sábado, 27 de março de 2021

Grande Angular - Estado frágil de país vulnerável

A história das vacinas na Europa e no nosso país é um sinal dos tempos e dos caminhos que percorremos. Há um hiato entre Estado e União. Talvez um dia a transferência de poderes e de competências dos Estados nacionais para as instituições da União (comunitárias ou federais) esteja mais consumada, seja mais eficaz e não revele estes espaços vazios… Mas ainda não é verdade. Nem se sabe se um dia será. Como também não podemos prever que não haja recuos.

Há meses, acreditou-se que a força da União era finalmente superior à soma das forças dos Estados. Pensou-se que a cooperação europeia, pela primeira vez, em caso tão dramático e difícil, tinha levado a melhor sobre os “egoísmos” nacionais, termo que os virtuosos europeus tanto gostam de utilizar. Poucos meses depois, verificou-se o contrário. A força europeia era fragilidade. À autoridade moral e à força simbólica da União não correspondiam uma capacidade prática e uma agilidade operacional à altura dos acontecimentos. Mais uma vez se verifica que a entidade política europeia, carregada de reputação e prestígio, não tem poderes reais. Com um novo problema: no labirinto europeu, não se sabe onde está a responsabilidade. 

Por outro lado, verificou-se também que os interesses nacionais (os que marcam as eleições e os que definem as democracias…) acordaram e sobrepuseram-se à ilusão federal europeia. Cada país tem tentado aproveitar o máximo do que a União pode dar, mas depois segue o seu caminho e tenta encontrar soluções próprias. A falta de vacinas e a deficiente capacidade produtiva industrial alertaram os governos que recearam, justificadamente, a reacção dos seus eleitorados. As dificuldades de negociação com as poderosas organizações privadas (tanto farmacêuticas, como industriais e comerciais) reforçaram a ideia de que a Europa corre permanentemente o risco de se ver reduzida à sua condição de “profeta desarmado” ou de “fidalgo arruinado”. É forçoso reconhecer que perderam as nações e os Estados, mas a Europa também. Muito se tem feito para acudir, vacinar, tratar, prevenir e proteger. Com grande dispêndio e enorme esforço humano. Mas temos de admitir que o muito foi pouco e o enorme insuficiente.

Este caso da pandemia e das vacinas é revelador do que pode ser uma situação equivoca, de transição entre um passado que já não é e um futuro que ninguém sabe o que pode ser. Há um vazio institucional e constitucional. Há um equívoco. Há uma terra de ninguém, local onde todos os desastres são possíveis. O lento definhamento dos Estados nacionais não é compensado ou substituído por uma União forte, democrática e prestigiada. Ficar a meio do caminho é geralmente perigoso. Manter a rota errada não é menos. Recuar é impossível. Só restam as hipóteses de corrigir, alterar e reformar. 

Já não é a primeira vez que todos perdem, nações, Estados e Europa. A invasão do Iraque foi talvez uma dessas ocasiões. Mas eram tempos de guerra, pouco dados a clareza de visão, ainda por cima com a NATO e os Estados Unidos às costas. Desta vez, com as vacinas, não havia esses imponderáveis. E tudo parecia ter começado bem para a Cooperação europeia. Um papel para a Comissão, outro para o Parlamento e outro ainda para o Conselho. E a colaboração dos Estados nacionais parecia assegurada. Tudo parecia ou levava a crer que havia paz e entendimento entre Estados, União, indústria, serviços financeiros e de transportes, autoridades sanitárias… Parecia… Em poucos meses, chegámos ao estado actual em que percebemos que não era verdade e que perderam todos.

Será que estamos apenas diante da conjuntura excepcional, irrepetível, da pandemia? Será que, passada esta, a Europa e as suas nações retomarão os seus grandes projectos de relançamento económico, de competição científica e tecnológica com o resto do mundo, de atracção irresistível dos povos emigrantes e refugiados? Seria bom pensar assim. Mas seria também errado. A pandemia e as suas consequências sociais e económicas, mais do que trazer consigo novas crises, revelaram as existentes, incluindo as adormecidas. Mostraram a fragilidade crescente dos Estados e dos países, considerados individualmente, acentuaram a vulnerabilidade da construção europeia no seu conjunto.

