domingo, 24 de fevereiro de 2019

Grande Angular - Propinas: justiça e mérito


É natural que em ano de eleições certos debates aumentem de tom. É um bom momento para criticar radicalmente e prometer sem limites. A gratuitidade de muitos bens e serviços é um favorito. Este ano, já tivemos alarido com as propinas do ensino superior. Atingem hoje, em estabelecimento público, para a licenciatura e para Portugueses, pouco mais de mil euros. A partir de Outubro, diminuirão duzentos euros, por iniciativa do Bloco e cedência do governo. Já as propinas dos mestrados e doutoramentos, de livre fixação em estabelecimento público, podem variar muito, entre cursos, faculdades e universidades. Isto faz com que os montantes anuais possam oscilar entre dois e oito mil euros. Ao que se acrescentam inúmeras taxas, custos burocráticos, emolumentos e o que mais se inventa. Em poucas palavras, os antigos ciclos de sete a dez anos desdobraram-se em três, um relativamente barato e dois muito caros.
Faz sentido discutir hoje estes preços? Faz sempre. Há, todavia, dois problemas sérios. O primeiro é o da definição do que se discute e dos objectivos a atingir. O segundo é o dos argumentos e da experiência.
Primeiro, o objectivo. O que se pretende com o pagamento de propinas? Rentabilizar o ensino? Restringir o acesso? Seleccionar os melhores? Seleccionar os mais ricos? Financiar as instituições? Aliviar o orçamento de Estado? Gerar receitas suplementares para a despesa corrente das universidades? Confirmar a ideia de que tudo tem o seu preço e que nada é gratuito? Permitir o recrutamento de professores em tempos de congelamento? Como se pode imaginar, há de tudo um pouco. Mas seria essencial, para o esclarecimento público, que se diga ao que se vem. Até porque as políticas sociais (isenção, bolsas, subsídios…) não se fazem com receitas e custos.
Quanto ao segundo, as coisas são mais delicadas. Não é verdade que a formação superior desencadeie, por si só, desenvolvimento e igualdade, dois dos principais argumentos dos que propõem o permanente alargamento do ensino superior, até mesmo o direito de todos ao acesso. Mas é verdade que o desenvolvimento económico e social fica mais bem servido com uma formação superior e que o desenvolvimento humano é favorecido por superiores capacidades técnicas, intelectuais e profissionais. De qualquer modo, não vale a pena inverter a ordem dos factores: é o desenvolvimento económico e social que conduz ao progresso da educação, da ciência e da cultura, não o inverso. Importante, realmente importante, é que não haja obstáculos artificiais ao desenvolvimento humano, que o mérito seja recompensado e que quem não merece não seja gratificado.
As perguntas são simples. Todos os que merecem estão na universidade? Os que mais trabalham conseguem entrar? O rendimento económico e a fortuna favorecem alguns e prejudicam outros? A falta de meios é um real obstáculo? Há desperdício com os estudantes que chegam à universidade e abandonam? Há muita injustiça, isto é, os favorecidos retiram os lugares aos desfavorecidos? A isenção de propinas favorece o mérito? A gratuitidade recompensa o mérito? Ou há outros factores económicos que são obstáculos muito mais poderosos ao acesso à universidade? Em poucas palavras: as propinas são obstáculo ao acesso?
Uma política de financiamento do ensino superior e de regulação do acesso tem de responder a estas perguntas. Caso contrário, trata-se de políticas baseadas em “consta que” e ”acho que…”. Ora, nas actuais discussões, sejam quais forem os intervenientes, partidos e governo, docentes e estudantes, a argumentação empírica está totalmente ausente.
Acontece que Portugal tem uma excelente experiência que poderia fundamentar decisões justas e racionais. Nos últimos trinta ou quarenta anos, o país já conheceu vários modelos: com e sem propinas, com muitas ou poucas bolsas e isenções, com restrições quantitativas ásperas ou suaves, com e sem provas de acesso. Temos, além disso, hábitos de concorrência entre ensinos caros e baratos e entre privados e públicos. Toda esta experiência permitiria saber o que estamos a fazer e conhecer os resultados de cada opção.
