sábado, 25 de março de 2023

Grande Angular - Pode acabar mal

 Os factos abundam, as evidências sobram: em Portugal, como em quase toda a Europa, aquilo que vulgarmente se designa por extrema-direita está em crescendo. Na França, na Itália, em Espanha, em vários países nórdicos, na Alemanha, na Áustria, assim como, mais longe, nos Estados Unidos ou no Brasil, os resultados eleitorais, as sondagens e múltiplas manifestações nas ruas e na sociedade dão sinais claros dessa ascensão. Na Rússia, atingiu-se mesmo o cume.  Em Portugal, com os votos no Chega, também temos essa evidência.

 

O que se chama vulgarmente, mas de modo inapropriado, extrema-direita, inclui coisas diferentes. Fica bem às esquerdas abusar do termo, mas sabe-se que não é conceito rigoroso. Seria preferível usar outro termo mais verdadeiro: a direita. Nesta noção mais vasta, cabe tudo: a direita pode ser democrática, nacionalista, liberal, populista, radical, cosmopolita, europeia, integrista, antidemocrática e extrema, entre outras.

 

Vista assim a realidade, é verdade que a direita, em Portugal e na Europa, está de regresso. Se vai vencer, se obtém ganhos importantes e se veio para ficar, não sabemos. Mas uma coisa é certa: no seu conjunto, está em aumento. Usa-se muito a designação de extrema-direita porque é a que convém aos seus adversários. Mas a maior parte da direita não cabe nesse termo. O que definiria a extrema-direita não são apenas valores como o sentimento religioso, a nação e a família, comuns a muitas direitas, mas sim o ultranacionalismo, a solução não democrática para o regime e o governo, a desigualdade social e étnica e a crença na superioridade racial. Outras crenças estão-lhe associadas, como sejam a disciplina e a obediência nas relações de trabalho, a intangibilidade da propriedade, a pena de morte e a prisão perpétua. E não lhe faltam laivos de racismo e xenofobia.

 

É fácil verificar que nem tudo é preto e branco. Na verdade, inúmeros valores e crenças podem ser partilhados com as esquerdas, extremas ou não. O nacionalismo pode existir à esquerda. As direitas podem desrespeitar a propriedade privada. Sentimentos antieuropeus e antiamericanos encontram-se tanto entre certas direitas como entre algumas esquerdas. Tal como o racismo que se pode encontrar ora à esquerda, ora à direita. Valores relativos à família, à religião, à pátria, à nação, à caridade e ao papel das elites, por exemplo, podem encontrar-se em todos os lados, mas é provável que seja na direita que têm mais significado.

 

Nas últimas décadas, a política ocidental, europeia e portuguesa tem sido dominada ou marcada pelos valores da esquerda e da direita democráticas, do centro-esquerda e do centro-direita. Juntas ou separadas, foram estas forças políticas que orientaram a Europa e a maior parte dos países europeus. Esse período parece acabar. A direita é cada vez mais direita. A esquerda cada vez mais esquerda. Os dois lados falam-se menos, entendem-se pouco. Mesmo se em certos momentos ou diante de alguns casos (a Ucrânia e a Rússia, por exemplo) o entendimento parece fácil, a verdade é que está em curso um processo de bipolarização e de afastamento entre esquerda e direita. O que significa também alguma radicalização.

 

É neste quadro, que a esquerda protesta todos os dias contra a extrema-direita e o regresso do fascismo. Nos partidos de centro, reclama-se contra a extrema-direita e a direita radical. Mas nos meios de esquerda, a linguagem é mais ácida. Ouvem-se os “Acudam que aí vem o fascismo”! Não são raros os apelos a legislação e a políticas de censura do que chamam “discursos de ódio”. Todos os dias sobejam as acusações contra as direitas que seriam totalitárias, racistas, xenófobas, demagógicas, reaccionárias e demagógicas. Não são raras as tentativas de censura de partidos, pessoas, publicações e iniciativas da direita, sempre identificadas com a extrema-direita antidemocrática. Grande parte desta retórica é idiota. É simplesmente inútil reclamar contra a extrema-direita e nada fazer para evitar que ela se desenvolva.

 

Berrar contra a extrema-direita é muito interessante. Mas absolutamente errado e ineficaz. É subterfúgio ou artimanha para evitar um real exame de consciência. Na verdade, as razões que fazem o êxito da extrema-direita são os erros da democracia, as deficiências dos democratas, os falhanços das esquerdas e a incompetência do centro.

