sábado, 25 de fevereiro de 2023

Grande Angular - Imigrantes: As contas (1)

Ninguém sabe ao certo quantos estrangeiros vivem em Portugal. Nem a que título. Nascido no estrangeiro ou aqui? De nacionalidade estrangeira ou naturalizado? Imigrante temporário ou definitivo? Com ou sem familiares? Legal ou ilegal? Turista, empresário, assalariado, reformado ou desportista? Com ou sem idosos, crianças e parturientes para os serviços de saúde? À procura de oportunidade para ir para outro país europeu? À espera de autorização? Tratador de estufas ou comerciante de endereços falsos? Africanos, europeus, latino-americanos, árabes ou asiáticos? Do INE à PORDATA, passando por vários organismos oficiais (ACM, SEF, etc.), pelos jornais, pelas universidades e por entidades privadas, não se conseguem números aproximados. Entre 400.000 e 850.000 tudo é possível. O que revela pelo menos um facto essencial: ninguém realmente se interessa e as autoridades preferem esta situação pois lhes poupa esforços, clareza no propósito político e escolhas difíceis. Mesmo as indispensáveis previsões para os impostos, assim como os grandes serviços de saúde, educação e segurança social são impossíveis!

 

Com valores anuais de emigração de portugueses para o estrangeiro oscilando entre os 30.000 e os 70.000, o nosso país voltou a uma era parecida com a dos anos 1960: são dois períodos muito parecidos neste denominador comum, o do falhanço da economia e da sociedade para alimentar e empregar a sua população. Mas com diferenças interessantes. Primeiro, na altura, não havia imigração, agora há, com valores por vezes parecidos (20.000 a 50.000 por ano). Segundo, então, saiam portugueses analfabetos, sem formação profissional, pobres e dispostos a tudo. Hoje, saem portugueses educados, com formação profissional e experiência, muitas vezes com diplomas superiores e universitários. Portugal fica a perder e muito! Terceiro, a emigração, naqueles anos, contribuiu para a rarefacção da mão-de-obra, o pleno emprego e o aumento generalizado dos salários. Hoje, a imigração é um incentivo ao decréscimo de salários e à precaridade do emprego.

 

Não tenhamos dúvidas: a emigração continua a ser um problema sério do país e a imigração está a transformar-se numa das mais graves questões da sociedade. Tal como noutros países europeus, a imigração e as suas consequências mudaram as sociedades e têm influência na política muito acima do que se esperava. A discussão está de tal modo envenenada que poucos são os que dizem claramente o que pretendem e o que propõem.

 

Há grandes mal-entendidos e enormes preconceitos relativamente aos imigrantes. Do lado positivo, rejuvenescem e diversificam a população, aumentam a democraticidade e o pluralismo da sociedade, dão rendimentos ao país e sustentabilidade à segurança social, fazem o que os portugueses já não querem fazer, ajudam à exportação através de muito trabalho com salários baixos, permitem uma grande flexibilidade no recurso à força de trabalho por parte das empresas, diminuem a rigidez do mercado de emprego, alargam os horizontes cultuais e religiosos do país e diminuem a carga nacionalista da educação e da cultura nacionais.

 

Do lado negativo, não são menores as consequências da chegada de imigrantes que desvirtuam a identidade nacional, alteram as características culturais do povo, não respeitam as regras e leis do país que os acolhe, promovem a ilegalidade, vivem na marginalidade, alimentam redes de tráfico e de criminalidade, comportam-se como verdadeiros racistas, exigem que os seus usos e costumes se sobreponham às leis em vigor, contribuem para o desemprego de nacionais, fazem concorrência desleal aos trabalhadores nacionais e forçam a manutenção de salários baixos.

 

Em tudo o que precede, há verdade e mentira, há facto e preconceito. Mas há de tudo. E é por isso que a questão da imigração é tão difícil. Num mundo simples, há duas políticas essenciais. De um lado, a porta aberta, a aceitação de todos os imigrantes que queiram vir para o país, o fácil acolhimento dos que vêm, a ajuda automática aos que querem residir aqui, eventualmente trabalhar, fazer família, educar, recorrer aos serviços públicos… Os defensores desta atitude proclamam que ninguém deve ser obrigado a legalizar-se à chegada, que não se deve exigir autorização de residência nem contrato de trabalho. Que se devem aceitar, sem condições, os que venham à procura de trabalho. Que não se devem impor regras e costumes contrários às suas crenças e se devem respeitar os seus costumes. Que se deve permitir a imigração de núcleos familiares completos e não apenas dos trabalhadores. Que se deve garantir a todos os imigrantes, legalizados ou não, acesso gratuito e universal aos cuidados de saúde e à educação dos menores.