Não é isso que se faz. Ninguém sabe se as propinas são realmente o obstáculo. Nem se os montantes são aceitáveis ou os proibitivos. Ninguém sabe onde estudam os mais desfavorecidos, se nas instituições públicas se nas privadas. Ninguém sabe se o que realmente constitui obstáculo não será a deslocação, o alojamento, a ausência de rendimento e os custos gerais de manutenção. Ninguém sabe se a isenção de propinas ajuda quem precisa ou se é mais um subsídio à classe média. Ninguém sabe quem realmente beneficia com as bolsas de estudo, se são os pobres, os remediados ou os ricos. Ninguém sabe simplesmente porque ninguém estuda. É perfeitamente possível que os contribuintes estejam a subsidiar e beneficiar as classes altas e médias. Como é possível que as propinas não tenham qualquer efeito no acesso, e sirvam apenas para aliviar o orçamento do governo.
Uma política de financiamento do ensino superior e qualquer acção social deveriam conhecer algo essencial: a origem social e os rendimentos económicos dos estudantes e das suas famílias. Também aqui a cegueira das autoridades é total. Esta informação deveria ser conhecida durante anos a fio, o que permitiria saber quem é beneficiado e quem é prejudicado. Mas não! Não se sabe, porque não se estuda. Fazem-se leis às cegas e elaboram-se políticas sociais com “acho que”.
As políticas sociais mal concebidas têm resultados perversos. Ajudar quem menos necessita, por exemplo. Apoiar quem já tem que chegue. Castigar quem tem mérito. Penalizar quem se esforça. E ignorar os que precisam.
Aúltima questão é talvez a mais difícil. Todos têm direito ao ensino superior? Evidentemente que não. Quem não merece, quem não quer, quem não se esforça, quem não cumpre os mínimos e quem não faz o que é necessário não tem esse direito. Parece evidente que só o tem quem merece e faz por isso. É injusto dar o mesmo direito de aceder à Universidade a um estudante que tudo fez para lá chegar e a outro que não se interessa.
É verdade que as coisas não são assim tão simples. Além do interesse, do talento e do mérito, ainda teríamos de falar da região, do meio social e da família. Não há mistérios: todos esses factores são conhecidos, devem estar incluídos nos critérios das políticas públicas. É necessário, todavia, conhecer e estudar. As intuições e a ideologia não chegam.
Público, 24.2.2019

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Grande Angular - A fábula da estrada de Borba

Quem viu, nunca esquece: as fabulosas imagens da estrada de Borba, feitas a partir de drones, helicópteros e gruas. Já antes do desastre, mesmo sem estes meios sofisticados, quem teve a oportunidade de ver e admirar as pedreiras de Borba, Vila Viçosa e terras vizinhas, ainda hoje recorda o espanto diante daquela beleza insólita. Pareciam catedrais viradas ao contrário, de fora para dentro, ou arranha-céus do avesso, designações que ocorriam a quantos por ali passavam. Naquelas enormes paredes cor de mármore e argila, viam-se as marcas dos cortes feitos com mecanismos simples de fio de aço. Dali saíam blocos rectangulares parecidos com os modernos contentores que seguiam para as instalações de corte ou em camiões TIR directamente para indústrias ou para a exportação. Aqui e ali, viam-se tabuletas de alerta, “Perigo”, “Cuidado com os deslizes de terras”, nada de particularmente inquietante.
De vez em quando, quem tinha sorte encontrava restos de estátuas ou esculturas romanas e similares. Os artistas vinham para as pedreiras iniciar o seu trabalho, dado que não eram os blocos que viajavam. Às vezes, acidente maior, o mármore não prestava, havia rupturas ou o artista batia mal. A estátua invalidada ficava por ali. São restos preciosos. Estão hoje dezenas deles em várias instituições públicas ou em casas de gente local.
Agora, a imagem mais chocante é aquela feita a partir do drone, depois do desastre. Todos os canais de televisão e jornais a publicaram. Nesta fantástica terra alentejana, vermelha de barro e argila, recheada de manchas de mármore branco, amarelo, argiloso ou ferrugento, uma estrada corre ao longo de dois precipícios, um de cada lado. Desordem de terra, de pedregulhos e de água por todo o sítio. Verdadeiros buracos com uma profundidade de dezenas de metros, nem sempre visíveis por quem vai na estrada ou mesmo por quem passeia a pé nas margens. Quem visse aquelas imagens antes da derrocada teria a impressão exacta: aquilo vai cair, quem estiver à beira do precipício vai por ali abaixo. Agora é mais fácil perceber. Já caiu. Mas aquela beleza dramática continua ali, naquelas imagens fortes. Por que caiu? Como caiu? Não era possível prever? Que precauções havia? Por que ninguém viu antes? Não terá mesmo visto? Não havia relatórios, peritagens e estudos? Como explicar o sucedido? Quem é responsável? Tratar-se-á de mais um mistério a acrescentar à longa crónica de factos não desvendados e histórias não esclarecidas?
