sábado, 13 de setembro de 2025

Grande Angular - Desleixo. E indiferença.

 O acidente do Ascensor da Glória deu origem a momentos difíceis de suportar. Sobretudo para os que foram atingidos pela dor. Mas olhar para o que se seguiu, o que se viu e ouviu, o que ainda se passa, é motivo de desânimo. Talvez seja assim noutros países, o que é indiferente. O que se passa em nossa casa é suficiente.

 

            A utilização imediata do acidente, como argumento político, foi evidente e de penosa observação. Não faltou quem, com ou sem conhecimento dos factos e das circunstâncias, exigisse uma imediata demissão, naquele que é o gesto mais banal da política portuguesa. Logo seguido dos que, teatralmente, garantiram que tinham cumprido todos os seus deveres. Depois, vieram os que acusaram os outros de fazer política, de aproveitamento, como dizem. Sem esquecer, claro, os que fizeram política, garantindo que não faziam. Toda a gente prometeu ou exigiu inquéritos e estudos, até às últimas consequências, “doa a quem doer”, em que tudo será dito e revelado. Como em tantos outros inquéritos e estudos que ainda hoje estão por concluir e publicar.

 

            A responsabilidade pelo que aconteceu, ou a “culpa”, como se tem repetido, será talvez apurada, um dia. Será pessoal ou institucional, política ou técnica, da corrupção ou da ignorância. As conclusões poderão ser conhecidas a tempo de indemnizar as vítimas ou de castigar os responsáveis. A avaliar pela tradição e pela história, não é certo que assim seja. Mas, se for, ao menos temos isso. Porque pode faltar o que é igualmente importante: que haja consequências, que se faça o que é preciso para que não se volte a repetir. Para que os portugueses em geral, os políticos, os funcionários, os engenheiros, os autarcas e tantos mais retirem lições e aprendam com os desastres. E tenham em conta com o mais importante de tudo: os direitos e a segurança dos cidadãos.

 

            O que está em causa são algumas das características nefandas da nossa sociedade e do Estado. O desleixo ou o desmazelo estão presentes por todo o lado. A negligência, a incúria e o desinteresse, também. Pode haver regulamentos extraordinários, protocolos modernos, regras exigentes, mas a sua aplicação deixa sempre a desejar. Qualquer projecto, decreto-lei, programa ou portaria é meticulosamente elaborado, com todos os pormenores jurídicos e administrativos, técnicos e económicos, assim como regras e competências. Mas o que falha é o essencial: a sua aplicação à sociedade, a homens e mulheres, a pessoas.

 

            Os capítulos malfadados da negligência e do desleixe são conhecidos. A manutenção de sistemas e aparelhos. A fiscalização da obra e do funcionamento. A inspecção. O cumprimento de prazos e o respeito pelo calendário. A pontualidade. A minúcia. A paciência. A consulta à opinião dos utentes. A resposta às críticas. A avaliação das vulnerabilidades. O permanente acompanhamento dos sistemas e dispositivos. É sempre aqui que falham os melhores projectos, que fracassam os planos mais sofisticados.

 

            As palavras-chave são: descuido, desmazelo, desleixe, negligência, desinteresse e indiferença. Uma das razões pelas quais é sempre muito difícil encontrar responsáveis por acidentes reside aqui: o rigoroso acompanhamento não é feito. Ou mal feito. Ou tardiamente feito.

 

            Toda esta triste realidade é especialmente visível quando se trata de serviços públicos. Como todos sabemos e sentimos. Os atrasos nos comboios e nos autocarros. O indigente desconforto nos transportes públicos, das paragens às carruagens. As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais para consultas, exames e cirurgias. As esperas nas lojas do Cidadão, nos organismos para a imigração, nos serviços de identidade e de segurança social. Há filas de espera nos corredores, nas garagens, nas ruas, nos passeios e nos jardins, ao sol ou à chuva, mas sempre na humilhação. Há esperas para todas as inscrições imagináveis, nas escolas, nas creches e nas universidades. Há filas nos tribunais e nas repartições. Nas Câmaras e nas Freguesias. Até no Aeroporto!

 

Há mesmo um grupo de companhias, empresas e serviços, especializadas em atrasos, filas de espera, encarecimento e mau trato infligido aos clientes e utentes: são as companhias de telefone, telemóvel, água, electricidade e gás. Este é o reino do absurdo, do despotismo e da indiferença burocrática. Os contratos são quase sempre verdadeiras armadilhas em que todas as regras de preços, aumentos, renovação e duração são feitas contra os cidadãos. São estas companhias as mais assíduas e crentes nos sistemas de “fidelização”, um roubo legalizado ou uma emboscada contratual na qual as vítimas são evidentemente os utentes e assinantes.

 

São estas últimas companhias as rainhas do “call center”, sistema de atendimento, mas que na verdade é sobretudo um mecanismo de afastamento dos clientes e assinantes. Gravações entediantes e incompreensíveis, longuíssimos minutos de espera, música absurda, diálogo através de teclas, espera e mais espera. Estes são os sistemas, com total cobertura legal, sem fiscalização nem avaliação, através dos quais as companhias (geralmente privadas, mas podem incluir públicas) exploram os seus clientes ou subscritores e fazem-nos sentir culpados e obsoletos.

 

            Que tem tudo isto a ver com os acidentes do ascensor ou dos incêndios? A mesma atitude, os mesmos princípios: negligência e desmazelo. Indiferença pelo serviço público. E sobretudo esta ideia de que o público, os cidadãos, os trabalhadores ou os utentes das classes médias e baixas têm de aguentar. O que deveria ser primordial, receber bem e cuidar melhor, é apenas secundário e dispensável.

 

            O Ascensor da Glória é mais um numa longa e sinistra lista. Que inclui uma série fatal de incêndios florestais de 2003, 2005, 2013, 2016 (na Madeira) 2017 e 2025 especialmente os de Pedrógão, Arganil, Castanheira de Pêra e Seia, os desastres ferroviários de Alcafache e de Custóias, a aluvião da Madeira, a queda da ponte do Douro em Castelo de Paiva ou Entre-os-Rios, os vários acidentes aéreos da Madeira, dos Açores, de Lisboa, do Porto e do Algarve. Nuns casos, sobressai a falta de previsão e a negligência. Noutros, a incompetência. Noutros ainda, a falta de acompanhamento e de assistência às consequências. Em todos, a indiferença perante os serviços públicos e os cidadãos.

 

            Empresas e Administração Pública têm a certeza de que não há ninguém, ou quase ninguém, que as vigie, que as critique, que as obrigue a adaptar-se ao bem-estar dos cidadãos, à sua segurança e ao seu conforto. Numa palavra, aos seus direitos.

.

Público, 13.9.2024

sábado, 6 de setembro de 2025

Grande Angular - O mundo que nós perdemos

 Enquanto, na Ásia, um inédito arraial exibe os novos vencedores e o futuro arranjo da balança de poderes, deste lado do Ocidente, o Presidente dos Estados Unidos envia tropas para Chicago ou mata uma dúzia de traficantes de droga venezuelanos. Após alguns anos de mutação lenta e gradual, de repente, o mundo acelerou. A ponto de merecer consagração. Na China e na Rússia. Com mais de metade do mundo a apoiar e a regozijar-se.

 

É verdade que, de tempos em tempos, o mundo necessita de ajustes. E mesmo quando estes não parecem ser necessários, acontecem. Aceite-se que o mundo actual está a pedir arranjo. Há alianças a desafazer-se, há novas a preparar-se. As desigualdades económicas e sociais têm crescido. As diferenças de poderio militar entre as nações são maiores. A competição armada atingiu graus perigosos. O mundo pobre e miserável, sobretudo africano, vive em guerra civil e é todos os dias despojado. A Rússia recuperou toda a sua força agressiva. A China chegou a uma posição única na história. Temendo a perda da hegemonia clássica, a América perturba com a guerra comercial. A Europa oscila entre a letargia e a hesitação.