 

As extremas-direitas nascem nas filas de espera dos hospitais, nos bairros segregados e nos edifícios degradados. As extremas-direitas nascem à entrada dos tribunais que não julgam os ricos e os poderosos, surgem à saída das escolas onde manuais pretendem impor programas politicamente correctos e germinam nos aeroportos onde se cruzam emigrantes portugueses de partida e imigrantes estrangeiros de chegada. As extremas-direitas alimentam-se nas Forças Aramadas sem equipamento nem autoridade, nas barcaças dos traficantes de mão-de-obra e nos conflitos raciais. As extremas-direitas medram nos bairros onde se faz tráfico de endereços falsos, nas residências recheadas de clandestinos, nas reuniões onde se vendem ao desbarato empresas nacionais a grupos predadores e nos bairros metropolitanos onde os preços da habitação atingiram valores insuportáveis. As extremas direitas nascem onde se cultiva o nepotismo familiar e o favoritismo partidário. As extremas-direitas desenvolvem-se neste ambiente de crise larvar, de desordem institucional e de incompetência a que se assiste presentemente. 

 

A extrema-direita não tem soluções, nem remédios. A extrema-direita nacionalista não consegue contrariar estas evoluções. Nunca conseguiu. E o que fez foi com força, violência, ditadura e sem liberdades, acrescentando crise à crise. O partido Chega é particularmente interessante. A sua ascensão surpreende toda a gente, a começar pelos seus próprios simpatizantes e dirigentes. Populista, hesita sempre entre a democracia e a ditadura. Ora defende os processos democráticos e se integra na respectiva liturgia, ora resvala para áreas de nenhuma tradição democrática. Simpatiza com o racismo e a xenofobia, incensa a autoridade, cultiva a castração química e a pena de prisão perpétua, mas respeita as regras parlamentares e as normas constitucionais (de que quer tirar partido, mas que diz respeitar). O Chega, pelo que se sabe e vê, não é antidoto para a desordem e o caos, não é remédio para os evidentes problemas sociais e económicas, não é solução para a crise que temos diante de nós. Mas o Chega é produto dessa crise. É uma manifestação da crise. É o seu resultado.

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Público, 25.3.2023

sábado, 18 de março de 2023

Grande Angular - Pode acabar mal

Não é provável. Mas é possível. Isto pode acabar mal. O que é “isto”? O regime democrático, as liberdades públicas, a paz social e um razoável desenvolvimento. Mas sobretudo a democracia e a liberdade.

 

Poderá mesmo acabar mal? Não será demasiado pessimismo? Mais uma vez Cassandra? Ou os habituais Profetas da Desgraça?

 

É mesmo o caso. Pode acabar mal. Ainda há pouco, havia trunfos inesquecíveis. Há ou havia dinheiro e capital disponível. Não era português, nem privado. Era europeu. Mas havia. E era capital. Havia paz social. Nas ruas e nas empresas vivia-se um relativo conforto. Sem fortuna, nem exaltação. Mas alguma serenidade. O desemprego era baixo. Ou antes, não era alto. Tempos houve em que 6% era muito. Agora, já parece ser aceitável. O parlamento gozava de maioria absoluta, um dos mais formidáveis instrumentos de governo, um trunfo raro na história da democracia portuguesa. Era claro e indiscutível. O trunfo continua lá. Mas as dissensões dentro do partido do governo revelam tempestades para amanhã. E a desordem nos espíritos é má conselheira. Entretanto, da rua e da vida, vêm constantes rumores. Descontentes.

 

O primeiro ministro parece cansado. Não se sabe se é só isso ou se é incerteza quanto ao que há para fazer. Ou vontade de ir embora. A sucessão de demissões deixou má impressão no país. Fica-se com a sensação de que os governantes não sabem que fazer, não têm competência ou não se interessam. A história da TAP, do aeroporto, dos comboios, do TGV e dos transportes públicos é reveladora desta incapacidade. As únicas coisas em que o governo parece especialista são a distribuição de subsídios e a encomenda de estudos inúteis.

