sábado, 24 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Perderam os dois. E nós também

 O combate dos Chefes terminou com uma certeza: a de que perderam os dois. Basta, aliás, o facto de todos os simpatizantes (políticos, comentadores, analistas e jornalistas) de um dos dois terem apoiado e garantido a vitória do seu preferido, enquanto todos os simpatizantes (políticos, comentadores, analistas e jornalistas) do outro terem afirmado que o seu dilecto era o vencedor, basta esta pequena observação para concluir que ambos perderam. É visível e de lamentar: com raríssimas excepções, os autores dos comentários e das análises das duas ou três dezenas de debates eram aficionados. Conclusão: quem designa o “vencedor” é quem escolhe os comentadores.

 

Vivemos tempos estranhos! O tema mais disputado, o segredo mais bem guardado, a questão bélica mais utilizada, a vexata quaestio mais atraente, a grande força dos contendores e a grande vulnerabilidade dos mesmos traduz-se nas mais absurdas perguntas que se fazem um ao outro e que todos lhes fazem: se perder, o que vai fazer? Se sair derrotado das eleições, quem vai apoiar? Se ficar em segundo lugar, promete apoiar quem fica em primeiro? As perguntas mais frequentes fazem sorrir qualquer pessoa. Em vez de perguntar “o que faz se ganhar?”, pergunta-se “o que faz se perder?”. Realmente importante é o vencedor do debate, não o vencedor das eleições.

 

Esperava-se, em território conhecido, que todos estivessem interessados no que o vencedor vai fazer. Por exemplo, se vencer as eleições, como vai agir para salvar o SNS? Mantém uma política dita de “contas certas”? Que garante fazer com os professores, os médicos, os enfermeiros, os oficiais de justiça, os polícias e os militares? Como pensa o seu partido melhorar a situação dos agricultores? Não vale a pena esperar: não, nada, nunca! O que interessa é saber o que vai fazer o outro, se apoia o vencedor caso perca as eleições!

 

Também há muita gente interessada em perguntas difíceis, mas que, por o serem, seriam justamente as adequadas para uma disputa eleitoral. Como pensa que o nosso país será afectado pelos conflitos em curso, no Próximo Oriente, na Ucrânia, em vários pontos de África e no Extremo Oriente? Qual deve ser a política do Estado português relativamente a esses conflitos? Como se deve preparar Portugal para eventuais alterações da ordem internacional e da NATO em especial? Pode-se esperar sentado pelas respostas: não, nada, nunca! Importante é saber se, sem maioria, apoia os governos dos adversários.

 

As grandes questões de Estado que importa tratar e resolver, como sejam a revisão constitucional, os poderes dos órgãos de soberania, o sistema eleitoral, a organização da Justiça e o conceito estratégico nacional serão também devidamente ocultadas. Que pensam os chefes dos principais partidos? Zero! Não se sabe. Não dizem. Não querem ouvir falar. Estão ocupados com questões mais importantes e decisivas para o país e a população, tais como as de saber o que vai fazer um se perder e se vota o orçamento do outro!

 

A defesa e a segurança, sempre vitais, mas agora, de modo brutal, essenciais, estão ausentes de tal modo que se fica mesmo com a impressão de que não sabem o que pensar nem imaginam o que devem fazer. A organização das Forças Armadas, actualmente com falta de pessoal e de envolvimento da comunidade, sem equipamento à altura, nem capacidade para cumprir as suas missões, está fora das cabeças dos candidatos. Não explicam. Não sabem. Não prometem. Não se comprometem. Mas têm urgência em saber o que fará o outro se perder e sobretudo no caso de perderem os dois.

 

Nas questões internas, para além da habitual distribuição de subsídios e descontos, há matéria urgente. Por exemplo, a política de imigração e o controlo das populações a viver ilegalmente. Ou ainda, os prazos da justiça e o desempenho dos tribunais cada vez mais deficiente. Ou, finalmente, o aumento de criminalidade e da corrupção. Quais são os planos dos candidatos? Estão preparados para os debater diante de nós? Sentem-se capazes de assumir compromissos que não sejam as eternas frases de calendário? Não parece ser o caso. Nada disso é importante. Decisivo é saber se o que perde as eleições vai votar o programa do outro. 

