domingo, 26 de julho de 2020

Grande Angular - Fora de tom, fora de tempo

Não há memória, no último século, de uma época tão desgraçada como aquela em que vivemos. A bancarrota de finais do século XIX, a desordem da República, a opressão da Ditadura, as duas guerras mundiais, a guerra civil de Espanha, a guerra colonial, a revolução de 1974 e a contra-revolução dos anos seguintes tiveram seguramente consequências gravíssimas e provocaram muitos danos. Mas este que vivemos é um período terrível da nossa história. Dez anos, quase vinte, que deixarão marcas na sociedade por muito, muito tempo.
A última década ficará para sempre como a de um ciclo único de dificuldades, uma convergência inédita de dramas! A crise financeira e económica internacional que se abateu sobre Portugal com particular violência revelou um país frágil a quem os progressos notáveis dos anos 1980 e 1990 deram a ilusão de progresso consolidado. A crise da divida soberana mostrou uma economia débil e políticas de desperdício e de demagogia. Sem quaisquer escrúpulos e com absoluto atrevimento, os governos Sócrates ficaram para a história como os mais predadores de sempre. Seguiu-se a maior bancarrota que Portugal conheceu pelo menos nos últimos cem anos. O resgate de Portugal e a austeridade, mesmo se necessários, deixaram o país exangue. O caso BES foi, nestes anos, uma verdadeira praga bíblica, ficando o nome daquele grupo associado ao maior processo de destruição de riqueza, de instituições e de empresas, de toda a história nacional. Os incêndios de floresta, particularmente devastadores, confirmaram o gravíssimo problema de segurança que os portugueses têm dificuldade em resolver. A acalmia dos últimos anos, em que nada se resolveu e nada se reformou, anunciaram, todavia, um período de esperança, com menos sacrifício exigido aos trabalhadores e à classe média. Mas não houve tempo para serenar os espíritos, nem sequer olhar para o futuro: a pandemia e a crise económica e social que se seguiram, com especial relevo para a asfixia imposta ao novo volfrâmio, o turismo, confirmaram estarmos a viver um dos piores períodos da nossa vida em comunidade. Ao que se acrescenta o facto de a economia portuguesa praticamente não crescer há vinte anos: com altos e baixos, estamos hoje muito próximos de onde estávamos no princípio do século! A convergência com a Europa não se verificou: pelo contrário, fomos ultrapassados por vários países da Europa central e oriental. Com mais desigualdade do que nunca, com mais corrupção do que sempre, quase sem indústria e sem capital, Portugal tem necessidade de se reinventar, de encontrar uma inédita energia, de organizar o esforço colectivo, de encontrar os meios para fazer o necessário e de atrair quem esteja preparado para fazer o que é preciso.
As tolices do nacionalismo e da direita radical nada resolvem, apenas agravam. A incapacidade da direita e do centro-direita é má conselheira. A insuficiência da esquerda democrática é evidente. As fantasias da esquerda radical nada arranjam. As soluções são mesmo mais difíceis do que estas simplicidades incapazes. O próprio Primeiro-ministro, operacional incurável e habilidoso, já se deu conta de que não consegue. Por isso, esta semana, no debate sobre o Estado da Nação, propôs acordo sério, a prazo e aparentemente consistente à esquerda, toda, democrática ou não, centrista ou radical, institucional e revolucionária. 
Há quem imagine um país absolutamente polarizado entre esquerda e direita a dar conta dos graves problemas que tem? Alguém crê que um governo e uma maioria de esquerda, que incluam o Bloco e o PCP, sejam capazes de trazer investimento internacional, interesse das instituições económicas do mundo inteiro, empresas e grupos empenhados em criar novos produtos, novas empresas e novos processos de modo a que não se trate simplesmente de comprar o que está feito, eventualmente para desfazer, vender e fechar? Quem acredita que uma coligação entre o PS e todos os restantes grupos de esquerda seja capaz de fomentar a poupança, estimular o investimento nacional e internacional, atrair as melhores empresas e grupos do mundo, seduzir cientistas e capitalistas de vanguarda capazes de organizar a exploração racional de alguns recursos, como sejam os minerais? Pensa-se possível que um governo duro de esquerda conseguirá chamar instituições e capitalistas a fim de cuidar de um dos nossos maiores problemas que é o da falta de capital? Alguém acredita que os fundos europeus chegam? Que, sem outro tanto de origem interna ou internacional privada, seja possível recuperar, reformar e relançar?
É verdade que há quem julgue que os dinheiros europeus vão resolver isso tudo. Mas convém ter em conta que seriam os grandes inimigos da Europa e da União Europeia, isto é, as esquerdas do Bloco e do PCP, associadas ao PS, é certo, que tentariam organizar e gerir à sua maneira os fundos europeus por que agora tanto reclamam. Estas esquerdas que querem que nos dêem dinheiro sem condições e que nos emprestem sem critério, serão elas que vão tentar administrar dez anos de estratégia de recuperação? Será que é com estas esquerdas que tão severamente criticaram sempre a integração europeia, que se poderá agora gerir convenientemente o enorme pacote financeiro?
António Costa sabe isto tudo. O Primeiro-ministro é habilidoso mas não é imbecil. Ele sabe que nada conseguirá de sério e durável com a esquerda toda. Mas ele não quer tomar a iniciativa de procurar outras soluções sem antes poder garantir que pediu esquerda e esquerda não teve, que convidou a esquerda e esta não quis vir. Acontece que não estamos em maré de jogo. Vivemos tempos difíceis em que a suprema habilidade seria a honestidade e a clareza. Tempos de inquietação e insegurança em que as obras valem todas as fantasias.
Sabe-se agora que a direita sozinha não chega e não é capaz. Esta parece cada vez mais especialista em delapidar o bem comum, em vender ao desbarato, em deixar destruir empresas e grupos e em seleccionar parceiros pela imaginação criativa nas economias paralelas. Sozinha, a direita é responsável por alguns dos actos de maior contaminação de corrupção e promiscuidade. O problema é que, sozinha, a esquerda não se tem mostrado mais eficiente, nem mais capaz de criar riqueza. Nem sequer mais honesta.
Público, 26.7.2020

