A morte de Otelo Saraiva de Carvalho desencadeou uma inesperada controvérsia na sociedade portuguesa. É herói ou não é herói? Merece ou não o “luto nacional”? Deve ou não ser recordado com um monumento?
Mais do que a personagem de Otelo, que é simples e pouco interessante, o que realmente surpreende é a reacção de tantos portugueses que ainda se revêem nesta figura e no percurso. Tristes os que se identificam com tão fracos heróis!
Depois de ter diligentemente participado, com honra e eficácia, em duas frentes da guerra colonial, Otelo insurge-se contra a ditadura. Graças aos seus talentos de organizador, assumiu as funções de “estratego” do golpe, isto é, das operações de Abril. Não foi “estratego” político, para o que não tinha conhecimentos. Mas tratou ao pormenor dos preparativos e da logística. Coordenou a criação do dispositivo militar. Comandou o desenrolar das operações que foram por si lideradas com indiscutível êxito. Sem violência física e sem ter derramado sangue, o que ficará, para sempre, a seu favor e para nosso bem. Se o golpe e a revolução tivessem gerado violência, ainda hoje teríamos um país muito diferente e pior.
Otelo merece consideração profissional. Com capacidade, serviu na guerra colonial em duas frentes, pelo que foi louvado e promovido. Também merece respeito político. Com inegável êxito, liderou as operações que derrubaram a ditadura. Também por isso foi louvado e promovido.
Não são dele a orientação política nem o programa, para o que não tinha sabedoria. Mas colocou o seu talento ao serviço da insurreição política. Merece aplauso, que recebeu em devido tempo. E que ainda hoje recebe, dado que os seus admiradores se contam por milhares. Mesmo altas autoridades, que não optaram pelo “luto nacional”, não deixaram de aparecer no velório.
Depois do 25 de Abril, Otelo desempenhou altas funções políticas e militares, sempre a favor da revolução, raramente a favor da democracia. Pertenceu a todos os órgãos revolucionários militares, liderou o COPCON, um autêntico quartel-general da revolução. Sob seu comando, com mandatos assinados por si e com o seu patrocínio, pessoas foram detidas, capturadas e batidas, contas bancárias foram congeladas, casas e empresas foram ocupadas. Otelo e o COPCON governaram, durante uns meses, Lisboa e grande parte do país, com terror e intimidação.
Otelo opôs-se ao voto nas eleições constituintes e aconselhou o voto em branco, contrariou a Assembleia Constituinte e patrocinou o mais sinistro dos planos políticos, o “Documento Guia da Aliança Povo MFA”, que a Assembleia do MFA aprovou e que se destinava a destruir qualquer hipótese de Estado de direito e de sistema democrático. Lutou contra os partidos democráticos e contra o “Grupo dos Nove”, intimidou o PS, o CDS e o PSD, competiu com o PCP, com o qual teve querelas. Dirigiu várias iniciativas revolucionárias, todas anti-democráticas, como as organizações do Poder Popular, os GDUP, a FUP e as FP-25.
Nunca defendeu eleições livres para a criação de poder legislativo, nunca lutou pelo Estado de direito, sempre atacou o regime parlamentar e o sistema democrático. Foi derrotado no 25 de Novembro pelas forças democráticas. Como foi derrotado por duas vezes que concorreu às eleições presidenciais. Contrariou todas as tentativas de criação de instituições representativas. Sem pensamento político próprio, pastoreou os grupos revolucionários que lhe batiam à porta e que ele alegremente apadrinhou.
Tendo sido derrotado e depois de afastado de qualquer função política ou militar de relevo, Otelo enveredou por uma carreira de conspiração e de organização de acções revolucionárias e terroristas. Apesar de condenado sem hesitações, foi amnistiado.
Se o critério for o da liberdade e da democracia, os portugueses devem-lhe pouco. Apenas lhe devem a organização do 25 de Abril, ponto final. Depois, exagerou nos seus desmandos, nas ameaças e nos atentados. Apesar disso, transformou-se num símbolo de Abril e da liberdade. É pena, pois foi o pior que Abril nos deu. E se Abril nos deu a liberdade e a democracia, foi apesar de Otelo, não graças a Otelo.
É infeliz notar que tantos políticos, intelectuais, académicos e jornalistas consideram Otelo o símbolo da liberdade e cultivam o mito de Otelo como construtor da democracia, quando ele nada fez por isso, bem pelo contrário, foi uma das suas piores ameaças.
Boa parte das esquerdas, sobretudo as esquerdas mais radicais, sempre teve um problema com a violência e o terrorismo. Se forem praticados “contra o capital”, contra o “imperialismo e o colonialismo”, contra “os ricos” e contra as “classes dominantes”, os actos violentos têm desculpa, são erros de passagem ou mesmo glórias inesquecíveis. Há esquerdas que nunca condenaram a violência, toda e qualquer violência. Há esquerdas que só depois de verem o bilhete de identidade é que condenam ou apoiam a violência. A simetria funciona também. As direitas sempre entenderam que a violência era necessária e bem-vinda contra os revolucionários e contra as esquerdas.
A violência e o terrorismo em África, no Próximo Oriente, na América Latina, mesmo nos EUA e em certos países europeus, não só não foram condenados, como foram justificados. As Torres gémeas de Nova Iorque foram festejadas por muitas esquerdas europeias. As Brigadas Vermelhas italianas, o Exercito Vermelho alemão, a ETA espanhola e o IRA irlandês acabaram quase sempre por ser louvados pela esquerda radical ou perdoados por esquerdas mais suaves. Apenas esquerdas mais moderadas souberam condenar sempre a violência e o terrorismo.
Cada vez que a as esquerdas são colocadas perante o absurdo dos seus louvores à violência de esquerda, respondem com brutalidade: mas as direitas também! E citam, para justificar os seus desmandos, Marcelino da Mata, Wiriyamu, as tropas portuguesas em Nabuangongo e na Baixa do Cassanje. Para já não falar dos assassinatos e das torturas de que a PIDE foi responsável. A fraqueza deste argumento é absoluta. Não há, como no tempo e nos escritos de Trotsky, uma moral “deles” e uma “nossa”.
A democracia pode desculpar os seus inimigos. Pode perdoar a violência e o terror. É discutível, mas percebe-se. Não pode é louvar os terroristas. O luto nacional não é apenas isso, luto. Nem só recordação. É também louvor. Louvar Otelo seria simplesmente aceitar a violência. Os democratas podem perdoar os seus inimigos. Mas não louvar.
Público, 31.7.2021