 

Do outro lado, ninguém propõe, que se saiba, a porta fechada, isto é, a total proibição de imigração, mas defendem-se várias orientações ou políticas, como sejam a restrição de candidatos à imigração em conformidade com as necessidades do mercado e da economia e a obrigatoriedade de chegar ao país já com um contrato de trabalho. Defende-se que ninguém tenha vistos e autorizações permanentes sem contratos e residência e sem ter previamente uma história de contratos temporários. Que se devem institucionalizar formas de integração como sejam a prática da língua nacional e o conhecimento de fundamentos da história do país. Que se devem taxativamente proibir todas as práticas culturais dos imigrantes que manifestamente promovam a violência contra as mulheres e as crianças.

 

Quaisquer que sejam os argumentos e as justificações, das necessidades de mão-de-obra à humanidade e da competitividade à fraternidade, uma coisa é certa: as políticas e as práticas seguidas por Portugal, actualmente, são incentivos à clandestinidade, ao tráfico de mão-de-obra, ao abuso dos trabalhadores e a novas formas de racismo. As tensões que se anunciam, exploradas já por grupos políticos activistas, são resultado da falta de certeza e de clareza nas políticas públicas. Por exemplo, as ideias anunciadas pela comunicação social relativas à abertura de legalizações aceleradas de mais de uma ou duas centenas de milhares de imigrantes até ao fim do ano são perigosas e nefastas.

O que fará a qualidade da sociedade portuguesa não é o número de imigrantes que o país receberá. Mas sim o conforto, o respeito e a dignidade com que souber acolher os que cá viverem. E a fraternidade com que saibamos receber alguns por reconhecer o desespero e o sofrimento nos seus países de origem.

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Público, 25.2.2023

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Grande Angular - O perdão, o castigo e a desculpa

 É o pior que pode acontecer: confundir o perdão e a desculpa. Neste caso, a Igreja, uns Bispos, um grande número de padres e outros poderão ter perdão, o que é um assunto da hierarquia, dos fiéis, das vítimas e dos familiares destas. Mas não têm desculpa, e este assunto pertence à sociedade e às instituições. E se não têm desculpa, merecem castigo.

 

A Igreja pode suspender ou expulsar Bispos, Padres e outros. Mas não os pode castigar pelos crimes cometidos. Esta última função é das instituições. Aquilo de que se trata é de crimes, não de divergências religiosas, nem de polémicas litúrgicas. A Igreja é conivente, os arguidos são os padres. 

 

Os crimes foram vários. Abuso sexual de menores, violação, cumplicidade e encobrimento. Nenhum destes crimes merece o perdão da sociedade, muito menos desculpas. O encobrimento, em particular, que atingiu uma dimensão considerável.

 

Apenas uma muito pequena parte dos crimes aparece neste relatório. Em circunstâncias proporcionais, menos do que em muitos outros países, como os Estados Unidos, a Irlanda e a França. A Igreja não ajudou. Os meios e o tempo foram escassos. Os arquivos mantiveram-se excessivamente fechados. Já houve sacerdotes, membros da comissão e fiéis que declararam, sem hesitar, que tudo o que foi desvendado fica muito aquém da realidade. Se esta comissão parece ter cumprido o seu dever, já a Igreja está muito longe de o ter feito.

 

Sabemos, todavia, que a natureza do regime político e a liberdade de expressão não foram variáveis importantes. Na verdade, estes crimes praticados na Igreja e por eclesiásticos, durante setenta anos, tanto o foram durante a ditadura, como na democracia. Além disso, o clima de frugalidade e de repressão sexual, como era antigamente, e o de permissividade e de exibicionismo, como é agora, conviveram igualmente com estes crimes.

 

Uma primeira lição a retirar é a de que a Igreja, por si só, não é capaz de pôr um termo a estas práticas e castigar os seus autores e responsáveis. Há muito que a Igreja sabia. Há muito que “todos sabiam”. Mas ninguém tinha provas. Nem queriam ter.

