sábado, 31 de julho de 2021

Grande Angular - Louvar Otelo

A morte de Otelo Saraiva de Carvalho desencadeou uma inesperada controvérsia na sociedade portuguesa. É herói ou não é herói? Merece ou não o “luto nacional”? Deve ou não ser recordado com um monumento?

Mais do que a personagem de Otelo, que é simples e pouco interessante, o que realmente surpreende é a reacção de tantos portugueses que ainda se revêem nesta figura e no percurso. Tristes os que se identificam com tão fracos heróis!

Depois de ter diligentemente participado, com honra e eficácia, em duas frentes da guerra colonial, Otelo insurge-se contra a ditadura. Graças aos seus talentos de organizador, assumiu as funções de “estratego” do golpe, isto é, das operações de Abril. Não foi “estratego” político, para o que não tinha conhecimentos. Mas tratou ao pormenor dos preparativos e da logística. Coordenou a criação do dispositivo militar. Comandou o desenrolar das operações que foram por si lideradas com indiscutível êxito. Sem violência física e sem ter derramado sangue, o que ficará, para sempre, a seu favor e para nosso bem. Se o golpe e a revolução tivessem gerado violência, ainda hoje teríamos um país muito diferente e pior.

Otelo merece consideração profissional. Com capacidade, serviu na guerra colonial em duas frentes, pelo que foi louvado e promovido. Também merece respeito político. Com inegável êxito, liderou as operações que derrubaram a ditadura. Também por isso foi louvado e promovido.

Não são dele a orientação política nem o programa, para o que não tinha sabedoria. Mas colocou o seu talento ao serviço da insurreição política. Merece aplauso, que recebeu em devido tempo. E que ainda hoje recebe, dado que os seus admiradores se contam por milhares. Mesmo altas autoridades, que não optaram pelo “luto nacional”, não deixaram de aparecer no velório.

Depois do 25 de Abril, Otelo desempenhou altas funções políticas e militares, sempre a favor da revolução, raramente a favor da democracia. Pertenceu a todos os órgãos revolucionários militares, liderou o COPCON, um autêntico quartel-general da revolução. Sob seu comando, com mandatos assinados por si e com o seu patrocínio, pessoas foram detidas, capturadas e batidas, contas bancárias foram congeladas, casas e empresas foram ocupadas. Otelo e o COPCON governaram, durante uns meses, Lisboa e grande parte do país, com terror e intimidação.

Otelo opôs-se ao voto nas eleições constituintes e aconselhou o voto em branco, contrariou a Assembleia Constituinte e patrocinou o mais sinistro dos planos políticos, o “Documento Guia da Aliança Povo MFA”, que a Assembleia do MFA aprovou e que se destinava a destruir qualquer hipótese de Estado de direito e de sistema democrático. Lutou contra os partidos democráticos e contra o “Grupo dos Nove”, intimidou o PS, o CDS e o PSD, competiu com o PCP, com o qual teve querelas. Dirigiu várias iniciativas revolucionárias, todas anti-democráticas, como as organizações do Poder Popular, os GDUP, a FUP e as FP-25.

Nunca defendeu eleições livres para a criação de poder legislativo, nunca lutou pelo Estado de direito, sempre atacou o regime parlamentar e o sistema democrático. Foi derrotado no 25 de Novembro pelas forças democráticas. Como foi derrotado por duas vezes que concorreu às eleições presidenciais. Contrariou todas as tentativas de criação de instituições representativas. Sem pensamento político próprio, pastoreou os grupos revolucionários que lhe batiam à porta e que ele alegremente apadrinhou.

Tendo sido derrotado e depois de afastado de qualquer função política ou militar de relevo, Otelo enveredou por uma carreira de conspiração e de organização de acções revolucionárias e terroristas. Apesar de condenado sem hesitações, foi amnistiado.

Se o critério for o da liberdade e da democracia, os portugueses devem-lhe pouco. Apenas lhe devem a organização do 25 de Abril, ponto final. Depois, exagerou nos seus desmandos, nas ameaças e nos atentados. Apesar disso, transformou-se num símbolo de Abril e da liberdade. É pena, pois foi o pior que Abril nos deu. E se Abril nos deu a liberdade e a democracia, foi apesar de Otelo, não graças a Otelo.

