domingo, 29 de novembro de 2009

As reformas difíceis

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EM PORTUGAL e no mundo ocidental, há duas décadas, a palavra reforma transformou-se no santo-e-senha da política contemporânea. Para os governos, que as querem fazer ou fizeram; para as oposições, que denunciam os governos por as não fazer; para a sociedade civil que ora as deseja com entusiasmo, ora as receia e contraria com veemência; para as instituições internacionais, mais ou menos tecnocráticas, que as consideram sempre essenciais.

As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.

Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.

Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.

Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.

Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.

Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.

Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.

Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.

Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.

Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.

Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.

Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.

A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.

Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.

Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.

O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.

A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.

Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.

A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.

São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.

A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.

Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.

O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.

American Club
Lisboa, 17 de Novembro de 2009

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Luz - Algarve

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Numa esquina da rua, alguns homens esperam, conversam, passam. Na parede, um resto de cartaz festejando a aliança do Povo com o MFA. (1975)

domingo, 22 de novembro de 2009

A grande esperança

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TODOS, DESDE HÁ PELO MENOS três séculos, esperaram sempre muito, quase tudo, da educação. Dos iluministas aos positivistas, dos cristãos aos ateus, dos fascistas aos democratas, dos conservadores aos marxistas, todos consideraram, em seu tempo e para sempre, que a escola e a educação (ou instrução) trariam as virtudes necessárias ao cumprimento das suas ambições e dos seus propósitos para as sociedades. Desejou-se tudo da escola. Julgou-se que a razão nasceria naqueles bancos. Pensou-se que o espírito cívico seria aprendido nas salas de aula. Não se duvidou de que o professor iria formar novos homens. Teve-se a certeza que uma escola ajudaria os cidadãos a respeitar a lei e a ordem. Acreditou-se em que uma boa educação elevaria o nível cultural das populações e seria fonte de desenvolvimento. Esperou-se firmemente que a escola seria obreira da igualdade social. Todos pensaram que a escola seria o mais importante factor de mobilidade social. Houve quem julgasse, com benevolência, que a escola acabaria por subverter a ordem estabelecida. Como houve quem tivesse a certeza de que a escola ajudaria a temer a Deus e a respeitar as hierarquias. De toda esta esperança, repetida e renovada, nasceram crenças, certezas e mitos de vida dura. A ponto de quase não se ser capaz de perceber que os países, as sociedades, as pessoas e as culturas nas quais nasceram as escolas actuais já não existem. Mas continua a esperar-se que a escola forneça o que os mitos decretam.

Estas grandes esperanças marcaram as políticas dos governos dos países ocidentais. E de muitos outros. A despesa pública e privada com a educação atingiu patamares insuportáveis da ordem dos dez e mais por cento do produto nacional. Abriram centenas de milhares de escolas e milhões de professores foram formados e contratados. Os Ministérios da Educação transformaram-se em enormes instituições que procuram ansiosamente gerir e administrar milhares de escolas, centenas de milhares de professores e milhões de alunos, o que fazem através de normas e instruções que multiplicam quotidianamente e com que os professores devem gastar uma parte preciosa do seu tempo. Em Inglaterra, por exemplo, só este ano, o Ministério da Educação emitiu cerca de 3.000 páginas de novas regras e procedimentos, a acrescentar às dezenas de milhares já em vigor! Não se conhecem os números em Portugal, mas sabe-se que a produção ministerial pode sofrer de tudo, menos de infertilidade!

Olhando, hoje, para aqueles países, nota-se a semelhança dos problemas. Não há talvez país onde não se fale da “crise da educação” e da necessidade, mais uma vez, de a “reformar”. Os resultados escolares são cada vez mais medíocres. Com poucas excepções, as dificuldades na Matemática e nas línguas maternas são comuns. Os orçamentos dos Estados não conseguem esticar mais para suportar despesas crescentes e sem travão. Há violência nas escolas, seja entre alunos, seja entre alunos e professores. Apesar dos enormes esforços feitos para contrariar as tendências, o abandono e o insucesso mantém-se ou são estatisticamente disfarçados. Periódica e alternadamente, atribui-se a responsabilidade por este estado de coisas ao Estado, aos Pais, aos Professores, aos alunos, à sociedade global ou aos métodos pedagógicos. Como quase toda a gente continua a acreditar nos efeitos salvadores da educação, é sabido que todos reclamam mais uma reforma.