domingo, 19 de julho de 2020

Grande Angular - Monitorizar o pensamento

Talvez seja coincidência, mas não parece! Um dia, por causa de um livro, seis dúzias de académicos empenhados subscrevem um manifesto no qual protestam contra a academia que protege a direita, dizem eles, que branqueia a extrema-direita, garantem, que ajuda o racismo, afirmam. Em poucas palavras, contra uma academia que não denuncia o discurso de ódio, resumem. No dia seguinte, são desvendados rumores de planos que o governo faz para encomendar às universidades que vigiem o discurso do ódio, que supervisionem as redes sociais e que acompanhem as narrativas públicas sobre estrangeiros. Nada, lei ou palavra de ministro, é seguro. Por enquanto, “diz-se”, “vai pensar-se”… Mas o caminho está desbravado.
Na verdade, o que se anuncia é um dos mais violentos atentados contra a liberdade de expressão que Portugal conhece há décadas! Como quase sempre, sob a aparência de causas nobres (contra o racismo) e de sentimentos elevados (contra o ódio), o que na verdade se propõe é o estabelecimento de um cânone de virtudes e de um catecismo de valores. Os governantes e os cientistas sociais que assim se exprimem pretendem a “monitorização” dos discursos, actividade aparentemente inócua. O que na verdade querem é o estabelecimento de uma ordem. Para que serve “monitorizar”? Não tenhamos dúvidas: é um eufemismo para vigiar, policiar, registar e fiscalizar. É o que fazem as polícias, a PIDE, a KGB, a STASI e outras, vivas ou defuntas. É o que sempre fizeram as censuras. De repente, estas pessoas encontram o pretexto ideal: um partido fascista e um deputado xenófobo! Contra esse mal, desembainham espadas e alinham artilharia. Revelam-se os censores que são.
Os signatários do manifesto não escondem ao que vêm: impedir a universidade livre e plural, a fim de defender uma academia empenhada e vigilante! Os manifestantes não discutem o livro, não contestam as conclusões. Talvez nem sequer o tenham lido! Limitam-se a denunciar o autor, a sugerir a proibição, a recomendar o saneamento e a definir fronteiras para o pensamento admissível!
É pena ver entre aqueles signatários pessoas que não julgávamos capazes disto. Engano nosso! É uma desilusão contar entre os manifestantes pessoas que em tempos deram o seu nome a combates pela liberdade de expressão. Erro nosso! Eles lutavam pela sua liberdade, não pela de todos.
Depois do manifesto inquisitório, os pezinhos de lã do governo disfarçam as botifarras da censura. Parece que o governo vai abrir democrático concurso para aprovar cinco projectos de monitorização das expressões e das narrativas! Sempre com motivos nobres, claro: denunciar o ódio e observar o racismo!
É bem possível que estes planos alucinados não sejam mais do que isso, planos alucinados! Mas é melhor estarmos prevenidos. Há coisas que se fazem, rumores que se deixam correr e vagas intenções que chegam ao público com a missão de sondar os espíritos. Logo se verá depois se as coisas correm bem ou mal.
O mais provável é que estejamos diante da ambição de experimentar práticas de controlo da expressão, de censura e de intoxicação. Os pretextos, o racismo e a xenofobia, são tão consensuais que podem ser aproveitados para a criação de uma censura política e moral, que acabará por ser muito mais vasta do que aquelas perversões do espírito. Outras formas de expressão virão a seguir.
Tudo o que se descreve acima é selectivo. Evidentemente. O racismo, a xenofobia e a desigualdade são consideradas nefastas ou toleradas, conforme as conveniências políticas. A retórica da violência também: se destinada a inimigos de classe é aceitável; se dirigida a forças reaccionárias é valorizada; se endereçada a certas etnias é justa luta, mas se forem outras, será considerada incitação ao ódio…
Entre governantes, grupos fanáticos e académicos apostados em destruir a universidade e substitui-la por fuzileiros do pensamento, está a criar-se um clima que faz lembrar a Censura salazarista, o Macarthismo, o Jdanovismo soviético… Com algumas diferenças. Antes, eram as polícias e os tribunais. Hoje, são agências de comunicação e universidades que se prestem a tal serviço.
É seguramente a tentativa de atentado à liberdade de expressão mais detestável da democracia portuguesa, só comparável às leis salazaristas, fascistas e comunistas. O governo prepara. O Parlamento espera. Há Universidades que se prestam e faculdades, institutos e centros de estudos que se perfilam para cuidar da virtude publica…
Mal vai um país quando se começa a olhar, não para o que as pessoas fazem, mas sim para o que pensam, sentem e dizem! Muito mal vai um povo quando as autoridades pretendem estabelecer códigos morais, linhas divisórias de atitude e barreiras para os sentimentos! É tudo por boas causas: os governantes e as universidades empenhadas só pretendem que não haja racismo, só se esforçam por que não haja ódio, só pretendem que as pessoas sejam boas! Sabemos que as autoridades e os académicos empenhados só querem o nosso bem! Mas esse é mesmo o ponto: quem é livre não quer que as autoridades se ocupem do seu bem! Nem que seja para “monitorizar”. Sabemos que quando as autoridades se ocupam do nosso bem dá asneira. 
É realmente inquietante ver que há universidades que se prestam, académicos que se candidatam, governantes que se preparam e intelectuais que não se importam. E um partido cujo comportamento se estranha. Onde está o Partido Socialista para quem o golpe do jornal República foi o sinal de alarme para a campanha da liberdade de 1975? Que é feito dos socialistas que não se deixavam enredar nas teias que põem em causa a liberdade de expressão? Que aconteceu ao PS de Mário Soares cujo primeiro livro tinha como título “Portugal amordaçado”? Donde vieram os socialistas que fecham os olhos e tapam os ouvidos diante desta ofensiva contra a liberdade que se propõe monitorizar o discurso e a narrativa? Como é possível que as últimas gerações de socialistas não resistam a tentar comprar ou calar jornais e jornalistas, redes sociais e televisões? E como se pode imaginar que haja universitários prontos para se transformarem em sacerdotes da monitorização e sargentos do Grande Irmão?
Estes senhores não querem apenas combater o que entendem ser o fascismo, o racismo ou o populismo. Querem também destruir a democracia plural, a liberdade de expressão e o livre pensamento. São mesmo perigosos, não é só conversa!
Público, 19.7.2020