É infeliz notar que tantos políticos, intelectuais, académicos e jornalistas consideram Otelo o símbolo da liberdade e cultivam o mito de Otelo como construtor da democracia, quando ele nada fez por isso, bem pelo contrário, foi uma das suas piores ameaças.

Boa parte das esquerdas, sobretudo as esquerdas mais radicais, sempre teve um problema com a violência e o terrorismo. Se forem praticados “contra o capital”, contra o “imperialismo e o colonialismo”, contra “os ricos” e contra as “classes dominantes”, os actos violentos têm desculpa, são erros de passagem ou mesmo glórias inesquecíveis. Há esquerdas que nunca condenaram a violência, toda e qualquer violência. Há esquerdas que só depois de verem o bilhete de identidade é que condenam ou apoiam a violência. A simetria funciona também. As direitas sempre entenderam que a violência era necessária e bem-vinda contra os revolucionários e contra as esquerdas.

A violência e o terrorismo em África, no Próximo Oriente, na América Latina, mesmo nos EUA e em certos países europeus, não só não foram condenados, como foram justificados. As Torres gémeas de Nova Iorque foram festejadas por muitas esquerdas europeias. As Brigadas Vermelhas italianas, o Exercito Vermelho alemão, a ETA espanhola e o IRA irlandês acabaram quase sempre por ser louvados pela esquerda radical ou perdoados por esquerdas mais suaves. Apenas esquerdas mais moderadas souberam condenar sempre a violência e o terrorismo.

Cada vez que a as esquerdas são colocadas perante o absurdo dos seus louvores à violência de esquerda, respondem com brutalidade: mas as direitas também! E citam, para justificar os seus desmandos, Marcelino da Mata, Wiriyamu, as tropas portuguesas em Nabuangongo e na Baixa do Cassanje. Para já não falar dos assassinatos e das torturas de que a PIDE foi responsável. A fraqueza deste argumento é absoluta. Não há, como no tempo e nos escritos de Trotsky, uma moral “deles” e uma “nossa”.

A democracia pode desculpar os seus inimigos. Pode perdoar a violência e o terror. É discutível, mas percebe-se. Não pode é louvar os terroristas. O luto nacional não é apenas isso, luto. Nem só recordação. É também louvor. Louvar Otelo seria simplesmente aceitar a violência. Os democratas podem perdoar os seus inimigos. Mas não louvar.

Público, 31.7.2021 

sábado, 24 de julho de 2021

Grande Angular - Para nosso bem

Há quem pense que as liberdades e os direitos fundamentais, sobretudo os cívicos e os políticos, assim como os valores morais e culturais, devem depender do dinheiro, do nome e da boa educação. Em geral, essas pessoas situam-se à direita. Mas também há os que acreditam que os direitos e as liberdades dependem do poder, do partido e da classe social. Em geral, essas pessoas situam-se à esquerda. Tanto num caso como noutro, estamos, evidentemente, diante de ditaduras e de sociedades despóticas. Em comum apreciam as suas liberdades, não as de todos. Querer a liberdade para si não é sinal de liberdade.

É verdade que os interesses são muito fortes na formação de opiniões e os seres humanos são egoístas. Assim, é natural que primeiro se queira as liberdades e os direitos para si, depois para os outros. Talvez. Mas também é verdade que a humanidade fez alguns progressos e que os seres humanos, alguns pelo menos, são solidários. O que quer dizer que também há gente que quer a liberdade e os direitos para os outros. Há gente que entende mesmo que a sua liberdade e os seus direitos só fazem sentido se forem também a liberdade e os direitos de todos. A melhor vida em comum, em sociedade, é justamente essa, a que entende que os direitos e a liberdade devem ser entendidos como bem comum. E que a liberdade e os direitos de todos exigem a diferença e a contradição, sem exclusão. E sem a ideia de que a liberdade tem apenas um sentido e que esse sentido deve ser imposto a todos.

As direitas nunca gostaram particularmente das liberdades, nem dos direitos democráticos, excepto quando se sentem ameaçadas. As direitas são ciosas das liberdades dos seus correligionários, dos nomes de famílias ilustres, dos poderosos e dos religiosos conservadores. As esquerdas são atentas às liberdades e aos direitos dos seus camaradas, da sua classe social e dos seus intelectuais orgânicos, nunca das dos seus adversários.

