domingo, 31 de dezembro de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Claustro de D. João III, Convento de Cristo, Tomar – O convento é uma obra maior de vários estilos: gótico, manuelino, renascentista, maneirista… Com obras-primas como o Claustro Grande e a Charola. Deixaram lá o nome o Infante D. Henrique, D. Manuel I, D. João III, D. Filipe I e os arquitectos Diogo de Arruda, João Castilho e Diogo de Torralva. Ali perto, o Aqueduto dos Pegões, a ermida da Nossa Senhora da Conceição e a Sinagoga são obras de excepção a merecer toda a atenção neste Ano Europeu do Património Cultural que amanhã se inicia. Os textos portugueses e europeus relativos a este programa são recheados de lugares comuns. Coesão. Diversidade. Riqueza. Diálogo intercultural. Patamar de visibilidade. Desafios. Oportunidades. Interesse transversal. Sustentabilidade. Está lá tudo. Uma parte dos recursos será gasta em gabinetes e publicidade. Numa palavra: eventos! Mas uma parte bem mais importante poderia ser gasta com operações simples (o que não quer dizer fáceis…): tratar das coberturas dos monumentos, tirar a erva dos telhados, limpar as pedras, preservar a estatuária, restaurar esculturas, vitrais e pinturas… Conservar, cuidar… Era bom que fossem estas as iniciativas do Ano do Património!

DN, 31 de Dezembro de 2017

Sem emenda - Criar raízes, fixar populações

Os desastres deste ano vieram actualizar um velho problema: o despovoamento, para uns, ou a desertificação, para outros, de grande parte do país. Não apenas do interior clássico, mas do interior social e económico que por vezes se aproxima a escassos quilómetros do litoral ou até que inclui muita praia do centro do país ou do Alentejo. Aliás, visto de São Petersburgo ou de Istambul, Portugal é todo litoral.
Por causa da violência dos fogos e do número de vítimas mortais, os incêndios do Verão e do Outono deixaram marca indelével no território, nos espíritos e na política. O governo reagiu mal, mas, justamente corrigido pelo Presidente da República, mexeu-se e tentou recuperar o tempo perdido.
Rapidamente se começou a discutir as grandes questões, o ordenamento florestal e do território, as funções do mercado, a criação de parques nacionais e o destino a dar às matas abandonadas. Prontamente se ouviram promessas, umas velhas, outras muito velhas. A grande demagogia regressou. Quase não há político que não fale das “raízes”, não as das árvores, mas as das populações. Com o que se pretende “fixar populações”, evitar as migrações, controlar a urbanização, trazer novas pessoas para “criar raízes”… Chega facilmente a dizer-se que é necessário fazer com que as pessoas “devam” (na versão despótica) ou “possam” (na versão liberal) ficar a viver onde nasceram e cresceram. São temas inúteis que rendem sempre qualquer coisa em comício ou à saída de jantar: “revitalizar o interior”, “impedir o despovoamento” e “incentivar a natalidade”. Ao que não falta “trazer empresas para o interior”, “criar incentivos fiscais”, “proteger a produção local”, “criar emprego” e “encorajar o artesanato”. Há 50 anos e agora. As intenções são tão boas que falta coragem para criticar o erro, a demagogia e a ilusão.
A verdade é que, para fixar populações, só se conhecem meios ditatoriais, já bem rodados na China, no Camboja e na União Soviética. Com centenas de milhares de vítimas. Ou milhões. Fixar populações ou é demagógico e não serve senão para tentar ganhar votos, ou implica retirar aos cidadãos algumas grandes liberdades que são as de movimento e de mudança de local de vida. Para fixar populações, é necessário talvez o planeamento integral da vida das pessoas.
Confundir despovoamento com abandono é uma das raízes do problema. Terras despovoadas podem ser economicamente úteis, desde que bem tratadas. Em muitos casos, é mesmo o contrário que se produz: gente a mais significa incêndio, desleixo e acidente. A decisão de viver na vila, na pequena cidade, na grande metrópole ou no estrangeiro não é sempre uma decisão de miseráveis e desprotegidos. A decisão de mudar é muitas vezes um passo para a promoção e a mobilidade, para melhorar e subir na vida. Viver nas cidades traz quase sempre vantagens para a educação, a saúde, o emprego, a cultura, o casamento, a justiça e o conforto. Em poucas palavras, a liberdade é urbana. Em grande medida, o progresso também. Já se conhecem em Portugal centenas de agricultores que vivem na cidade e trabalham no campo. Felizmente que ninguém se lembrou de os fixar.
Evitar o abandono? Sim. Impedir a degradação do meio? Sim. Aproveitar os recursos sem os destruir? Sim. Fixar as populações? Não. Mas sim ao estímulo e à remoção de obstáculos. Assim como evitar que sejam as autoridades as primeiras a acelerar o abandono. Destruir instituições pode ser fatal. É o que tem feito o Estado, de esquerda ou de direita, para poupar pouco a fim de gastar muito. Não faltam exemplos por todo o país: escolas, centros de saúde, repartições, bancos, centros de emprego e da segurança social, centros de formação, esquadras de policia, quartéis da GNR, regimentos militares, lares de terceira idade, serviços florestais, parques nacionais, áreas protegidas, serviços de conservação da fauna… Houve decisões racionais? Talvez. Mas também as houve insensatas e de curtos horizontes.
Manter instituições pode ser muito mais barato, democrático e livre do que acudir depois a subsidiar causas perdidas. Áreas despovoadas podem não ser abandonadas. Áreas despovoadas podem ser ricas e aproveitadas.

