sábado, 27 de julho de 2024

Grande Angular - Comissões de inquérito

 mais famosa Comissão de Inquérito Parlamentar era, até agora, a que tratou do “Caso Camarate”, isto é, o incidente com o avião que transportava Sá Carneiro e Amaro da Costa e seus acompanhantes, todos vítimas mortais. O caso era em si suficiente para ficar na história. Mas há mais motivos para não esquecer. Comissões de Camarate houve dez! E mais de trinta anos! A primeira foi criada em 1982, dois anos depois da “ocorrência”. A última, a décima, foi criada em 2012 e terminou os seus trabalhos em 2015. Nem todas as anteriores chegaram ao fim dos mandatos, mas as que chegaram aprovaram diferentes conclusões, desde a certeza da avaria, até ao erro humano e às dúvidas não fundamentadas, para acabar em suspeitas de atentado e até, finalmente, a garantia de que se tratou de crime. A vida deste inquérito é um caso irrepetível de má conduta, ineficácia, envolvimento político em processos judiciais, legislação absurda e tropelias de toda a espécie. Houve para tudo. Menos para se fazer justiça. Foram comissões de inquérito para a chicana, para o incómodo entre facções partidárias. Havia quem não quisesse inquérito. Como havia quem garantisse que se tratava de acidente, não existia nada para inquirir. Procurava-se incomodar sucessores de Sá Carneiro e de Amaro da Costa. Tentava-se descobrir uma conspiração internacional, mesmo antes de tentar descobrir a verdade. A última comissão terá talvez feito o melhor trabalho de todas. É provável que o seu relatório final seja certo e conclusivo, nunca se saberá realmente, mas foi fora do tempo, sem consequências penais ou políticas.

 

Nestes mesmos trinta e cinco anos, várias comissões parlamentares de inquérito, CPI, foram aprovadas ou recusadas, algumas delas deram espectáculo e tempo de antena. Foram perto de 90 as CPI aprovadas. Onze tinham como tema de investigação os bancos: sistema bancário, TOTTA, BPN, BES, CGD, BCP e BANIF. Boa parte destas comissões não serviu para nada. Ou não acabaram os seus trabalhos, ou não chegaram a conclusões. Por defeito próprio ou porque as legislaturas acabaram. Ou as conclusões eram ditadas pela maioria política, o que retira valor ao trabalho. Mas também houve casos em que as CPI deram origem a procedimentos de relevo. O que se passou, por exemplo, com o BES ou com a colecção Berardo, o BCP e a CGD, terá talvez começado ali, nas salas de inquérito da Assembleia. Parece que, em conclusão, houve algumas comissões que serviram para alguma coisa.

 

Nos últimos anos, a actividade de inquérito tem vindo a crescer ou a prometer. Para a presente legislatura, já há várias propostas feitas, sendo que só uma, a das “Gémeas”, iniciou os seus trabalhos. Antes disso, em legislatura anterior, o computador do assessor de Galamba, a demissão da presidente da TAP, o vencimento de secretária de Estado e a indemnização da administradora da mesma TAP já tinham brilhado como autênticas vedetas. 

 

A partir de agora, a CPI mais famosa pode bem ser a do “Caso das Gémeas”, tal como ficou designado pela voz corrente. O que se tem visto nas televisões arrepia! Tudo se pode ver ali. Guerrilha política. Telenovela de mau gosto. Insídia. Cinismo a jorros. Falta de educação e de cortesia. Sem hesitar, com respaldo em normas jurídicas obtusas, há deputados que exigem ver a correspondência privada, seja do Presidente da República, seja a dos vários protagonistas, mãe, médico e amigos das “Gémeas” ou até de pessoas apenas evocadas. Disse bem: correspondência privada! Como entendem exigir a apresentação de documentos privados de empresas estrangeiras. Como deputados, são maus inquiridores. Como inquiridores, são maus deputados. Como deputados inquiridores, têm dificuldade em perceber que há direitos dos cidadãos que constituem limites à sua acção.