 

Que aconteceu para que as escolas e os professores estejam em crise como raramente se viu? Que aconteceu para que os hospitais, as maternidades, as urgências, os médicos e os enfermeiros, para já não falar dos doentes, se encontrem neste estado? Que aconteceu para que surjam, nas áreas metropolitanas, novas barracas, mais sem abrigo e mais droga nas ruas? Que se está a passar com as políticas de população, quando a emigração continua e a imigração aumenta, com os incentivos que o governo dá ao mercado negro de trabalhadores, ao tráfico de imigrantes e ao trabalho ilegal? Que continua a passar-se com a justiça, incapaz de resolver os casos difíceis de poderosos, de afortunados e de políticos? Que se passou com o mercado da habitação que vive na desordem e revela a sua maior violência social, sem que as autoridades tenham a noção do que deve ser feito, a não ser acudir aos miseráveis?

O que se passou ou está a passar na Armada, na Madeira e relativamente ao NRP Mondego, parece ser de gravidade extrema. Poderia ser apenas um caso isolado ou um incidente episódico sem dia seguinte, mas tudo leva a crer que seja sintoma de mal-estar, de perda de confiança e de disciplina, de falha na coesão na Armada e nas Forças Armadas. Ou até de abismo entre o poder político e as Forças Armadas. Até agora, ainda não houve esclarecimento. Os órgãos de poder político esforçam-se por disfarçar. Após tantos sinais de inquietação, já seria tempo de ver o poder político preocupar-se com as Forças Armadas: não só com as questões habituais, o equipamento, a organização, os efectivos, as capacidades e os orçamentos, mas também com as questões mais importantes, o clima geral no seu interior, a relação das Forças Armadas com a sociedade e com o Estado. Era tão bom que os políticos percebessem de uma vez por todas que, sem Forças Armadas, não há democracia, nem liberdade, nem paz social!

 

A Igreja católica portuguesa, uma das mais importantes instituições nacionais, acaba de se afundar numa das suas piores crises. Por sua obra e graça! Os católicos vão ficar a perder, não se sabe por quanto tempo. Os portugueses também. A crise actual da Igreja é provavelmente a mais grave do último século. Com uma característica: não tem origem em ataques feitos a partir do exterior, da política, dos costumes e de crenças concorrentes, mas sim a partir de dentro. A Igreja, a sua hierarquia e os seus sacerdotes só se podem queixar de si próprios. A Igreja pecou por altivez e presunção. 

 

Esta crise vai ter consequências na sociedade. Crise de confiança, tanto por parte da população em geral, como do lado dos seus crentes. A dúvida e a incerteza perante a Igreja são sinais de desconfiança. Nas instituições da sociedade civil, nas instâncias do poder político, nas regras de direito e no funcionamento da Justiça. Apesar disso tudo, é difícil detectar um esforço de correcção dentro da Igreja portuguesa. Mas quase só é visível a tentativa de encobrimento, de subvalorização, de menoridade e de complacência.

 

De fora, do mundo, não chegam boas notícias. Guerra sem fim à vista. Tensão política e militar internacional. Nova crise financeira e bancária. Incerteza sanitária. Novas crises de imigração. Sérias perturbações sociais em vários países europeus. Crescimento das políticas radicais. Para tudo isto, em Portugal, era necessária uma política segura, uma democracia sólida e instituições estáveis. Além de confiança da população nos seus dirigentes. O que não parece ser o caso.

 

O Governo está a passar um mau bocado. Portugal e os portugueses também. Era bom estarmos atentos. O pior pode acontecer. Há instituições, mas são frágeis. Há recursos financeiros, mas estão a ser distribuídos e um dia acabam. Há defensores das liberdades, mas também há desconfiança e afastamento. Há partidos políticos democráticos, mas também há os que o não são e ameaçam a democracia. Há protesto político, mas o descontentamento social, sem conotação partidária, exprime-se nas ruas. Os partidos estão presentes nos meios mais agitados, mas nas escolas, nos hospitais, no Serviço Nacional de Saúde, nos transportes públicos e nos supermercados é crescente a convergência entre esquerda e direita, a ponto de se poder dizer que o protesto social é pouco partidário. O regime e o sistema de governo parecem estar a perder talento, competência e capacidade para tratar das questões de fundo e das crises presentes.

 

Há um mau ambiente social evidente. Muito mais perigoso do que a estridência política e a berraria de candidatos a salvar a pátria.  O que é realmente ameaçador é o mau ambiente, essa espécie de burburinho permanente, o descontentamento da população, as dificuldades em que vivem os cidadãos. O pior pode acontecer. Não é provável. Mas pode.