 

Fazem campanha eleitoral não para tornar público o que pensam, mas sim para agradar quem os ouve, dar a impressão de que farão o que se lhes diz, acatar quem lhes fala e dar tudo o que pedem. Os candidatos refugiam-se no novo conceito de proximidade para nada dizer e tudo prometer. E com um único propósito: incomodar o adversário, encostar o outro à parede e vencer, como se fosse luta livre.

 

É impressionante a sensação de receio que os Chefes transmitem! Ambos receiam perder e não serem capazes de fazer governo ou de ficarem nas mãos dos pequenos aliados. Deviam estar preocupados com a sua ambicionada maioria e com o que fazer nesse caso, mas não, estão angustiados com a sua minoria e a do outro. Parece até que nunca aconteceu em Portugal. Na verdade, maiorias de coligação ou aliança não previstas antes das eleições, não anunciadas durante a campanha e improvisadas depois, houve pelo menos três: a de Mário Soares com o CDS de Freitas do Amaral e Amaro da Costa, a de Mário Soares com o PSD de Mota Pinto (o famoso Bloco Central…) e a de António Costa com o PCP e o Bloco. Boas ou más, não estavam previstas, resultaram da necessidade. Boas ou más traduziram o sentido de responsabilidade de um ou mais partidos. Assim como foram o reflexo da vontade de poder e da ambição. Tudo dentro das regras democráticas.

 

Hoje, parece pecado não admitir logo à cabeça que pode perder as eleições ou não dizer com quem fará coligações. Mesmo sem conhecer os resultados das eleições. Mesmo sem saber com que aliados se pode contar. Mesmo sem saber o que o eleitorado quer! Exige-se dos candidatos que digam, desde já, se votam moções de censura (sem ver o texto e sem conhecer as circunstâncias), se viabilizam orçamentos (sem conhecer o conteúdo e sem debater as opções) e se apoiam governos sem ver a exacta composição, sem conhecer o programa e sem avaliar as respectivas opções. 

 

Portugal tem contribuído galhardamente para a transformação do debate político em luta livre sem conteúdo político. Só com adjectivos e sem discussão relevante. Elevação e respeito pelo eleitorado são géneros raros na caixa de ferramentas dos candidatos. É só minas e armadilhas.

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Público, 24.2.2024

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Campanha eleitoral: Falhas intoleráveis

 É um nariz de cera conhecido: “esta campanha eleitoral não vale grande coisa, as anteriores é que eram boas”. Acontece que não é totalmente verdade. Esta pré-campanha começou muito bem. Duas vantagens são já indiscutíveis. Por um lado, os debates de chefes animaram o público que parece acorrer a ver e ouvir. É verdade que ficam a perder os partidos, as equipas e as políticas, tudo se limitando às qualidades e aos talentos dos líderes. Mas estes têm pelo menos o condão de atrair e interessar. Por outro lado, já se percebeu quais são os tabus, isto é, os temas de que os partidos não querem falar, nem assumir compromissos. Grande mérito o de mostrar o que os candidatos pretendem esconder.

 

Em primeiro lugar, a Justiça. Nem é necessário recorrer aos tempos, longos e inacabados, de Sócrates, do BES, da PT, do BNP e de tantos outros. Depois do que se passou recentemente em Lisboa, na Madeira e em Coimbra, há cada vez menos dúvidas sobre a actuação do Ministério Público: as suas ingerências na política, as suas incompetências técnicas ou a sua rivalidade com polícias e magistraturas. Mais ainda do que isso, os últimos anos têm revelado uma Magistratura Judicial absolutamente incapaz de tratar da grande criminalidade associada ao poder político, à grande fortuna, à corrupção, ao futebol ou ao mundo dos negócios públicos ou privados. A rivalidade entre polícias não ajuda. As reivindicações dos oficiais de justiça só complicam. A culpa e o crime de vários juízes e procuradores ilustram este pesadelo, já alimentado pela criminalidade em que estão envolvidos políticos, governantes, administradores de empresas públicas, autarcas, empresários e banqueiros. Todos os casos sobejamente conhecidos e que, há anos, fazem o quotidiano da comunicação social, têm de comum as falhas e as deficiências da Justiça. Sendo que a rivalidade entre Magistrados e entre estes e Procuradores atinge as raias da obscenidade.