Não se acredite que os Estados europeus sejam fortes, têm poder, usufruem de grande autoridade e como tal são reconhecidos pelos seus cidadãos. Os Estados europeus não são fortes, são pesados. Nas suas obediências, dividem-se entre os privilegiados dos sectores públicos e os mandantes da economia e das finanças. Em graus diversos, é verdade, mas há muito que perderam a autoridade da sua força independente dos predadores. Não se acredite, pois, que, deixada a pandemia para trás, os Estados e a sua federação retomarão, sem profundas reformas, os seus papéis serenos de liderança e orientação. Até porque o mundo voltou a mudar em poucos anos. Depois da desgraça de Trump, nunca mais a América será o que foi ou poderia ter sido para os europeus. Por outro lado, o novo papel da China no mundo, conjugado com a velha função da Rússia, deixou a Europa em piores condições e sobre terreno frágil.

Parece ser indispensável, por causa das questões económicas e científicas, reforçar o papel da União. E, por causa da política e da democracia, voltar a dar aos Estados nacionais uma função política de relevo. Mais difícil ainda, fortalecer a ameaçada segurança europeia, tanto global como nacionalmente. Parece simples, mas não é. Regressar ao nacionalismo é um verdadeiro suicídio. E não se crê que possa ser democrático. Enveredar às cegas, como até agora, pelo federalismo e pela destruição do Estado nacional, dá mau resultado. Como se vê. E também não parece vigorosamente democrático.

O Estado não é forte de mais. É fraco e pesado. E frágil. Só é forte nos obstáculos que cria. E para favorecer os seus. O Estado com autoridade será o que cria condições, abre caminhos, deixa viver, incentiva e estimula. É o Estado capaz de voltar a ter competência técnica e capacidade científica. É o Estado que não se deixa prender por interesses económicos ou financeiros, sindicais ou partidários, muito menos por empresas de publicidade, sondagens, consultoria, engenharia financeira ou comunicação. É o Estado que protege quem necessita, sem favorecer os seus.

Público, 27.3.2021

  

sábado, 20 de março de 2021

Grande Angular - Morrer bem

Pasme-se! Em plena pandemia, de confinamento em confinamento, entre mortos e infectados, com boas e más notícias sobre as vacinas, num raro clima de incerteza e fragilidade, os deputados dedicaram muitas das suas atenções, algum trabalho, uma boa reserva de energia e muita polémica para aprovar uma lei sobre a eutanásia e o suicídio medicamente assistido. Não havia tempo menos indicado, momento mais desajustado e oportunidade mais perversa do que esta. Eles não percebem o mal que fazem. Eles não entendem o mau exemplo que dão. Eles não se interessam pelos resultados morais de uma tal atitude de brutalidade chocante. É quase obsceno. Provocatório, de qualquer modo.

Um tema como este, da vida e da morte, que implica a liberdade individual, que põe em causa as escolhas pessoais, que altera as regras da justiça, que toca no fundo moral dos cidadãos, que atinge os sentimentos religiosos de muitos, que define os termos da compaixão, que obriga a uma reflexão profunda sobre a Constituição, que põe em causa a licitude de regras legais e que cria obrigações para as instituições, um tema como este, dizia, é discutido em estado de emergência e é votado quando se morre a mais! Eles não sabem o que fizeram. Eles não se dão conta das consequências dos seus gestos.

O Presidente da República, o Tribunal Constitucional e os partidos políticos tomaram as suas posições e deram andamento aos procedimentos legais, sem que se conheça ainda o pensamento de todos os intervenientes. Sabe-se, para já, que a questão constitucional da “inviolabilidade da vida humana” parece ter sido posta de lado e que tudo leva a crer que o Tribunal Constitucional não levante problemas a esse propósito, deixando assim crer que a eutanásia e o suicídio medicamente assistido serão admitidos. É pena que assim seja. A discussão sobre as diferenças entre eutanásia e suicídio assistido está longe de ter sido feita. A lei aprovada trata os dois actos como se fossem equivalentes, o que não é verdade. A lei estabelece a confusão deliberada de conceitos quando refere o gesto “praticado ou ajudado”… 

A eutanásia é um gesto praticado por outrem, voluntário ou não, a pedido ou não, activo ou passivo, mas exige ser de autoria de terceiro e pode não ter sido totalmente escolhido pelo próprio. O suicídio assistido implica escolha própria do gesto e do momento; exige decisão individual, livre e consciente; traduz uma opção lúcida e informada. O recurso a terceiro é instrumental. O momento decisivo depende do próprio.

A vida humana é inviolável, diz a Constituição. Ainda bem. É uma bela formulação e um admirável pensamento. Mas o suicídio não é uma violação da vida humana. Por isso não faz qualquer sentido penalizá-lo. O que deve ser despenalizado, para esclarecimento público, é a ajuda instrumental necessária ao gesto decisivo, da exclusiva responsabilidade do próprio, por mais pequena que seja a sua intervenção.