DN, 31 de Dezembro de 2017

domingo, 24 de dezembro de 2017

Sem emenda - Um paradoxo português

O paradoxo português actual resume-se em poucas palavras: aconteça o que acontecer, em 2018, ganharemos sempre. Se o Governo não durar mais um ano, é uma boa notícia. É sinal de que o PS entende estar à altura de governar em maioria ou de refazer as suas alianças ao centro. Quer dizer que o PCP ou o BE, ou os dois, sentem que assim perdem mais do que ganham e que é preferível tentar o veredicto eleitoral democrático. É sinal de que o PS quer despertar o seu legado democrático e que as aventuras iluminadas vão cessar rapidamente.
Todavia, se o Governo durar mais um ano, ou dois, será também uma boa notícia. Haverá estabilidade e até serenidade, o que, com os Comunistas no poder, não é pouca coisa. Será sinal de que a luta das classes e a competição partidária não dão cabo de tudo. Haverá tempo para o PSD se reorganizar; para o PS se reavaliar e repensar; para o PCP saborear um pouco mais as virtudes da democracia; e para o BE decidir entre a praxis democrática e a insurreição permanente. Um ano sem eleições nem demagogia permitirá lamber as feridas dos incêndios, de Tancos e de tantos outros desastres deste último ano tão estranho.
Este paradoxo português não deve assustar ninguém. Estamos há muito habituados. Os Portugueses deram ao mundo novos mundos, construíram um império multirracial, mas cá dentro, no continente europeu, no século XX, até aos anos 1970, a sociedade era de uma só cor, de uma só religião, quase só havia brancos.
Em 1974, os Portugueses fizeram uma revolução limpa, pacifica, inesquecível, moderna, à frente do mundo e da história e com a mais avançada das Constituições. Na verdade, fizeram a última e mais atrasada revolução dos séculos XIX e XX e aprovaram a Constituição mais absurda do seu tempo.
Também nessa altura, levaram a cabo uma descolonização exemplar, cujos modelos, objectivos e processos alegadamente causaram a inveja do mundo. Na verdade, foi a mais desastrada de todas, estando na origem de três guerras civis, durante mais de vinte anos e com centenas de milhares de vítimas.
Mais tarde, Portugal deu novos exemplos ao mundo, a ponto de se ter transformado no melhor aluno da Europa, segundo os dizeres dos dirigentes europeus e portugueses. Mas rapidamente se revelou a desgraça das políticas que levaram a três resgates internacionais em cerca de trinta anos, a uma bancarrota e ao mais elevado endividamento da história.
A verdade é que estamos habituados a paradoxos. Ao de um país moderno e muito bem equipado, na vanguarda da tecnologia e da ciência, com méritos reconhecidos na saúde, na engenharia, na construção, na arquitectura, no vinho e no futebol, mas que combina com o país atrasado na educação, na justiça, nos espaços públicos, nas florestas, nos direitos dos cidadãos, na transparência e na corrupção. Ao de um governo pragmático e racional, com resultados políticos e financeiros visíveis, mas com incapacidade para reagir a tempo e horas, com eficácia e humanidade, a qualquer emergência, dos incêndios aos roubos e ao crime. A de uma administração pública ultramoderna, mas com uma organização parasitária e politicamente enviesada. A de uma protecção civil com meios tecnológicos, equipamento, aviões, helicópteros, produtos químicos e veículos de vanguarda, mas com uma coordenação politica e humana incompetente e uma desastrada capacidade de organização. A de um sistema judicial moderno, de uma legislação avançada, de processos de grande humanidade e de códigos inovadores, mas também de uma justiça atrasada, ineficiente, desigual e preconceituosa. A de um governo com claro equilíbrio político à esquerda, mas com greves a crescer todos os dias e o regresso iminente da luta das classes e das corporações.
Nada seria particularmente grave se não fosse uma tradição portuguesa: a de responder sempre tardiamente aos grandes problemas. A ditadura, a guerra em África, a revolução, a primeira Constituição, a bancarrota de 2010 e as florestas de sempre estão aí para o demonstrar.
DN, 24 de Dezembro de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