 

As diferenças entre hoje e o que o mundo era há meio século são enormes. Há pessoas, de cinquenta anos, que não acreditam. Quando se menciona o apartheid, o comunismo, a pobreza, a fome e o racismo, há quem pura e simplesmente não acredite. Quem pense que se trata de banda desenhada. Em poucos anos, os mapas mudaram. A “Guerra Fria” começou e acabou, para ser agora novamente receada. O ascendente comunista e socialista foi imparável, antes de decair com estrondo. A chegada das colónias à independência anunciava uma nova humanidade. Uma voz do chamado “Terceiro Mundo” trazia para o presente um futuro apenas sonhado. Mas as guerras civis e a fome em África vieram desmentir a promessa. Lentamente, parecia que os Estados Unidos perdiam a sua hegemonia indiscutível. A derrota no Vietname sugeriu uma fragilidade inesperada.  Entretanto, o mundo do petróleo e da finança internacional afirmou-se com laivos de independência. E o desafio asiático, ganho em poucos anos, anunciou um novo equilíbrio ainda mal desenhado. A implosão absoluta do mundo comunista soviético chegou a parecer uma promessa de democracia. Tudo isto e muito mais se passou no tempo de uma vida.

 

Não é possível, pelo menos por enquanto, falar em nova aliança, ou sequer novas alianças, que incluam a China, a Rússia, a Índia, o Irão, a Coreia do Norte… Quem sabe se o Paquistão, o Iémen, o Laos e o Vietname…. Hipoteticamente, outros ainda, em África, no Próximo Oriente, na Ásia e até na América Latina. Mas é inegável que estamos a viver uma conjuntura favorável a uma convergência antiamericana, antiocidental, antieuropeia, anticapitalista e antiliberal. E também ainda uma conjuntura, ou antes, uma nova estrutura, favorável à China e à Rússia. A primeira como nova potência liderante, económica e industrial, mas já também tecnológica, científica e militar. A segunda, como potência militar restaurada e fornecedora de matérias-primas.

 

Para explicar aonde chegámos, há muitas interpretações, claro. É possível afirmar que a China só chegou aqui porque o mundo ocidental lhe abriu as portas, pediu emprestado, deslocalizou indústrias e transferiu tecnologia, tudo à espera do trabalho barato, da sociedade controlada e de um fabuloso mercado inesgotável. Como também é possível declarar que foi igualmente o mundo ocidental, europeu e americano, que enriqueceu a Rússia, comprando-lhe energia sem limites e matérias primas raras a preços invejáveis. É possível concluir que o mundo ocidental ajudou a fazer a China e a Rússia de hoje.

 

Também não se pode negar que algumas novas potências se afirmaram.  A Índia, o Paquistão e o Irão, pelo menos, fazem parte deste pacote “emergente”. Sem falar na aparição do fortíssimo poder do mundo islâmico graças a dezenas de anos de acumulação de colossais receitas do petróleo.

 

Outros fenómenos podem ser referidos como fazendo parte deste processo de transformação da balança de poderes. Por exemplo, o desinteresse europeu pela força armada, acompanhado da dependência marcada dos Estados Unidos. Estes, por diversas razões, reduziram o seu grau de empenho na aliança atlântica: ou porque olharam para o Pacífico e outras partes do mundo; ou porque entenderam que a Europa não os acompanhava. Pelos bons e pelos maus motivos, o certo é que, curiosamente, é no tempo do Presidente Trump que a América ficou menos poderosa e com rivais mais à sua altura.

 

A Europa está a perder. Seguramente. O universo europeu do Estado social e da política de prioridade aos direitos humanos está a perder também. Tal como a crença numa identidade europeia afecta à democracia, à cultura, à igualdade social e aos direitos humanos. Ao mesmo tempo incapaz de integrar imigrantes e povos de todos os horizontes e de regular os sistemas de acolhimento de estrangeiros.

 

Tempos houve, há poucas décadas, em que os países deste mundo, velhos e novos, aspiravam à designação de democracia. Inscreviam-na nas suas Constituições e até na sua designação oficial. As Repúblicas latino-americanas afastavam-se das suas tradições de golpes de Estado e procuravam alicerces para a democracia. Em África, apesar dos milhões de mortos nas suas guerras civis, os novos Estados independentes afirmavam fé democrática, declaravam com valor de lei que a democracia era o seu regime. As Repúblicas e os Estados asiáticos, com menor convicção, revelavam também a sua intenção democrática. 

 

Tudo isso acabou. Ninguém quer ser democrático, a não ser a minoria ocidental. E mesmo aqui, democracia é cada vez mais, para muitos, equivalente de conservador e privilegiado. Para não dizer opressor. É possível que a Europa e o Ocidente não percam muitas das suas regalias ou vantagens, nomeadamente económicas. Mas quem perde mesmo é a democracia e os direitos humanos. 

 

Podem a Europa e o Ocidente não ter só feitos de que nos orgulhemos. Muitos na história, alguns mais recentes. Entre guerras e conquistas, opressões e ditaduras, não faltam páginas negras. Mas a democracia e as liberdades dos cidadãos ficam como património excepcional que nenhum outro continente garantirá. Com a excepção jugoslava, as últimas décadas foram exemplos únicos de paz e democracia. Podemos não perder a liberdade e a democracia, mas deixámos de ser um exemplo. Os outros, a maior parte do mundo, deixaram de querer ser como nós.

.

Público, 6.9.2024

sábado, 30 de agosto de 2025

Grande Angular - O que quer o Chega

 Até quando abusará, Ventura, da nossa paciência? Até onde irão a sua determinação e a do seu partido em destruir o Parlamento, demolir as instituições, ridicularizar os órgãos eleitos e minar a representação popular? Até quando permitirá a República que estes senhores insultem os eleitos, ameacem os rivais, envergonhem os cidadãos, admoestem os adversários e ofendam quem se lhes opõe? Até quando permitiremos que esta turma de arruaceiros ofenda os deputados e os governantes, os políticos e os comentadores, os autarcas e os cidadãos?

 

Abusar do Parlamento? Ameaçar o Senado? Ofender a Assembleia? Acusar os Autarcas? Difamar os representantes do povo? É uma velha tradição. Catilina fez. Calígula insistiu. Robespierre também. Lenine e Estaline do mesmo modo. Hitler ainda pior. Idi Amin Dada tentou. Bokassa também.

 

O Chega é pouco educado. Não é democrata. Não é construtivo. Não é elitista. É inculto. É popular. É populista. É inteligente. Não tem pensamento político. Não tem doutrina. Não tem programa. Tem sentimentos. Tem raiva. Tem intuição. Tem olfacto. Sente a maré. Explora o fácil. Se o deixarem fazer, dá cabo de tudo. Tenta, pelo menos. Não respeita as instituições. Não se interessa pelo Parlamento. Se não o deixarem fazer, dá cabo de tudo. Tenta, pelo menos.

 

Um morto, um ferido, um acidente, um acto de violência, uma corrupção, uma adjudicação sem concurso, um favor de partido, um atraso, um injustiçado, um inocente condenado, um cidadão assaltado, um branco atacado por um negro, um imigrante que assalta uma bomba de gasolina, um político que enganou o fisco, um esquerdista que não declarou a propriedade, uma mãe com fome, um pai sem emprego, um pobre sem almoço e um velho numa fila de espera do hospital: é com esta matéria-prima que o Chega faz política. Com a ajuda das esquerdas e da comunicação social.

 

A denúncia destas situações é o argumento do Chega. Tem sempre razão. De todos elas diz que são uma vergonha. Não pretende, nem sabe, corrigir. Quer denunciar. Não tem solução nem meios para tratar do que quer que seja. Mas tem vontade e apetite de poder. É como uma bola a saltar, nunca pode parar. A bola do escândalo. A bola da vergonha. Se o atacam, se alguém o quer calar, aqui d’el rei que é contra a democracia.

