chega seja um pouco ou muito disso tudo, mas esse não é o ponto. É típico da democracia: reclamar contra o protesto, em vez de tratar das causas do protesto. 

 

Entrámos numa fase da vida política particularmente sensível. A situação internacional é ameaçadora, mas a nacional, por uma vez, não o é assim tanto. Por enquanto. Mau grado as pressões e revindicações sociais, apesar dos perigos populistas, a situação social e económica do país oferece alguma tranquilidade. Desde que os partidos parlamentares e de governo façam o que têm de fazer, cumpram os seus deveres e abdiquem do seu egoísmo interesseiro. Caso contrário, os partidos democráticos serão severamente julgados por não terem criado condições de governo. Por não terem querido tomar as decisões necessárias a assegurar a realização de reformas. Por não terem abdicado dos seus interesses a fim de tratar de forma mais segura da prosperidade do seu povo.

 

Na melhor tradição republicana, o PSD e o PS estão a arranjar lenha para se queimar. Alimentam populismos e protestos. Estão a ajudar a crise em vez de tratar dela. Cada um dos dois está obcecado, no Parlamento e no governo, com o prejuízo que pode causar ao outro. O PS quer tornar o governo incapaz, quer legislar em vez dele, quer ficar com os louros da oposição e denunciar a impotência do governo. E não quer dar os seus votos aos projectos do governo, a começar pelo orçamento, porque não quer ser cúmplice e quer ganhar votos para eventuais eleições. O PSD e o seu governo querem tudo exactamente ao contrário, o que quer dizer, tudo igual.

 

Utilizando os lugares comuns consagrados, o PSD e o PS não estão a servir os interesses do povo, nem os do público, estão a procurar satisfazer os seus. Hoje, o PSD e o PS não procuram o poder político para servir o povo, antes tentam satisfazer o interesse público para ganhar o poder. Ninguém é totalmente cínico ou sincero, ninguém é absolutamente velhaco ou bondoso. Todos têm de tudo um pouco. Em cada um, a verdade é a proporção de bom e de mau. No caso presente, sabendo o que sabemos, com as ameaças internacionais, com um governo minoritário, com os perigos do populismo, perante a previsão de dificuldades sociais, estes dois partidos têm a mais estrita obrigação de encontrar a solução de governo estável, sólido e competente.

 

É assim que se serve o povo. Ou o público.

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Público, 24.8.2024

sábado, 17 de agosto de 2024

Grande Angular - Para que servem os Pactos de Regime?

 A pergunta em título é de resposta múltipla. a) Para nada. b) Para disfarçar. c) Para enganar. d) Para adiar. e) Para evitar escolhas difíceis. f) Para transferir culpas por incompetência própria. g) Para responsabilizar os adversários. h) Todas as acima. A resposta certa é a última!

 

O “pacto de regime” é um mantra da democracia. O mais actual de todos. Já foi a educação. Cada vez que um político não sabia o que dizer, muito menos o que fazer, a saída era imediata: a escola! A frase começa por “a escola é muito importante para…” e termina com a identificação: a cidadania, a tolerância, o clima, a ecologia, a moral, os costumes e o civismo. Inventaram-se slogans agora com menos fulgor: “Educação para a saúde”. “Educação para a cidadania”. “Educação para o Património”. Com frases destas, evita-se a reflexão e a responsabilidade. E dá-se um ar de seriedade. Uma versão parecida era, por exemplo, “a cidadania começa na escola”. A fórmula dava igualmente para tudo. O que permitia culpar as gerações anteriores por defeitos e erros, ao mesmo tempo que remetia as soluções para as gerações futuras. Um “mantra” é coisa mágica. É feitiço. 

 

Agora, o mantra é o “Pacto de regime”. É antigo, mas tem cada vez mais saída e adeptos. Já houve tentativas no passado, nunca se chegou bem a vias de facto e o que se conseguiu falhou. Mas não retirou validade à bruxaria. O “pacto de regime” para a saúde é hoje o mais falado, o que tem mais adeptos, mas não é único. A educação, a luta contra a pobreza, a imigração e novamente a justiça estão entre os temas a que mais se alude para o referido “pacto”.