A vinha Maria Teresa, da quinta do Crasto, no Douro – No primeiro plano, quase se vê o rio do mesmo nome, o Doiro, como dizia Miguel Torga e como dizem ainda hoje muitos durienses. A quinta leva talvez cinco séculos a produzir bom vinho. Tem marco pombalino, pois já fez parte da primeira demarcação feita no tempo do marquês de Pombal, em 1756. Fica na margem Norte, ou margem direita do rio, entre a Régua e o Pinhão, na freguesia de Gouvinhas, concelho de Sabrosa. Tem apeadeiro de comboio ali perto, o Ferrão. Nesta quinta produzem-se vinhos tintos e brancos de excepcional qualidade, assim como vinhos do Porto. Esta vinha Maria Teresa, responsável pelos vinhos com o mesmo nome, é de uma beleza inesquecível, pela suave ondulação das vinhas e dos socalcos e pela coexistência de dezenas de castas de uvas que formam uma autêntica vinha velha. Tão inesquecível quanto um copo de vinho tinto com o nome desta senhora.
DN, 24 de Dezembro de 2017

domingo, 17 de dezembro de 2017

Sem emenda - Este meu país tão raro!

O caso “Raríssimas” ocupa a crónica nacional. É natural. Tem contribuído, para o clima nacional, com várias revelações. Ou confirmações. Como seja, por exemplo, o primado do mexerico nos costumes. Ou o papel da inveja na cultura nacional. Ou ainda a indiferença pela realidade e pelos factos, assim como o desprezo de muitos profissionais e comentadores pelos números. E também a facilidade com que não se resiste à tentação da pele, da carne e do bolso. Ou, finalmente, a posição do bilhete de avião, do carro, do vestido e da gamba na escala de valores morais.
O caso despertou velhos fantasmas. O dos polícias e inquisidores que entendem que se devem vigiar as organizações de solidariedade e criar uns milhares de vigilantes para cuidar de uns milhares de organizações. O da rústica simplicidade com que se afirma que é necessário nacionalizar as instituições privadas e estatizar as funções sociais. A estúpida candura dos que garantem que o Estado não corrompe, não desperdiça, não se deslumbra e não mente.
Milhões! Palavra mágica! Número mágico! Desencadeia imediatamente todos os maus sentimentos do mundo. Inveja. Desconfiança. Ambição. Milhões! Quem os tem, guarda-os, não distribui e quer mais. Quem os não tem quer ter. Quem não tem desconfia. E quem desconfia tem inveja.
Infelizmente, a inveja e o mexerico são suficientes para muita gente. É verdade que a corrupção, o nepotismo e o deslumbramento são insuportáveis e não devem ser financiados. Mas não podem fazer esquecer os factos e as situações a analisar. Na verdade, “milhões” pode ser muito ou pouco. Depende dos resultados e para quê. Quem se interessou realmente por saber quanto era gasto com cada doente e a que título? Quantas pessoas eram auxiliadas e acompanhadas? Quais as condições de acesso a estes tratamentos? Quantas pessoas trabalham nestes casos de doenças especiais muito exigentes? Quantas famílias vivem nas mesmas condições? Quantos não conseguem ter o mesmo apoio? O que pode ser feito com voluntários e o que deve ser feito com técnicos remunerados?