O valor da inviolabilidade da vida humana não é respeitado pela eutanásia, dado que alguém tem de agir contra a vida de outrem. O mesmo valor é respeitado pelo suicídio assistido, dado que ninguém atenta ou viola a vida de alguém. Ao contrário da eutanásia, o suicídio assistido não atenta contra a inviolabilidade da vida humana. Se assim fosse, teríamos de encarar a pena para tentativas de suicídio e os acidentes que põem em risco a vida do próprio e qualquer gesto ou infracção de que o próprio seja vítima. Quer dizer que teria a lei de prever castigos para quem corre riscos, quem tem acidentes, quem se fere ou danifica, quem tenta suicidar-se. No limite, o suicídio seria proibido e castigado.

A violação de uma vida humana pressupõe que a autoria seja externa, de outrem. Por isso a figura do suicídio assistido é diferente da eutanásia, mesmo nas suas formas mais benignas. O suicídio assistido tem de ter a decisão consciente da pessoa em causa, sobre o momento, o método, o fundo e a forma. E estes têm de depender de gesto ou acção do próprio. Como é sabido, há mil maneiras conhecidas de agir, de tudo preparar a fim de que o paciente possa tomar a decisão final. Se não for possível, se o paciente estiver inconsciente, se não for capaz de exprimir a sua vontade, se não tiver a capacidade de agir a fim de dar início ao procedimento terminal, se não for capaz de escolher o método e o momento e se não tiver lucidez e consciência para todas essas decisões e escolhas, então estamos perante um gesto que pode ser considerado violação da vida humana.

Vale a pena regular legalmente as condições que devem ser respeitadas pelos médicos a fim de “assistir”, isto é, de fornecer os meios e os métodos? Vale a pena regular o grau de sofrimento, a natureza da doença e outras circunstâncias segundo as quais é possível assistir a um suicídio? Sim, vale a pena. Até porque pode ficar testemunho escrito ou gravado. O próprio médico que assiste tem interesse em ser defendido por testemunho do paciente.

A inviolabilidade da vida humana é um valor que merece tanta protecção legal e constitucional quanto a liberdade individual, a auto-determinação e a autonomia pessoal. Por isso são condenáveis os métodos ou gestos que desviam a decisão para outra pessoa que não seja o sujeito. Se a decisão e o gesto são do próprio, merecem respeito e é criticável a legislação que os proíbe ou castiga. A decisão do próprio tem de ser consciente e expressa. Toda a problemática da prossecução e da interrupção de tratamentos tem séculos de discussão e experiência e não deve ser confundida com a prática do suicídio assistido. A deontologia da profissão médica e a experiência das Ordens e das sociedades científicas e clínicas são os critérios mais seguros para avaliar os benefícios, a eficácia, o fundamento e a utilidade dos tratamentos ou do encarniçamento. Tratar da vida e cuidar da morte são duas realidades diferentes, não deveriam ser tratadas da mesma maneira, nem com as mesmas regras.

A decisão da morte antecipada depende do paciente e só dele. Não compete ao médico nem aos serviços de saúde tomar decisões que devem ser do paciente. Por isso, merece respeito a legalização do suicídio assistido. Para quem a liberdade individual e a escolha consciente são os critérios essenciais, a decisão pessoal é o factor chave. Sem o que a eutanásia não deve ser legalizada.

Público, 20.3.2021

sábado, 13 de março de 2021

Grande Angular - Eles precisam do nosso apoio

O governo precisa do nosso apoio. Tem entre mãos uma das piores crises da história de Portugal. E não sabe muito bem lidar com ela. Habituado à preocupação com a imagem, treinado para a propaganda e obcecado com as relações públicas, tem revelado insegurança, alguma incompetência e excessiva flutuação de pontos de vista. Vai buscar dinheiro à Europa, mas sabe que não chega e que apenas poderá ajudar a resolver problemas passageiros. Precisa de investimento privado nacional e estrangeiro. Precisa de investimento público. Precisa de sensatez das oposições. Muitos governantes, dirigentes e técnicos quase deixaram de ter vida pessoal, estão exaustos e deram o seu melhor. Só que o melhor não chegou. Precisam de apoio da população. Era bom que o merecessem, mas que precisam de apoio, ninguém duvida.