 

Este inquérito ao “caso das Gémeas” é o mais recente exemplo de aviltamento de uma nobre faculdade, a de representar e apurar a verdade. Desde o início que se percebeu que a ideia era uma espécie de institucionalização da velhacaria, do disfarce e da dissimulação. Os autores da proposta, os seus principais actores e os protagonistas, de quase todos os partidos, lutam contra o Presidente da República, contra os governos, contra outros partidos, pelas suas reputações pessoais e partidárias… Quem acompanhe, pela televisão, estes debates, ou antes, estes interrogatórios, perceberá que o que está em causa é a política mais rasteira que se imagina. Com o acréscimo de se tratar de encenação perfeita. Em nome da verdade, a favor da igualdade de direitos e por conta da luta contra as cunhas, cria-se um espectáculo de justiça exemplar. Absolutamente enganador. O caso, pela mãe e pelas crianças, é comovedor. Pela cunha e pela mentira, é repelente. Pelo oportunismo e pelo cinismo, é desprezível. Mas é provável que já se saiba tudo o que há para saber. Que os juízos morais já estejam feitos. E que nada mais haja a fazer. É difícil levar a tribunal o Portugal das cunhas, a mentira dos notáveis e a arrogância dos deputados.

 

Estas comissões de inquérito sofrem de falta de eficácia e de boa organização do trabalho. Há sessões que podem durar cinco, dez ou mais horas. Há depoimentos que duram mais do que interrogatórios de uma polícia política. As instalações ao serviço dos deputados, dos inquiridos e das testemunhas, assim como dos jornalistas e assistentes, são horrendas, toscas, não dignas de trabalho parlamentar sério, sem cortesia nem facilidades de trabalho. Os deputados não se dão ao respeito. As testemunhas são maltratadas. Os visitantes são desprezados. Os inquiridos sentam-se nas esquinas das mesas, são tão respeitados como criminosos em tribunais.

 

Muitos deputados julgam que têm ali tribuna para a história. Fazem perguntas longas como relatórios. Maltratam as pessoas. Desconfiam dos inquiridos ou insultam as testemunhas. Debatem e exprimem as suas opiniões como se estivessem em sessão plenária, não em comissão de inquérito. Julgam que são da polícia judiciária. Pensam que são procuradores. Acreditam que são detectives. Comportam-se como juízes. Acham-se dotados de poderes acima dos mortais. Com algumas excepções de deputados que quase fizeram a sua reputação ali, pelo rigor e pela qualidade do seu trabalho, a maior parte dos inquiridores está preocupada com os seus camaradas, os seus eleitores, os jornalistas e os seus fans.

            

Solução? Ter paciência e esperar pelas próximas gerações.

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Público, 27.7.2024

sábado, 20 de julho de 2024

Grande Angular - Complexos de superioridade

 Somos tão melhores! Somos, quem? Conforme o caso, nós somos os Portugueses, os Europeus, os democratas, os ocidentais, os brancos, os cristãos e os intelectuais.

 

Somos melhores do que os outros. Os outros, quem são? São os Americanos, os Russos, os Asiáticos, os Africanos, os Judeus e os Muçulmanos.

 

Muitos Europeus, de esquerda e de direita, desprezam os americanos, têm medo dos russos, consideram os chineses inferiores e pensam que estão acima dos africanos. Os Europeus de esquerda acrescentam a esses preconceitos alguns juízos mais sofisticados. Os americanos seriam incultos, os russos brutos e os chineses atrasados. Mas sobretudo os Europeus consideram-se superiores moral, política e intelectualmente. Têm melhores sentimentos, história mais interessante, leram mais livros, são mais democratas, têm passaporte e falam várias línguas.

 

Os americanos seriam bebés grandes, atrasados mentais, populistas, prontos para matar os povos indefesos, amantes da violência, imperialistas e apenas ciosos de liberdade quando esta lhes traz dólares. A maioria dos americanos, para muitos europeus, de esquerda como de direita, é composta de gente analfabeta, dada a desportos violentos, a hambúrgueres e cerveja. Os americanos, que votaram Reagan, Bush e Trump, seriam idiotas, imperialistas, evangelistas e racistas.

 

Os franceses, com excepção dos intelectuais e dos profissionais da moda, seriam pequeno-burgueses de simpatias extremistas, racistas de tradição, exploradores de árabes, convencidos de que podem mandar na Europa. Os que votam nas direitas, aliás cada vez mais, seriam fascistas.

 

Os alemães são sempre os mesmos, pesados, brutos, exploradores, violentos, amantes de cerveja, eternos invasores dos seus vizinhos, disponíveis para aventuras fascistas, usaram os franceses para se promoverem a democratas, mas agora querem é mandar em todos. E só pensam, evidentemente, em conquistar os vizinhos e comprar as suas indústrias.

 

É assim que os Europeus se enganam.