Quantas crianças doentes estão a ser tratadas naquela organização? Quantas pessoas estão internadas? Que outras formas de tratamento estão a ser seguidas? Quantas pessoas foram tratadas desde que a associação começou a receber subsídios do Estado? O acompanhamento implica técnicos em tempo inteiro? Quantas horas por dia? Quantos dias por semana? Há outras instituições semelhantes? Gastam mais ou menos? Muito mais ou muito menos? Tratam mais pessoas ou menos? Há voluntários ou só técnicos remunerados? Quantas pessoas existem em Portugal com doenças semelhantes e com exigências deste mesmo género? Há pessoas que não conseguem subsídios ou tratamento?
O que sabemos com segurança da “Raríssimas” não nos permite chegar a uma conclusão certa. É possível concluir que o seu trabalho é precioso, bem pago, justamente remunerado, devidamente recompensado, deve ser continuado, pode ser replicado e constitui uma função útil e necessária.
É possível concluir que aquele dinheiro é bem empregue, que os sacrifícios que aquele trabalho exige devem ser devidamente recompensados e que o facto de se tratar de milhões é indiferente dado que as necessidades custam isso e muito mais.
Mas também é possível concluir que há dinheiro a mais, que muitos recursos são ilicitamente aproveitados por pessoas e famílias que se aproveitam, que aquele trabalho é mais bem feito por outras associações privadas e por instituições públicas.
E também seria legítimo concluir que aquele trabalho é desperdício, fonte de corrupção e promiscuidade, factor de propaganda eleitoral e demagogia política e motor de promoção pessoal e deslumbramento.
Mas, para concluir o que quer que seja, é indispensável prestar atenção aos factos, aos números, à realidade e á história. Enfim, minudências. Pois…
DN, 17 de Dezembro de 2017


Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Um copo de Ginjinha ao sol, com mulheres e homens – À porta de uma chapelaria e ao lado de uma tasca famosa na Baixa de Lisboa, duas mulheres fumam um cigarro e bebem ginjinha. Uma exibe alguns encantos modernos, um piercing, uma tatuagem e unhas azuis escuras. Perto delas, uma rapariga, sozinha, bebe um copo. Lá dentro, outra rapariga bebe a sua ginjinha e conversa com dois latagões. À entrada da porta, um valente Português olha para a situação e para o fotógrafo. Esta imagem, recente, vale páginas inteiras sobre a mudança na sociedade portuguesa contemporânea. Vale manifestos feministas e proclamações sobre a liberdade das mulheres. Na sua normalidade banal e quotidiana, aquelas quatro mulheres dizem mais sobre os costumes e as relações sociais do que um tratado ou um manual. Em pano de fundo, o reflexo nas montras da Chapelaria mostra o Palácio da Independência.

DN, 17 de Dezembro de 2017