domingo, 12 de julho de 2020

Grande Angular - Os Sefarditas e os outros

Quando, a propósito de um problema, surge a pergunta “e os outros?”, é de desconfiar: é alguém que quer fugir à questão pelo seu próprio mérito. Mas há também uma razão nisso: é verdade que a coerência é um critério importante. Quem critica a “tortura fascista”, por exemplo, não tem necessidade de acrescentar sempre “e a comunista”. Mas se critica aquela, isentando a outra, o argumento é suspeito. Na verdade, há ideias e lutas que só ganham significado quando não distinguem política, raça, crença, classe ou género.
A desigualdade, a segregação racial e a censura são outros exemplos. Por um lado, são alvos em si próprios. Por outro, os combates só ganham força e valor se forem universais, isto é, se não forem selectivos. Todo o racismo é condenável, não apenas o branco, o negro ou o asiático. É com esta dupla perspectiva que se pode olhar para a questão dos descendentes dos Sefarditas em Portugal, problema inesperadamente polémico.
A legislação que reconhece direitos aos descendentes dos Sefarditas portugueses na obtenção de passaporte ou de nacionalidade estava muito bem conforme estava. Ainda hoje, após longa discussão pública, não se percebe muito bem por que razões uns deputados pretendem alterar as leis. Parece haver intenção de perturbação. Se havia outros problemas, deveriam também, como é evidente, ser tratados por si. Sem necessidade de umas soluções impedirem outras, receita para eternos adiamentos.
A ideia de pedir perdão ao “Povo Judeu”, aos “Sefarditas” em particular, é piegas e tem intuitos propagandísticos. Não me parece que os portugueses actuais tenham o dever ou o direito de pedir perdão aos Judeus, aos Negros, aos Índios, aos Asiáticos ou seja a quem for. Nem aos democratas, aos comunistas, aos liberais, aos católicos, aos seguidores de várias igrejas, aos proprietários ou aos sindicalistas… O folclore do pedido de perdão é uma actividade hipócrita, paternalista, com intuitos publicitários e de cariz falsamente democrático. Devemos pedir perdão a quem fazemos mal ou não fazemos justiça, não a quem foi maltratado pelos avós dos nossos avós ou por pessoas que aqui viviam há cinquenta, cem ou quinhentos anos. Já não estão cá os que mal fizeram. Nem os que mal sofreram.
Já a ideia de conceder aos Sefarditas, que tal solicitem, passaporte, autorização de residência ou nacionalidade, parece uma solução interessante. Para nós e para eles. Ou antes, como dizia alguém, para nós todos. Este sistema de concessão de nacionalidade pode perfeitamente ser praticado sem a exigência de os candidatos falarem português, conhecerem a História de Portugal ou manterem “ligações intensas” com Portugal. Era o que estava mais ou menos estabelecido nas leis vigentes. É o que, sob pretextos tolos, umas dúzias de deputados pretendem alterar.
É nesta altura que se ouve a famosa pergunta: “E os outros?”. Por um lado, é pergunta oportunista, porque é um pretexto para quem não quer responder aos méritos da questão. Por outro lado, há razões para isso.