 

Nunca vivemos, como agora, tão intensa e delicada crise da Justiça. Agravada esta pela abdicação dos poderes políticos e pela desistência dos órgãos de soberania. Além disso, a passividade dos profissionais e a ineficácia das instituições tornam tudo mais difícil. Para completar este quadro, a rivalidade entre profissionais e as lutas internas entre e dentro dos grandes corpos da justiça são tais que os direitos dos cidadãos são postos em perigo. Finalmente, é confrangedora a paralisia do governo e do Parlamento. Fica-se com a impressão de que os magistrados e os procuradores desprezam e desconfiam dos políticos e de que estes têm medo daqueles e das suas informações. Fora dos debates eleitorais, a Justiça revela bem a sua crise e a sua ameaça. O silêncio dos candidatos mostra bem o seu medo e a sua cumplicidade. Ora, está em causa a liberdade de um povo. Como é sabido, sem Justiça não há democracia. Nem liberdade.

 

Segundo, a política internacional e as questões europeias. Como nunca desde há setenta anos, os perigos e as ameaças são enormes. As guerras em curso, as alianças antigas e novas e as crises iminentes em várias partes do mundo exigiriam esclarecimentos, empenho e compromisso por parte dos nossos políticos e candidatos. A previsível crise da NATO deixa qualquer europeu, ou qualquer português, pelo menos inquieto. O desmantelamento e a suspensão da Aliança são perfeitamente possíveis. Mesmo num pequeno país como o nosso, sem capacidade militar para influenciar o curso da história, exige-se que os governantes esclareçam o seu povo. Estão essencialmente em causa a sua liberdade, a sua segurança e a sua paz.

 

Terceiro, a defesa nacional e segurança europeia são assuntos estranhos e alheios às eleições portuguesa. Pela sua urgência, todas as questões essenciais à defesa e à segurança dos portugueses necessitam de pensamento e esforço colectivo. Sem capacidades para uma defesa auto-suficiente, a nossa política de defesa tem de ser sufragada e devidamente orientada, incluindo o equipamento, o orçamento, o serviço, o recrutamento e a sua organização. Nada disto merece a atenção dos candidatos. Estes têm receio das dificuldades do tema, dos sacríficos impostos, dos gastos e da própria ignorância. Está em causa a capacidade dos portugueses para integrar uma defesa colectiva e uma segurança europeia. Sem o que não passaremos de parasitas. E ninguém nos respeitará.

 

Quarto, as políticas de imigração e emigração. É, por causa dos preconceitos, um dos temas mais delicados. A maior parte dos candidatos receia-o. Ou prefere esconder as suas posições. Ou não quer correr os riscos de um pensamento difícil. Verdade é que Portugal vive um dos períodos, da sua história, de maior emigração para o estrangeiro. E, ao mesmo tempo, o período de maior imigração de estrangeiros. Estes dois movimentos de população traduzem quase tudo o que há de importante numa sociedade: identidade, capacidade económica, educação, rendimentos e condições sociais. O trabalho ilegal, o tráfico de força de trabalho e a residência clandestina são cuidadosamente evitados. Às dificílimas questões da “Integração Versus Multiculturalismo”, assim como do controlo dos movimentos demográficos, os candidatos, em geral, fogem espavoridos.

 

Abundantemente presentes na campanha estão as dádivas, os presentes, o “bacalhau a pataco”, o “cabrito com batatas”, o “vinho a tostão” e o bodo aos pobres! O que cada partido oferece aos eleitores de aumentos ou de reduções, de benefícios ou de isenções, nem anos de orçamento comportariam. Sem fazer as contas, toda a gente oferece tudo o que lhe vem à cabeça. Evidentemente, já são contemplados a educação, a saúde, os salários, o ambiente e a segurança social. 

 

Além do tacticismo político mais imediato e barato. Como, por exemplo, as questões de arremesso desta temporada: com quem não fazes aliança? Quem recusas? Com quem governas caso não tenhas maioria absoluta ou caso fiques em segundo lugar? Quem prometes excluir? São perguntas legítimas, mas fáceis e superficiais. Além de que retiram aos partidos, antes da eleição, liberdade de acção. Na verdade, a melhor resposta é a de simplesmente garantir que se fará o que o eleitorado quiser. Ponto final. Não é possível dizer que, nesta campanha e até agora, não se tenham abordado questões importantes. Não seria verdade. Mas é certo que as ausências são graves e significativas. 