 

Como se trata de mágica, não é necessário tratar dos aspectos práticos. Mas tal é necessário. Na verdade, essas questões põem em causa o valor fundamental do “pacto”.  Como se faz um “pacto de regime”? Assinam todos, Presidente, Primeiro-ministro, Ministro da pasta, líderes dos partidos e presidentes dos grupos parlamentares? Não parece possível encontrar tal unanimidade. Nem responsabilidade. Como se pode tomar compromisso por longos períodos, sem ter em conta as gerações e as mudanças? Se é “de regime”, quem fica de fora? Se alguém ou alguns não querem assinar, já não é bem regime, mas quase. Tem o mesmo valor?

 

E a sociedade civil, trabalhadores, patrões, académicos e técnicos? Sem estes, um “pacto de regime” mais parece um acordo entre políticos, só entre “eles”, o que dá imediatamente mau aspecto. São sempre “eles nas costas do povo”. O que enfraquece a ideia de “pacto” e de “regime”. Mais valia recorrer a um dispositivo clássico chamado “referendo”, que aliás em Portugal tem má reputação e os partidos detestam.

 

Se o mais importante do “pacto” for a presença dos partidos políticos, dado que são eles que fazem os governos e os parlamentos, as perguntas óbvias são simples. A assinatura do líder partidário de hoje vale quanto tempo? Quantas legislaturas? E se a direcção de um partido, ou de vários, muda? Os novos líderes partidários ficam obrigados às assinaturas e aos pactos dos líderes anteriores? E se for um novo Ministro ou um novo Primeiro-ministro? Pode contrariar os “pactos” já assinados? Ou tem a obrigação de os seguir, como se fosse a lei do país? E se um novo governo entende, com a força do seu eleitorado, mudar o “pacto” e os seus dispositivos, como deve fazer? Mas se um governo pretende fazer a política nova, tem de pedir autorização aos restantes signatários dos “pactos”?

 

A acção legislativa fica, entretanto, limitada? Um parlamento não pode aprovar novas leis que contrariem os “pactos” precedentes? Mas não parece acertado limitar a soberania e a liberdade de um parlamento eleito, desde que as suas leis sejam legais e aprovadas pela maioria. Fica-se com a impressão de que um “pacto” tem duas possíveis existências. A primeira é autoritária e antidemocrática, obrigando as gerações futuras, os governos e as maiorias a respeitar decisões prévias. Decisões que nem sequer têm força de lei, muito menos de Constituição. São regras morais, ou crenças filosóficas e boas intenções que teriam mais força de lei do que as leis propriamente ditas. A segunda é de absoluta inutilidade e de mera propaganda. 

 

Não é por acaso, mas as ideias de “pactos de regime” surgem sempre em momentos estranhos. Com governos minoritários. Com oposições impotentes. Com presidentes hiperactivos. Com partidos egocêntricos. Em momentos de indecisão e transição. Surgem sobretudo quando um ou mais partidos se recusam a fazer o que deveriam, isto é, alianças parlamentares e coligações de governo, formais, duráveis e programáticas. Quando os partidos não querem fazer governo estável de maioria e de legislatura. Isto é, a ideia de “pacto de regime” surge sempre em momento de fraqueza, de indecisão, de cálculo interessado e de fuga à responsabilidade. 

 

O mais importante “pacto de regime” que se conhece tem um nome, Constituição. Esse é o “pacto”. Respeitado por todos. Só alterado em condições muito especiais, a fim de não mudar todos os dias. Suficientemente maleável para permitir viver em tempos diferentes.  Mesmo absurda em tantos aspectos, a nossa Constituição foi pacto que deu uvas. Um verdadeiro milagre. Permitiu 50 anos de vida, assim como sobreviveu a várias revisões, duas das quais atingiram a alma e o essencial, e ainda bem, pois vivíamos um quadro constitucional insuportável. Foram essas duas grandes mudanças (incluindo o essencial das estruturas económicas e o poder político) que permitiram que a Constituição sobrevivesse até hoje sem desastre de maior. 