 

Estão em curso mudanças profundas, tão vastas e tão rápidas como raramente se viu na história. Também é verdade que tudo anda mais depressa. Que tudo se sabe mais rapidamente. E que tudo e todos comunicam e estão ligados a todos e tudo. 

 

Muitos não souberam perceber o que se passava com as nações. Com as comunidades nacionais. Com as comunidades de língua, cultura e tradição. Consideraram que tudo isso era nacionalismo de pacotilha, conspiração obscurantista e capitalismo selvagem. Quando não fascismo puro e duro. E de qualquer modo racismo. Há uma falsa racionalidade na política democrática contemporânea que evita a nação e a história. As tentativas de reescrever a história, de restituir, de devolver, de reinterpretar e de traduzir em dialecto correcto a herança histórica europeia estão a destruir a democracia.

 

Muitos não conseguem entender que as populações estão em mudança acelerada, inescapável, em processo que ultrapassa as vontades de um governo ou de um só país. A circulação de pessoas, a miscigenação e as migrações são partes estruturais da história do presente. É impossível estancar, com democracia, tais tendências. Mas é possível ordenar, controlar, legalizar e administrar. Com o assentimento dos povos. Com tolerância. Caso contrário, a explosão racista e a desordem estão aí, ao virar da esquina. E a falsa igualdade generosa acaba por ser o mais eficaz estímulo ao mercado negro de pessoas, à ilegalidade e à exploração mais vil que se pode imaginar.

 

O contexto internacional é um incentivo à ansiedade. Os Russos procuram uma vingança histórica. Os Chineses querem consolidar um lugar no posto de comando das potências. A Índia não quer ficar para trás. A Europa está a perder e não quer perceber. Os Estados Unidos estão a deixar de ser hegemónicos, sendo embora ainda dominantes, mas não sabem como deixar de o ser e não toleram essa hipótese. África, América Latina e Ásia, que estão à venda a quem der mais, a quem envie ajuda militar e capitais, deixaram de ter fidelidades históricas ou amizades electivas. 

 

É uma verdadeira metamorfose aquilo de que se trata. Ao que dizem, para os animais que passam por essa via, é dos momentos mais dolorosos da vida. As nações e os continentes estão actualmente num processo desses, não se duvide. Quem não o percebeu será quem mais sofrerá. Os que menos percebem são evidentemente os que mais perdem na balança de poderes. Estados Unidos à cabeça. Europa a seguir. Estas duas potências, separadas ou em conjunto, deveriam repensar o seu lugar no mundo.

 

Na Europa, há várias reacções possíveis contra estes processos. Mas há sobretudo três erradas. A primeira consiste em negar e considerar que a Europa será sempre a grande Europa, mesmo que já não seja. A segunda é a aceitação e a rendição, deixando que a Europa se entregue aos grandes pesos pesados no mundo, a América, a Rússia, ou mesmo a China, quem sabe. A terceira é falar, denunciar e vituperar, sem nada fazer. Isto é, considerar que a crítica é suficiente para convencer povos, demover amigos e derrotar adversários.

 

A comparação entre o Parlamento Europeu, calmo, aparentemente estável, com a actual vida política nos Estados Unidos e em França, sem falar de Israel e da Ucrânia, deixa-nos uma suave e doce impressão. A tentativa permanente de encontrar uma base racional e de diálogo merece aplauso e dá-nos consolação. Mas não se apaga a sensação de que não se trata de racionalidade e serenidade, antes é sonambulismo e falta de poder.

 

Para tentar fazer o nosso lugar no mundo em que vivemos e sobretudo aquele em que vamos ter de viver, importa começar por perceber. Por que razões os nacionalistas, a extrema-direita e os radicais conservadores protestam, criticam e acabam por ganhar eleições e encontrar-se em via ascendente nas Américas, em França, na Itália, na Alemanha, na Hungria. Por que razões as migrações descontroladas provocam racismos de todos os lados, dos nacionais e dos estrangeiros. Por que razões a abstenção e o afastamento político da maior parte dos eleitorados persistem em crescer. Por que razões as novas teorias do género, das minorias, do legado histórico, da restituição e do arrependimento estão a destruir a Europa e a liberdade.

 

Quando os Europeus começarem a perceber, então talvez se possa fazer luz.

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Público, 20.7.2024

sábado, 13 de julho de 2024

Grande Angular - Pare, Olhe, Não escute!