Não há mistério da estrada de Borba! Ali, é quase tudo simples! Chama-se imprevidência e desmazelo. O desastre de Borba aconteceu porque tinha de acontecer. E também não parece ser misteriosa a responsabilidade: é da autarquia, das empresas de mármore, da Protecção Civil, da “Infra-estruturas de Portugal” e do Ministério. Misterioso teria sido que não acontecesse. Misterioso é que não haja ainda mais desastres, mais inundações, mais fogos de Verão, mais incêndios urbanos e industriais e mais mortos nas estradas. Misterioso é que não haja mais doentes nas escolas e mais acidentes no caminho-de-ferro. 
Parece uma metáfora para o nosso país. O crescimento é curto, menor do que a maior parte da Europa. A poupança é ínfima. O investimento é reduzido, não há maneira de crescer. A produtividade não cresce nem melhora. O que havia gastou-se em consumo e reversão, sem intenção reformista, sem pressão para preparar o futuro. O SNS está em crise real de falta de pessoas, de horas de trabalho, de equipamentos, de renovação, de organização e de meios de toda a espécie, ainda por cima com 35 horas de trabalho oferecidas em troca de 40, sem contrapartidas nem recrutamento.
As pontes, as estradas, as auto-estradas, os caminhos-de-ferro, as centrais eléctricas, os transportes urbanos e grande parte dos hospitais e das escolas estão há anos sem manutenção, com pouco acompanhamento, reduzida fiscalização e quase sem inspecção. Há liceus onde chove há anos, à espera da sorte e do secretário de Estado. Segundo o relatório da Infra-estruturas de Portugal, 60% das linhas de caminho-de-ferro estão em medíocres ou más condições. Parte das composições e das locomotivas está em estado de degradação tal que já não circulam e têm de ser substituídas por espanholas alugadas!
Ainda há muitas dezenas de escolas (alguns especialistas dizem 730) com coberturas de amianto, verdadeiras ameaças à saúde de todos, professores e alunos. Proibida a sua utilização há cerca de quinze anos, a remoção está muito longe de ter sido completada. Ainda haverá dezenas de edifícios públicos, escritórios, instalações fabris e armazéns de toda a espécie onde o amianto nunca foi retirado.
A história dos helicópteros do INEM e de outras entidades sugere corrupção e descuido. Compram-se estranhos aparelhos que já passaram mais tempo no estaleiro do que a trabalhar ou em estado de prontidão e para os quais não estão previstos e preparados os dispositivos de manutenção e reparação.
Os paióis de armamento e munições de Tancos ou as redes de comunicação SIRESP são exemplos históricos de falta de manutenção e desleixo. Deveriam ficar nos manuais: mesmo que nunca se venha a saber onde está o dolo e a prevaricação, os casos são em si valiosos de ensinamentos.
Reparar buracos nas ruas e nas estradas, limpar o lixo das cidades, substituir lâmpadas da iluminação pública, avaliar com regularidade as pontes e os viadutos, limpar as sarjetas e as valetas, cuidar dos aceiros e desmatar: numa só palavra, manutenção! É o que faz falta!
Portugal é a estrada de Borba. Sem manutenção. O que for simples e fácil é com os governos e os autarcas: assinar cheques, mandar vir empresas internacionais para fazer obra, construir novo, mostrar bonito e fazer de modo a que dê nas vistas. O que é preciso é que haja convénio, assinatura de contrato, primeira pedra, inspecção, pré-inauguração e inauguração. Fazer novo e inaugurar para impressionar são os objectivos, as regras e o vício. Manter, preservar, arranjar e conservar são actividades menores, não dão votos, não geram lucros nem dão nas vistas.
Deitar fora e fazer novo é regra de oiro. Não economizar é um hábito. Poupar é forreta, não é moderno e não é de vanguarda. Estradas novas, edifícios novos e escolas novas merecem atenção e dinheiro. Manter as antigas estradas, as casas, os bairros, as escolas e os liceus, é conservador, não dá dinheiro, não surpreende ninguém e não cria negócios. Como dizia um escritor ou um político há cem anos: não fazer o que faz falta, mas fazer o que dá nas vistas!
