Advertência
Este foi o texto que apresentei em Coimbra durante uma reunião do Clube dos Rotários de Coimbra Olivais. Como se pode ver, nada de semelhante com as declarações que me são atribuídas a propósito dos direitos sociais e da crise.
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NOS TEMPOS ACTUAIS, todos os dias assistimos à referência permanente aos direitos humanos e aos direitos dos cidadãos. Tudo se transformou em direitos. Vida, expressão, associação, deslocação, privacidade, bom nome e reputação, escola, cultura, saúde, segurança social, emprego, habitação... Há dias, um antigo presidente da República disse mesmo que “a água de boa qualidade é um direito humano fundamental”.
A esta explosão de direitos, parece nada haver a opor. Seria uma espécie de progresso das sociedades. Quanto mais direitos, mais igualdade, mais democracia, mais liberdade e mais segurança.
Contra esse optimismo inocente, há todavia reservas. A primeira é quase melancólica. Em princípio, não deveria haver direitos sem deveres e contrapartidas. Esse não parece ser o caso. A modernidade política e cultural incide sobretudo na proliferação dos direitos, não na confirmação dos deveres correspondentes. Os dirigentes políticos são pródigos em direitos, sobretudo nas leis e na Constituição, mas são aparentemente mais contidos na questão dos deveres. Na verdade, são assim porque não querem pagar o ónus eleitoral da afirmação de deveres, mas desejam colectar as vantagens do alargamento dos direitos. O que não impede que as leis correntes consagrem cada vez mais obrigações: taxas, pagamentos, multas, procedimentos, proibições, autorizações, licenças, alvarás, etc. Há mais direitos, menos deveres, mas os cidadãos são cada vez mais dependentes. Até porque são frequentes as obrigações que colidem directamente com direitos antigos. Por exemplo, os dispositivos de vigilância e controlo (chips dos automóveis, câmaras de vídeo, cartão único de cidadão, etc) contrariam os direitos de privacidade e de liberdade de deslocação.
A segunda reserva é mais séria. A identificação e a equiparação de direitos de várias espécies e de vantagens, privilégios, estatutos e benefícios só podem ser prejudiciais para o que é realmente importante: os direitos humanos e os direitos dos cidadãos. Na verdade, cada espécie de direitos tem a sua forma específica de garantia e de protecção. Ora, uma equiparação excessiva conduz necessariamente a uma banalização do significado e do conteúdo de cada direito. Uma falha ou uma violação do meu direito à integridade física ou de votar deve ser severamente punida: tanto o Estado como a sociedade têm o dever de proteger os meus direitos fundamentais e de castigar os prevaricadores. Violações contra esses direitos são crimes públicos. Não são comparáveis com falhas aos meus direitos ao emprego, ao trabalho, à habitação ou ao descanso. Por isso não se trata da mesma espécie de direitos.
Há cada vez mais a tendência para este alargamento de conceito. Hoje, a cidadania é uma soma vastíssima de direitos, incluindo, para além dos humanos, cívicos e políticos, os chamados direitos sociais, económicos, culturais, ao ambiente, à qualidade de vida e, por que não, à felicidade. Creio que esta tendência é errada. Tanto teoricamente como na vida prática.
É sobre as diferenças entre estes direitos e suas implicações que me proponho discorrer nesta sessão convosco.
Gostaria de, com algumas breves considerações, delimitar o conceito de cidadão. Não qualifico nem adjectivo o conceito. Um cidadão com mais ou menos poder é à mesma um cidadão. Um analfabeto é tão cidadão quanto um catedrático. Um cidadão com saúde ou doente é igualmente um cidadão. Um cidadão activo e empenhado na participação cívica e política é tão cidadão quanto um outro passivo, distante e alheado das causas comuns. Um cidadão preso e condenado por crime é um cidadão, mesmo se tem alguns dos seus direitos temporariamente limitados. Uma pessoa que vota é tão cidadão quanto aquela que se abstém. Um cidadão a viver num país onde existe um serviço público de saúde, de educação ou de segurança social é tão cidadão quanto um outro a viver num país onde não existe qualquer forma pública de prestação de cuidados de saúde. Mas um escravo não é um cidadão. E um estrangeiro, com menos direitos que os nacionais, não é um cidadão a parte inteira.
O mesmo digo dos conceitos de cidadania. Não qualifico esta última com adjectivos, qualificações ou circunstâncias. A cidadania não implica humanização ou decência. Um malfeitor é um cidadão. Um rebelde é um cidadão igual a um indivíduo conformado e bem comportado. A bondade, a decência e a eficiência são muito importantes na organização das sociedades e dos serviços públicos, mas não resultam da cidadania. Todos estes são conceitos que derivam de outros valores e de outras entidades. A moral pública, por exemplo. Ou a qualidade de um regime político. Ou ainda as tradições culturais de um povo. Finalmente, a exigência, certamente moral, mas também cultural, de comportamentos que respeitem os outros ou que valorizem a integridade e a autonomia dos seres humanos e dos contemporâneos. O homem que agride a mulher e os filhos, o automobilista que ameaça os transeuntes, o passante que falha nos seus deveres de prestação de apoio a quem corre o risco de morrer, o esperto que passa à frente nas filas dos serviços públicos, são, apesar do seu comportamento moralmente reprovável, eventualmente juridicamente condenável, todos cidadãos com os mesmos direitos e deveres.