 As últimas semanas têm sido intensas com os assuntos relativos à Justiça. Há momentos em que se pensa em pequena guerra civil. Em rivalidade corporativa ácida. Em luta institucional sem tréguas. Ou conflito político irreparável. É provável que todos estes epítetos sejam adequados. Até insuficientes. Certo é que, tal como os vulcões, há turbulência grave periódica. Por causa das relações entre corpos da Justiça, por ingerência dos governos nos processos, por tentativa dos magistrados e dos procuradores de influenciar a política, por acção dos sindicatos, por estas e outras razões, há quase quarenta anos que os episódios graves se sucedem. Há outros tantos anos que os termos de “crise da justiça” e “justiça em crise” fazem parte do vocabulário. A ponto de se tornarem lugares comuns. E realidades com as quais estamos condenados a viver.

 

A corrupção parece estar no centro de tudo. Mas é só aparência. Mesmo com a porta giratória “Política/Justiça” e com governantes arguidos, vigiados, presos e condenados, há sinais de algo bem mais importante e mais grave: são as condições de exercício do poder político, seja pelas autoridades democráticas e dos partidos, seja pelas autoridades judiciais. Entre as primeiras, não falta quem queira condicionar a justiça e estabelecer regras de imunidade e de impunidade para os seus gestos. Entre as segundas, crescem e multiplicam-se os que pretendem capturar a democracia, condicionar a vida política e construir para si próprios um estatuto de intangíveis. 

 

Esta luta e este enredo duram há muitos anos. Com ganhos ora de uns ora de outros. Infelizmente, nas actuais circunstâncias, qualquer optimismo relativamente às “reformas da justiça”, ainda possível há dez ou vinte anos, não tem hoje fundamento. Os métodos e os vícios de trabalho, a desconfiança, a sede de poder e a vontade de vingança fazem com que não se veja quem possa levar a cabo as tais reformas. Não se vê quem. Quem, pessoa. Quem, partidos. Quem, autoridade. Os entendimentos entre partidos, corpos judiciários e restantes protagonistas, incluindo académicos e advogados, deixaram de ser possíveis. Esperam-nos anos de resignação e submissão a uma má justiça, até que novas gerações, gradualmente, consigam construir os alicerces e as bases políticas, legais, institucionais e constitucionais para uma justiça decente. Até que os eleitores, os políticos e os magistrados se entendam quanto ao essencial papel da justiça para a liberdade e a democracia. Até que novas gerações consigam, peça a peça, lei a lei, instituição a instituição, método a método, fundar a justiça na democracia e garantir a democracia com a justiça. Podemos, evidentemente, começar já. Quanto mais cedo, melhor. Mas tenhamos a certeza de que tudo vai demorar muito tempo.

 

Na crise actual, a escuta telefónica ocupa um lugar primordial. Esta simples ferramenta de investigação ganhou uma dimensão dramática. Foi graças às escutas, à sua utilização longa e intensiva; à sua proliferação sem critério; ao seu uso arbitrário; à comercialização dos seus resultados; e às manobras institucionais de cópia, apagamento e distribuição, que bom número de processos surgiram nos tribunais, nas polícias, nas televisões e nos jornais.

 

Já tudo foi dito sobre as escutas. Curiosamente, quase toda a gente aceita a sua utilidade. O que se discute é a parte operacional. Quantas pessoas? Quanto tempo? Quem decide? Quem avaliza? Como se guardam? Escutam-se só as pessoas de quem se desconfia ou também terceiros? Escutam-se pessoas, por métodos de rastreio, logo se verá se vem alguma coisa? Ou escutam-se apenas pessoas com culpas? Escuta-se quem corrompe ou quem é corrompido? Escuta-se quem comete crimes, quem trafica droga, armamento e sexo, quem prepara terrorismo e quem navega na alta finança? 

 

Tudo isto se discute, inclusivamente os procedimentos destinados a preservar direitos. Com e sem aval de juiz. Com pequenos ou grandes prazos de validade. Com e sem rastreio de inocentes. Com duração de escuta de meses ou anos. Com períodos de conserva de registos durante anos. Toda a gente tem ideias sobre estes temas.