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Público, 17.2.2024

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Perigos, ameaças e fantasmas

 O partido Chega é provavelmente a maior novidade do sistema político português e da história política recente. De importância parecida, mas efémero, foi o PRD dos anos oitenta. Ainda de grande significado, o quase desaparecimento do CDS e do PCP. De menor importância, mas ainda sem que se saiba o seu futuro, o Bloco de Esquerda. Com valor e longevidade por apurar, são a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre. E pouco mais. O Chega, com 12 deputados e 7,5% dos votos, em tão pouco tempo, merece atenção. Em menos de cinco anos, ultrapassou o Bloco e o PCP e é o terceiro partido! Mais do que isso, os valores atingidos nas sondagens, cerca de 20% actualmente, apontam já para uma realidade de peso. Mais ainda: o lugar que este partido ocupa no espaço público, nas redes sociais, no Parlamento e nas reuniões partidárias, fazem dele um fenómeno. Para muitos, uma ameaça. Para alguns, um perigo iminente. Para todos, um espectro. Como na Europa.

 

Sem qualquer dúvida, este partido é nacionalista, de direita, conservador, com veios de extrema-direita e laivos de xenofobia. É populista, diz-se agora. Tem sobretudo uma inteligência intuitiva afinada: mal surge uma deficiência, uma razão de queixa, um problema social, uma incompetência do Estado ou uma qualquer crise, logo André Ventura e o seu partido “saltam”, atacam o problema e denunciam os que entendem ser os responsáveis, isto é, todos os outros, sobretudo o governo e o PSD. Fome, greves, trabalho clandestino, crime, droga, pobreza, violência, miséria nas periferias, filas de espera nos hospitais, baixos salários em todos os sectores, nada escapa ao Chega. Corrupção, nepotismo, favoritismo familiar ou partidário são talvez as principais molas que o fazem reagir com prontidão e espalhafato.

 

Para muitos, é um partido fascista ou neofascista. De simpatias neonazis, evidentemente. E de antepassados salazaristas. Para esses, os responsáveis pelo seu crescimento são as forças de direita, assim como os partidos socialistas que mais não fazem do que a política da direita. Para outros, são variadas as explicações para este fenómeno. Na velha tradição marxista, trata-se de obra e graça do grande capital monopolista e da política do imperialismo. As contradições do capitalismo actual e a decadência do imperialismo americano exigem partidos deste género, dizem. Contra o simplismo desta teoria, elevaram-se opiniões, com outra dimensão epistemológica: este seria um partido tipicamente da pequena-burguesia, aquela que se encontra, sem passado nem futuro, entre o mundo do trabalho e o do capital. Sem ideologia de classe, um partido como este é atraído pela demagogia anticapitalista e sobretudo pela fúria anticomunista. Outras explicações, se assim se podem chamar, filiam este partido na mais pura tradição nacionalista, anti internacionalista, anticomunista e antieuropeia. Seria um partido do passado, contra a modernidade. Já agora, um partido com raízes rurais e católicas.

 

O partido Chega, pobre em doutrina e programa, oportunista e provocador como nunca se tinha visto em Portugal, beneficiando de arguto sentido da ocasião, é o resultado das deficiências da democracia. Das dificuldades do Estado providência e da democracia contemporânea. Da partidocracia reinante, à esquerda e à direita. Vive no abismo que cresceu entre os Estados e a União Europeia, por um lado, os cidadãos e as instituições, por outro. Caça e pesca nas águas turvas das comunidades nacionais em crise causada pela globalização. Nunca se ouviu justificar as suas causas na liberdade individual ou nos direitos dos cidadãos. Nunca se viu fundamentar a sua acção na democracia. O partido denuncia a democracia, não a enriquece nem alimenta.

 

O seu mais eficaz programa diz, em poucas palavras, que deve denunciar todas as crises, dificuldades e carências. Há sempre culpados para os problemas sociais. Protesta contra tudo e todos que reputa responsáveis pelo regime actual. Como ainda não tem currículo, nem experiência política, nem tradição autárquica, isto é, como ainda não deve nada a ninguém, denuncia e acusa todos e cada um. Propõe-se, com enorme despudor, privatizar o que está nacionalizado ou nacionalizar o que privado é. Expulsar, proibir e prender são verbos que conjuga com familiaridade. É partido com a inteligência suficiente para, sem doutrina nem programa, apurar as suas artes no protesto e na denúncia. Chora diante da pobreza, geme perante a corrupção. Escandaliza-se com a corrupção dos democratas. Desespera com a intervenção europeia, a perda de independência e a submissão aos interesses internacionais. Não se sente tolhido pela Igreja, nem pela Maçonaria. Não depende de patrões ou de sindicatos. Usará a democracia enquanto esta lhe for útil, para crescer, usufruir de espaço público, denunciar democratas e vilipendiar poderosos. Se, um dia, a democracia lhe impuser o respeito pelos outros, assim como o obrigue a seguir as leis e acatar a tradição, nesse dia, o mais provável é que atire a democracia às urtigas. A sua palavra de ordem é o mais medíocre dos clichés: “limpeza”!