Público, 17.2.2019

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Grande Angular - Justiça, Justiça!

A reserva de compaixão dos Portugueses parece inesgotável. Têm pena de tudo. Dos idosos, das crianças e dos doentes. Dos trabalhadores, dos funcionários e dos professores. Dos locais e dos imigrantes. Dos brancos e dos negros. Só parece não terem qualquer espécie de compaixão pelas mulheres! Desde o início deste ano, já lá vão nove ou dez assassinatos de mulheres. Pelos homens. E certamente milhares de batidas e violadas. Pelos seus homens.
De qualquer modo, a compaixão, que é uma virtude, esgota-se com facilidade. Isto é, adapta-se às situações e esquece depressa. E é de uma ineficácia flagrante. A imprensa está recheada de denúncias de mulheres batidas. Sem qualquer efeito. Mais do que de compaixão, as mulheres do meu país necessitam de justiça. As mulheres e, por causa delas, nós todos.
Foi agora que se viu com nitidez uma sentença famigerada de um Juiz com real insuficiência moral, cuja expressão pública obrigou o Conselho Superior a uma triste exibição de uma parte dos seus membros. O Conselho deixou-se enredar num dilema complicado: ou põe em crise a independência do juiz e defende os valores morais, da Constituição e da lei; ou mantém essa independência intocável, mas deixa que os valores boçais do preconceito e do desprezo pela dignidade das mulheres (e dos homens…) prevaleçam.
Podemos invocar a cultura e os costumes. É sempre de bom-tom aludir à tradição, conferindo-lhe a responsabilidade pelos nossos males. E sugerir uma “reforma de mentalidades” como solução para estes casos. Deixemo-nos de devaneios adolescentes e impotentes. O que está em causa é a Justiça. Ponto final.
Amanutenção da ordem pública e a segurança dos cidadãos também estão a revelar as insuficiências da Justiça: da legislação, dos processos, da aplicação das leis, da prevenção, do castigo dos prevaricadores e da defesa dos ofendidos. Os episódios relacionados com os “incidentes do Jamaica” mostraram como os exageros das polícias nem sempre são castigados; como são tolerados os excessos dos revoltados que se julgam vítimas; como as autarquias e o Estado central deixam degradar-se localidades e bairros hediondos que alimentam a marginalidade; como as autoridades têm dificuldade em apoiar as forças de segurança. Também aqui, a Justiça é o elo mais fraco.
Noutros horizontes, os dos processos de colarinho branco, a justiça enfrenta momentos difíceis. Há um ambiente de terra queimada pouco propício à administração serena da justiça. Processos que se atrasam, garantias que nunca acabam e recursos que se reproduzem transformaram aquele universo num labirinto sem saída aparente.
O segredo de justiça é a maior farsa que se pode imaginar. As fugas de informação dirigidas e deliberadas ficam sistematicamente impunes. As chicanas e manobras de diversão processual são cada vez mais eficazes num só propósito, o de adiar a justiça. As alterações orgânicas e as vicissitudes da distribuição de processos lançam uma sombra de dúvida. Verdadeiros ou alegados, os erros de investigação e de instrução enfraquecem os processos de modo suspeito. Há escutas telefónicas feitas com ligeireza de fundamentos e outras destruídas sem consistência de argumentos.
Fica-se com a impressão de que a Justiça é o terreno ou o instrumento de eleição para a vingança pessoal e política e para reconstrução de uma inocência perdida.
Arivalidade entre os Magistrados Judiciais e o Ministério Público está a atingir foros de ineditismo e a prejudicar a justiça e a percepção que dela tem a população. As lutas entre corpos e facções já têm consequências. Partidos políticos e deputados tiveram desastradas intervenções a propósito da composição dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público. Estava em causa a proporção de elementos desses conselhos que têm origem fora das profissões. Uma maioria de membros oriundos do exterior pareceria uma excelente solução a fim de marcar a única e legítima dependência da Justiça: a do soberano. Mas, em ano de eleições, sem revisão constitucional, depois da substituição atrapalhada da Procuradora geral da República e coincidindo com os mais graves processos de políticos da história recente, as mudanças orgânicas nesses conselhos só viriam aumentar as suspeitas de ingerência dos partidos. Mais tarde, no quadro de uma revisão constitucional, a reforma de certos aspectos, designadamente os que consagram a auto-gestão da Justiça, faz todo o sentido. Agora, no actual quadro político e social, modificar os Conselhos é gesto mais parecido com um assalto do que com uma reforma.