As últimas três ou quatro décadas foram férteis em reformas. Quase todos os países europeus e outros ocidentais ou asiáticos fizeram as suas. Conforme os casos, foram privilegiados certos aspectos: o papel do Estado, o financiamento, os currículos e programas, a gestão da escola, os métodos de ensino, a organização do tempo escolar, etc. Gradualmente se vai vendo que não há solução radical e definitiva para nenhum dos grandes males que afligem a educação. Após décadas de reformas, os resultados não melhoram, a violência aumenta, o desperdício cresce, a mediocridade prevalece... Não há país europeu que não afirme que a educação está crise. Em Portugal também, até mais do que noutros. Gradualmente se vai percebendo que a crise na educação é permanente e que não há solução. Pode haver remédios, para este ou aquele problema. Mas não há solução para a crise. Nunca haverá, pela simples razão que a educação não resolve os problemas sociais, culturais e políticos. Não cria os homens e as sociedades de que se estava à espera. Não gera por si própria desenvolvimento. Não contribuiu decisivamente para a igualdade e a discriminação social permanece muito evidente. É esse o sentido da crise: esta existe porque a educação não pode satisfazer a esperança que nela depositaram e não cumpre as promessas que lhe atribuíram.

Por isso é confrangedor ver o tempo que se perde e os recursos que se gastam, em todo o Ocidente, em Portugal também, com as reformas da educação pensadas geralmente para remediar erros e deficiências, ou até para melhorar os sistemas, mas sempre dentro de quadros estabelecidos, sempre no respeito por tabus que não se discutem, sempre conforme aos cânones definidos há décadas ou séculos, mas que, hoje, estão gastos e ultrapassados. É verdade que se discute quase tudo. A avaliação dos professores, por exemplo, é objecto de estudo e debate em todos os países. A função dos exames e das notas, assim como das retenções, é objecto polémico. Os modelos de gestão das escolas são tema de longos e repetidos seminários e congressos. Os métodos de ensino, mais democráticos uns, mais disciplinados outros, servem de assunto de doutoramentos e de programas de televisão. A carga horária, a função dos testes, o sentido da “área escola” e da “área de projecto” ou o número ideal de alunos por turma e por professor, quase nada escapa à ansiedade dos pais, dos professores e dos políticos, quase todos desmoralizados com os resultados, desiludidos com a mediocridade e preocupados com os gastos e a violência.

Tudo se discute... Quase... Tudo, menos os tabus e os mitos. Há excepções, mas, na maior parte dos países ocidentais estabeleceu-se que as escolas devem constituir um “sistema” e que este deve ser único, integrado e centralizado. Assim como se definiu, para a eternidade, que o currículo deve ser nacional e único. Tal como se decretou, para todo o sempre, que os professores devem ser recrutados no plano nacional e “às cegas”, transformando-se em funcionários públicos. Do mesmo modo, é crença e lei que, apesar de a escolaridade ser “obrigatória”, a educação é um “direito”, incluindo a formação superior e científica. E, finalmente, não é nem pode ser objecto de discussão a certeza de que compete ao Ministério da Educação definir e zelar pelo cumprimento de normas, regras e manuais de procedimentos.