 

Além da Constituição, há uma espécie de “pactos de regime” silenciosos, invisíveis, mas que têm sido muito eficazes. Nunca tratados como tal, mas discretamente aceites. Um é o que considera irrevogável a presença de Portugal na União Europeia. Nem todos aceitam, vários momentos vivemos nas últimas décadas em que a saída de Portugal da União ou do Euro foi defendida publicamente em campanhas eleitorais. Sem grande êxito, aliás. Também a participação de Portugal na NATO, de que é fundador e membro desde 1949, é tão sólida com um “pacto de regime” (e mais ainda, de dois regimes…), nunca foi objecto de assinatura formal entre partidos, mas quase todos a aceitam, com as reservas habituais dos comunistas que entendem que o país deveria sair. Um especial respeito pelas Forças Armadas faz também parte destes pactos invisíveis. Respeitados, em geral.

 

Pactos já temos. Falta é governar bem. Com maioria.

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Público, 17.8.2024

sábado, 10 de agosto de 2024

Grande Angular - Os culpados habituais

 As políticas públicas têm, entre nós, resultados muito variados. Há, ao longo dos anos, êxitos indiscutíveis, como nos casos dos serviços domésticos, da mortalidade infantil, da alfabetização e do desenvolvimento da ciência. Vamos admitir que os responsáveis por estes feitos são os governos (uns mais do que outros), as autarquias (com diferenças entre elas), a Administração Pública, as empresas e os cidadãos. É o que se chama uma história feliz. Todos contribuíram para o bem de todos.

 

Mas também há resultados negativos. Ou seja, erros, falhanços, ineficácia, injustiça e corrupção. Os responsáveis serão mais ou menos os mesmos, dos cidadãos aos governos, passando pela empresas e pelas autarquias. Só que há algo mais a dizer. Cada um culpa os outros pelos erros e atrasos. Cada partido, com anos de governo, culpa os anteriores e os sucessores. Os partidos sem experiência de governo culpam os outros. As autarquias culpam os governos e a Administração central, além dos partidos das suas oposições. Os cidadãos culpam quase todos: “eles”.

 

Será sempre assim. É muitas vezes assim.  O eleitorado lá vai fazendo distinções, por vezes acertadas, por vezes ilusórias, mas sempre verdadeiras pois são as suas escolhas. É frequentemente difícil apurar quem foi responsável pelos erros e pela inércia. A democracia é assim. Por isso a “não democracia” culpa tudo e todos, com os chavões habituais: “são uns inúteis”, “ladrões” ou “corruptos”. Não se vai lá muito longe com esta disposição de espírito, mas a democracia é assim. Bom é saber guardá-la, com as suas imperfeições e as suas insuficiências.

 

Este relativismo sereno não pode ocultar os casos mais sérios. Há na verdade situações e falhanços que merecem análise atenta. Não propriamente para designar o culpado e encostar o responsável no pelourinho. Mas para perceber porquê. Só depois disso será possível fazer melhor.

 

É difícil eleger os casos mais graves e que melhor nos podem servir para aprender. Mas, nos tempos que correm, o primeiro parece ser o Serviço Nacional de Saúde. Aquele que foi, para muitos e durante anos, a pérola da democracia portuguesa e o caso mais brilhante das políticas públicas, transformou-se, diante de todos, com notícias sucessivas, no caso mais flagrante e no insucesso mais cruel. O fiasco das urgências, das maternidades, da obstetrícia e das cirurgias ultrapassa os limites do entendimento. Dinheiro? Investimento? Previsão? Organização? Vencimentos? Ganância? Concorrência? Mudança de costumes? Alteração da procura? Tudo pode ser invocado. Mas tudo era previsível. E para tudo havia recursos. O que faltou? O que falhou? Por que razão PS e PSD, ao longo de décadas de governo, não souberam gerir, não conseguiram corrigir, falharam as previsões, descuraram o sistema e deixaram o SNS entregue ao acaso e aos profissionais que, contra o vento, tentam fazer muito mais do que os seus deveres?