 

Uma segunda lição, ou conclusão, é a de que a Igreja ficará com o encargo de tratar das questões internas, da liturgia, da suspensão, da expulsão e da prevenção, mas depende da justiça e das instituições uma acção mais eficaz e mais justa: legislar, castigar, prevenir e publicitar. Mas a Igreja tem também de estar consciente de que o seu silêncio é o pior incitamento ao crime e à prossecução destes actos. Quer isto dizer que deve, também para efeito internos, colocar um termo à ocultação, à desculpa e à cumplicidade.

 

O que podem os cidadãos, as instituições e as autoridades fazer para ajudar a Igreja a tratar destas questões? Antes disso, é preciso que a Igreja aceite ser ajudada e queira resolver e prevenir. Se assim for, às instituições e aos cidadãos compete sobretudo a função de legislar, prevenir, julgar e castigar. E demonstrar que um crime cometido na Igreja tem um valor diferente do mesmo crime perpetrado na sociedade.

 

O que podem fazer os fiéis para ajudar a Igreja a evitar a perpetuação deste problema? Ter mais voz, participar nos assuntos da congregação, sem pensar que está a pôr em causa a fé. É como na política: sem a pressão dos fiéis e sem a participação dos crentes, a Igreja não se emendará. Talvez fosse possível, há séculos, manter o silêncio e a passividade. Hoje, já não é. Os costumes mudaram. As liberdades mudaram. A consciência cívica mudou. As solicitações multiplicaram-se. As vocações estão em crise fatal (pelo menos nos países ocidentais). A prática religiosa também. 

 

É verdade que a Igreja abriu portas e gavetas. Ou antes, entreabriu. Esperemos que faça mais, muito mais. Esperemos que os fiéis exerçam os seus direitos e não tenham receio de enfraquecer a Igreja com a exigência da verdade e da justiça. Pelo contrário. Se a Igreja quer sair desta história com alguma força, não será com ocultação que o conseguirá. 

 

A Igreja fez muito, ao longo dos séculos, por Portugal, pela Europa e pela cultura ocidental. Devem-se-lhe identidade, valores, artes e serviços incontáveis. Até para a separação de Deus e de César, ou a distância entre o Livro Santo e a Constituição, o cristianismo e a Igreja católica foram mais longe do que outras crenças. É uma história sólida. Os tempos modernos e o sexo estão a destruir esse património. E a arredar a Igreja para uma despensa de velharias. Quando não para uma cave de torturas. A Igreja está obrigada a pensar e a reformar-se de modo a poder continuar a prestar serviços aos cidadãos. Aliás, se houver reparação das vítimas, é à Igreja que compete suportar os encargos, não ao Estado.

 

Nem sempre, nos últimos séculos, a Igreja portuguesa se ilustrou por um contributo marcante de bondade, de justiça e de igualdade, apesar de se considerar sempre fiel a esses valores. Mas a verdade é que, desde o fim da ditadura e do início da democracia, a Igreja brilhou pelo seu papel moderador e agregador. Apesar do jacobinismo reinante e do anticlericalismo sempre em moda, o balanço da acção da Igreja é positivo. Agora, está em causa este passado recente. É incerta a possibilidade de ser útil ao país e aos cidadãos, não apenas aos seus fiéis.

 

O que pode fazer a Igreja para retomar o seu papel importante e moderador na sociedade portuguesa? Nada se fará se for só na Igreja portuguesa. Se não houver o resto, a começar pelo Vaticano, nada será feito aqui. Mas se a Igreja souber castigar, sem desculpar, então teremos esperança. Mais ainda, se a Igreja entregar à Justiça o que à Justiça pertence.

 

Será que a justiça portuguesa, tão tíbia e ineficaz perante casos difíceis, está à altura de avaliar e julgar dezenas de padres e uns tantos Bispos pelos crimes de abuso sexual de menores ou encobrimento? Poderá a justiça estar à altura dos outros casos? É que, evidentemente, na Igreja, não há só abuso de menores. Há também os abusos, o assédio e as violações de adultos. Sem falar nas numerosas instituições sociais e equiparadas, colégios privados, internatos, organizações desportivas e militares, lares, associações de juventude e outros. Sem esquecer, evidentemente, que é no seio da família que ocorre a maioria de abusos e de violência, sexual e de género, de menores e de adultos. Verdade é que nem este alargamento de âmbito pode servir, como já há quem o tente fazer, para dissolver as responsabilidades da Igreja e dos padres. Nem a visibilidade titilante dos crimes da Igreja deve permitir pensar que não há mais. Mas há. Muito mais.