 

São os mais ilustres provocadores na actual vida portuguesa. Provocam até que lhes digam basta, até que os ameacem, até que tentem utilizar a força ou a lei. No dia em que o fizerem, que utilizem a força e a lei contra eles, socorro estão a dar cabo da democracia. Vão continuar a inventar cartazes, bandeirolas, pichagens, foguetes, carros folclóricos, tatuagens e máscaras. Vão continuar a conspurcar a via pública com horrendos cartazes demagógicos, à espera que lhos tirem, que venham agredir quem os cola e que rasguem a sua liberdade de expressão. Vão sujar de demagogia barata as praças, as ruas e os largos. Mas, se pretenderem disciplinar a sua actividade de rua, aqui d’el rei que estão a atacar a democracia. O pior é que os outros, os outros partidos, os democráticos, os tradicionais, também sujam as ruas das cidades.

 

Que não se pense em proibir, interditar ou deter. Nada disso é legal ou legítimo. Nada disso é democrático. Salvo se cometerem crime, pelo que devem ser apresentados a Tribunal, nunca devem ser combatidos com meios violentos ou ilegítimos. Só devem ser derrotados de uma maneira, a democrática, isto é, com eleições. E só podem ser combatidos de um modo, fazendo melhor, não sendo corrupto, não sendo nepotista, não sendo intriguista, sabendo criar riqueza e sabendo governar. No dia em que os outros, da direita, do centro ou das esquerdas, souberem governar e governem efectivamente sem atrasos, sem erros, sem demagogia, sem corrupção e sem mentira, nesse dia, o Chega é derrotado.

 

Problemas ou crimes com incêndios? Negócios com queimados, aviões, helicópteros e mangueiras? A solução está à vista: 25 anos de prisão! Pena máxima! Prisão perpétua? Logo se verá. Noutros países é permitido. Violação? Simples: pena máxima de 25 anos e castração química. Violência infantil? Evidente: pena máxima de 25 anos! Infracção cometida por imigrante ou estrangeiro? Claro: expulsão imediata. Crime ou infracção cometido por português naturalizado? Óbvio: expulsão e perda da nacionalidade. Pena de 50 anos? Pena perpétua? Estão na agenda, nas esperanças do Chega e de Ventura. E serão bandeiras, enquanto a Constituição as proibir. Parecem bonecos de feira. Vozes gravadas, slogans automáticos, pensamentos mecânicos. Perante qualquer acontecimento, erro, insuficiência, desastre ou o que for: demissão do ministro, demissão do Primeiro ministro e comissão parlamentar de inquérito. 

 

É um dos velhos princípios de uma certa política: culpa os outros dos teus defeitos, responsabiliza os outros pelas tuas deficiências e acusa os outros dos teus erros! É exactamente o que os democratas e as esquerdas fazem relativamente ao Chega. 

 

Primeiro, caracterizam-no mal. É fascista, é neofascista, é neonazi, é salazarista, é ultraliberal e é neoliberal. Nada disso é inteiramente verdade, nem sequer maioritariamente verdade. Pode ser que haja disso, aqui e ali, no que o Chega faz ou diz. Mas nada daquilo serve a compreensão das causas do movimento político. Essas designações simplórias têm a vantagem de fazer a economia do pensamento. Mas de nada servem, a não ser revelar as insuficiências de quem as utiliza. Depois, escondem os erros dos seus autores. Culpar a extrema-direita de ser a extrema-direita é simplesmente estúpido. Culpar os outros pelo nascimento deste movimento já poderia ser um princípio de exercício de compreensão. O Chega não está no ponto em que está por ser fascista ou de extrema-direita. Está lá porque o deixaram ser e o ajudaram a crescer. As falhas da democracia são vitaminas para a direita não democrática. Como aliás já foram para a esquerda não democrática. 

 

A democracia não cai às mãos de assaltantes, começa por cair dentro de si. É o mau governo, a desigualdade, a corrupção, a indiferença social e a arrogância dos democratas e das esquerdas que são o viveiro das ditaduras, das aventuras de extrema-direita, de todos os populismos deste mundo. Será que o Chega tem solução para esses vícios e esses defeitos? Talvez não. É provável que não. Não é isso que ele pretende, o que procura é chegar ao poder, ficar no poder e guardar o poder. Porquê e para quê, depois se verá. 

Público, 30.8.2024

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Grande Angular - Ainda e sempre, a imigração

 O direito a viajar, emigrar, deslocar-se e estabelecer-se é de todos. Mas isso não implica o dever de receber imigrantes. Os países de acolhimento, os Estados que dão abrigo e os povos que concedem refúgio têm o direito e o dever de escolher, de aceitar ou de condicionar a chegada de pessoas de outras nacionalidades. Por mais universal que queiramos que sejam os valores de civilização e de humanidade, a verdade é que a democracia e a legalidade têm uma geografia. Existe um atlas da liberdade. Por isso as ditaduras não recebem imigrantes. Não reconhecem o direito de deslocação e viagem. Não aceitam os direitos de livre circulação.

 

Os povos, os Estados e os governos dos países de acolhimento têm o direito e o dever de tornar públicos os seus critérios de acolhimento. Que género de imigrantes estão mais dispostos a receber? Em que condições reconhecem um refugiado e um perseguido? Até que ponto definem a distinção entre imigrantes económicos e candidatos a refugiados? Portugal tem o direito e o dever de adoptar uma política de preferência, por exemplo, por falantes de língua portuguesa, habitantes das ex-colónias e europeus. Também pode, evidentemente, garantir que não tem qualquer preferência e que as condições de acolhimento são exactamente iguais para todos. Mas tal não é verdade.

 

Portugal tem o direito e o dever de estabelecer prioridades e preferências de carácter social, económico e profissional, de acordo com as suas necessidades e o equilíbrio familiar e demográfico. Esses critérios devem ser anunciados e elaborados com a participação das populações através de todas as maneiras conhecidas de associação dos cidadãos às decisões que lhes interessam.

 

Portugal tem o dever de zelar pela igualdade de condição entre cidadãos residentes e naturais, imigrantes, naturalizados e refugiados. As pessoas comportar-se-ão como entenderem, mas as entidades públicas não podem acordar privilégios nem estabelecer condições de cidadania de segunda ordem. As instituições oficiais devem cuidar por que os grandes serviços públicos de saúde, segurança social, educação, habitação e transporte respeitem uma absoluta igualdade entre naturais, imigrantes e naturalizados.

 

As autoridades portuguesas não têm o direito de transformar a política de imigração ou de nacionalidade em instrumento de domínio. As instituições públicas não têm o direito, por exemplo, de utilizar a nacionalidade, original ou obtida, como arma de submissão ou critério de participação. Fere as regras básicas de moral e de humanidade, assim como as da constitucionalidade que temos, a ideia de utilizar a nacionalidade como instrumento de repressão. Não é aceitável que existam critérios de legalidade penal diferentes para os nacionais originários e os naturalizados. A nacionalidade obtida é igual à original, não tem valor diferente.

 

As autoridades portuguesas têm o direito e o dever de tornar públicas as regras legais que condicionam as autorizações de trabalho e residência. É legítimo que existam vários escalões de autorização de residência, por exemplo, provisório, de curta duração, anual, de longa duração ou definitivo. Mas é indispensável que esses critérios sejam públicos.

 

É legítimo e recomendável que as autoridades portuguesas aprovem, pelas vias democráticas, as regras de procedimento, designadamente as associadas à residência de imigrantes. É direito e dever impedir, proibir e punir o trabalho ilegal, a fuga ao fisco, a residência ilegal, o recrutamento de trabalho ilegal e clandestino e a fuga às obrigações civis seja por parte dos imigrantes, seja pelos empregadores, senhorios ou intermediários.

 

Pelo que se sabe através da história, é evidente que Portugal, um qualquer Estado democrático, não consegue regular a evolução demográfica, a livre circulação de pessoas e a mobilidade espacial. Mas é indispensável que as autoridades tentem planear e prever o movimento migratório, de acordo com as necessidades e as capacidades de acolhimento. Como é um dever e um direito lutar firmemente contra a ilegalidade, a clandestinidade, a exploração e o abuso da precaridade.

 

As autoridades têm o direito e o dever de proibir e reprimir os comportamentos tão conhecidos relativos à clandestinidade, à ilegalidade e ao mercado negro de residências falsas, de alojamento infra-humano, de trabalho clandestino e de aluguer ilegal de carros, de habitação e de título de residência. Assim como combater os que organizam os circuitos ilegais de candidatos à imigração, incluindo os aviões de turismo, os barcos de transporte, os botes improvisados e os autocarros disfarçados.