Não esqueçamos, por outro lado, que os conceitos sobre os quais reflectimos são conceitos mutáveis que adquirem valor e sentido diferentes conforme os países, as culturas e os tempos históricos. Por exemplo, cidadão já foi uma maneira de distinguir os homens livres dos servos ou dos escravos que com eles conviviam. Tempos houve, com efeito, em que cidadãos livres e escravos coexistiam. Hoje, admitir tal hipótese é negar o sentido essencial de cidadania que deve ser universal. A cidadania já foi um privilégio com exclusão de outros, sendo hoje um estatuto de vocação universal e que dificilmente admite exclusão de outrem. A cidadania, em Roma, era o privilégio de alguns. Noutras circunstâncias, na Idade Média, também. Hoje, é a condição de todos.
A categoria de cidadão já foi uma distinção entre nacionais e estrangeiros. Hoje, do mesmo modo, a tendência universal é a de equiparar estrangeiros e cidadãos em quase todas as situações, até mesmo, último reduto, no cumprimento de deveres militares ou no exercício do direito de voto. A Constituição portuguesa, e bem a meu ver, estipula sem reservas (a não ser a da capacidade eleitoral e política) que os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que os cidadãos nacionais. Mesmo a excepção eleitoral foi posta em causa, dado que já é possível, aos cidadãos da União Europeia, exercer alguns direitos de voto em país estrangeiro e em determinadas circunstâncias.
Convém pois reter que direitos, deveres e cidadania são conceitos mutáveis e diversos conforme os tempos e os locais.
A cidadania é uma instituição ou um valor razoavelmente positivo, composta de exigências e atributos, em geral direitos e deveres, que estabelecem os padrões de comportamento entre os indivíduos e entre eles e as instituições que organizam a sociedade. Os atributos da cidadania tendem a ser os mais universais possíveis, sem interferência ou qualificação ideológica, étnica, religiosa, sexual e outra. Ao contrário dos códigos de conduta de inspiração moral e religiosa, os direitos e deveres dos cidadãos tendem a ser neutros desse ponto de vista. As regras de auxílio, de cortesia, de respeito, de civilidade, de estacionamento, de vestuário de comportamento no espaço público são ditadas por critérios morais, jurídicos, religiosos e políticos, mas não pelo critério da cidadania. Por isso, num Estado de direito moderno, quando os critérios étnicos, culturais ou religiosos colidem com o critério da cidadania, este deverá sobrepor-se sempre que estiver em causa o espaço público, as relações entre todos os membros da comunidade e a igualdade de todos perante a lei.
Uma questão muito interessante é a que se traduz na nossa Constituição. Tradicionalmente, os direitos dos cidadãos eram limitados aos direitos fundamentais, aos direitos humanos, aos direitos cívicos e aos direitos políticos. Já se notava aqui um alargamento: os direitos humanos, mais vastos na sua concepção do que os direitos de cidadania, eram já identificados, na linguagem corrente, mas também na Constituição, com os direitos dos cidadãos.
No século XX, uma evolução interessante conduziu ao alargamento da noção de direitos. Em resumo e abreviando, foram sendo criados novos direitos e chegou a falar-se de direitos de segunda e terceira geração. Entre estes, os direitos sociais assumem especial relevo.
Em Portugal, muito particularmente, os direitos sociais foram equiparados aos direitos fundamentais. Formam um capítulo integrado na primeira parte da Constituição intitulada “Direitos e deveres fundamentais”. Nem todas as Constituições o fazem. Talvez a maior parte o não faça. Quer isto dizer que, na ordem jurídica portuguesa, o “direito à saúde”, o “direito ao trabalho”, o “direito à educação” ou o “direito ao alojamento” estão equiparados, para todos os efeitos, aos direitos tradicionais de primeira geração.
Há, evidentemente, problemas. A garantia do direito à vida, à livre expressão, ao voto, à associação e à deslocação é e deve ser oferecida pelo Estado e pela Justiça, a custo, se for necessário, de força e coacção. O mesmo já não pode ser dito do “direito à saúde”, o “direito ao trabalho” ou o “direito à habitação”. Quer isto dizer que, apesar de um tratamento jurídico que os equipara, estes direitos acabam por ter um significado diferente. Num caso, estaremos diante de direitos impositivos, que exigem garantias efectivas e cujas violações podem constituir crimes públicos. Noutro caso, no dos direitos sociais, estamos diante de direitos programáticos que se traduzem numa espécie de aconselhamento do Estado, dos governos e das instituições no sentido de resolver alguns problemas sociais como sejam o desemprego ou a doença. Os direitos sociais obedecem a um princípio ou critério de oportunidade. Os desempregados não têm garantido o seu direito ao trabalho e ao emprego, mas não é por isso que deixam de ser cidadãos, nem é por isso que têm razão de interpor processo seja a quem for.