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Público, 18.3.2023

sábado, 11 de março de 2023

Grande Angular - Imigrantes: As políticas (3)

 No Mediterrâneo, recomeçou a estação de tráfico, refúgio e acidente. A Europa no seu todo e cada país em particular não conseguem elaborar e pôr em prática uma política de controlo do acesso e menos ainda de decência no acolhimento. A desordem, o sofrimento e a morte têm mãos livres neste mar e nas suas praias. O que a Europa faz favorece a travessia clandestina, o refúgio ilegal e o sacrifício de crianças e idosos. Os “negreiros” e os traficantes vivem das políticas europeias e das hesitações dos seus dirigentes. A generosidade e a compaixão de muitos europeus são vilmente utilizadas como estímulos ao crescimento do tráfico.

 

Sucedem-se os sinais de crise iminente. Surgem novas barracas e alojamentos miseráveis na área metropolitana de Lisboa. Aparecem novos edifícios inóspitos na margem Sul. Publicam-se notícias sobre o alojamento degradado ocupado por imigrantes e minorias. Descobrem-se cubículos com dezenas de pessoas amontoadas em beliches. É crescente a acidez nas discussões sobre questões raciais e de imigração. Novas disposições legais estabelecem o visto automático para as pessoas dos países da CPLP. Em Angola, são longas as filas de espera de cidadãos que tentam obter os vistos de residência em Portugal, agora facilmente distribuídos. Começa a correr o processo de legalização expedita de milhares de residentes ilegais. Dizem os jornais que, segundo o SEF, se espera legalizar de imediato perto de 150.000 imigrantes. E receber outros tantos nos próximos dois anos. A verificarem-se estas previsões, serão os mais elevados contingentes de imigrantes jamais chegados a Portugal. Descobrem-se novas fileiras de imigração especialmente usadas por mulheres à beira de dar à luz e outras situações a configurar emergência médica. Não se conhecem progressos nas numerosas situações de imigrantes alojados em condições precárias e malsãs junto às culturas forçadas e às agriculturas hiper-intensivas. As questões raciais e os incidentes envolvendo problemas de imigração, de minorias e de estrangeiros ocupam cada vez mais a atenção e as preocupações. 

 

A imigração, em Portugal, faz-se sem política e sem escolhas. E sem respostas às questões difíceis. Há recursos humanos, de equipamento e de capital, para abrir as portas? Há cidades e habitação decente à altura? A economia necessita desta mão-de-obra? Haverá emprego suficiente para os residentes e para os novos imigrantes? Estão preparados os serviços sociais, as escolas, os hospitais, a habitação e os transportes para estes novos fluxos de população? Algumas vez estas políticas foram sufragadas pelo eleitorado e aprovadas pelo Parlamento?

 

A habitação é quase um problema à parte. Pela sua natureza, pela dimensão, pelo custo e pela durabilidade das decisões, os problemas de habitação são uma espécie de lugar geométrico de todas as questões sociais da imigração. Por vias da habitação, definem-se bairros, prédios e ruas, numa palavra, comunidades. Em grande número de países europeus a distribuição geográfica das comunidades imigrantes tem conduzido à fixação de áreas de especialidade nacional, de concentração étnica e de segregação. As cidades europeias, tanto os seus centros históricos como as suas periferias, transformam-se em territórios próprios e exclusivos de comunidades nacionais. As grandes cidades fragmentam-se de modo ameaçador para a paz social e o convívio entre povos. A segregação aumenta a separação, o confronto e o conflito, o que agrava as dificuldades de integração social. O descontrolo das migrações e a abstenção relativamente à organização das sociedades e dos espaços são convites à marginalidade. É uma infâmia o mercado ilegal de residências, vistos, autorizações de trabalho, certificados de casamento, títulos de adopção, contratos de trabalho falsos e outras habilidades destinadas a fomentar uma imigração oportunista.

 

As novas modas e doutrinas apoiam de modo crescente as opções multiculturais. O que quer dizer que se defende que cada comunidade, nacional ou imigrante, mantenha as suas tradições, a sua cultura, os seus costumes e até as suas regras “legais”. Ora, é superior a política que recorre e aceita imigrantes, mas que opta deliberadamente pelas políticas de integração cultural, social e económica, em detrimento das políticas do multiculturalismo, de preservação do mosaico de regras e costumes, geralmente propícios à instalação de sociedades paralelas, de comunidades marginais e de estranhas formas de apartheid.