É crime pensar que as escolas poderiam ter uma liberdade quase total e uma vasta autonomia que lhes permitissem recrutar elas próprias os seus professores e alunos. Ou admitir que estas escolas não pertencem ao Estado, mas sim à comunidade, a quem devem prestar contas. É considerado sacrilégio encarar a hipótese de os directores, professores ou não, serem contratados, pela escola ou pela comunidade, para exercício dos seus mandatos durante quatro ou cinco anos. Pensa-se que é totalmente descabido estudar a possibilidade de cada escola adoptar os seus métodos de ensino, adaptando-os às necessidades e corrigindo os erros e as deficiências. Julga-se ser absurdo que os professores não tenham de seguir as normas e regras ditadas pelo Ministério. Nem se ousa imaginar que o Ministério da Educação, a ter de existir, não tenha autoridade sobre as escolas. Não se aceita que o currículo nacional seja reduzido ao mínimo necessário para assegurar a livre circulação dos cidadãos dentro do mesmo país. Recusa-se a ideia de que os programas, os currículos, as cargas horárias, os manuais e os exames não sejam nacionais. Não se admite que seja posta em causa a existência de carreiras nacionais únicas para os professores do básico e secundário, assim como para o universitário. Afasta-se a hipótese de as comunidades e as escolas definirem as suas próprias regras disciplinares. Em poucas palavras, não se admite que a educação não constitua um “sistema” único, integrado e centralizado.

A verdade é que, enquanto não se ousar pensar de outra maneira e não se explorem novas vias e diferentes soluções, continuaremos a engessar pernas de pau e a remendar mantas gastas e esburacadas. Mesmo que muitas das novas soluções se venham a revelar erradas ou desajustadas, é necessário pensar de outra maneira e pensar de novo. Como é indispensável pensar em novas soluções em função de princípios e critérios fundamentais. Como a justiça social, por exemplo. Esta terá sido um dos principais critérios que presidiram às modernas reformas da educação. A abolição do chamado ensino técnico e comercial, assim como a criação das escolas “unificadas”, foram pensadas por causa dessa preocupação de igualdade. A unificação total do sistema e a sua absoluta integração foram levadas a cabo pelo mesmo motivo. O estabelecimento de discriminações positivas para certos grupos da população foi também uma resposta a essa preocupação. Convém, por isso, olhar para trás e pensar no futuro. Esse objectivo de uma maior justiça social e de uma maior igualdade foi atingido? Obteve algum êxito? A mobilidade social aumentou significativamente? Como se sabe, a resposta é, muitas vezes, senão sempre, negativa. A discriminação social no ensino secundário e no ensino superior é vigorosa e não dá mostras de recuar.

A força dos mitos e das ideologias é enorme. Resiste à razão, à verdade, à análise e à experiência. O ensino único é republicano. O sistema centralizado é democrático. A escola integrada é justa. O ensino unificado oferece mais oportunidades. O direito à educação é mais igualitário. A educação é uma condição de desenvolvimento económico e social. As discriminações positivas são justas. Estes são apenas alguns dos mitos mais conhecidos, verdadeiros lugares comuns. Convinha rever estes mitos. Ver, minuciosamente, se os objectivos explícitos foram atingidos. Verificar se o “sistema” criado para sociedades nacionais, mais ou menos homogéneas, não está totalmente ultrapassado por realidades novas. Recentemente, um filme documentário francês, “A turma”, mostrou a impossibilidade de gerir as escolas nos moldes estabelecidos e revelou, com uma triste resignação, o desaparecimento do património comum ocidental que fundamenta a cultura e a escola.

Em Portugal, muito especialmente, convinha estudar, com seriedade e independência, o que realmente se passa nas escolas e no mundo imediatamente envolvente. Olhar, sem consideração pelos tabus, para a violência nas escolas, para a desmoralização dos professores, para a apatia dos pais e para a indiferença das autarquias. Verificar que a autoridade pedagógica nas escolas, dos professores, está a desaparecer, ao mesmo tempo que se afirma a autoridade política e burocrática do ministério. Perceber o que está a acontecer, socialmente, com o desenvolvimento do ensino privado, com a abertura das fronteiras e com a destruição dos estudos clássicos. Analisar as causas das elevadas taxas de desemprego de jovens licenciados e mestrados. Tentar compreender por que razão é impossível administrar o “sistema” a partir do centro. E saber por que motivos, periodicamente, o sector da educação está em guerra aberta. Só uma discussão livre e fundamental poderá mostrar caminhos inteligentes. Sem isso, continuaremos a ver, regular e alternadamente, as crises da colocação de professores, do acesso à universidade, da violência nas escolas básicas e secundárias, da avaliação de professores, da falta de manuais, da mediocridade dos resultados em Matemática, da manipulação dos exames e das nomeações políticas comandadas pelo ministério. Se é isso que queremos, então estamos bem assim!
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Anuário de Economia Portuguesa, número relativo a 2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Luz - Alfarrabista de Hay-on-Wye