 

Incapazes de derrotar a direita, os socialistas esperam que o Chega a divida. Querem que o Chega seja o seguro de vida da esquerda, tal como o PCP foi, da direita, durante os anos de ostracismo. Os comunistas e o Bloco limitam-se a denunciar o capitalismo e a culpar os socialistas, estimando que, se estes fizessem o que eles querem, o fascismo seria derrotado. Todos os partidos, sem excepção, deram um precioso contributo para a crescimento do Chega. No governo, os socialistas trouxeram causas ao Chega. Nos hospitais, nas escolas, nas fronteiras, nos transportes públicos, nos bairros periféricos e nos centros das cidades, os democratas estão a alimentar o Chega à mão. O desdém dos partidos democráticos pelo povo e pelas vítimas, pelos pobres e pelos necessitados, é uma linha de vida do Chega. Estes partidos agem como se os eleitores do Chega não fossem cidadãos como os outros. A democracia sem tom nem som, com preocupação pelas intrigas, é uma vitamina do Chega. O Chega não é um inimigo externo, não vem de fora da sociedade, muito menos fora do país: nasce das falhas e da miséria da democracia portuguesa. Jornais e televisões colocaram-no no centro do mundo. Os partidos democráticos fizeram dele o inimigo e a ameaça. Não cessam de a ele se referir. Talvez se queixem, um dia. Mas queixam-se da sua própria obra.

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Público, 10.2.2024

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Será chuva? Será gente?

O que está a correr mal? E porquê? Num país que ainda há pouco tempo gozava de estabilidade, cooperação institucional, algum crescimento económico, contas certas e paz social, de repente, tudo se estragou. Nas ruas, ouvem-se ruídos e rumores de manifestação. Nos serviços públicos, há espera e ineficiência. Na justiça, há atraso. Na política, há corrupção. Na sociedade, há desigualdade. No espaço público, há descontentamento. Que se passa? São as elites? Será o povo? É a crise mundial? Será a guerra?

 

Para explicar o mundo, os acontecimentos, a história e a política, não há nada melhor do que uma boa teoria da conspiração. Basta imaginação, não são necessárias provas. Uma boa argumentação vale todas as demonstrações. Quanto mais estapafúrdia, mais crível é. Se forem referidos poderes ocultos, religiosos, maçónicos, financeiros, mafiosos e feiticeiros, melhor ainda. Se houver militares, a verosimilhança é enorme. Se ninguém tiver pensado nisso, a força de uma explicação pela conspiração é quase absoluta. 

 

Uma boa conspiração poupa a inteligência e dispensa o estudo dos factos e das causas. A conspiração da situação actual é, para muitos, simples e clara. O Presidente quis liquidar o governo socialista. O governo e o seu partido pretenderam liquidar o Presidente. Maçonaria e católicos entraram na dança. Os barões do PSD zangaram-se mais uma vez. Os minoritários moderados do PS querem já macular os primeiros passos dos novos dirigentes. Procuradores e juízes digladiam-se, mas, em conjunto, atiram-se aos políticos. Os 31 crimes de Sócrates passaram a 6 e são agora 22, o que nos permite avaliar o rigor e a validade das acusações.

 

Os casos actuais, as gémeas brasileiras, as estantes do IKEA, as casas dos políticos em vários locais do país, as declarações de rendimentos e de residência oficial, as contas no estrangeiro, os dinheiros sem origem certa, tudo tem explicação em razões mais ou menos ocultas, em misteriosas personagens sinistras.  Parece haver um “Deus ex Machina” que regula e promove o mal. Ou um conspirador a tecer as teias do diabo? Nestes tempos, a teoria da conspiração tem adeptos. Claro que não é verdade. Mas ocorre a tantos espíritos!