Historicamente, os socialistas ocuparam um lugar singular. Entre todos, foram os que se preocuparam quase sempre com as liberdades de todos. Tentaram encontrar uma ponte entre liberais e jacobinos, entre mercado e Estado, entre maçonaria e Igreja. Até entre republicanos e monárquicos. O seu papel na democracia portuguesa não se define pelos seus contributos para a economia e o desenvolvimento, mas sim por este lugar singular, o de força charneira e de mediador.

Com a lei dos direitos digitais e as novas tentativas de controlar a expressão, as narrativas, o tom e a opinião, os socialistas estão a destruir esse lugar especial. Eles gostam de afirmar, com evidente marialvismo, que “não recebem de ninguém lições de democracia”. Mas é frase para esquecer. Qualquer democrata sério sabe que está sempre a receber lições de democracia e de liberdade. Verdade é que, com essa malfadada lei e com outros fenómenos convergentes, os socialistas estão a abrir um caminho sem regresso.

Já tivemos uma manifestação de dezenas de académicos, ou antes, de universitários que propuseram às autoridades que fossem criados mecanismos de monitorização do pensamento e da expressão. A pretexto de defender a verdade e a correcção das narrativas e dos valores, os autores reclamavam ciência e bondade, mas realmente convocavam a censura.

Já existem instituições europeias, financiadas pela UE, que zelam pela verdade e pela virtude, que se ocupam dos factos e dos discursos. Felizes de nós, europeus, que temos uma grande instituição, uma mãe zelosa, uma União que financia organismos que se ocupam da verdade, das narrativas, da desinformação e das falsas notícias. O Estado português colabora. O Governo e o Parlamento acrescentam mesmo mecanismos de controlo, com que criam um quadro de honra do comportamento.

Já temos uma lei aprovada por grande maioria com a qual as autoridades patrocinam instituições privadas e corporativas a fim de fazer com que tais aberrações monitorizem a expressão e o discurso público. Esta lei encontra-se agora em fase de improvável correcção, mas não de pura e simples revogação, que era o único método decente. Já há ideias absurdas que propõem instituições que distribuam selos de garantia e certificados de verdade, correcção e competência para avaliar os outros. O Governo e a maioria parlamentar não querem ser eles próprios a controlar: querem associar a esta tarefa execrável de delação e censura as instituições e organizações da sociedade civil. Partindo da ideia de que cada português é, como noutros tempos, um polícia e um inquisidor.

A completar este dispositivo de controlo, temos a pressão insuportável para o desenvolvimento, nas escolas, das disciplinas de formação moral. A ideia é, mais uma vez, a da criação de bons cidadãos, isto é, de difundir bons valores. Esta deriva não democrática e manipuladora é uma tentativa de regular a filosofia, o pensamento, a cultura, a moral e os valores das populações escolares. Entendem os seus autores que a escola é o instrumento de formação de espíritos, de aprendizagem e de convencimento dos valores nas artes, na cultura, na sexualidade, na religião, no civismo. O Santo Ofício, em seu tempo, também olhava com atenção para a blasfémia e a heresia. Também se ocupava das crenças indevidas e dos cismas.

Como é possível que os socialistas, em todo o caso a maioria dos dirigentes e deputados, se tenham deixado atrair pela volúpia da censura, da intoxicação e do controlo da expressão e do pensamento? Em toda esta história, à volta destes tristes acontecimentos, este é o facto mais surpreendente: o papel desempenhado pelos socialistas. Estes querem dar continuidade a uma frase atribuída ao rei liberal D. Pedro IV. Ao chegar ao largo de Mindelo, horas antes do desembarque, o monarca, dirigindo-se a Mouzinho da Silveira, terá dito: “Vamos lá dar a liberdade a estes Portugueses, quer eles queiram, quer não!”. É possível que seja verdade. É provável que seja uma invenção dos jacobinos que se ocupam da liberdade dos portugueses. Como pode ser uma anedota miguelista ou salazarista para aludir a um pretenso afecto dos portugueses pela autoridade.