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Esta aldeia, na fronteira de Inglaterra com o País de Gales, alberga cerca de 80 alfarrabistas. Visitam-na milhares de turistas, intelectuais, comerciantes de livros e curiosos. É um ambiente extraordinário. Pelas ruas, centenas de pessoas a comprar livros, a ler livros, a falar de livros, à procura de livros e a negociar livros... Nesta imagem, um dos alfarrabistas ao ar livre! (1995)

domingo, 15 de novembro de 2009

Luz - Açores

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Pequena capela dedicada ao Senhor Santo Espírito. A cor da pedra basáltica sempre me impressionou. (1990)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Luz - À beira do Tamisa, Oxford

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Em Oxford, existem vários braços do Tamisa. Uns “naturais”, outros construídos de maneira a formal um canal navegável. Em parques de vários colégios, há troços desses canais, ao longo dos quais estudantes, professores e visitantes podem viajar em pequenos barcos de recreio. Nas margens, há sempre pessoas a descansar, ler, namorar, dormir e conversar.
Falta acrescentar que o snobismo das gentes de Oxford os leva a dizer Ísis e não Tamisa! (1996)

domingo, 8 de novembro de 2009

Luz - Quinta da Torre

Escada de xisto, entre dois socalcos, na quinta da Torre, perto de Covas do Douro, a caminho de Donelo. (2007).

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Luz - Palais Royal

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É um dos meus sítios preferidos de Paris: os Jardins do Palais Royal. O sossego é aí imenso, nem sequer as crianças berram muito. Perto do Louvre, é ali que vou sempre descansar. (1995).

domingo, 1 de novembro de 2009

O lugar da Ciência: A Universidade

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NAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS, assistimos a um desenvolvimento notável da investigação científica em Portugal. Tratou-se de uma evolução constante, a partir dos anos oitenta, mas com fenómenos de aceleração evidentes. A última década, em particular, terá sido a que melhor exibe um crescimento sem par. Este é visível em todos os indicadores: orçamentos destinados à investigação; número de centros e laboratórios; número de cientistas e de doutorados; fundos destinados à formação e à pós-graduação; bolsas concedidas para doutoramento em Portugal e no estrangeiro; e financiamento de projectos e de instituições especializadas. A despesa com ciência e tecnologia terá já ultrapassado o patamar de 1% a 1,2% do PIB (comparados com os 0,5 ou 0,6% do início dos anos oitenta). É certo que estamos muito longe dos prometidos 2,5% do PIB para 2000, mas os progressos, esquecendo a demagogia política, foram reais. Além disso, aquilo que se pode designar de balança científica e tecnológica, com excepção das patentes, tem revelado uma tendência firme para o equilíbrio ou mesmo o saldo excedentário. Finalmente, o número de citações e de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais cresceu de modo consistente, de tal forma que se aproxima das médias europeias. O panorama quantitativo, sublinho, quantitativo, é positivo e deveras encorajador.

Quer isto dizer que o panorama qualitativo é negativo ou medíocre? Não. Quer apenas dizer que, do ponto de vista qualitativo, é muito mais difícil fazer um diagnóstico apressado. Com efeito, se olharmos para cada um das áreas, das ciências ou das disciplinas, seremos obrigados a diversificar o julgamento. Por outro lado, há aspectos relacionados com a selecção de candidatos, o acompanhamento dos bolseiros, a avaliação de projectos ou as prioridades programáticas, que merecem uma avaliação muito severa. E é negativa a quase marginalização a que está condenada a investigação científica em certas áreas das humanidades, das artes ou das ciências humanas e sociais. Em poucas palavras, nesta óptica qualitativa, há muito bom e muito mau. Mas não é esse o tema desta minha breve intervenção. O assunto que me ocupa é o que refiro em título: “O lugar da Ciência: A Universidade”.