 

As autoridades portuguesas têm o direito e o dever de controlar os reagrupamentos familiares, a fim de impedir que tais dispositivos se transformem num incitamento à ilegalidade. É dever reprimir e não tolerar o mercado de noivas e de maridos, o aluguer de crianças e de filhos, os casamentos disfarçados, a poligamia camuflada e outras formas de escapar à lei e de introduzir dolosamente novos procedimentos na vida civil.

 

Se cada povo tem o direito de escolher a quem oferece as melhores condições de acolhimento, a inversa não é verdade: um povo não tem o direito de ir para onde quiser obrigando os residentes a aceitá-los. Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais ou naturalizados. A começar pelo direito de voto em eleições que impliquem a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão e a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio. Mas a naturalização cria a total igualdade de condição.

 

O Estado português tem o direito e o dever de proibir práticas que infrinjam as leis vigentes, mas também os costumes que contrariem direitos fundamentais, como nos casos do incesto, do vestuário que contraria direitos da pessoa humana, da violência paterna ou materna e da crueldade marital. Ou ainda da excisão, do casamento forçado ou contratado, do uso de véu e Burca, da justiça pelas próprias mãos e da negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

As comunidades imigrantes que vivem fechadas em guetos ou bairros monocolores mais ou menos segregados, são ameaças à liberdade e à cultura, nossas e deles, dos residentes e dos imigrantes. A legalização e a integração dos imigrantes, a igualdade de direitos e o respeito pelas leis vigentes são os instrumentos fundamentais para obter o equilíbrio social e a dignidade humana.

.

Público, 23.8.2025

Grande Angular - Uma decisão soberana

Os ânimos estão muito vivos. A polémica corre facilmente pelo espaço público. Tanto em Portugal, como noutros países ocidentais. Que fazer com a imigração e os imigrantes? Deixar correr, controlar ou travar?

 

As opiniões chocam-se e não parece que haja solução fácil. Nos países de acolhimento, há quem se exprima a favor de políticas permissivas, de portas abertas e quem esteja firme na atitude inversa, de fronteiras fechadas. Entre as duas opiniões, há os que pretendem controlar a imigração, como, por exemplo, os que desejam só permitir a entrada de quem se precisa. Também há os que defendem a rápida legalização de todos os imigrantes, com ou sem contrato, com ou sem residência. Ou então, os que propõem a imediata expulsão de quem não entra legalmente. Há ainda os que desejam uma política diferenciada, isto é, ajustada a cada nacionalidade. Por exemplo, quem admita a permissividade para os países de língua portuguesa e a severidade para outros africanos e asiáticos. Há os que entendem que se deve ter uma atitude para cristãos e equiparados e outra para muçulmanos e afins. Também há quem acredite que se deve ter uma política permissiva para ocidentais, europeus em particular, e outra restritiva para africanos, latino-americanos e asiáticos. Também não faltam os que desejam uma política para imigrantes ricos e outra para imigrantes pobres.

 

No domínio dos argumentos dos mais activistas, as diferenças são muitas e a ferocidade imensa. É frequente encontrar quem acuse uns de supremacistas, de pretender assegurar uma posição dominante de cristãos e europeus, de defender a “pureza” da raça e de tentar garantir o domínio dos brancos. Como também não é raro ver quem acuse os outros de se esforçarem pela dissolução da nação e da comunidade, pela destruição das tradições portuguesas e nacionais e pela mestiçagem racial, étnica e cultural.

 

Se olharmos para as políticas públicas, também aí se encontram diferenças abissais e irredutíveis. Há quem exija que as autoridades, os poderes, as autarquias, as empresas e a sociedade defendam e pratiquem a integração dos imigrantes, com a muito rápida assimilação de costumes, língua, cultura, tradições e hábitos. Mas também, do lado oposto, quem cultive as políticas multiculturalistas que privilegiam a manutenção das culturas diferentes, o uso das línguas próprias, a educação separada, a religião diferenciada e pública e até práticas de legalidade diferente (casamento, vínculo familiar, sucessão, iniciação, gastronomia e saúde).

 

Do mesmo modo, é fácil ver a defesa da habitação integrada, de populações misturadas, sem distinção de comunidades de acordo com as origens e as etnias. Ou ver os que favorecem a diferenciação de bairros e de habitação em geral. Em poucas palavras, o urbanismo integrado e miscigenado em oposição ao urbanismo multicultural e separado.

 

As que precedem são opções simples que encontramos todos os dias. Vêm muitas vezes recheadas de argumentos contundentes. Os que receiam a imigração insurgem-se contra os respectivos perigos alegados: mais criminalidade, mais violência, mais droga, mais fuga ao fisco e incumprimento das leis. Em contraste, há os que defendem a imigração, demonstram que as suas comunidades respeitam as leis, pagam impostos, dão lucros à Segurança Social, criam emprego, trabalham onde falta mão de obra, executam as tarefas que os residentes não querem levar a cabo e sobretudo garantem a renovação das gerações graças à natalidade superior.

 

Elevando um pouco o debate, é usual encontrar argumentos relativos à história, à civilização e à natureza da comunidade. Muitos reagem contra a imigração pelo que esta representa como adulteração dos valores nacionais, das crenças históricas, das tradições que fizeram um país, uma língua e uma pátria. Outros recusam pura e simplesmente este ponto de vista, garantindo que Portugal e o povo português são o resultado de permanente mistura, da contribuição de vários povos e diversas origens e da constante mistura de nacionalidades e tradições.

 

Por mais difíceis que sejam os termos destes debates, saúda-se que estes tenham lugar agora. Mesmo se ríspidos e belicosos, mesmo se recheados de preconceitos, saúda-se o facto de se estar a discutir algo de importante. A definição do que é Portugal, do que é um povo e do que é uma cultura é bem mais relevante do que se pode pensar. Até certo ponto, os termos que se debatem fazem parte dos fundamentos da liberdade. O conhecimento de si próprio, tão isento quanto possível de preconceitos, é condição para delinear a liberdade e a autonomia de si próprio.

 

Nenhum destes problemas é exclusivamente português. Com excepção das ditaduras, todo o mundo vive hoje sob o signo das migrações, resultado dos desequilíbrios e das desigualdades demográficas, sociais e económicas. Portugal pode revelar traços próprios, como, por exemplo, a simultaneidade da partida de dezenas de milhares de emigrantes e da chegada de dezenas de milhares de imigrantes, mas na verdade partilha com tantos outros países condições sociais e demográficas semelhantes. Além disso, Portugal faz parte de um conjunto político que se transforma todos os dias em tecido social, económico e cultural feito de interdependência. Em certo sentido, as migrações portuguesas já não são problemas portugueses, são a versão portuguesa de questões europeias e internacionais. Por outras palavras, não é razoável pensar que se pode tratar da questão das migrações exclusivamente numa perspectiva portuguesa. A não ser que o país deixe a União Europeia, feche as suas fronteiras e estabeleça uma ditadura.

 

Sendo assim, qual a solução mais razoável? Gerir o dia a dia e ir com a corrente, ou tentar fazer uma política própria, só nacional? A verdade estará algures a meio caminho, entre a afirmação de vontades nacionais e a partilha de destinos e políticas com os nossos parceiros. Por isso se saúda a actualidade do tema e da discussão, mesmo se o Governo e os partidos estejam mais preocupados com as percepções, as impressões e as consequências eleitorais. Uma coisa é certa: deixar correr e permitir avolumar-se o mal-estar das migrações é um erro catastrófico. Tal como é um engano monumental pretender tratar destes problemas apenas numa óptica nacional. 

Mas mesmo isso tem de ser uma decisão informada e soberana. Ela própria uma decisão nacional e livre.

.