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Público, 18.2.2023

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Grande Angular - Governo forte de Estado fraco

 É uma ilusão pensar que o Estado é, em Portugal, enorme, pesado e forte. Talvez seja enorme. Pesado é certamente. Forte é que não é seguramente. Alvo de predadores. Isco de caçadores. Pretexto de manobradores. E pedaço para gananciosos. Qualquer dos epítetos lhe serve. Forte é que não. Instrumento de poderosos. Volúpia de minorias. Burocracia de insaciáveis. Ferramenta dos mais fortes. Protecção dos estabelecidos. Tudo lhe serve. Forte é que não. Volúpia dos democratas. Lascívia dos autoritários. Sonho dos ditadores. E encanto dos Republicanos. Qualquer imagem lhe fica bem. Forte é que não. Cão de fila dos ricos. Esperança dos fracos. Paraíso dos racionalistas. Sonho dos fantasiosos. Também estes rótulos se lhe aplicam. Forte é que não.

 

Não tenhamos dúvidas: o governo, os sucessivos governos destruíram a força do Estado, decapitaram-no, amordaçaram-no, liquidaram a sua isenção e definharam a sua inteligência. Além de terem atrofiado, activa ou passivamente, a sua mais nobre função, a da administração da Justiça.

 

Há em Portugal um clima de cortar à faca, aquele onde se sente a corrupção, onde se vive da cunha, onde se julga que a democracia é o poder discricionário de quem tem os votos. Os últimos episódios de nomeação, demissão e substituição apressada de ministros, secretários de Estado, assessores, conselheiros, Altos funcionários, directores e administradores, são reveladores de desorientação. Ainda estamos longe da “noite das facas longas”, mas o ambiente é de terror. Só não há mais fugitivos, porque todos sabem, ou esperam, que a justiça não funcione. Como tem sido o caso.

 

É longo o catálogo de episódios, dramáticos uns, picarescos outros, que nos últimos meses e anos ilustram este ambiente pouco sadio para a democracia. Entre os mais recentes, as festividades das Jornadas da Juventude têm revelado graus de incompetência e de subserviência inimagináveis. Jacobinos de quatro costados, beatos de primeira água e ateus virtuosos parecem ter combinado entre si a elaboração deste auto burlesco, revelador de imprevidência e oportunismo. E quem pior se portou foram os poderes públicos.

 

Em todas as grandes obras e empresas que, recentemente, têm estado nas primeiras páginas, nota-se a persistência dos mesmos defeitos. Falta de capacidade científica do Estado. Incapacidade de previsão e planeamento. Emaranhamento de interesses legítimos ou não.

 

Há casos que serão um dia capítulos dos manuais de história, dos compêndios de gestão, dos tratados de administração, dos dicionários de práticas nocivas e eventualmente de súmulas de casos de justiça. O novo aeroporto de Lisboa é o exemplo mais importante. Adiado, atrasado e refeito durante décadas, foi objecto, pelas mesmas pessoas, pelos mesmos gabinetes, pelos mesmos governantes ou por governantes dos mesmos partidos, de decisões contrárias e contraditórias à distância de décadas, de anos e de meses. O futuro aeroporto de Lisboa já teve seis localizações, três das quais definitivas. Regulamente, volta ao princípio, à casa de partida. É obsceno o que já se gastou, disse e fez para o aeroporto de Lisboa. Há décadas que o poder político não decide. Que os técnicos do Estado não conseguem prever e avaliar. Que as empresas que trabalham para o Estado ganham para fazer o que lhes mandam, em vez de fazer o que devem: planear, projectar e antecipar.

 

Se este é o caso mais confrangedor, de outros reza a história de que não nos cansamos de ouvir falar. Porque estão sempre aí. O SIRESP, sistema de comunicações do Estado é outro exemplo que nos enfeitiça. Novos contratos, novas indemnizações, novas falhas e novos sócios: há matéria para sagas perpétuas. A linha de TGV e a nova rede de caminho de ferro estão também aí, há décadas, à espera, sempre prontas a recomeçar e esquecer.

 

A TAP está no quadro de honra da incompetência, da má gestão, do oportunismo e provavelmente da corrupção. Sempre com o governo no centro das decisões. Sabemos o que aconteceu com outras grandes empresas de serviços e de indústria, nos sectores das máquinas, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e dos combustíveis. O país perdeu importantes centros de decisão. Os governos não se emendaram. E o denominador comum destas decisões parece ter sido sempre a falta de competência técnica e de capacidade científica do governo.