 

A integração é, em democracia, um factor de agregação e não de fragmentação, como é o multiculturalismo. Este último, aliás, levanta problemas de enorme dificuldade. Que fazer, numa sociedade que privilegia o multiculturalismo, com a aprendizagem da língua, o respeito pelas leis sobre violência física e familiar, a poligamia, as regras de saúde e higiene pública, o respeito pela individualidade da pessoa humana e a crença na inviolabilidade da vida humana? 

 

É difícil formular políticas de integração, mesmo sabendo que são essas as que melhor defendem os direitos dos imigrantes, tanto quanto os dos já residentes. É difícil porque os inimigos da coesão social consideram essas políticas racistas ou autoritárias. Mas são princípios simples. Os imigrantes não devem ter direitos diferentes, em nenhum aspecto, aos dos residentes e nacionais. A imposição de regras pelos traficantes de mão de obra deve ser recusada. Ninguém ilegal, indocumentado ou clandestino deve ser aceite, a não ser em casos excepcionais de sofrimento e perigo. A aprendizagem da língua deve ser promovida. A mera utilização de serviços de saúde por estrangeiros que assim abusam das facilidades existentes deve ser proibida. A integração vem acima de tudo.

 

O multiculturalismo acrescenta-se à política de porta aberta e de acolhimento universal. São duas tendências perniciosas. Pela segunda, um país renuncia ao seu direito e ao seu dever de organizar, programar, legalizar e cuidar dos fluxos migratórios. Mesmo que nunca seja possível, a não ser em ditadura, controlar absolutamente estes movimentos populacionais, é sempre possível aumentar o controlo, o planeamento e a previsão, a fim de melhor organizar a sociedade e os serviços públicos. Pela primeira atitude, a que defende o multiculturalismo, abre-se a porta a verdadeiros apartheids culturais, com regras e direitos próprios, verdadeiros alfobres de conflitos sociais e raciais. Sob a aparência de respeito pelas culturas e pelas identidades, o multiculturalismo é um convite à ilegalidade e à fragmentação. Nestas questões, a complacência é tão perigosa quanto a opressão.

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Público, 11.3.2023

segunda-feira, 6 de março de 2023

Grande Angular - Imigrantes: As escolhas (2)

 Por egoísmo e necessidade, Portugal acolhe todos os anos uns milhares de imigrantes de que precisa. No quadro da quebra de natalidade verificada nas últimas décadas, os motivos são muitos. Os mais importantes estão ligados ao trabalho e à economia. Sobressaem as necessidades de mão-de-obra. Há falta de trabalhadores em muitos sectores. Os residentes emigram ou fogem de certos trabalhos. Os imigrantes ajudam à produção nacional e à exportação de bens e serviços, assim como ao aumento do consumo. Os legais contribuem para os rendimentos da Segurança Social e para as receitas fiscais. Por todas estas razões, Portugal necessita de imigrantes.

 

Não é só por necessidade que Portugal acolhe imigrantes. Há também motivos relacionados com os valores dominantes em cada tempo e sociedade, como sejam a humanidade e a solidariedade. Ou obrigações ligadas a compromissos e ao espírito prevalecente em comunidades internacionais. Sem falar na humanização destas políticas, como se pode verificar quando há imigrantes que se justificam pela reunião famílias. Cada país tem refugiados em múltiplas situações que ilustram estes motivos para as migrações e que estão por vezes bem longe do interesse e da necessidade.

 

Há, no mundo, milhões de candidatos à emigração para países mais ricos, desenvolvidos, abertos e com necessidades de mão-de-obra. Conforme os quadrantes geográficos e as relações sociais, políticas e económicas, os candidatos à emigração dirigem-se para os países da sua escolha. Ou que se enquadrem numa tradição social, política e cultural. Ou simplesmente países que oferecem oportunidades. Há também milhões que tentam fugir por desespero e miséria, para sobreviver. Dirigem-se para qualquer país possível. Muitos são perseguidos e procuram abrigo. A grande maioria dirige-se para os países europeus e norte-americanos. Há também, em números consideráveis, pessoas que se deslocam para qualquer sítio, de preferência países vizinhos, para fugir às guerras. Vários países africanos estão nestas circunstâncias. Actualmente, também da Ucrânia partiram milhões de deslocados.