A evolução das políticas para a Ciência teve, desde os anos setenta (até mesmo sessenta, nos seus primórdios), uma constante: a tentativa de construir um sistema científico com autonomia e fronteiras próprias. Isto é, um sistema integrado e paralelo à Universidade. Com muitas ligações à Universidade, com certeza, até porque a maior parte dos investigadores e cientistas eram também professores universitários, mas com uma lógica própria. Não faltaram por exemplo, os esforços para erigir laboratórios de Estado, esses sim, totalmente à margem das Universidades. Esta lógica foi sempre sendo reforçada, até chegarmos ao tempo presente em que o sistema científico, se é que se lhe pode chamar assim, está separado do sistema universitário. Como as Universidades ainda são, para todos os efeitos, os principais centros de formação de cientistas, o resultado é que, dentro das universidades, existem os enclaves científicos. No conjunto, as regras de vida da investigação são diferentes das regras de vida do ensino. Orçamentos, modos de financiamento, regras de funcionamento, critérios e métodos de avaliação, oportunidades de recrutamento, estrutura das carreiras, importância do sector para a política pública e relações com a sociedade civil e as empresas: praticamente todo o modo de vida da ciência é diferente do modo de vida da Universidade. A meu ver, isto é um factor muito negativo. Poderá esta orientação, eventualmente (mas não é seguro que assim seja), reforçar a organização e o desenvolvimento da ciência. Mas enfraquece seguramente a universidade como instituição científica, como local de ensino e formação e como sede de criação cultural e artística.

Vale a pena recordar as palavras desassombradas de Orlando Ribeiro há cerca de cinquenta anos: a Universidade deveria ser em primeiro lugar uma instituição científica onde se estuda e investiga e onde se procura a verdade. O ensino seria assim um modo de fazer progredir a ciência, a cultura e o saber. Ora, em Portugal, a Universidade era sobretudo uma instituição onde se ensina e não se estuda ou investiga (cito de memória). As décadas subsequentes agravaram este estado de coisas. A transformação das universidades em instituições de ensino massificado empurrou ainda mais a ciência para as suas margens. Com a intervenção das políticas públicas para o ensino superior e para a ciência, a separação entre ciência e ensino aprofundou-se. Agora, no entanto, com outra realidade. Agora, a ciência existe, tem recursos, programas, regras e pessoal. Agora, a ciência beneficia de um formidável apoio do Estado e da União Europeia.

Tem-se a impressão de que Portugal adoptou aquilo que se pode designar de modelo francês reforçado. A ciência, entendida como prioridade para os governos e como instrumento de desenvolvimento, foi centralizada e integrada, entregue à tutela directa do Estado. As instituições e os esforços científicos encontram-se fora das universidades, nas margens das universidades ou organizadas como enclaves independentes dentro das universidades. O que parece haver e sobrar para a ciência, falta para as universidades. O entrosamento entre investigação e ensino, entre ciência e formação, entre ciência e cultura, parece estar em causa.

Todos conhecemos o argumento. Era necessário, nestas últimas décadas, desenvolver a ciência. Primeiro, com recursos nacionais. Depois, com os colossais contributos europeus que, aliás, constituíram o factor determinante de aceleração do investimento na ciência e tecnologia. As universidades encontravam-se em crise, eram incapazes de responder às exigências. Não se pode, dizia-se, entregar a gestão e o desenvolvimento da ciência a organizações vetustas, a universitários desprestigiados, a cientistas viciados e a instituições degradadas. Também corria ainda a moda que dizia que as velhas universidades não se reformavam e era, portanto, necessário criar novas instituições. Para muitos, até a autonomia universitária era considerada um mal maior e um obstáculo ao desenvolvimento da investigação. A este quadro, deve acrescentar-se o apetite insaciável que os políticos de todos os partidos e ideologias têm pela gestão centralizada da ciência, sobretudo quando há recursos e quando se afirma a prioridade à ciência e à tecnologia. Fez-se o previsível: organizou-se a ciência à margem da universidade. Do financiamento à avaliação, tudo passou a ser diferente. Tempos houve, mesmo, em que os ministérios eram diferentes. Aliás, se hoje estão sob a alçada do mesmo, é apenas porque se pretende poupar em número de ministros e gabinetes.