Tenho orgulho em viver num país cuja nacionalidade é pretendida por outros. Assim como num país cujos vistos e passaportes são desejados por outros. É sinal de que podemos ser gente de bem e de paz. Se as decisões das autoridades fossem criteriosas quanto ao cadastro criminal e outras suspeitas, a melhor é a política de abertura generosa. Se os candidatos a passaporte, visto ou nacionalidade, não forem bandidos, traficantes ou terroristas, é-me indiferente que aspirem ao passaporte ou queiram vir para Portugal por razões económicas, financeiras, políticas ou espirituais. Além de legitimidade política, o Estado tem autoridade moral para recusar passaportes, residência e nacionalidade a quem comete crimes, quem se dedica à violência pública ou doméstica, quem trafica pessoas e bens e quem notoriamente se organiza para desrespeitar as leis. Mas não tem autoridade para fechar o país e a nacionalidade, nem para considerar a “portugalidade” um privilégio raro e exigir aos candidatos o que não exige aos naturais.
Também me é indiferente que uns queiram a nacionalidade para serem portugueses e outros apenas para serem europeus. Hoje, ser português é ser europeu. Entrar para a Europa tem de começar por algum sítio. Se for Portugal, pode ser bom para nós. Se for por outro país, também cá estaremos, como europeus, para os acolher.
Há evidentemente graus de responsabilidade e de proximidade que podem influenciar as decisões de cada país. Descendentes de Sefarditas, de Mouros, de soldados africanos das Forças Armadas, de Macaenses, de Timorenses, de Angolanos, de Moçambicanos, de Brasileiros e outros podem e devem ter tratamento diferente do que é dado a todas as outras populações com as quais os Portugueses não tiveram qualquer comunidade. Mas também os descendentes dos Portugueses do Ultramar africano, da América Latina ou da Ásia devem ter tratamento adequado. Os Retornados e seus descendentes, os Repatriados e seus descendentes e os que ficaram a residir nas antigas colónias e seus dependentes devem ter protecção política e diplomática adequada. Assim como reconhecimento dos seus direitos. O estatuto de muitos Portugueses africanos (brancos ou negros) em Portugal e sobretudo nos países africanos merece cuidado e atenção e eles merecem apoio e reconhecimento, o que hoje nem sempre acontece.
Há muitos portugueses que são mal tratados ou esquecidos. Não é por causa deles que os Sefarditas devem pagar. Nem eles nem outros. Mas aqueles portugueses de quem não se cuida ou cuida mal começam por viver aqui, entre nós. E em muitos outros sítios. São ainda os emigrantes e seus descendentes. São cidadãos portugueses que perderam a nacionalidade por circunstâncias a que foram alheios (sobretudo a descolonização). E são os filhos “africanos” de soldados portugueses destacados para as colónias. O progresso decente reside no melhoramento, caso a caso, grupo a grupo, destas situações e não na tentativa de resolver o problema global e de forma integrada, que é o mesmo que dizer nunca!
Conceder passaporte, residência ou nacionalidade, conforme os casos, a pessoas que queiram fazer negócios, estudar, residir, casar, educar os filhos, viver a reforma, circular pela Europa e desenvolver actividades legítimas de qualquer espécie, é um gesto nobre que nos honra e enriquece. Sem que isto justifique uma política descontrolada de imigração. Nem, com certeza, que tratemos os que nascem portugueses pior do que os que o querem ser.
Público, 12.7.2020