Público, 16.8.2025 

sábado, 9 de agosto de 2025

Grande Angular - A vitória do trivial

 O quadro é simples. O governo tenta governar como se tivesse a maioria parlamentar e uma legislatura de quatro anos à sua frente. Como há leis e orçamentos, além de decretos que podem ser chamados ao parlamento, o governo também tem ideia assente: aprova leis ora com o Chega, ora com o PS. E se mais houvesse e mais fossem necessários, faria o mesmo. O importante é fazer “como se”. Como se tivesse maioria. Como se os partidos da oposição precisassem mais do governo do que este deles. Como se o apoio do Presidente estivesse garantido. O governo olha em frente. Não discute nem negoceia. Faz. Quem quiser ir com ele, vai. Quem não quiser, paciência.

 

A pequena política e a pequena governação fazem-se todos os dias. Mais dinheiro para contribuintes. Mais subsídios para pensionistas. Menos IRS para aqui. Mais bónus para ali. A grande governação segue também a sua via. São anunciadas reformas de serviços dos ministérios. Sugeridas novas leis sobre temas fundamentais como o trabalho, a saúde, a educação e a segurança social. Promessa de abertura de novos projectos. O lítio, o aeroporto, o TGV, a TAP, a CP, o Centro de Dados e a terceira ponte do Tejo são apenas alguns dos planos que serão acelerados de modo a dar resultados eleitorais e a preparar uma maioria absoluta. Assim como reforçar os interesses estrangeiros. O governo não espera por maiorias para governar e reformar. Governa e reforma para obter a maioria. O que deixa o Chega e o PS em situação difícil. Deixar e depois perder? Ou impedir a depois perder à mesma?

 

Nada disto é novo. Já vimos parecido ou igual. Mário Soares tentou, sem conseguir. Cavaco Silva também, mas com mais êxito. Guterres esforçou-se. Sócrates e Costa desperdiçaram. Montenegro perdeu a primeira volta, veremos agora a segunda. Uma coisa é certa: na maior parte dos casos, a governação segue o interesse político, partidário ou pessoal. A procura da maioria programática e duradoura, garantia de eficácia e reforma, parece estar sempre ao serviço um desígnio maior, o de conquistar o poder. É pena, mas é assim.

 

O espaço público, da política, das instituições, das redes e da comunicação social, está repleto de trivialidades, de pequenas histórias que enfeitam a política e impedem os grandes debates. Pior ainda: está cheio de banalidades que escondem as principais escolhas. Importante é saber se o PS apoia ou não uma lei ou um orçamento. Ou saber se o Chega vota a favor de outra lei e de outro orçamento. Importante é saber se o Presidente Marcelo apoia hoje ou nega amanhã. Decisivo é impedir que problemas sérios ocupem a agenda pública, que debates substantivos esclareçam a opinião e possam mesmo envolver cidadãos, classes e instituições. 

 

O governo tenta passar leis de trabalho que sejam mais simpáticas para os patrões, sem que se perceba muito bem. Esforça-se por manter o país como fornecedor de emigrantes e acolhedor de mão-de-obra barata e precária. Tenta atrair empresários e capitalistas, não especialmente os nacionais, que não têm capital nem saber suficientes, mas os internacionais que importam. Tudo isto merecia debate nacional, aberto e permanente, mas não será o caso. Tem é de se saber quem vota a favor, quem apoia…. Chega? PS? PR?

 

O governo procura ainda, nas leis laborais, mecanismos punitivos contra as mulheres, não por ser machista, mas porque quer ter uma economia mais aberta, com menos interferência social, com mais permissividades e menos direitos. Até lhe ocorreu castigar a maternidade e penalizar os respectivos projectos, sem fundamentos empíricos evidentes, mas certamente com preocupações mediáticas e partidárias. E muito preconceito.

 

Perante a justa pressão pública para que se faça o debate nacional sobre as questões de nacionalidade, assim como sobre a política de imigração, o governo responde atabalhoadamente, quer agradar aos seus clientes eleitorais, mas pretende sobretudo desarmar o Chega, ao mesmo tempo que incomodar o PS. Fez más leis e tentou desnortear o Presidente da República. As suas leis, justamente chumbadas e vetadas, revelam falta de cuidado, precipitação e obsessão ideológica.

 

Mais uma vez, o governo ocupou-se da TAP e fez lei que permita a venda e a privatização, quem sabe se a liquidação. É chocante e incompreensível que todos os governos se queiram ocupar da TAP, que a sua privatização e a sua nacionalização, assim como a reprivatização e a renacionalização, estejam sempre na ordem do dia. Quanto já se perdeu, em valor, capital e reputação, com esta hesitação e estas manobras? Haverá assim tantos interesses ilegítimos ou disfarçados que explicam esta saga da TAP?

 

Também de repente, sem aviso nem preparação, sem revelação de fundamentos e de objectivos, é anunciada a extinção da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), organismo público de excepcional peso e importância, com orçamento e despesa que ultrapassam os 800 milhões de Euros. É um dos mais importantes órgãos do Estado, de cuja actuação podem depender milhares de pessoas, centenas de instituições, muita ciência e uma boa parte do futuro do país. Veremos se o governo decidiu bem, se sabe mais, se tem melhores planos e se vai conseguir que o substituto valha a pena. Mas não parece que este método de supetão seja o mais adequado para reformar um organismo de tal importância académica, educativa, científica e cultural.

 

Ainda à cabeça da vida nacional, à frente nas redes e na comunicação, estão as intervenções descabidas, de mau gosto e de baixo estofo moral, de André Ventura sobre as crianças estrangeiras nas escolas. Mais uma vez, o incidente é mais importante do que o tema. O mundo quer saber o que pensa o Presidente, o que diz o governo, o que acha a oposição. Há mesmo quem preveja um processo judicial contra a declaração do deputado. Futilidades.

 

Importante, realmente importante, vital para o país e para os portugueses, essencial para a qualidade de vida dos cidadãos, molde das gerações futuras é o problema das relações entre Belém e São Bento, entre o governo e o Presidente, entre Marcelo e Montenegro. Mais importante ainda é o voto do Chega. Imigrantes, naturalização, licenças de maternidade, despedimentos de trabalhadores, regime de precaridade, FCT, TAP, TGV, terceira ponte, lítio e Central de Dados: tudo isso tem importância relativa. Realmente importante é a coreografia do governo, do Presidente, do Chega e do PS. 

Público, 9.8.2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Grande Angular - A guerra perdida de Israel

 É provável que, como nunca antes, a larga maioria da opinião pública mundial e das posições dos Estados esteja contra Israel, contra a sua campanha militar, contra os métodos utilizados em Gaza e contra a responsabilidade do governo na não obtenção do regresso dos reféns. Até já dentro de Israel a opinião contrária ou crítica do governo e da sua acção em Gaza e na Cisjordânia começa a ser significativa e pública. As reacções justas e justificadas do governo e das Forças Armadas de Israel contra os covardes ataques do Hamas começaram por ser aceites sem dificuldade. Dois anos depois, são geralmente consideradas desproporcionadas, excessivas e até dignas do epíteto de genocídio. Os mais indignados fazem mesmo repetidas alusões ao Holocausto. De vítima, Israel passou rapidamente a criminoso.

 

Há, evidentemente, razões para isso. A destruição de Gaza, os bombardeios das cidades e vilas, a destruição de escolas e hospitais, a morte sem distinção de militares, guerrilheiros, terroristas, civis, idosos, doentes, mulheres e crianças e a imposição de regime de fome e sede são motivos suficientes para condenar a política do governo de Israel. O massacre de uma população, de um povo, de uma comunidade e de um país é motivo mais do que suficiente para criticar e rejeitar a acção do governo de Israel.

 

É impressionante ver como a opinião pública crítica e contrária à política do governo de Israel foi crescendo ao longo destes dois anos. A crueldade terrorista dos ataques islâmicos de 7 de Outubro de 2023 foi quase universalmente condenada. Excepto nos países mais fanáticos, a começar pelo Irão e incluindo o Líbano, o Iémen e a Síria, a campanha do Hamas contra Israel foi então criticada. Mais de mil pessoas assassinadas e mais de duzentos reféns foi o resultado imediato da acção terrorista, prontamente denunciada pela opinião pública mundial. Depois disso, a acção do governo de Netanyahu conduziu sistematicamente a mudar a opinião, actualmente em maioria desfavorável a Israel. Foram, até hoje, mais de 50.000 palestinianos mortos. Foi uma espécie de país totalmente destruído, onde deixaram de existir casas, ruas, vilas e cidades. Foram, provocadas pelo governo de Israel, a fome, a sede e a doença, assim como a falta de cuidados médicos e de apoio humanitário. Multiplicam-se hoje, pelo mundo inteiro, as manifestações e os protestos contra o governo de Israel, sem que ninguém ou praticamente ninguém se levante para defender e apoiar este país.