 

Só falta de facto discutir o mais importante: devem ou não as escutas ser feitas e autorizadas? De todos os métodos de investigação, as escutas telefónicas e similares (microfones escondidos em casa, no emprego e no carro, câmaras de filmar disfarçadas) estão certamente entre as que mais ferem os direitos do cidadão e as que mais contrariam um invisível pacto de lealdade que as democracias deveriam respeitar. É um dos meios de investigação mais violentos. Tal como buscas a domicílio sem mandato. Ou intrusão domiciliária. Ou violação da correspondência. Ou perseguição disfarçada. Ou tortura e interrogatório agressivo. Ou tomada de reféns para obrigar à confissão e à denúncia. Ou chantagem e ameaças contra familiares e amigos. Alguns destes métodos são permitidos legalmente, muitos são proibidos ou de tal modo controlados que quase estão proibidos. Mas as escutas são as que mais vezes são usadas e talvez as que permitem mais abusos.

 

É estranho que se trate das escutas como mera técnica para a qual é necessário um processo de salvaguarda. Mas o problema é que a escuta é uma violação de direitos. Pura e simplesmente. De direitos que deveriam ser respeitados. E de métodos que deveriam ser banidos. Como a tortura. A busca e a vigilância domiciliária. A violação de correspondência.

 

Aliás, não se sabe com rigor, nem sequer com uma qualquer aproximação, o que as escutas evitaram. Ataques de terrorismo desmontados? Em Nova Iorque, em Paris, em Londres, em Madrid, em Moscovo, em Israel, na Cisjordânia? Crimes prevenidos? Droga apreendida? Contrabando de armas dissuadido? Fraudes financeiras evitadas?

 

Quem defende as vantagens da escuta tem a obrigação de assumir as suas opiniões. De mostrar as vantagens do procedimento. De garantir que não se trata de direitos fundamentais. De mostrar como os traficantes, os terroristas e os bandidos necessitam das escutas para as suas acções e não têm meios mil vezes mais sofisticados para comunicar.

 

A escuta, a vigilância, a intrusão e a perseguição, legais e ilegais, são hoje métodos correntes e aceites nas sociedades, sobretudo nas ditaduras, mas também muito nas democracias. É necessário começarmos a pensar e a discutir as escutas como uma questão de direito fundamental e, não apenas como um processo de investigação. Proibir as escutas é dar uma ajuda à liberdade e aos direitos dos cidadãos.

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Público, 13.7.2024

sábado, 6 de julho de 2024

Grande Angular - O futuro começa em casa

 Grande número de comentadores comporta-se como políticos: definem programas e tomam partido, não duvidam. Semelhante número de políticos comporta-se como comentadores: especulam, prevêem alianças e analisam as hipóteses de equilíbrios futuros. É interessante. Pode ser formativo. Aprende-se sempre qualquer coisa. Mas pouco adianta.

 

Governantes, dirigentes partidários e comentadores, quando não são os mesmos, passam grande parte do seu tempo a congeminar e a atrever-se. As discussões sobre as perspectivas e as expectativas dos partidos, designadamente as possibilidades de alianças e as probabilidades de eleição antecipada, são igualmente curiosas, informadas e estimulantes. Mas quase absolutamente inúteis. Graças à televisão, hoje não se faz política, comenta-se.

 

Alguns dos aspectos mais importantes da vida nacional ou algumas das exigências mais urgentes passam ao lado da cena política actual ou ficam fora das áreas de interesse. Como criar um bloco político maioritário, mesmo feito de partes diferentes, capaz de preparar o país e organizar o espaço público nos próximos anos? Qual é o programa político essencial e prioritário capaz de responder duravelmente às necessidades mais gritantes da sociedade? Como responder ao crescente desconforto?

 

Podem ser outras perguntas. Mas o importante é ver o que realmente tem interessado os partidos e os políticos. Como fazer escorregar o PSD? Como retirar votos ao PS? Como liquidar as hipóteses de bloco democrático moderado? Como ferir o Chega? Como obrigar os outros partidos, sempre os outros, a fazer o que não querem? Fazer bem, para o governo, é simplesmente retirar votos ao PS e ao Chega. Fazer bem, para o Chega, é fazer com que tudo corra mal. Fazer bem, para o PS, é tornar a governação do PSD impossível. Fazer bem, para o PCP e o Bloco, é incomodar e dividir o PS. Todos querem que sejam os partidos e o Parlamento a governar contra o governo. Pelo seu lado, o governo quer governar contra ou apesar do Parlamento.

 

A direita radical vocifera, nada tem a oferecer a não ser desordem. A direita moderada perdeu causa e ímpeto, engana-se a si própria. A esquerda moderada está atarantada, provavelmente em vias de divisão. A esquerda radical vive o seu Outono crepuscular, tão auto-suficiente quanto inútil. Mas é com estes que temos de viver, não com Sebastião ou Salvador. Nem com negros amanhãs.

