Os factos abundam, as evidências sobram: em Portugal, como em quase toda a Europa, aquilo que vulgarmente se designa por extrema-direita está em crescendo. Na França, na Itália, em Espanha, em vários países nórdicos, na Alemanha, na Áustria, assim como, mais longe, nos Estados Unidos ou no Brasil, os resultados eleitorais, as sondagens e múltiplas manifestações nas ruas e na sociedade dão sinais claros dessa ascensão. Na Rússia, atingiu-se mesmo o cume. Em Portugal, com os votos no Chega, também temos essa evidência.
O que se chama vulgarmente, mas de modo inapropriado, extrema-direita, inclui coisas diferentes. Fica bem às esquerdas abusar do termo, mas sabe-se que não é conceito rigoroso. Seria preferível usar outro termo mais verdadeiro: a direita. Nesta noção mais vasta, cabe tudo: a direita pode ser democrática, nacionalista, liberal, populista, radical, cosmopolita, europeia, integrista, antidemocrática e extrema, entre outras.
Vista assim a realidade, é verdade que a direita, em Portugal e na Europa, está de regresso. Se vai vencer, se obtém ganhos importantes e se veio para ficar, não sabemos. Mas uma coisa é certa: no seu conjunto, está em aumento. Usa-se muito a designação de extrema-direita porque é a que convém aos seus adversários. Mas a maior parte da direita não cabe nesse termo. O que definiria a extrema-direita não são apenas valores como o sentimento religioso, a nação e a família, comuns a muitas direitas, mas sim o ultranacionalismo, a solução não democrática para o regime e o governo, a desigualdade social e étnica e a crença na superioridade racial. Outras crenças estão-lhe associadas, como sejam a disciplina e a obediência nas relações de trabalho, a intangibilidade da propriedade, a pena de morte e a prisão perpétua. E não lhe faltam laivos de racismo e xenofobia.
É fácil verificar que nem tudo é preto e branco. Na verdade, inúmeros valores e crenças podem ser partilhados com as esquerdas, extremas ou não. O nacionalismo pode existir à esquerda. As direitas podem desrespeitar a propriedade privada. Sentimentos antieuropeus e antiamericanos encontram-se tanto entre certas direitas como entre algumas esquerdas. Tal como o racismo que se pode encontrar ora à esquerda, ora à direita. Valores relativos à família, à religião, à pátria, à nação, à caridade e ao papel das elites, por exemplo, podem encontrar-se em todos os lados, mas é provável que seja na direita que têm mais significado.
Nas últimas décadas, a política ocidental, europeia e portuguesa tem sido dominada ou marcada pelos valores da esquerda e da direita democráticas, do centro-esquerda e do centro-direita. Juntas ou separadas, foram estas forças políticas que orientaram a Europa e a maior parte dos países europeus. Esse período parece acabar. A direita é cada vez mais direita. A esquerda cada vez mais esquerda. Os dois lados falam-se menos, entendem-se pouco. Mesmo se em certos momentos ou diante de alguns casos (a Ucrânia e a Rússia, por exemplo) o entendimento parece fácil, a verdade é que está em curso um processo de bipolarização e de afastamento entre esquerda e direita. O que significa também alguma radicalização.
É neste quadro, que a esquerda protesta todos os dias contra a extrema-direita e o regresso do fascismo. Nos partidos de centro, reclama-se contra a extrema-direita e a direita radical. Mas nos meios de esquerda, a linguagem é mais ácida. Ouvem-se os “Acudam que aí vem o fascismo”! Não são raros os apelos a legislação e a políticas de censura do que chamam “discursos de ódio”. Todos os dias sobejam as acusações contra as direitas que seriam totalitárias, racistas, xenófobas, demagógicas, reaccionárias e demagógicas. Não são raras as tentativas de censura de partidos, pessoas, publicações e iniciativas da direita, sempre identificadas com a extrema-direita antidemocrática. Grande parte desta retórica é idiota. É simplesmente inútil reclamar contra a extrema-direita e nada fazer para evitar que ela se desenvolva.
Berrar contra a extrema-direita é muito interessante. Mas absolutamente errado e ineficaz. É subterfúgio ou artimanha para evitar um real exame de consciência. Na verdade, as razões que fazem o êxito da extrema-direita são os erros da democracia, as deficiências dos democratas, os falhanços das esquerdas e a incompetência do centro.
As extremas-direitas nascem nas filas de espera dos hospitais, nos bairros segregados e nos edifícios degradados. As extremas-direitas nascem à entrada dos tribunais que não julgam os ricos e os poderosos, surgem à saída das escolas onde manuais pretendem impor programas politicamente correctos e germinam nos aeroportos onde se cruzam emigrantes portugueses de partida e imigrantes estrangeiros de chegada. As extremas-direitas alimentam-se nas Forças Aramadas sem equipamento nem autoridade, nas barcaças dos traficantes de mão-de-obra e nos conflitos raciais. As extremas-direitas medram nos bairros onde se faz tráfico de endereços falsos, nas residências recheadas de clandestinos, nas reuniões onde se vendem ao desbarato empresas nacionais a grupos predadores e nos bairros metropolitanos onde os preços da habitação atingiram valores insuportáveis. As extremas direitas nascem onde se cultiva o nepotismo familiar e o favoritismo partidário. As extremas-direitas desenvolvem-se neste ambiente de crise larvar, de desordem institucional e de incompetência a que se assiste presentemente.
A extrema-direita não tem soluções, nem remédios. A extrema-direita nacionalista não consegue contrariar estas evoluções. Nunca conseguiu. E o que fez foi com força, violência, ditadura e sem liberdades, acrescentando crise à crise. O partido Chega é particularmente interessante. A sua ascensão surpreende toda a gente, a começar pelos seus próprios simpatizantes e dirigentes. Populista, hesita sempre entre a democracia e a ditadura. Ora defende os processos democráticos e se integra na respectiva liturgia, ora resvala para áreas de nenhuma tradição democrática. Simpatiza com o racismo e a xenofobia, incensa a autoridade, cultiva a castração química e a pena de prisão perpétua, mas respeita as regras parlamentares e as normas constitucionais (de que quer tirar partido, mas que diz respeitar). O Chega, pelo que se sabe e vê, não é antidoto para a desordem e o caos, não é remédio para os evidentes problemas sociais e económicas, não é solução para a crise que temos diante de nós. Mas o Chega é produto dessa crise. É uma manifestação da crise. É o seu resultado.
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Público, 25.3.2023