 

É chocante ver como os movimentos terroristas do Hamas, do Hezbollah, da Al Qaeda, do Estado Islâmico (ISIS) e da Jihad Islâmica, assim como os Estados que os apoiam explicitamente (com relevo para o Irão) têm vindo a receber e gozar do estatuto de vítimas, de movimentos políticos razoáveis e de partidos com ideias aceitáveis pelo resto do mundo. Mais ainda, estes movimentos, condenados por grande parte da opinião, são hoje considerados como interlocutores aceitáveis. O Hamas, o Hezbollah, restantes grupos terroristas e respectivos governos apoiantes souberam, com mestria, aproveitar e fomentar a onda de opinião a seu favor. A utilização intensiva de feridos e de cadáveres de mulheres, de crianças e de idosos na comunicação social do mundo inteiro está a dar resultados valiosos para as suas causas. 

 

Mais do que nunca antes na história, os movimentos terroristas islâmicos, a começar pelo Hamas e pelo Hezbollah, utilizaram os civis, os idosos, as crianças e as mulheres como escudos humanos. Esconderam-se debaixo deles, sob os hospitais e as escolas, dentro dos lares de velhos e doentes, a fim de provocar massacres de inocentes para poder exibir nas televisões, nos jornais e na ONU. Cavaram centenas de quilómetros de túneis e de subterrâneos sob as cidades, debaixo das instituições, das escolas e dos hospitais. Raramente, na história da humanidade, se assistiu a uma tal crueldade, a um tal cinismo. Os movimentos terroristas, a começar pelo Hamas, procedem com especial cuidado a fim de provocar sempre a morte de crianças, o desmembramento de idosos e os ferimentos de mulheres. A morte por fome e sede, a desnutrição, a subnutrição e os ferimentos mortais de crianças são procurados pelo Hamas e exibidos com orgulho como prova da sua justeza e da crueldade de Israel.

 

No mundo ocidental, na Europa, nos Estados Unidos, no Canada e na América Latina, mas também na Austrália, no Japão e na Nova Zelândia, Israel é hoje o agressor cruel e desumano, enquanto os terroristas do Hamas e seus apoiantes são as vítimas. Na Europa e na América, tem tido larguíssimo curso esta realidade dos “dois pesos e duas medidas”, ou de “double standards”, que tanto mal faz à democracia e ao sentido de humanidade. Que tanto prejuízo provoca nos fundamentos da moral pública dos países democráticos. Os países que não reconhecem Israel, que desejam e lutam pela sua extinção, são desculpados e justificados. Mas são condenados os que não reconhecem o Estado da Palestina.

 

A discussão sobre a solução dos dois Estados e sobre o reconhecimento do Estado da Palestina está já a dar frutos favoráveis aos movimentos terroristas. Não se exige o reconhecimento do Estado de Israel, mas sim e apenas o da Palestina. Considera-se aceitável a política oficial de vários movimentos e de alguns Estados da região que consiste em propor a eliminação do Estado de Israel e a expulsão do seu povo. Reconhece-se o direito à sobrevivência e à defesa de qualquer grupo ou Estado islâmico, mas não se reconhece o mesmo ao Estado israelita.

 

O povo de Israel, com toda a sua formidável história, notável nas ciências, nas artes e nas finanças, um “povo orgulhoso”, como lhe terá chamado De Gaulle, este povo não merecia esta enorme derrota política, humanitária e cultural, cujas consequências se vão arrastar durante tempos sem fim. O governo de Israel tem todo o direito a defender a sua existência, cabalmente legalizada há décadas, mas não tem o direito de massacrar outros da maneira como está a fazer em Gaza e se prepara para fazer na Cisjordânica. Tem o direito de atacar o Hamas e o Hezbollah, assim como os governos da região que os apoiam, mas não tem o direito de massacrar um povo. O governo de Israel, raríssima democracia naquela região do mundo, não tinha o direito de infligir esta derrota ao seu povo e à democracia do seu Estado.

 

Um dia falar-se-á da vitória militar de Israel. É possível. Política é que não é.

.

Público, 2.8.2025

sábado, 19 de julho de 2025

Grande Angular - História de vulcões

 Sob, em cima ou no sopé do vulcão. As imagens são conhecidas. Nem as variações adoçam o significado: a proximidade do vulcão é sempre má conselheira. Pior ainda: quando o fenómeno está adormecido, é enganador. É atraente, fascinante e tentador. Mais uma razão para ser perigoso. E tem consequência: pode nunca acordar, mas leva as pessoas a ter medo.

 

Vem isto a propósito do tempo que vivemos e do debate sobre o “estado da nação” realizado esta semana. O governo está satisfeito, sobretudo consigo próprio. As oposições estão quezilentas, como o governo as quer. Todos usam factos e recorrem a números, só em parte verdadeiros, disponíveis para mostrar o optimismo e o cepticismo, conforme as necessidades.

 

Ouvir o governo é escutar um conto de fadas. Muito corre bem, tudo vai correr melhor. Ouvir as oposições é ter uma percepção do inferno. Muito está mal e vai ser ainda pior. Montenegro e o poder do dia têm a situação a seu favor, mas sabem que estão com enormes dificuldades. O que é paradoxal: a situação favorável contrasta com os ventos adversos. É uma espécie de paz sob o vulcão.

 

O que está a correr bem e parece ser a favor do governo? O que aconselha a uma acção determinada de reforma e progresso? Uma situação social calma, com as guerras das classes em pousio. As oposições estão impotentes. Não sendo famosas, as finanças estão aparentemente sob controlo, aliviadas pelos fundos do PRR, mãe de virtudes e fonte de milagres. A agressão russa à Ucrânia e o massacre israelita de Gaza, assim como o alargamento da guerra ao Irão, à Síria e ao Líbano, estão longe, vão durar anos, ameaçam a paz e a estabilidade na Europa, mas não se fazem sentir em Portugal. Para já. O turismo não dá sinais de enfraquecer e continua a produzir os seus lucros e rendimentos fáceis. Alguns Estados, incluindo a China, a Rússia, Angola, os Emiratos e até Estados Unidos estão interessados em Portugal, se não em desenvolver, pelo menos em comprar. A economia, a viver cada vez mais de mão de obra barata e dependente, em grande parte ilegal, parece florescente, com as exportações a portarem-se bem. Os cidadãos parecem cansados da política e da instabilidade.

 

Mas também há argumentos a desfavor do governo e da energia reformadora. Sem referir a primeira deficiência, a falta de apoio parlamentar, sublinhe-se a incapacidade de gestão dos grandes serviços públicos. Designadamente da saúde e da educação, incluindo o atendimento noutros serviços, como sejam os impostos e a segurança social. Após duas ou três décadas de permanentes progressos tecnológicos, com toda a espécie de novos dispositivos, há milhares de pessoas maltratadas, a quem não se responde, que têm de ficar horas e dias à espera do telefonema, há milhares de enganos e atrasos por culpa do “sistema”. A eficiência e a afabilidade no atendimento são deficitárias, a ponto de configurarem desprezo social pelos cidadãos em geral e pelos trabalhadores e pensionistas especialmente. O desastre absoluto que tem sido a impossibilidade de prever a demografia e a evolução dos serviços de saúde, com milhares de enfermeiros e de médicos a emigrar para o estrangeiro. O sistemático erro de gestão e de previsão que, todos os anos, uns maus outros piores, deixam milhares de alunos sem aulas durante uns tempos e a várias disciplinas, que podem ser muitas. A radical incompetência para a decisão política e económica, assim como para a gestão dos serviços de transportes públicos, com relevo para o comboio, o avião e o metropolitano, o que deixa visível a imagem real do que é a opressão social, o desprezo por quem trabalha. A total ignorância e a criminosa negligência relativamente à habitação social, ao alojamento público e à habitação. Aumenta a emigração, alastram as barracas e cresce o número de imigrantes baratos e ilegais: são sinais inconfundíveis. 