 

As políticas dos países de acolhimento variam. Uns têm controlos apertados e exigem contratos de trabalho, períodos experimentais, actividades sazonais antes de empregos permanentes e autorizações temporárias antes das definitivas. Há países que tentam administrar as migrações segundo as necessidades da economia, as oportunidades de trabalho, a existência de familiares já estabelecidos e as especialidades profissionais. Há ainda os que tentam definir quotas por nacionalidade, isto é, só aceitar originários de certos países. Há finalmente países que abrem as portas a imigrantes sem controlo ou quase sem condições.

 

Importa notar que, entre os países que recebem imigrantes e refugiados, contam-se só democracias. As ditaduras e regimes equiparados não aceitam imigrantes nem refugiados. Não há imigrantes na China, na Rússia, na Bielorrússia, na Venezuela ou na Coreia do Norte. Como não havia na União Soviética ou nos países comunistas, nem nos países fascistas. Das ditaduras foge-se, para elas não se emigra. Os êxodos de massas em situação de guerra podem, como foi várias vezes o caso em África, orientar-se para países próximos da ditadura, mas trata-se de emergências vitais.

 

Em Portugal, como em quase todos os países da Europa e da América do Norte, discutem-se as políticas de acolhimento. Os problemas são muito graves. Já se percebeu que esta questão está em agravamento e vai transformar-se num dos mais sérios problemas da Europa. Ainda por cima, estamos a tratar de questão que exige aproximação global, isto é, europeia, mas também nacional. É provável que nunca se consiga pôr em prática uma política europeia. Cada povo tem a sua história, a sua cultura e os seus amigos. Por mais que se avance na integração europeia, a diversidade marcará as escolhas e as políticas. E quando esta não é respeitada, as pulsões nacionalistas, democráticas ou não, surgem imediatamente.

 

A política dita de porta aberta, de acolhimento de quem vem, de tolerância com a ilegalidade, é um estímulo às piores condições de imigração. Por exemplo, às redes de tráfico de trabalhadores, uma espécie de negreiros, que, dos confins da Ásia ao Próximo Oriente e do Mediterrâneo a África, organizam os fluxos, incluindo salva-vidas deficientes, mudanças de barcos e de aviões, alternância de autocarros e outros meios de transporte. Esta gente deveria ser perseguida. Os preços de uma passagem para qualquer país da Europa podem oscilar entre três e trinta mil euros. Os acidentes, os naufrágios e as mortes acidentais fazem parte da pressão exercida sobre os países de acolhimento para que, por motivos humanitários, recebam toda a gente, especialmente mulheres, crianças, idosos e parturientes. Pior ainda: os acidentes estimulam o negócio.

 

Quaisquer que sejam os argumentos, das necessidades de mão-de-obra à humanidade, uma coisa é certa: as práticas seguidas actualmente por Portugal são incentivos à clandestinidade, ao tráfico e ao abuso dos imigrantes pobres, sobretudo dos ilegais. Por isso, as melhores políticas de acolhimento são aquelas que definem os princípios orientadores de controlo de movimentos e de legalidade de contratos de trabalho e de autorizações de residência. 

 

Além disso, é natural que um país queira privilegiar umas tradições e umas culturas, isto é, umas nacionalidades, em detrimento de outras. Também parece natural que um país, o seu povo e os seus representantes queiram definir preferências profissionais, isto é, imigrantes que venham preencher lacunas, abrir oportunidades e desenvolver certas actividades. 

 

As políticas de imigração, em Portugal e noutros países europeus, não são sufragadas pelo eleitorado. E deveriam ser. Quase não há referendos sobre a imigração, nem aliás é certo que esse seja o melhor método de decidir. O parlamento nunca foi chamado a aprovar uma política consistente e pormenorizada de imigração. Nos programas eleitorais, os partidos ficam-se por proclamações vistosas sem medidas concretas. Em geral, os partidos têm medo de se comprometer com as migrações. Preferem agir, no governo, por medidas administrativas. Ou deixar correr a vida e acudir quando há problemas.

 

Ora, uma coisa é segura. É absolutamente legítimo que um povo queira decidir o que é melhor para si, sobretudo no que toca à população. A melhor maneira de o fazer é evidentemente a de escolher as vias e os compromissos que lhes são apresentados. Desde que o sejam!

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Público, 4.3.2023