 

O Estado dispensou gradualmente centenas ou milhares de técnicos competentes e de especialistas qualificados, trocando todos por pessoal burocrático, com poderes para tratar das vidas dos outros e da sua, mas sem conhecimentos para avaliar e prever. Aos técnicos, aos cientistas, às pessoas qualificadas que dariam à decisão política a certeza e o rigor necessários ao bem público, o Governo prefere assessores, conselheiros, especialistas de imagem, técnicos de comunicação e encarregados de imprensa que compram e vendem o que quer que seja, pessoas certas, ideias erradas, projectos verdadeiros, mentiras e verdades. 

 

Este Estado vive sem instituições autónomas, pois tenta controlar tanto quanto possível, deixando que a auto-regulação seja cada vez mais uma figura de estilo. A actual discussão sobre as novas leis que regulam as Ordens profissionais é mais um sinal inequívoco. A pretexto de lutar contra o corporativismo, bandeira que fica sempre bem, o Governo pretende simplesmente mandar nas Ordens, regular os reguladores e ditar as regras. As suas novas leis para as Ordens profissionais são quase um mandato de captura! 

 

Ainda a sofrer de décadas de pretenso igualitarismo, os vencimentos dos quadros superiores do Estado e dos sectores públicos são ridículos, verdadeiros incentivos à emigração para o estrangeiro, para o sector privado e para a criação de escritórios e empresas que acabam por desempenhar as tarefas de que o Estado foi despojado, mas a preços verdadeiramente especulativos. Submetidos à direcção política tantas vezes incompetente, obrigados a cumprir regras absurdas, os técnicos e os cientistas mais capazes não são motivados e não se sentem atraídos pela esfera pública.

 

Mas não se trata apenas, nem sobretudo, do problema dos vencimentos dos quadros superiores do Estado. É também o facto de assim se poder recorrer a empresas de negócios exteriores. E ainda o pormenor de o poder político decidir sozinho, sem o rigor da ciência e da técnica. Presa de interesses económicos e políticos, o Estado português não tem capacidade científica. Não tem inteligência. Não tem isenção. Não tem sabedoria.

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Público, 11.2.2023

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Grande Angular - A morte do Parlamento

 A lei dita da Eutanásia não é a lei da Eutanásia. É, isso sim, a lei da Morte Medicamente Assistida, com duas hipóteses: uma, a do Suicídio Medicamente Assistido; outra, a da Eutanásia praticada, a pedido do doente, pelo Medico Assistente. Quer isto dizer que a Eutanásia não solicitada pelo doente, assim como qualquer outra forma de terminar a vida de alguém, sem pedido nem acção do doente, está excluída desta lei. Espera-se que para sempre.

 

A lei foi votada por partidos. Os que votaram a favor, os que se abstiveram e os que votaram contra foram sempre partidos. Com ou sem declaração de voto, com ou sem frases sopradas para jornalistas de conveniência à saída de uma reunião, não se conhecem pensamentos, decisões, deliberações, argumentos ou sentimentos individuais dos deputados. Sabe-se o que pretendem os partidos, mas, salvo raríssimas excepções, não se sabe o que querem os deputados. Cada um dos 230 pensa e diz o que o seu partido pensa e diz; acredita e vota no que o seu partido acredita e vota. São muito poucos os que entendem que os seus eleitores têm o direito de saber o que eles pensam e votam, não apenas os seus partidos. Como é sabido, votar livremente, de acordo com a sua consciência, pode ser, se for diferente do seu partido, um gesto muito perigoso para a carreira.

 

No trânsito entre São Bento e Belém, ida e volta, com paragem no Palácio Ratton, à Rua do Século e nos seus episódios, sérios uns, caricatos outros, esta lei revela mais um império partidário: no Tribunal Constitucional vota-se muito de acordo com os partidos de influência e de origem. Os jornais, solícitos e atentos, já publicam as estatísticas dos Juízes e dos seus votos de acordo com a distribuição partidária. O que, para um Tribunal Constitucional, é impensável e degradante. Mas é assim, infelizmente. É possível e por vezes interessante “classificar” os magistrados constitucionais, saber, por exemplo, os que são progressistas ou conservadores, crentes ou ateus, liberais ou reaccionários, defensores da regionalização ou centralistas. Isso é uma coisa. Que até pode variar e cruzar-se ou não com os partidos parlamentares. Mas não deveria estar garantido que, em geral, votam conforme os partidos que os designaram. 