Mas é, em todo o caso, o melhor retrato dos socialistas actualmente. Querem dar aos Portugueses a liberdade, o bom comportamento e a virtude. E querem ser o instrumento de luta contra a desinformação e a mentira. Ora, convém não esquecer: uma autoridade que se ocupa da mentira acaba por se ocupar da verdade. Uma entidade pública que vigia a desinformação acaba por criar a informação. Pela verdade e para nosso bem: o despotismo começa sempre aí.

Público, 24.7.2021

sábado, 10 de julho de 2021

Grande Angular - A ilusão educativa

 É uma das mais antigas e perenes ilusões: a escola tem o poder de formar as pessoas e transformar o mundo. Pelo que seria indispensável formar os jovens de hoje para serem os homens de amanhã. Com estes lugares-comuns na cabeça, há décadas que muita gente, políticos, educadores e outros profissionais querem reformar a escola para formar cidadãos. Dos Republicanos aos comunistas, passando por tecnocratas, anti-racistas, LGBTI, ambientalistas e outras variedades, todos partilham esta ilusão. Todos querem uma escola programática, que forme as elites, que garanta a igualdade entre todos, que seja a base da democracia e que ensine as pessoas a comportar-se como bons cidadãos. Todos ou quase todos querem que a escola substitua a família, os pais e os padres. Espera-se que a escola ensine as técnicas rudimentares de ler, escrever e contar, mas também as disciplinas de todas as ciências, artes e culturas, assim como, finalmente, as regras morais e políticas de vida.

Na verdade, quase todos querem uma escola programática que dê sentido à vida, uma escola com ideias e ideologia, uma escola feita para formar cidadãos, uma escola vocacionada para a formação integral do indivíduo, uma escola nacional e patriótica, uma escola que dê muito mais do que a instrução, uma escola que vá mais longe do que ler, escrever e contar. Querem uma escola que forme cidadãos virtuosos, solidários, bondosos, honestos e democratas.

Do mesmo modo, são muitos os que até hoje se exprimiram concretamente contra a escola neutra, a escola sem valores e a escola sem conteúdos de formação moral e política. É uma polémica conhecida. Curiosamente, os autoritários e os intolerantes exprimem-se contra a escola neutra. Desde sempre, as grandes correntes de pensamento, os movimentos políticos e os agrupamentos ideológicos se esforçam por propor uma escola que satisfaça os seus interesses particulares, disfarçados de interesses gerais e de bem comum. Os republicanos quiseram uma escola laica, pois claro, que afastasse a Igreja da educação. Os salazaristas lutaram contra a escola ateia e laica, defendiam a escola empenhada, nacionalista e católica. Salazar proibia a escola neutra e considerava que era ali, na escola com programa e causas, que se criavam os espíritos pátrios. Os democratas querem absolutamente que a escola ensine a democracia e forme cidadãos exemplares. Os socialistas combatem por uma escola para a cidadania e para a solidariedade. Os fascistas querem uma escola para a grei e para a nação, valores eternos. Os comunistas querem uma escola que seja um viveiro de valores proletários. Os verdes querem uma escola ecológica e amiga do ambiente. Outros esquerdistas querem uma escola empenhada em valores, no multiculturalismo e no combate ao racismo. Outros finalmente, nas esquerdas e por outras bandas, vêem hoje na escola a grande arma para a igualdade e o livre arbítrio na escolha do género.

Todos querem legitimar, através da escola, a sua ideologia, os seus interesses e os seus programas. Pretendem assim que a construção curricular siga os seus valores ideológicos. Tentam transformar a escola em fábricas do “homem novo”. Entendem que a escola seja o veículo para as suas ideologias e os seus programas. Assim é que identidade nacional, nação, religião, valores morais e espírito de classe estão frequentemente ligados aos projectos de políticas educativas.

Como é sabido, cada vez que surge problema importante para o qual é difícil encontrar respostas e soluções, há sempre alguém que, no canto da página, ao fundo da sala ou na primeira bancada se exprime com sabedoria secular e banal: “o importante é a educação”. E acrescenta o lugar comum: “tudo começa na escola, a escola desempenha um papel muito importante”.