domingo, 5 de julho de 2020

Grande Angular - Os valores sumiram

Classicamente, a ideia era “cherchez la femme”. Hoje, já não é assim. Mesmo nos casos em que se sabe que “la femme” anda por ali, essa não é a questão. O verdadeiro problema é “onde está o dinheiro?”. Assim mesmo. Dito à bruta. Como nos barbeiros, nas redes sociais e nos táxis. “Onde está o nosso dinheirinho”? Em geral, não há resposta. Quem a poderia dar, empresários, governantes e jornalistas, não querem saber, escondem, têm medo de perguntar, receiam desvendar… E os contribuintes são inundados de expressões malditas: vamos investigar “até às últimas consequências”, “doa a quem doer”. Depois, segue-se o silêncio. Ou a confusão criada pelos novos enigmas dos “activos”, das “mais valias” e das “perdas de valor”. Assim se criou um dos mais opacos universos que se imagina.
Verdade é que não percebemos o que se passa. Há poucas pessoas que nos expliquem com honestidade e clareza. Não há muitos jornalistas que perguntem nem investigadores capazes de esclarecer os “problemas sistémicos” e o “enquadramento”. O universo político financeiro é o mais espesso e o mais censurado que se conhece.
Ainda por cima, quem se envolve nestas questões tem marca. Envolvimento de interesses. Simpatia partidária. Dependência económica e publicitária. Hipoteca ideológica. Se, em muitas matérias de interesse colectivo, é possível encontrar quem preste o serviço de explicar, nestes assuntos financeiros, com ramificações políticas, pessoas nessas condições são quase inexistentes. Quem se aventura a explicar bem, entre outros, o BES, o BPN, a PT, a EDP, a TAP, o BANIF, a REN e o MONTEPIO, assim como as PPP, sabe que, algures, podem ser pesadas as represálias no emprego, na publicidade e na informação.
Vivemos em sociedade muito divida, mais do que parece à primeira vista. As ideias do “caldeirão central” e do “consenso” são geralmente falsas. Quem tem opinião sobre os bancos e as empresas, sobre os negócios dos privados e do Estado, tem uma visão previsível. E os partidos não ajudam muito. À direita, gostam de justicialismo, mas sentem que têm telhados de vidro. À esquerda, está-se sempre pronto a condenar os privados, a fim de desculpar os políticos. À direita, a regra que tudo define é a empresa privada, à esquerda é a nacionalização e o Estado. Qualquer plano de esquerda começa e acaba sempre com a nacionalização. Nos caos mais duros, próprios ao BE e ao PCP, a inspiração é mais radical: liquidar a empresa privada. Em contraste, qualquer plano de direita para a economia e os serviços vive da empresa privada, com recurso ao Estado para os prejuízos, as contingências e os imponderáveis. 
Quem ganhou e quem perdeu com a gestão pública da TAP, seguida da privatização manhosa, corrigida de modo a que não ficasse só pública, nem só privada? Quem ganhou com as centenas de milhões que circularam em poucos anos com estas operações?
Quem ganhou e quem perdeu com a gestão do BPN? Por que se decidiu que a sua falência teria problemas sistémicos? Qual foi a vantagem da nacionalização se o banco acabou no que acabou, com milhares de milhões a pagar pelos contribuintes? Como se perdeu valor com o BPN? Quem roubou no BPN? Onde está o dinheiro? Sumiu?