 

Segundo caso de incompreensível incompetência, o do aeroporto de Lisboa. Após dez, vinte, trinta anos de hesitação, de promessas, de estudos, de contradições, de certezas, de garantias e de demagogia, ainda estamos nas vésperas das decisões, na antevéspera dos concursos e longe de certezas sobre a dimensão, a localização, o equipamento e a modalidade. Ao longo das décadas, vários líderes do PS e do PSD, Primeiros-ministros dos dois partidos e diversos ministros de ambos, anunciaram convicções e tomaram decisões. Contradisseram-se e desmentiram-se. Negaram o que fizeram e mudaram de opinião. E não foram só os partidos, os governos e a Administração pública, foram também as mesmas empresas de auditoria, de projecto, de consulta, de advogados, de engenharia e de lobby. O aeroporto já teve pelo menos cinco localizações, três variantes e quatro modalidades. Com frequência, as mesmas pessoas ou as mesmas instituições disseram, em poucos anos, o que se devia fazer e o seu contrário.

 

Terceiro caso de inegável incompetência, de absoluta insensatez e de incompreensível falhanço: o caminho-de-ferro, a rede de comboios, o sistema antigo, as novas linhas e o famigerado TGV. O que se passou realmente nestes trinta anos durante os quais todos os governos e os seus dois grandes partidos, PS e PSD, prometeram renovar, revalorizar, equipar, modernizar, aumentar e melhorar as redes existentes e construir novas e todos, sem excepção, fizeram exactamente o contrário? Fecharam centenas de quilómetros de linhas. Apodreceram outros tantos. A “grande velocidade” foi adiada décadas. Os equipamentos ficaram obsoletos. O sistema actual é um verdadeiro escândalo de desconforto, de insegurança e de ineficácia.

 

Quarto caso a merecer análise, o estado a que a justiça chegou. A morosidade é proverbial. A tendência para a prescrição inscreveu-se nas tradições nacionais. A luta entre corpos profissionais, agressivos e auto-suficientes, atingiu cumes inéditos. O uso e abuso de escutas telefónicas e a gestão das mesmas ao longo do tempo e em conformidade com as qualidades dos “escutados” ou de suas vítimas desesperam qualquer pessoa ciosa do Estado de direito e dos direitos dos cidadãos. A divulgação de segredos e de conteúdos de escutas é hábito que distorce o direito e o sentimento de justiça. A evidente desigualdade social que a justiça portuguesa confirma e dilata é indiscutível. A corrupção continua a minar impunemente os alicerces da democracia. A incapacidade de adiantar e terminar processos que envolvam muito dinheiro, políticos reputados e ricos poderosos começa a ser lendária. A perda de confiança na justiça, por parte de tantos cidadãos, é notória e perigosa. A justiça vive em desequilíbrio profundo, favorecendo alguns profissionais, certos corpos e os poderosos. Com uma característica especial: como toda a gente depende da justiça, como quase todos aspiram a justiça e como muitos receiam represálias, estabelece-se uma crença: não é assim tão grave, a justiça ainda faz muito, são só uns casos excepcionais… Verdade é que parece ser o caso mais flagrante de impotência do legislador, de fraqueza do soberano e de incapacidade dos reformadores. 

 

PS e PSD têm de comum uma história de serviços prestados ao país e à população. Essa história é indiscutível. Mas também têm de comum uma enorme ineficácia e um estranho hábito de uso e abuso do poder político. Como têm de comum terem deixado decapitar a inteligência e a capacidade técnica do Estado, deixando-o à mercê da demagogia e dos vampiros habituais.

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Público, 10.8.2024