O Presidente precisa do nosso apoio. O que poderia ser, entre todos, o mandato mais alegre, festivo e afectuoso, transforma-se num pesadelo de fogos florestais e pandemia. De acordo com a Constituição e as leis, é ele a autoridade máxima do estado de urgência. Mas está sozinho. Sem partido. Sem organização. Sem movimento. Sem poder real. Sem meios nem instrumentos. Mas com enorme responsabilidade. E se tem muita influência, necessita de apoio para a transformar em poder real e em soluções práticas. Mas também necessita de apoio para evitar uma alteração dos poderes constitucionais e não se deixar cair em tentações.

O Parlamento precisa do nosso apoio. Está perdido em discussões aparentemente úteis, mas sem efeitos reais no combate à crise. Tem-se distraído com manobras de diversão destinadas a dar prova de vida. Cometeu a obscenidade de aprovar uma lei da eutanásia em plena crise, com milhares de mortos e dezenas de milhares de doentes. O Parlamento precisa de apoio para que esta sua lei insensata seja considerada inconstitucional. Ou que, pelo menos, distinga entre eutanásia e suicídio assistido ou entre vontade própria e decisão exterior. Os deputados precisam de apoio para transformarem o seu papel em acção eficaz, em impulso dado à sociedade e em representação efectiva e humanizada dos povos que os elegeram. Os deputados precisam do nosso apoio para perceberem que, se o perigo vem de fora, a fragilidade da democracia vem de dentro.

Os partidos de esquerda precisam do nosso apoio. Parecem perdidos em conjecturas, lutas e rivalidades. Especialistas em combate, estão pouco calhados para a construção. Acham que precisam do fascismo para sobreviver, que precisam do nazismo para ter uma justificação e que precisam das ditaduras de extrema-direita para terem uma razão de ser. Não precisam de nada disso. Precisam do nosso apoio para se sentirem mais seguros, mais dedicados aos problemas e aos povos e menos preocupados consigo próprios.

Os partidos da direita precisam do nosso apoio. Para perceberem que a sua vulnerabilidade pode ser fatal. Que a sua incompetência é dramática. Que é também da sua incapacidade que pode vir mal à democracia.

Os médicos e os enfermeiros precisam do nosso apoio. Tanto no SNS como nos hospitais privados, estão a viver o ano de uma vida, a crise de um século. Correndo eles próprios todos os riscos, chegaram à exaustão e ao fim das suas energias. E mesmo assim continuam. Já não é só profissão. Já não é só dever. Mais do que gratidão, precisam do nosso reconhecimento. Precisam do nosso apoio para continuar, por mais um ano, a dar tudo o que têm e não têm.

Os cuidadores de velhos e os voluntários que distribuem comida quente precisam do nosso apoio. Sem eles, nos lares ou a domicílio, nas ruas e nos bairros mais pobres, muitos teriam morrido de doença, fome e solidão. Precisam do nosso apoio porque nada ou quase nada receberam, a não ser mais trabalho e mais dor.

Os polícias, os militares, os guardas, os bombeiros e os condutores de ambulâncias precisam do nosso apoio. Sem ajudas logísticas suficientes, sem organização à altura, sem meios de urgência, com equipamento desadequado, sem treinos para as emergências, sem reconhecimento colectivo e público, todos eles precisam do nosso apoio. Devemos-lhes a segurança das nossas vidas.

Os juízes e os funcionários judiciais precisam do nosso apoio. Sem meios, com a falta de audiências presenciais, sem poder recorrer a julgamentos públicos, vítimas da desconfiança gerada por estranhas nomeações e sob o anátema dos obscuros e tortuosos grandes processos políticos, financeiros e de corrupção política, precisam do nosso apoio para prosseguir a sua actividade cada vez mais silenciosa e invisível, mas absolutamente indispensável.

Professores, docentes e educadores precisam do nosso apoio. Com ou sem alunos, com e sem aulas presenciais, com e sem computadores e sistemas, estes profissionais viveram um ano inesquecível de sofrimento e exaustão, de riscos e incertezas. São eles a quem se entregam os maiores valores das nossas vidas, os filhos. São eles os primeiros de quem nos queixamos quando a falta de meios, a desordem legislativa, a paranóia regulamentar, a enxurrada de directivas, a obsessão dos despachos normativos e a turbulência mental de um ministério desnorteado perturbam a nossa vida colectiva.

Os empregados dos supermercados e das mercearias, as brigadas de limpeza urbana, os funcionários das empresas de entrega a domicílio de toda a espécie de bens e os carteiros precisam do nosso apoio. São os empregados e trabalhadores dos sectores mais úteis e indispensáveis à nossa vida, nestas circunstâncias de confinamento. Precisam do nosso apoio porque foram também eles que nos mantiveram vivos durante este ano. Porque vamos continuar a precisar deles no próximo.