 

O que depende directamente do governo, deste, do anterior de Montenegro e do anterior de Costa, está a correr mal, cada vez pior. A gestão da saúde, da habitação social, da educação e dos transportes públicos, assim como do atendimento nas administrações, é incompreensivelmente má e deficiente. É visível a degradação das capacidades do governo, dos governos, que não sabem e não conseguem ir mais longe ou melhor do que distribuição de dinheiros. Tira um imposto, reduz uma taxa, dá um subsídio, oferece um bónus…. Aonde está a política consistente, a prazo? É a terceira ou quarta vez que, em vésperas de eleições, os governos (Costa e Montenegro) distribuem prémios. Há qualquer coisa de humilhante nesta distribuição, nestas dádivas que tresandam a compra de votos. Não é, evidentemente, a maneira mais nobre de governar. Distribuir bónus extraordinários, dinheiro, subsídios e bonificações, cria dependências e agradecimentos, sem ligar ao mérito. Distribuir benefícios quando interessa a quem dá é geralmente por motivos eleitorais. Transformar as pessoas em mendigos ou gratos dependentes do governo não é o que há de mais nobre e civil. 

 

“Deixem-me trabalhar”, “deixem-nos governar quatro anos”, permitam o governo trabalhar para ganhar mais votos, até à maioria absoluta, poupem as alianças ou as negociações maçadoras com o Chega e com o PS, dêem tréguas e sossego. “Dêem-nos tempo e ver-se-á como cumprimos os nossos deveres, ganhamos a população e os portugueses agradecerão”.

 

É bem provável que o desconforto do PS e a estridência do Bloco e do PCP, assim como o desatino demagógico do Chega, sejam factores favoráveis ao governo e suficientes para que este, sem maioria parlamentar permanente, se aguente muito mais tempo do que se imagina. É bem possível que a incapacidade das oposições recompense a mediocridade do governo.

 

Não foi bem este o debate do estado da nação. Foi mais o debate do estado da oposição, cujo comportamento, no parlamento, foi um lenitivo inesperado para um governo que parece ser perito em distribuição de subsídios e bónus, mas incapaz de voar alto na política e de realizar na vida real. Foi um debate ácido e pouco educado entre dois partidos que lutaram pelo segundo lugar mais do que pela governação.

 

Etna ou Vesúvio, Krakatoa e Pinatubo… Os nomes despertam medos e fantasias. São atraentes e ameaçadores. Ao contrário destes desastres, inevitáveis e incertos, as desgraças sociais são, em grande parte, previsíveis. E podem ser prevenidas. Se houver sabedoria humana, claro.

.

Público, 19.7.2025

sábado, 12 de julho de 2025

Grande Angular - Escola de valores

 É um dos mal-entendidos do nosso tempo: a escola deveria transmitir valores. Na esquerda e na direita, há quem pense assim. Democratas, fascistas e comunistas têm esse traço comum.  Entre cristãos, muçulmanos, judeus e hindus, assim como entre laicos e ateus, há quem não tenha dúvidas: a escola deve dar valores. Deve ensinar a viver, preparar o crescimento, garantir o bom comportamento e formar cidadãos. O problema surge quando tentamos perceber o que cada um quer. E depressa se vê que querem coisas diferentes e contraditórias.

 

De comum, em abstracto, querem valores e crenças nas escolas. E recusam a “escola neutra”. Esta sempre foi um diabo maior. Salazar era fervoroso adversário da escola neutra. Tal como eram Perón, Pétain, Hitler, Mussolini, Goebbels, Estaline, Krupskaia, Mao Tsetung e os Ayatollahs. Todos querem que a escola se substitua às famílias, que os professores ensinem os jovens a viver e a jubilar nos bons costumes. Como é sabido, o que um católico quer da escola não é o que pretende um muçulmano. O que um nacionalista deseja não é a mesma coisa do que um laico socialista. O modo como António Sérgio idealizava a sua escola nada tinha de comum com a instituição de Carneiro Pacheco ou Hermano Saraiva. O que um comunista espera do ensino é muito diferente do que pensa um democrata-cristão. Europeus, ciganos, brasileiros, ucranianos, indianos, africanos e paquistaneses têm expectativas diferentes e esperam que as escolas transmitam as suas crenças e as suas tradições. Numa palavra, os seus valores. Mas os seus, não os dos outros. Assim é que todos os regimes autoritários pretenderam sempre o mesmo: as escolas devem formar os seus cidadãos, os cidadãos do seu regime.

 

Pouco a pouco, tem-se vindo a criar um “fundo comum”, uma espécie de ideologia que valoriza uma escola mais ecuménica. Há já alguns anos que os ministérios da educação, os deputados, muitos professores, várias associações e igrejas vêm trabalhando esta questão da construção de uma escola de valores e de crenças. Mais ainda, defendem, em abstracto, que a escola deve desenvolver a cidadania e a moral, para que se formem cidadãos livres e conscientes. Consideram mesmo que a escola deve substituir-se à família, aos amigos, à rua, aos grupos culturais e a outras formas de socialização, a fim de criar “verdadeiros cidadãos”. Os textos oficiais, elaborados nos últimos vinte ou trinta anos por todos os governos e todos os partidos, dão bem conta dessas ideias. Por exemplo, temos até, em Portugal, uma “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”, assim como conceitos, organismos, documentos, guias, leis e regulamentos que dão conteúdo ao desejo de que a escola forme “cidadãos livres, democratas, responsáveis, igualitários e plurais”.

 

Pretende-se que a educação para a cidadania se ocupe de “direitos humanos, da igualdade de género, da interculturalidade, do desenvolvimento sustentável, da educação ambiental e da saúde”. Assim como de “sexualidade, media, instituições democráticas, literacia financeira e educação para o consumo, segurança rodoviária e risco (sic)”. Além disso, os jovens devem ser educados para o “empreendedorismo, o mundo do trabalho, a segurança, a defesa e a paz, o bem-estar animal e o voluntariado”. A fechar este missal, diz o texto que “os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas”.

 

A escola de valores e a educação para a cidadania criam problemas sem solução. A codificação desses valores é simplesmente impossível. Fica a cargo de quem? Existem pessoas e instituições que, para tratar do nacionalismo, do género, da sexualidade, da autoridade paterna, da organização da família ou do capital e do trabalho, sejam capazes de equilíbrio entre todas as sensibilidades doutrinárias e culturais? Como eleger valores de uma cultura sem afastar os de outra tradição? Pior ainda, como agregar valores de todas as culturas diversas e contraditórias? Outro problema é o da autoridade moral que zela pela aplicação das regras. Quem? O Parlamento? O governo? A Igreja? O sindicato? A academia? 

 

Ensinar matemática e geografia, estudar história e ciências naturais, aprender a escrever e a falar línguas estrangeiras, consultar dicionários e bibliotecas, fazer fichas e resumos, preparar memorandos e sumários, tomar a iniciativa de estudar e investigar, debater questões morais e filosóficas, perceber e utilizar a tecnologia, prever uma actividade ou uma profissão, numa só palavra apender a pensar! Tudo o que precede parece estar submetido à principal função do professor: formar cidadãos! 

 

Não vale a pena pensar que o Estado é o vilão e que as famílias são vítimas do Estado que se esforça por retirar as crianças e os jovens à influência familiar. Não. É verdade que o Estado, qualquer Estado contemporâneo, tenta afastar as famílias dos sistemas educativos. Mas os pais e as famílias agradecem e pedem mais. Uns não têm formação. Outros não têm meios. Uns trabalham longas horas por dia e não têm tempo e há quem queira os tempos livres para outros fins. Quaisquer que sejam os motivos, muitas famílias procuram com prazer que o Estado se ocupe da educação dos filhos. Não apenas da instrução e do ensino, mas também da formação e da educação.

