A democracia tem sido, desde o início desta pandemia, uma questão permanente. É natural que assim seja. Conhecemos quem a queira arranhar e quem entenda que é necessário defendê-la. Há toda a espécie de ideias contraditórias. A democracia ajuda a resolver a crise sanitária, afirmam uns. Com democracia, não se pode tratar da saúde das pessoas, garantem outros. Os mais pragmáticos declararam que não se deve curar a saúde sem tratar da democracia. Os mais cépticos advertem que só com uma revolução é possível cuidar ao mesmo tempo da saúde e da democracia. Estes últimos dividem-se, evidentemente, em dois grandes grupos, os que entendem que só a Europa integrada e una consegue tal proeza e os que estão convencidos de que só o regresso ao Estado nacional é capaz de proteger a democracia e a saúde.
Não vale a pena tratar de estúpidos ou ignorantes os que pensam diferente de nós. Nem de dizer que os que não têm as mesmas ideias que nós são hipócritas e corruptos. O debate tem sido, infelizmente, um pouco esse. Mas podemos pelo menos ter a certeza de que as divergências e as contradições são reais e merecem ser ouvidas: só assim se poderá encontrar um caminho.
Continuam vigorosas as ideias radicais, sempre formuladas em tom exclusivo. Só uma revolução socialista poderá dar saúde a toda a população. Só uma mudança de modelos de consumo e de produção será eficiente. Só uma transformação do modelo de sociedade garantirá saúde e liberdade para todos. Só a globalização e as economias competitivas podem garantir tal desígnio. Só as nações proteccionistas podem defender e proteger a liberdade de todos. Só um Estado com muita autoridade pode levar à prática uma estratégia de saúde para o seu povo.
Todos estes pontos de vista traduzem convicções. Todas estas crenças têm direito à vida e correspondem a ideais de sociedade. Mas o que realmente poderá vingar e o que, em última análise, vencerá a luta política é o que dá tanta importância à democracia quanto à saúde. Ora, nada disso se obterá com o Estado nacionalista ou com a revolução socialista; nem com globalização capitalista ou alternativa; muito menos com novos e abstractos modelos de sociedade. E ainda menos com a necessidade de aproveitar a oportunidade para resolver também a pobreza, o racismo, a corrupção, o terrorismo e a imigração ilegal.
Todos aqueles combates globais e revolucionários têm o seu tempo, menos agora, em cima da doença e da emergência. Apesar de terem direito à existência, nunca ou quase nunca tais ideias totais e globais superam as soluções reformistas, discutidas, justas e graduais. O inventário das soluções radicais e globais dos últimos séculos é de tal modo trágico que já poderíamos estar ao abrigo dessas fantasias. Infelizmente, não. Mas as fantasias também têm direito à vida. É bom que assim seja.
São as soluções práticas, reformistas, discutidas e debatidas, que asseguram mais eficácia. Podem por vezes conter o veneno da desigualdade, com certeza, mas a liberdade e a democracia estão aí para permitir a denúncia e a correcção. São as reformas que permitirão resolver as formas de tratamento igualitário, a descoberta e a generalização das vacinas e as medidas de prevenção. São as soluções empíricas que permitem consolidar um serviço nacional de saúde prestigiado e devidamente equipado. Como são as políticas práticas que permitem a coexistência entre o sector público e o privado, indispensáveis a uma eficiente política de saúde para todos.
Como são as soluções práticas que permitem encontrar um destino rápido e eficiente para o Bairro da Jamaica e para todos os equiparados e similares, nódoas da nossa sociedade. Faz mais pela democracia quem resolve o Jamaica, quem destrói aqueles pardieiros, quem constrói alojamentos decentes em poucos meses e quem realoja os seus habitantes, do que quem passa os seus dias a rosnar contra os fascistas e os patrões. A desigualdade é veneno. Como disse Susana Peralta, há dias, aqui no Público: “ … aguentar o confinamento depende muito da qualidade do sofá, da velocidade da Internet e da variedade do que há no frigorífico”! É difícil, em tão poucas palavras, ser mais certeira! O que diz é comovedor, sem ser piegas. E põe nos devidos termos muitas das polémicas actuais.
É a democracia prática, quotidiana, que permitirá tratar igualmente os pobres e os desempregados brancos, amarelos e negros, muito melhor do que quem vocifera pelos comícios chiques ou vingativos contra o racismo. Faz mais pela liberdade quem procura controlar os fluxos de imigração e a legalização dos trabalhadores e suas famílias, do que quem gasta o seu tempo e a nossa paciência a exigir portas abertas a todos, liberdade total de imigração e legalização imediata de todos os candidatos. É o controlo dos fluxos de imigração e o esforço para dominar a demagogia da sociedade aberta que permitem combater e condenar os negreiros que garantem o transporte de refugiados e estimulam as aventuras quase suicidárias de candidatos à emigração.
É a democracia prática e são as instituições livres que permitirão julgar os corruptos, capitalistas ou políticos, muito melhor do que alinhando teses sobre a globalização democrática e socialista, numa narcisista viagem de satisfação de egos enormes disfarçados de solidariedade palavrosa.
É a democracia prática e a liberdade sem reticências que permitirá julgar os adultos que batem nos velhos e nas crianças, os homens que agridem e matam mulheres e filhos, não são os esforços tonitruantes de quem pretende elaborar planos totalitários anticapitalistas de igualdade de género que não têm qualquer efeito.
A pandemia faz mal a milhões de contaminados. A milhares que morrem. E a centenas de milhões que vivem em condições de vulnerabilidade. Mas também tem danos colaterais. E não são poucos. Dos governantes que se exibem e fazem propaganda. Dos directores gerais que se enganam e não reconhecem o erro. Dos jornalistas que vão na onda e não corrigem. Dos comentadores que sabem mais do que enciclopédias. De todos os que cultivam a demagogia fácil e dos que procuram o lucro indevido.
É tão fácil incriminar os demónios de todos os males! Acusar os fascistas. Denunciar os brancos. Culpar os pretos. Pendurar os comunistas. Castigar os patrões. Mas a melhor solução ainda parece ser a da liberdade individual e das instituições democráticas. Com a ajuda da ciência!
Público, 31.5.2020