Verdade é que os Conselhos Superiores constituem a cúpula corporativa de um edifício em auto-gestão. O que não se justifica. A Justiça também depende da legitimidade democrática. Com respeito pela independência dos juízes no exercício das suas funções, tem de haver uma ligação forte aos órgãos emanados do soberano.
Num país como o nosso onde ninguém, no sistema judicial, é eleito, é essencial reforçar a legitimidade democrática da Justiça. Uma maneira de a concretizar é justamente com a presença forte (metade ou metade mais um) de pessoas com conhecimentos e experiência designadas pelos órgãos de soberania eleitos. É bom notar que Portugal é um caso extremo de auto-gestão judiciária. Na maior parte dos países democráticos há vários vínculos de ligação das magistraturas ao povo. Designação pelo Presidente, pelo Rei, pelo Governo ou pelo Parlamento; eleição directa pelo sufrágio universal; eleição corporativa alargada; ou designação pelas autoridades autárquicas. A falta de experiência democrática dos partidos e o fortíssimo poder corporativo dos profissionais fizeram com que os Portugueses tivessem ficado com as piores soluções.
Dito isto, é perigoso alterar actualmente a composição dos Conselhos Superiores. Tal gesto é um claro ataque à independência dos juízes ou será interpretado como tal. Numa altura em que estão em causa valores essenciais de honestidade na vida pública, será suspeita qualquer tentativa de alterar regras e dispositivos. Em todos os casos relativos aos processos envolvendo magistrados, banqueiros e governantes, há sinais de tentativas de condicionamento de decisões. Todos os arguidos, sejam eles políticos, empresários ou banqueiros, vêem com bons olhos mudanças extemporâneas de regras, de estruturas e de titulares dos órgãos dirigentes. Esperar pela próxima revisão da Constituição é uma solução séria e sábia. Mas, para castigar prevaricadores, condenar criminosos e reprimir a violência doméstica, não é cedo. Já quase é tarde!
Público – 10 Fev 19

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Grande Angular - O interior e os seus mitos

São duas políticas contraditórias. Talvez inúteis, seguramente prejudiciais. A primeira: revitalizar o interior e fazer com que as pessoas “criem raízes” onde nasceram. A segunda: liquidar instituições e fechar serviços públicos.
Falamos do interior, fantasia que, desde há muitos anos, ataca grande parte dos políticos. Interior que começa por pecar por defeito de concepção. Onde começa e onde acaba o interior? Visto de São Petersburgo, Portugal é costa e praia. Visto de Madrid, o litoral vai até Viseu. O interior é um conceito, não uma realidade. Segundo os mais recentes critérios, o interior já inclui áreas litorais no Centro e no Alentejo. Na verdade, interior é uma entidade artificial que define áreas mais agrárias do que industriais, mais rurais do que urbanas, pouco letradas e menos instruídas, com baixo produto e reduzida produtividade, por vezes distantes dos grandes centros urbanos, com habitat disperso, rendimentos baixos, pouca natalidade, muita emigração, pouca imigração, elevadas percentagens de reformados, poucos serviços de saúde e de educação.
É para este interior que se dirigem as atenções dos governantes e autarcas, sobretudo candidatos. Pensam que prometer mundos e fundos ao interior dá votos e aquece os corações. É muito provavelmente mentira. Estranha-se a facilidade com que um candidato, em princípio com estudos feitos, é capaz de afirmar que tem políticas para “fixar as populações”, uma das mais odiosas expressões utilizadas correntemente, só comparável àquela outra que diz que as pessoas devem “criar raízes onde nasceram”, baixo pensamento de que só urbanos são capazes.
No discurso político, mas também académico, o termo mais dramático é o da desertificação. O que não é justo. Na verdade, esta expressão traduz outro fenómeno, mais radical, mais climatérico e geográfico. Desertificação é o processo pelo qual regiões perdem fertilidade, recursos, água e, com a aridez, os solos transformam-se em desertos, para ser mais directo. Aquilo de que se deveria falar, a propósito do interior, é de despovoamento: êxodo da população e declínio da demografia.