 

Poderia pensar-se que estas fortalezas parlamentares, feitas de tropas obedientes, compostas por deputados que fazem o possível por não se distinguir e que abdicam da sua individualidade, são condições de estabilidade e de certeza política. Paradoxalmente, não é verdade. Apesar de disciplinados e anónimos, os deputados são sistematicamente tentados pelas iniciativas marginais e pelas invenções “societais” ou “civilizacionais” com que os activistas (nova e estranha categoria política…) os distraem ou tentam convencer.

Regresso a São Bento, onde, o Parlamento está a ser comandado pelas suas margens. À direita, o CHEGA condiciona o PSD, impõe-lhe regras e reflexos, sugere movimentos, lidera a sua respiração e estimula os seus reflexos. O PSD, com horroroso pavor do CHEGA, tenta fazer o seu serviço, com receio do extinto CDS, da ascendente IL e sobretudo do surpreendente CHEGA. Este último, não precisa de pensar, elaborar, estudar e propor, basta-lhe reagir, reclamar e denunciar. Nunca se viu um partido ganhar tanto fazendo tão pouco. A cada berro do CHEGA, o PSD treme. Neste partido, toda a direita treme. É verdade que o CHEGA só pensa nisso: destruir o PSD, afastar o PSD, colher votos do PSD, perturbar deputados do PSD e provocar divisões no PSD. Mas também é verdade que, no PSD, só se pensa nisso: como se libertar do CHEGA, como evitar o CHEGA e como impedir o CHEGA de crescer.

 

À esquerda, as coisas são diferentes, dado que o PS está no Governo. Mas a semelhança de situações é maior do que parece. Na verdade, as margens das esquerdas, o PCP e o BLOCO, comandam muito do que o PS é e quer ser. Até já comandam, um pouco, algumas iniciativas do Governo. Apavorados com as suas minorias e descrentes nos amanhãs e nas suas gloriosas fantasias, estes partidos, um de trabalhadores conservadores, outro de burgueses radicais, têm um só objectivo: desmembrar o PS. Criar a dúvida e a intranquilidade nos deputados socialistas, seduzi-los com rupturas radicais e revoluções de costumes e prometer ternura militante e calorosas bases sociais, são as linhas de acção destes partidos das margens. A verdade é que conseguem. Muitas das suas propostas sobre a eutanásia, o casamento, o divórcio, a adopção, a união de facto, a homossexualidade e suas variantes, as actividades culturais, as campanhas contra o racismo e aquilo a que chamam a descolonização e a desracialização, têm como o objectivo primordial desestabilizar o PS. O que têm conseguido com brilhantismo. Nunca se viu partidos tão pequenos e tão insignificantes terem tanta influência no Parlamento e na vida política nacional.

 

Temos assim que os dois grandes partidos do sistema, PS e PSD, pouco se ameaçam ou contrariam reciprocamente, antes agem em função das margens que comandam cada vez mais o Parlamento. Ainda não, muito, a vida social e política, mas sim, cada vez mais, o Parlamento. O que não é pouco. Entregar o Parlamento às margens activistas é meio caminho andado para tornar o país instável e ingovernável. Há muitos problemas a tratar e tentar resolver com enorme urgência, como sejam a educação e o Serviço Nacional de Saúde. Mas tal só se pode conseguir se houver equilíbrio e algum consenso de ponderação. Nunca se resolverá com as margens radicais.

 

Pode a liberdade individual fazer perder a qualidade da representação? É bem possível que seja o contrário a verdade. A escolha faz-se pelo valor intrínseco do que se diz e promete e pelas garantias oferecidas por um percurso, não pela autorização partidária e burocrática. Pode a liberdade de candidatura e de voto aumentar a imprevisibilidade? É provável. Mas a democracia é imprevisível por definição. E o melhor caminho para ultrapassar os riscos da imprevisibilidade não é o do arranjo autoritário, mas sim o do entendimento, da negociação e do diálogo. Será que a liberdade individual dos deputados é um risco para a estabilidade? É possível que sim. Mas a liberdade tem preços. Que valem a pena. A livre representação democrática é uma das figuras ou entidades mais dignas da vida política. É condição de nobreza da função.

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Público, 4.2.2023