Um caso interessante merece breve referência. Há um século ou século e meio, surgiu em vários países europeus a ideia de “escolaridade obrigatória”. Praticamente todos os países aderiram a este princípio e tornaram-no lei. Em certos casos, o princípio teve mesmo acolhimento constitucional. Qual a razão? Havia com certeza razões filosóficas, políticas e morais. Mas também havia outras. O Estado tinha interesse em obrigar os pais a enviar os filhos à escola. Militares, por exemplo: era necessário construir exércitos que falassem uma só língua e que se distinguissem dos outros. Económicas, sem dúvida: nas grandes empresas industriais, era indispensável comunicar e organizar o trabalho, o que só era possível com meios de comunicação formal numa só língua. Nacionalistas, com certeza: os Estados modernos nasceram, muitas vezes, com uma relação directa ao princípio de “uma língua, um povo, um Estado nacional”. Esta obrigatoriedade chegou a pontos inesperados, por exemplo, até à proibição de os pais instruírem os filhos em casa. Hoje, a escolaridade obrigatória é um conceito em perda de valor: foi substituído pelo “direito à educação”. Os objectivos são essencialmente os mesmos, suavizados e modificados pelos tempos e pela História, mas o critério primordial alterou-se: a obrigação transformou-se num direito.
Nos tempos que correm, as distinções são necessárias. A dignidade de cada variedade de direito é diferente. As garantias e a protecção do Estado e da Justiça também devem ser diferentes. Como diferentes são os deveres do Estado.
Diz-se com frequência que a pobreza, o desemprego, a falta de instrução ou o desconforto são atentados aos direitos dos cidadãos. Não é verdade. As condições sociais, económicas e culturais em que as pessoas vivem são condições para o exercício da cidadania, mas não constituem características do conteúdo desses direitos. As questões sociais e económicas podem facilitar e estimular ou dificultar o exercício dos direitos individuais e as condições de cidadania. Mas não são essenciais à definição dos direitos nem da cidadania. Um doente, um pobre, um deficiente, um rico e um analfabeto são sempre cidadãos. Um escravo não! Uma pessoa sem direitos individuais, sem direito de voto e sem liberdade de expressão e associação ou não é cidadão ou tem as suas capacidades de cidadania limitadas e coarctadas.
É verdade que as condições económicas e sociais condicionam os comportamentos individuais e colectivos, assim como as relações entre grupos e indivíduos. Como é verdade que os cidadãos que sofrem condições de despojamento, de miséria e de precariedade ou fragilidade não são talvez os mais aptos a exercitar os seus direitos de cidadão. Mas repare-se: são estes que muitas vezes permitem as pessoas lutar ou defender os seus interesses.
Há condições sociais, culturais e económicas que têm influência no exercício dos direitos dos cidadãos. A instrução, por exemplo. Saber ler e escrever, ter uma educação secundária, possuir uma formação profissional e uma cultura geral, ajudam fortemente à consciência dos direitos individuais e constitucionais, permitem melhor reclamá-los e defendê-los. Mas não são as condições sociais e económicas que criam esses direitos. Melhoram, as aptidões para o seu exercício, mas não os constituem, não lhes são essenciais.
Para terminar, uma rápida observação. Por que razão me empenho tanto em sublinhar a diferença entres estes direitos? Entre cidadania e moral? Entre civismo e decência? A primeira razão é porque não quero banalizar os direitos de cidadania. São, em certo sentido, mais invioláveis do que outros. São o princípio mesmo sobre o qual assentam as nossas instituições e a nossa liberdade. A segunda razão reside no paralelismo que estabeleço com a democracia. Também neste caso, para mim, o conceito não tem adjectivos nem qualificações. Democracia “económica”, “social” ou “cultural”: eis termos que não utilizo, nem lhes vejo utilidade. Democracia é um princípio político, um consenso, com dignidade constitucional, entre as classes dirigentes de um país e entre elas e a população. Esse consenso é estabelecido à volta de regras simples. Todos votam segundo a regra de uma pessoa um voto. O voto é secreto e individual. Quem vence governo e respeita a minoria. Há eleições periódicas e regulares. Todos se podem candidatar. Poucas mais são as regras. O resto, o acesso à cultura e à saúde, a frequência da escola e da universidade, a qualidade do ambiente e a tranquilidade das cidades, a harmonia nas relações humanas e a certeza do Direito são atributos das sociedades, dos seus princípios de organização moral e das suas tradições e costumes. Nada disso é democracia. Apesar de tudo isso ser tão bom quanto a democracia.
Rotary Club dos Olivais
Coimbra, 27 de Setembro de 2010