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"Com saudades do exílio”! Foi com esta dedicatória que o Eurico me ofereceu um exemplar do seu livro. Devo dizer, fiquei minutos parado a olhar para esta frase. Parece absurdo. Ou mentira. Ou romantismo barato. Não é uma coisa, nem outra, nem aqueloutra. É muito sério. Também já me aconteceu ter saudades do exílio!
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Esta frase obriga-nos a duas reflexões. A primeira: não estamos bem aqui; ou não estamos sempre bem; ou não estamos tão bem quanto imaginávamos há trinta anos. É, em parte, natural. Nunca estamos tão bem quanto gostaríamos. Mas também quer dizer que o nosso país não está bem. Depois de grandes mudanças, de desenvolvimentos notáveis, de melhoramentos indiscutíveis, vimos descobrindo, há dez ou quinze anos, que há esgotamento de energias, que persistem males na sociedade difíceis de resolver, como a demagogia, a corrupção, ou, simplesmente, noutro registo, o atraso e a ignorância.
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A segunda reflexão: os tempos de exílio, apesar das saudades, apesar das dificuldades, foram bons. Talvez não para toda a gente. Mas, para muitos, foram anos bons. Para mim, foram. Para o Eurico, foram. É verdade que nos sentíamos sempre diminuídos na condição de estrangeiro ou imigrante, nunca éramos realmente iguais em tudo a todos. Mas aprendemos, vimos, falámos e pensámos como nunca o teríamos feito em Portugal. Se eu voltasse atrás, sei hoje que poderia alterar ou trocar muito ou algo do que vivi. Mas o exílio, não! A ponto de ainda hoje, nos piores momentos da nossa vida colectiva, eu pensar e dizer que “se fosse mais novo, voltava a partir”! Pergunto-me se o Eurico não pensa a mesma coisa de vez em quando.
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Estas histórias do Eurico, aquelas que são mais propriamente sobre exilados políticos, têm um enorme mérito: não mostram o exilado como vítima nem como herói! Houve vítimas, houve pequenos heróis, por uma ou outra razão. Mas o pior, nestas e noutras coisas, é depois tirar partido, tentar ganhar reputações póstumas ou posteriores. Houve vítimas da repressão, da tortura e da prisão. Também houve vítimas da exploração e da xenofobia. Mas, falar disso tudo, mais tarde, com a intenção de se valorizar ou de obter recompensas, é detestável. Neste livro, Eurico nunca o faz. Olha para aqueles exilados políticos e emigrantes económicos com ternura e realismo, mas também com uma intensa ironia. Neles, procura a malandrice, o expediente, o acaso. Sem esquecer que a decisão de emigrar ou de se exilar tem, muitas vezes, outras circunstâncias: um erro, uma traição, um amor, a vontade de viver livre, a procura de melhor emprego ou um acaso. Naqueles tempos, para mim, normal era querer fugir, querer viver, querer conhecer. Estranho era ficar resignado, deixar-se abafar, contentar-se com a tristeza reinante.
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Este livro parece ser de memórias e de autobiografia, mas não é uma coisa nem outra. Apesar de sabermos que estão aqui memórias e pedaços de biografia.
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Estas histórias não são verdadeiras memórias, não tem nomes verdadeiros, nem de pessoas, nem de sítios. Não se sabe o que é ficção, especulação, real ou arranjado. De qualquer maneira, para algumas pessoas, são memórias “à la clef”, com uma espécie de código críptico só para uns. Como se fazia por vezes no século XIX. E raramente hoje. Algumas destas histórias, conheço-as no essencial, consigo colocar nomes e sítios onde estão os disfarces.
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A este propósito, não podemos deixar de, uma vez mais, nos queixarmos desta nossa sina que é a de termos poucas memórias, poucas biografias e poucas recordações ou autobiografias. É grande a pobreza de recordações em Portugal. Sinceramente, nunca soube exactamente porquê. Os portugueses têm vergonha do que foram? Mentiram e não querem reconhecer? Guardam os segredos e as vidas para a confissão católica? Têm medo de ferir outros? Não querem desgostar? Esperam sempre alguma coisa de outros?