 

Não há praticamente voz com esperança. O optimismo do governo é falso e disfarçado. Faz lembrar aquelas crianças com medo, a percorrer corredores sombrios e a murmurar “não tenho medo, não tenho medo”! A esperança risonha da oposição reside na expectativa de que tudo corra mal, que os portugueses vivam pior. Ora, todo este ambiente falso e postiço contrasta com as tonalidades do tempo que vivemos, um dos momentos mais perigosos da idade contemporânea. As aflições do mundo, que são medonhas, terão inevitavelmente efeito em Portugal. Mas os portugueses não querem saber. E os dirigentes não querem que se saiba.

 

Portugal é um país pequeno, relativamente pobre, pouco sabedor e mal preparado. Sem o estrangeiro amigo, isto é, sem o Ocidente, o país sofre e declina. Já houve tempos, há séculos, em que o nosso país tinha voz e teve um papel. Motor ou vanguarda, como lhe quiserem chamar. Deu um contributo para a história do mundo muito superior à sua dimensão e à sua aparente capacidade. As circunstâncias globais e a determinação dos portugueses conjugaram-se para uma era excepcional. Nada se repete. Hoje, as circunstâncias ultrapassam-nos. A dimensão, a sabedoria, a fortuna, a força e o trabalho exigidos para tratar do mundo estão fora do nosso alcance. Os portugueses dificilmente contribuirão de forma ousada para a paz e o progresso da humanidade. Mas poderão seriamente contribuir para a sua própria prosperidade.

 

Em vias de perder importância mundial, nas vésperas de crises políticas inéditas e sob o risco de fragmentação a curto prazo, a Europa é fonte das maiores inquietações. Portugal vive mal com uma Europa em crise. A Europa já não é um continente quase dominante, muito menos hegemónico. É doloroso perder aquele que foi o seu papel durante séculos. A decadência nunca foi boa conselheira. Nem fácil de viver. Os Europeus vivem muito mal as ameaças externas, a desunião e a desordem.

 

A perder a sua indiscutível hegemonia, a América prepara-se para uma verdadeira explosão política. Qualquer que seja o resultado das eleições deste ano, a América vai-se afastar ou deixar cair a Europa e alguns dos seus aliados. Os americanos reagem muito mal quando não são obedecidos e respeitados. Pior ainda quando se preparam para viver num mundo em que já não mandam, mas com o qual têm de compor.

 

A China é a grande novidade no mundo. Secularmente espezinhada, ferozmente explorada, sem democracia nem liberdades, com pouco respeito pela vida humana e com desdém pela cultura e pela história, aquele grande país prepara a sua vingança milenar e vai querer, pela primeira vez, influenciar o mundo e obrigar os outros povos, não apenas a respeitá-la, mas também a obedecer-lhe. Uma das dificuldades reside no facto de o mundo não saber como tratar com uma China vencedora e dominadora.

 

A Rússia voltou a transformar-se na pior ameaça contra a Europa e a democracia. Com enormes recursos de matérias-primas, mas com evidentes dificuldades económicas, a Rússia recupera a sua posição de parceiro do terror nuclear, mas perdeu o seu papel de exemplo e de influência. Volta ao seu lugar de protagonista da violência imperialista. De ninho de oligarcas e de berço de terroristas. Qualquer vitória russa é uma derrota da Europa.

 

O Próximo Oriente, que não é uma potência, mas sim um vulcão, por razões próprias e alheias, por petróleo e finanças, contribui eficazmente para a desordem universal que se prepara. Completada por uma África esfomeada e desordeira.

 

É neste mundo em perfeita convulsão, com futuro desconhecido e sorte incerta, que Portugal deve procurar o seu lugar. Com a garantia de que não pode influenciar, mas com a certeza de que deve defender-se e preparar-se. Se às forças políticas e militares que nos ultrapassam, acrescentarmos as ameaças climáticas e o pesadelo demográfico, depressa veremos que nos esperam tempos perigosos. Para os quais nos devemos preparar. Na Justiça, na saúde, no equilíbrio social, na educação e na criação de riqueza. Se não nos prepararmos, ninguém o fará por nós. Pelo contrário: os outros apenas tornarão as coisas piores. O mundo já está a arder, Portugal ainda não.

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Público, 6.7.2024