O facto de Portugal ser o país da União Europeia em que a intervenção do Estado central na investigação científica e no seu financiamento é a maior de todos não resulta apenas da ineficiência da sociedade civil ou da incipiente investigação empresarial. Não decorre também só das deficientes capacidades científicas do sistema produtivo, industrial e tecnológico. Resulta também da acção deliberada do Estado, da sua vontade de centralizar os esforços e os recursos e do seu desejo de receber os respectivos louros.

Dir-se-á que a definição da estratégia e da política científica confiada ao ministério e a suas agências, nomeadamente a FCT, é mais eficiente. Duvido. Muito seriamente. Primeiro: a definição de prioridades pelo ministério é muito discutível. Centralização não é necessariamente razão. Se olharmos bem para a documentação oficial, quase tudo é prioritário. Não se percebe, por exemplo, por que é tão insuficiente a investigação em ciências do mar, da floresta e da vinha. Como é incompreensível que as ciências do património tenham tão poucos recursos. Segundo: os critérios de avaliação e as exigências são geralmente processuais e adjectivas e não decorrem de uma política nacional de desenvolvimento económico e social, nem de uma política científica e tecnológica nacional conhecida. Tem-se frequentemente a impressão de que as políticas europeias são aplicadas sem julgamento crítico e sem adaptação. Verdade é que internacionalização não é sempre razão. Terceiro: a estratégia está excessivamente virada para a “performance” quantitativa e pouco preocupada com o desenvolvimento institucional e a consolidação das universidades. Consolidação das instituições, talvez, mas desde que estas estejam na dependência do sistema científico, não do sistema universitário. Quarto: as agências centrais são incapazes de acompanhar certos processos, como sejam os doutoramentos e as carreiras académicas e científicas subsequentes. Ainda hoje, após largos anos de um formidável esforço de investimento em doutoramentos e pós-graduações no estrangeiro, não está feito um verdadeiro balanço desse esforço, nem sequer foi medido o eventual insucesso ou desperdício. Quinto: o encorajamento à actividade científica é feito, muitas vezes, de modo precário e errático, sem que tal contribua para um acréscimo de consistência das universidades. Sexto: não existem sinais inequívocos de que a liderança do Estado no investimento e no financiamento seja um passo intermédio para um aumento da autonomia das empresas e das universidades no domínio científico.

A minha preocupação, como se pode deduzir, é a da autonomia das universidades, da definição estratégica das orientações de política científica e da ligação entre ciência e ensino. As Universidades não podem ter uma política ou uma orientação estratégica científica, de nada lhes serviria. Limitam-se a recolher alguns benefícios das vantagens obtidas pelos seus docentes cientistas ou pelos centros e laboratórios. E nota-se que as universidades aceitam este modelo, pois, de outra maneira, nem sequer esses recursos estariam ao seu alcance.

Deveria a meu ver competir à Universidades definir as suas estratégias científicas, com impacto evidente nas prioridades, nas orientações financeiras, nas áreas de preferência para encorajamento de doutoramentos e pós-graduações e no lançamento de projectos de investigação. Deveriam as universidades ser as responsáveis pela sua política de investigação, pela coordenação indispensável entre actividades de formação, de pesquisa e de serviço à comunidade. Deveriam as universidades, graças à ciência, poder enriquecer as suas capacidades pedagógicas, actualmente relegadas para segundo plano, dado que a investigação é mais compensadora e parece ter superior estatuto social.

A minha conclusão é simples: o lugar da ciência é a Universidade. Não o único, mas o principal.
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Seminário “O financiamento das Universidades” - Universidade de Lisboa
12 de Outubro de 2009