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Sobre algumas das situações a que Eurico alude aqui (emigração, exílio, clandestinidade e guerra colonial), existe uma literatura paupérrima. Só agora, começaram a aparecer alguns livros sobre a guerra do Ultramar. Sobre a vida na emigração, ainda menos. Sobre a clandestinidade, quase nada. Sobre o exílio, igualmente. Parece que os portugueses têm medo da memória!
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Quanto ao livro. Quero realçar o estilo seco, enxuto, factual, sem pieguice. Com uma dualidade surpreendente. Nos temas mais urbanos, mais cosmopolitas, Eurico escreve como um urbano, um cosmopolita. Nos temas e situações mais populares, mais rústicos, Eurico consegue trazer até nós uma linguagem rústica, antiga, sem o fetichismo de alguns escritores useiros deste método, como Aquilino. E sem a pletora de arcaísmos e coloquialismos rústicos que, para muitos escritores, é uma tentação irresistível, mas que acaba quase sempre mal. Eurico evita esse deslize com sabedoria.
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Estas são histórias de um país pobre e abafado, da vontade de partir ou da necessidade de fugir. Por causa da guerra, da polícia, da liberdade, do dinheiro, dos empregos e dos amores.
Muitos dos que queriam viver tinham de partir. Sobretudo os que queriam escapar à sua condição de pobres, de ignorantes e de submissos.
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Este material poderia ser matéria-prima para um livro neo-realista, choramingas, mas, neste caso, não é. Entre o realismo seco e factual e uma enorme ternura contida, Eurico conta as suas histórias.
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Conheci Eurico há quase sessenta anos! Tantos! Aqui mesmo, em Vila Real. Ele é mais velho. Creio, aliás, que é a primeira vez que nos encontramos de novo em Vila Real, quase 50 anos depois!
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Sempre olhei para ele como olham os mais novos: para perceber, para aprender, para eventualmente copiar. No princípio, ele não me ligava nenhuma! Era mais velho, devia achar que eu era um puto provinciano.
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Ele ia para Lisboa. Ser ele estudante na capital aumentou a minha curiosidade. Queria saber dele, mas queria saber de Lisboa, da universidade, da capital, das raparigas, da intriga e da política. Quando vinha a férias a Vila Real, procurava-o. Bebíamos copos, falávamos. Passeávamos na Avenida, quando havia Avenida! Nessa altura, já me ligava. Parece que tinha prazer em ajudar-me a abrir os olhos.
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Cedo comecei a fazer perguntas sobre a política, o comunismo, o socialismo, a democracia. Falava-me como falam os mais velhos, com o sentimento de estar a ensinar, devagar, com cuidado, mas aberto.
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Uma altura houve mesmo em que o Governador Civil me chamou ao seu escritório e me avisou: “Andas de mais com o Eurico Figueiredo! Olha que ele não é boa companhia”! Foi quanto bastou para eu ver aumentar a minha curiosidade e o acompanhar ainda mais.
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Depois, encontrei-o em Coimbra, vinha ele quase deportado de Lisboa, impedido de continuar naquela universidade. Foi um ano difícil, o de 1962 para 1963. O governo fechou a Associação Académica. Fazíamos política e resistência como podíamos. Alturas houve em que dezenas de estudantes estavam presos. Foi um ano de chumbo, mais um.
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Ao fim desse ano, fugi eu para a Suíça. Poucos anos depois, chegava ele. Primeiro em Lausana, depois em Genebra. Dias depois de ele chegar, já estava metido em mil actividades, fundou um Secretariado dos Estudantes no exílio, organizou um encontro, criou uma organização, à frente da qual lhe sucedi uns anos depois.
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Em sessenta anos, houve períodos de grande intimidade, de actividades comuns e também de distância. Curiosamente, estive duas vezes no Parlamento, mas ele não estava. Ele esteve igualmente duas vezes, mas eu não estava. Mais desencontros. Mas tenho para mim que ele faz parte da minha vida. E, para isso, não há distâncias nem separações.
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Biblioteca Municipal de Vila Real, 25 de Junho de 2008