Quem ganhou e quem perdeu com o BES, com este que parece ser o maior golpe sórdido da história da economia e das finanças portuguesas, onde está o valor destruído, o valor perdido, o valor desviado e o valor açambarcado? Desapareceu?
Quem ganhou e quem perdeu com a destruição da PT, uma das melhores empresas portuguesas, mais enérgica, com mais capacidade de inovação e projecção externa? É verdade que muito cedo se verificou uma tendência para empregar consultores familiares de políticos, parentes de empresários e associados a banqueiros, o que não ajuda muito ao escrutínio… Mas era, apesar de tudo, uma das raras realizações empresariais portuguesas dignas de nota e mérito. Era…
Quem ganhou e quem perdeu com a transformação da EDP naquela que será talvez a maior e mais poderosa empresa portuguesa, agora chinesa, recheada de rendas de Estado, amiga de políticos, empregadora de celebridades de esquerda e de direita, com uma especial experiência no mercado de influências?
Como é possível que as histórias destas empresas sejam contadas com ardil: por gente de esquerda que detesta a propriedade privada e geme de amor pela gestão pública; ou por gente de direita que procura desculpas para qualquer gesto de protecção do lucro privado a que preço for. Como é possível que seja tão difícil encontrar quem, com espírito independente e sem preconceito comunista ou capitalista, se dedique a estudar e a contar estas histórias?
Alguns dos poucos livros interessantes sobre os “negócios” da nacionalização e da reprivatização são escritos por militantes de esquerda que odeiam a iniciativa privada e o mercado. Os poucos livros interessantes sobre estes negócios escritos por autores que aceitam a propriedade privada têm o triste condão de serem herméticos, tecnocratas e esconderem parte da verdade, justamente a mais sumarenta.
Portugal perdeu décadas com a ditadura. Com a guerra colonial, perdeu quinze anos e quase uma dezena de milhares de vidas. Com as nacionalizações, Portugal perdeu tempo e riqueza. Com as privatizações e as reprivatizações, Portugal perdeu mais tempo e valor. Quanto dinheiro e quantas pessoas se perderam para prolongar a guerra em África? Quantas vidas se perderam para descolonizar da maneira que se fez? Quanto dinheiro e quanta riqueza os Portugueses perderam para nacionalizar e reprivatizar? A TAP faz parte desta história de desastres, é uma saga, um folhetim, uma telenovela…
Em quase todos os negócios importantes realizados em Portugal nas últimas décadas e envolvendo grandes projectos, fusões de empresas, nacionalizações e reprivatizações, Portugal ficou a perder alguma coisa e os Portugueses ficaram a perder muito. Conhecem-se alguns casos, muito poucos, de grandes investimentos ou transacções que resultaram e os contribuintes, os accionistas e os trabalhadores ficaram a ganhar, mas são tão poucos! Na maior parte dos casos, os contribuintes ficaram a perder.
A saga da TAP é um bom exemplo da promiscuidade de interesses, da fraqueza negocial de Portugal e da debilidade das instituições com a missão de fiscalizar e avaliar. Assim como do pensamento dogmático em vigor, à esquerda como à direita, relativamente aos grandes problemas nacionais. Haverá certamente alguém que, um dia, fará a história verdadeira da TAP, mas será seguramente tarde de mais! Até esse dia, teremos de viver com este mito e este nó cego.
Público, 5.7.2020