 

Se uma escola der instrumentos e ferramentas para estudar e aprender a matemática, as línguas e a história, as ciências naturais e a geografia, a física e a química, ver-se-á rapidamente que os jovens crescem melhor. Se a mesma escola proporcionar aos seus jovens tempos e modos de cultura e artes, de música e de literatura, de pintura e de dança, as famílias depressa ficarão surpreendidas com as capacidades juvenis em desenvolvimento, sem necessidade de doutrina social. Se a escola conseguir organizar visitas de estudo, ateliers de criatividade e meios de expressão, prontamente surgirão resultados inesperados. Se a escola for capaz de ocupar os jovens durante dias inteiros, sem “furos” nem “folgas”, as consequências surpreenderão os pais e os mentores das escolas de valores. Se a escola for ela própria pontual e rigorosa, o seu exemplo será pedagogia maior. A escola tem de acreditar em si, nos seus alunos e nos seus professores, não tem de pregar valores e crenças. A escola deve respeitar a igualdade de todos os cidadãos, não deve fazer propaganda de uma qualquer forma de igualdade em detrimento de outra. A escola não deve promover uma religião, deve apenas respeitar os que professam uma qualquer. A escola tem de ser democrática, não tem de impingir a doutrina democrática.

.

Público, 12.7.2025

sábado, 5 de julho de 2025

Grande Angular - Voto no Jardim

 Como se vota? Que motivos levam um cidadão a votar num ou noutro partido? Por que razão se vota num candidato em vez de outro? Fidelidade, rotina, ideologia, oportunidade, obra feita ou prometida, pessoa, carácter, cara bonita, vingança, castigo, agradecimento…. É um nunca mais acabar de causas. Há estudos e sondagens que, há décadas, dão respostas e hipóteses. Mas, realmente, na verdade, não se sabe muito bem o que leva a votar, caso a caso, pessoa a pessoa, no momento da urna. É possível que uma parte do eleitorado, um terço, metade, vote de maneira previsível. Sempre no mesmo, dizem, orgulhosos, os fiéis. É a minha gente, a minha classe, o meu partido, garantem os que têm certezas. Mas há tanta gente a votar por outras razões! Ainda bem. Se assim não fosse, não haveria alternância, castigo, recompensa, mudança e progresso. Nem pessoas iguais a votar diferente. Nem diferentes a votar o mesmo.

 

Vem isto a propósito das próximas eleições autárquicas. Estas são, na verdade, ainda mais delicadas do que todas as outras. Há independentes. Há alianças e coligações. Há interesses regionais e locais. Há dissidências partidárias. Ao contrário das legislativas, há personalidades e indivíduos, pelo menos para presidentes de freguesia e de câmara. Tudo nos obriga a reflexão e a esquecer os preguiçosos automatismos, sejam estes de classe ou de ideologia.

 

Tendo o que precede em mente, já decidi. Vou votar no Jardim. No Jardim da Estrela. Neste jardim que frequento amiúde há mais de quarenta anos. Em todas as estações. A todas as horas. Com todas as companhias e sobretudo comigo próprio. Este jardim que teve momentos áureos de conservação e beleza, mas também períodos negros de desleixo. Este Jardim que me deu alguns dos melhores momentos de paz da minha vida, que me permitiu ver evoluir a população portuguesa, do bairro, de Lisboa e do país. A presença de estrangeiros mudou muito. O número de bebés e crianças aumentou também, não que haja mais natalidade, mas foi o hábito de passear crianças nos jardins públicos que se desenvolveu. A idade média dos velhos, cortesmente chamados de idosos, aumentou incrivelmente, mas também os seus modos de locomoção. Hoje há mais cadeiras de rodas, bengalas, andarilhos e canadianas do que há quatro décadas. Bom sinal de que há mais velhos e com mais idade. E com mais hábitos de passeio.

 

Mas isso de sociologia ou de observação é pouco. O que realmente importa é o sentimento e a emoção. A paz de espírito, que, se não se tem, ali se ganha depois de chegar. O convívio com as árvores, um dos mais belos produtos da criação, quando não massacrados pela humanidade. O som dos sinos da Basílica, companheiros dos quartos de hora, das vésperas e das matinas, a recordarem a certeza do tempo e da sua amiga crueldade.

 

Dizem que o Jardim da Estrela foi feito, entre 1842 e 1852, segundo o modelo inglês dos jardins românticos, em contraste com a tradição presunçosa francesa, mais pomposa. Os seus últimos responsáveis foram D. Maria II e Costa Cabral. Tem quase 5 hectares. O seu verdadeiro nome é Jardim Guerra Junqueiro, mas ninguém liga: é da Estrela e da Estrela será.

 

O Jardim da Estrela tem um companheiro, pequeno, modesto, quase secreto, ali ao lado: é o encantador Jardim da Burra, que saúdo com frequência. O seu nome deve-se a uma formidável estátua da “Santa Família” (camponês a pé com enxada ao ombro, acompanha mulher sentada em burro, bebé ao colo dela). A inauguração, nos primeiros anos do século XX, mereceu honras de reportagem da Ilustração Portuguesa. O seu autor foi o escultor Costa Motta. Também o Jardim da Burra tem outro nome, Jardim 5 de Outubro, mas ninguém quer saber: é da Burra e da Burra será.

 

Jardim da Estrela já foi “chique”, já foi burguês, já foi de jovens e de várias iniciações, de idosos a jogar às cartas e ao dominó, de mães a amamentar bebés, de grupos de adolescentes a estudar matemática… Tem, numa tão pequena área, uma variedade incrível de árvores de médio e grande porte, vindas de climas longínquos e das nossas zonas temperadas. Tem arbustos e flores. Tem bancos públicos, dos antigos, daqueles de madeira e de encostar. Tem um maravilhoso coreto feito de pedra, madeira e ferro forjado, que tinha vivido, no século XIX, no Passeio Público, lá para os Restauradores, e para aqui veio em 1936. É um dos mais bonitos de Lisboa e do país. Tem quiosque e café bar. Tem, raridade notável, um quiosque-livraria da biblioteca municipal onde se pode ler e requisitar livros e revistas. Tem estátuas, do “Cavador” à “Fonte da Vida” e de “Antero de Quental” a “João de Deus” e ao “Actor Taborda”. Tem, de vez em quando, “feira de velharias” e de “artesanato urbano”.  Já teve aulas de dança e exercícios de meditação ao ar livre e no coreto.

 

Sempre teve namorados. Tem uns fanáticos a ouvir relatos de futebol. Raras vezes se vêem zangas de amigos, familiares ou namorados. Tem jardim infantil. Tem casa de banho. Hoje, o Jardim da Estrela é isso tudo. Mas também é sinal de desleixo e de um processo de abandono que nunca se sabe se e quando vai acabar. Começou um dia a ter placas de identificação de cada árvore, mas os poderes devem ter-se arrependido, pois tal prática, doce e inteligente, desapareceu. Teve patos, cisnes e carpas nos lagos, hoje já não tem, vá lá saber-se porquê. Aliás, um dos dois lagos está seco. Já teve pavões, hoje já não tem. Há passarinhos exóticos e papagaios de passagem, mas pavões é que não. Nas últimas semanas, em vez das dezenas do passado, vi um pato magricelas e duas tartarugas pachorrentas.

 

Em numerosos lanços dos caminhos o pavimento está em vias de destruição, há alguns anos esburacado e em levantamento.  Os canteiros, meu Deus, os canteiros! Relva queimada e erva seca. Flores murchas e mortas. O coreto está entaipado, tapado, para obras, com anos de atraso, já tiveram mesmo de mudar os tapumes. O desmazelo e o desprezo tomam conta da Estrela. Ainda há partes do jardim em bom estado. Mas pressente-se o triste declínio.

 

Não tenho dúvidas! Voto em que trate do Jardim da Estrela. Em quem demonstre que está realmente interessado nos serviços municipais, no espaço público, na beleza das cidades, no conforto dos cidadãos, na paz e no sossego das pessoas, no descanso de quem trabalha, na alegria de viver em comunidade. Voto em quem prometa recuperar o Jardim da Estrela, deixá-lo viver, respeitá-lo e, sobretudo, respeitar os cidadãos.

.

Público, 5.7.2025