Odespovoamento está ligado a múltiplos fenómenos. Por exemplo, o esgotamento de recursos naturais, o declínio demográfico, a mudança de padrões económicos e a decadência da indústria ou da agricultura. São muitas as razões que levam ao despovoamento, umas boas, outras más! Entre as boas, a procura de melhores empregos, de mais cultura, de ensino superior e de novas actividades noutras paragens. Numa palavra, a procura de oportunidades.
Há, no entanto, entre as causas de declínio do “interior”, uma que deve ser analisada: o empobrecimento institucional das regiões e a destruição deliberada de serviços públicos. Forças Armadas, polícias, escolas, centros de saúde, hospitais, maternidades, centros de lazer e cultura, serviços e extensões ministeriais, bancos e agencias bancárias, agentes de seguros, repartições da segurança social, correios, serviços das contribuições e impostos, das estradas, da urbanização e das obras públicas, serviços de transporte (comboios, autocarros…) e apoio aos doentes, idosos e crianças. É longa a lista.
OEstado, furtivamente, caso a caso, tem vindo a despovoar largas zonas do país. Muitas vezes com a colaboração, o silêncio ou a impotência das autarquias. É este desmantelamento que é condenável. O Estado não faz avaliação de conjunto. Os partidos também não. Estes apenas se preocupam, de vez em quando, com a regionalização, na convicção, de uns, de que essa é receita de salvação, e de outros, que essa é uma solução diabólica.
Ora, cada município merece análise de conjunto. Uma região ou um conjunto de municípios vizinhos podem debruçar-se sobre o mesmo problema e, caso a caso, encontrar soluções adequadas, um concelho fica com o hospital, outro com as obras públicas, tudo depende das áreas e das distâncias.
Uma coisa é certa: há serviços e instituições que existem para servir o povo, para manter vivas localidades, para ajudar a atrair emprego, para reforçar a coesão social e para manter a vida, não para dar lucro e ser rentável. Fechar comboios, encerrar os correios, fechar maternidades, terminar escolas, liquidar serviços aos idosos, descontinuar serviços da administração e desmantelar regimentos, cada uma destas decisões pode ter alguma justificação, desde que ponderada e debatida. Por junto, é a matança institucional sem justificação decente.
São as duas políticas contraditórias. O que faz a mão direita, a esquerda não sabe! Por um lado, o Estado não cessa de inventar ajudas e apoios: impostos, taxas, favores, subsídios, investimentos, auto-estradas, subsídios à interioridade e à insularidade, apoio aos preços da energia, da água e dos telefones, é um nunca mais acabar de benesses.
Por outro lado, liquidam-se empregos, empresas, tribunais, serviços administrativos, serviços públicos, escolas, maternidades, freguesias, correios, agências bancárias, regimentos, esquadras de polícia e da guarda, serviços e guardas florestais, guarda-rios e serviços veterinários.
Os apoios e as ajudas são excelentes, mas pouco conseguem, como se tem visto. Até porque são contrariados pela destruição sistemática do tecido e da coesão institucional. É verdade que onde não há crianças não há escolas. Onde não há mães não há maternidades. Onde não há doentes não há hospital. Mas será mesmo assim? Não será mais verdade que, onde não há instituições, onde não há correios, onde não há empresas, onde não há serviços, onde não há escolas, não há pessoas?
Percebe-se que os quartéis de fronteira tinham como principal missão a de olhar para os adversários de terra, para Espanha! E consta que a Espanha já não é nossa eterna inimiga, antes pelo contrário. Mesmo assim, os quartéis estavam lá, como podiam estar em qualquer outro sítio e eram factores de coesão, de animação, de casamento, de natalidade e de comércio.
Um regimento não é um problema. Caso a caso, uma escola, um banco ou uma estação de correios, percebe-se sempre. Adicionados casos uns aos outros, não se percebe. Ou antes: não há uma visão de conjunto, não há plano, faltam autarquias não obedientes ao poder central, ao partido e ao governo.
Uma coisa é certa: não faz qualquer espécie de sentido os poderes públicos provocarem e depois subsidiarem a interioridade! E pior do que tudo é a concepção de que as instituições têm de ser rentáveis. Uma escola? Um correio? Um centro de saúde? Um lar de idosos? Deve ser isso a que chamam sustentabilidade.
Público, 3.2.2019