 

Com excepção das “contas certas” e da taxa de crescimento, tudo parece estar a correr mal. Parece cada vez mais que “há alguém por trás disto”. Tudo conjugado com as guerras e as crises “lá fora”. “Não é por acaso” é uma das frases mais vezes repetidas.

 

Além da pura loucura e de uma concepção mesquinha da história, a principal causa de uma boa teoria da conspiração reside na ignorância. Quando não se conhecem as causas de um qualquer fenómeno, quando não se percebe o curso dos acontecimentos ou quando se desconfia sem saber porquê, esta explicação, ou antes, esta insinuação vale uma verdade.

 

Sucedem-se as crises. Algumas como nunca ou quase nunca se viu. Bloqueamento das estradas. Polícias em permanente manifestação. Professores em falta. Alunos sem aulas. Serviços públicos em deslasse. Esperas inadmissíveis nos hospitais. Avolumar de casos de corrupção. Incapacidade para julgar os caos difíceis de poderosos e políticos. Impotência da justiça. Em seis meses, quatro eleições, três das quais antecipadas por razão de crise. Políticos detidos, presos, em recurso, arguidos, processados e suspeitos: há para todos os gostos como nunca aconteceu no nosso país. Episódios inéditos de má literatura política, como os casos do computador do assessor do ministro, o das gémeas e o das estantes com dinheiro.

 

Há razões mais profundas que explicam as crises actuais? Há seguramente. Para além da incerteza internacional e das guerras, assim como do mau ambiente económico europeu, há a incapacidade nacional de criar riqueza de modo consistente. A dificuldade em formar gerações de técnicos, cientistas, gestores e artistas de elevado nível. A decrescente capacidade técnica dos governos e da Administração Pública. A tentação para fazer o que é fácil e dá nas vistas, em detrimento do que faz falta. O especial talento para dar e distribuir, em detrimento de criar e poupar. A impossibilidade, por parte dos empresários privados e das instituições públicas, de criar emprego qualificado em grandes proporções. A inaptidão para suster a imigração e reduzir a emigração. A persistência, entre as elites e no seio do povo, da “cunha”, da corrupção e da trafulhice. E outras, certamente. A verdade é que todas estas explicações não explicam a coincidência no tempo das crises actuais. Esta resulta evidentemente dos efeitos de arrasto (umas puxam pelas outras) e sobretudo da falta de talento, de sabedoria, de disciplina e de orientação política para cuidar dos serviços públicos, para gerir e organizar, para liderar e manter a disciplina.

 

Parece fácil dizer o que precede? Talvez. Mas pense-se apenas no paradoxo dos últimos tempos. A saúde financeira é razoável. As condições económicas nacionais e internacionais, apesar das dificuldades do mundo, não eram más de todo. Havia uma maioria absoluta que podia garantir a estabilidade. Nas regiões autónomas, as coligações podiam facilmente ser sólidas. As relações entre órgãos de soberania eram excelentes. O apoio do Presidente da República ao governo e ao Parlamento era manifesto. A simpatia do governo pelo Presidente da República era sem par. As classes sociais estavam em paz. Os patrões não se sentiam mal. Os sindicatos estavam sossegados. Tudo isto ruiu. Tudo se desfez em pouco tempo. Tratou-se do maior desperdício político das últimas décadas. 

 

Ao lado das causas profundas, há evidentemente as causas imediatas. E estas residem em grande parte na deficiente gestão do serviço público, das instituições e dos grandes serviços. São estas deficiências que explicam a simultaneidade das crises no Serviço Nacional de Saúde, nas escolas, na Justiça e nos tribunais, nas polícias e forças de segurança, na agricultura, na habitação e nos transportes públicos. Raramente, talvez nunca se tenha visto uma simultaneidade como esta na história recente de Portugal.

 

A democracia portuguesa comemora os 50 anos do 25 de Abril, os 50 anos das eleições livres e os 50 anos da Constituição, com uma desordem institucional jamais vista. Festejam-se com quatro eleições. Três dissoluções de parlamentos e assembleias legislativas. Três governos demitidos. Prisão ou acusação de vários políticos de elevada importância. Milhares de polícias na rua a manifestar. Órgãos de soberania à bulha. 

 

Onde estão as causas? Chuva não é certamente. É gente, com certeza.

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Público, 3.2.2024