Todos os regimes autoritários e partidos políticos intolerantes procuram criar uma escola com valores, com programas políticos e com ideologia. Até há democratas que esperam o mesmo. No passado, a religião e moral cristã, a nação, a pátria, a república laica e o socialismo libertador ocuparam sucessivamente as primeiras páginas dos programas e dos currículos. Recentemente, com o mesmo afinco obsessivo e a mesma esperança, outros valores surgiram: a cidadania, a democracia, a solidariedade, a tolerância, a ética republicana e a Europa. Actualmente, à luz das modas, novos valores se impõem: o anti-racismo, o género como construção e escolha, a ecologia, o ambiente e os direitos dos animais. Sem esquecer outras tarefas mais tecnocráticas que preenchem o caderno de encargos da escola contemporânea: a literacia financeira, a aptidão digital e o consumo.

A disciplina de cidadania, outra vez em debate público, serve para tudo, da Constituição ao sexo, passando pelas regras de trânsito. Ou ainda para, segundo o palavreado oficial, saúde, sexualidade, segurança rodoviária, empreendedorismo, voluntariado, igualdade de género, risco, direitos humanos, defesa, segurança, paz, educação financeira, educação intercultural, ambiente, Europa e consumidor… Ora, a escola contemporânea, com este programa, corre o risco de falhar todas as suas missões. As clássicas: escrever, ler e contar. As menos clássicas: desenvolver as artes e a cultura. As mais modernas: a competência profissional. E as moderníssimas: formar cidadãos exemplares.

A escola como berço da virtude é um velho mito totalitário. A escola não é nem deve ser considerada uma incubadora de cidadãos bem comportados. Verdade é que na escola se aprende tudo. Da regra de três ao imperativo categórico. Mas também o sexo, o tabaco, o álcool e o cannabis. Sem falar no surf e nos jogos de computador. Assim como cinema e poesia. Além de violência, futebol e trafulhice. Ou finalmente solidariedade e bondade. Na verdade, a escola é vida. Ponto final.

Como tal, a escola dá o que de melhor pode dar: ferramentas, informação, instrumentos e conhecimento. Com a colaboração das artes, das técnicas e da cultura. O resto pertence à família, à sociedade, às profissões, à televisão, às redes sociais, aos livros, aos partidos políticos, às associações, às igrejas, aos clubes, aos jornais, aos vizinhos e às autarquias. À escola o que é da escola. À vida o que é da vida.

Público, 10.7.2021

sábado, 3 de julho de 2021

Grande Angular - Sim, é verdade

O que mais choca, nas actuais polémicas sobre a avaliação dos regimes políticos portugueses, a República, a ditadura salazarista e a Democracia, é a falta de segurança dos democratas, sejam eles de esquerda, de centro ou de direita. Mas sobretudo dos socialistas, esquerdistas, comunistas e social-democratas. O que quer que se diga e possa parecer louvor ou mera neutralidade relativamente a um qualquer fenómeno histórico é imediatamente condenado na praça pública. Os seus autores são tratados de fascistas e vendidos. Ainda por cima, ignorantes e analfabetos, sendo que a designação de fascista é a mais importante. A recente controvérsia sobre as políticas económicas e sociais do antigo regime revelou bem a insegurança de tantos democratas, políticos ou académicos.

Gente sem força suficiente para acreditar na democracia, no regime das liberdades e da tolerância, fica hirta e arrepiada logo que uma afirmação sobre o Estado Novo ou a ditadura salazarista não for de mera condenação e simples insulto. Para esses frágeis democratas, estudar, sem preconceitos, os quarenta anos de ditadura é crime. Perceber por que aquele regime durou tantos anos, sem que seja apenas graças à tortura, é venal e cúmplice. Compreender as diversas fases do regime e verificar que, no universo da economia e das relações externas, houve um período de fecho e outro de abertura, é meio caminho andado para a complacência. Considerar que a adesão à ONU, a fundação da NATO e da EFTA e a adesão à OCDE foram importantes vitórias internacionais do regime é submissão às forças da ditadura. Na verdade, os vulneráveis e inseguros democratas que assim pensam consideram pura e simplesmente que o regime salazarista não deve ser estudado, deve ser condenado. Que tudo quanto aconteceu nas décadas de ditadura foi péssimo e deve ser denunciado. Que os que hoje têm uma atitude diferente são salazaristas ou mesmo fascistas. E sobretudo que todos os que com eles não concordam a propósito da política e das questões actuais, são da direita ou da extrema-direita, salazaristas e quase fascistas.

As proezas económicas e sociais do regime salazarista são reais, umas, duvidosas outras e inexistentes outras ainda. Todas elas ficam evidentemente ligadas à política daqueles tempos. Esta última incluía o facto de Portugal não ser um Estado de direito, a falta de democracia, a existência de polícia política e de censura, uma política colonial particularmente opressiva e uma concepção limitada e restritiva de direitos humanos. E é possível afirmar que esta política alimentou e acompanhou todas as políticas sociais e económicas, tanto as de conservação e imobilismo, como as de abertura e inovação; tanto as que, de início, ajudaram ou não contrariaram a estagnação da economia, como as que, mais tarde, contribuíram para o crescimento e o desenvolvimento.

Como também é possível confirmar, em traços grossos, a existência de algumas fases ou de uns tantos períodos da evolução económica e social com características diferentes. Uma longa primeira parte exibe taxas de crescimento medíocres, falta de inovação e investimento, estagnação económica e manutenção de muito pobres condições de vida tanto nos campos como nas cidades. Foram longos anos durante os quais muito teria sido possível, tanto na economia como na sociedade, mas que na realidade pouco foi efectuado e levado a cabo. Pobreza, analfabetismo, mortalidade infantil, esperança de vida, alimentação deficiente e subemprego revelavam condições sociais e de vida de muito especial dureza e atraso, perante as quais as autoridades, desinteressadas ou impotentes, capitularam.

Uma segunda parte revelou forças e energias até então insuspeitas. O crescimento económico foi real, com a ajuda da reorientação europeia da economia, do comércio externo, do investimento estrangeiro, da emigração, dos baixos salários atraentes para os investidores, do turismo, dos rendimentos coloniais e de outros factores. Mais de um milhão e meio de portugueses emigraram, o que aliviou a questão social, diminuiu o subemprego e trouxe enormes recursos por via das remessas. Foi uma “época de ouro” para a economia portuguesa. Até a guerra colonial, fragilidade maior do regime, contribuiu para o crescimento económico.

Sim, a economia portuguesa, medida pelo produto, pelo rendimento nacional e pelo produto por habitante, cresceu, na “década larga” de 1960 a 1974, a médias inéditas e não repetidas da ordem dos 6% a 7% por ano.

Sim, esta década foi a de maior crescimento económico que se conhece com algum rigor, talvez mesmo a de maior crescimento do produto por habitante da história do país.

Sim, no fim desta década, Portugal encontrava-se praticamente em pleno emprego, tanto no mundo rural como nas cidades, enquanto o principal problema de muitas empresas e de vários sectores produtivos era o de falta de força de trabalho, até porque faltavam homens que se encontravam na emigração ou nas guerras de África.

Sim, foi nesta altura que a indústria portuguesa mais cresceu na história do país, tendo havido anos em que esse crescimento anual ultrapassou os 15%.

Sim, nessa década foram dados os primeiros passos importantes no sentido de criar um primeiro e tímido embrião do Estado social, ou algo que se parecesse com isso, de modo que o número de beneficiários da segurança social e da caixa de pensões, assim como o de pensionistas, aumentou como nunca antes.

Sim, nessa década o analfabetismo infantil foi praticamente erradicado, apesar de o analfabetismo adulto se ter mantido a níveis únicos na Europa.

Sim, as condições de saúde da população começaram a melhorar de modo visível, apesar de muito lentamente e mau grado os indicadores sanitários estarem ainda muito longe dos verificados nos países europeus.

Em quase todos estes casos do universo social, o crescimento e os melhoramentos verificados após o 25 de Abril foram mais rápidos, mais justos, mais significativos e mais universais. O que não invalida o reconhecimento dos anos anteriores.

Intelectualmente medrosos, inseguros, descrentes da sua própria razão, necessitam estes políticos e estes académicos de apagar o resto do mundo para fazer valer o seu. Precisam de condenar às trevas exteriores todos os que não se reconhecem nas suas ladainhas. Só vivem felizes e só se sentem à vontade se puderem crescer num cemitério de ideias e de liberdade. Não pensam, excluem. Não argumentam, ditam. Não estudam, condenam.

Público, 3.7.2021