Os trabalhadores de milhares de empresas em perigo precisam do nosso apoio. Não só os trabalhadores, como também os patrões e os empresários. É indispensável que a economia não saia desta crise apenas com despojos de guerra e restos exauridos de organizações condenadas. Quase não há capital, quase não há esperança e quase não há energia para recomeçar. Precisam do nosso apoio sob todas as formas, públicas e privadas, com e sem reembolso, pois sem eles é o futuro que perdemos.

Desempregados, despedidos, em lay off, suspensos, à procura de emprego e pobres, todos precisam do nosso apoio. Quanto mais não seja para sobreviver. Precisam de apoios directos em dinheiro. De ajudas de todas a espécie, para sobreviver, para educar os filhos e para relançar obras e trabalhos depois das vacinas. Não é só a economia que necessita de dinheiro e de circulação, é a sociedade que necessita de compaixão.

Público, 13.3.2021

sábado, 6 de março de 2021

Grande Angular - As direitas

Tal como com as esquerdas, também há várias direitas. A democrática e a não democrática. No essencial, o que as separa é a democracia. Para uma, mesmo valores para si importantes como a propriedade, a religião e a nação, devem articular-se com a democracia e esta deve respeitar a liberdade. Para a outra, democracia e a liberdade individual são princípios residuais ou dispensáveis.

Interessante e perturbador é o facto de certas diferenças entre tendências de direita reproduzirem diferenças entre esquerdas e direitas. A direita trata da pobreza com a caridade, mas mais humanidade e cuidado. A esquerda trata da pobreza com as leis e a igualdade, mas sem humanidade. A esquerda diz que a cultura e as ideias são suas. Nem sempre é verdade, mas há aí qualquer coisa. São bens mais acessíveis. A direita é mais de interesses. São bens mais seguros.

Não é a autoridade que distingue a esquerda da direita. Mas sim as duas esquerdas, uma da outra, e as duas direitas, uma da outra. A firme autoridade do Estado, com essa designação ou a de Partido, é apanágio dos radicais, da direita ou da esquerda. Ao patrocinado da propriedade e do sangue, próprio da direita, a esquerda opõe o nepotismo de partido. A esquerda defende a igualdade, a direita e eficiência.

Entre os grandes valores e princípios da direita, contam-se a nação, a ordem, a família, a desigualdade natural e a hierarquia social. Como se sabe, tudo isto separa direita de esquerda. Além disso, há valores que podem ou não ser respeitados pelas direitas: a religião, Deus e o trabalho.

Estas crenças fazem com que as direitas sejam complacentes com a pobreza, o nepotismo, o nacionalismo e a xenofobia. Nenhum destes atributos é absolutamente exclusivo das direitas, mas são aqui mais frequentes. E podem ter semelhanças com as esquerdas radicais, igualmente praticantes do nepotismo, do nacionalismo e de formas de xenofobia.

A liberdade individual e o Estado são outros factores que separam as direitas. Para uns, o liberalismo económico, político e cultural é de rigor. Para outros, a autoridade do Estado vem à cabeça.

Nas últimas décadas da monarquia constitucional, durante a República e ao longo da ditadura do Estado Novo, nunca a direita preferiu o liberalismo, nunca a direita deixou de venerar o Estado e o seu papel na economia e na administração. Depois do 25 de Abril, todos os motivos eram bons para reforçar o papel do Estado, cujo peso se justificava para lutar contra o comunismo. Mas, quando se tratou de reprivatizar as empresas, uma espécie de vento liberal parecia soprar na política.

Em Portugal, a direita liberal está extraordinariamente ausente. Sempre esteve. As razões são muitas, desde o papel do Estado, passando pelo analfabetismo e pelo catolicismo, até à pobreza e à desigualdade. Se procurarmos, durante os últimos séculos, rastos de liberalismo, encontraremos pouca coisa. E mesmo os “liberais” do século XIX, os das “guerras liberais”, como ficaram conhecidas as guerras civis, não brilhavam pelo seu culto das ideias liberais.

Assim é que a direita salazarista se gabou de ser anti-liberal e anti-democrática, com simpatias pelos Alemães e sem qualquer apego pelos Aliados. Podia não ser nazi ou fascista de gema, mas desprezava as democracias anglo-saxónicas. O nacionalismo da direita impedia-a de acarinhar a ideia de ver alemães, italianos e espanhóis em Portugal. Mas eram estes, seguramente, os preferidos no grande conflito mundial.

Em Portugal, onde tudo parece diferente, uma parte importante da direita diz-se social-democrata. O que é pelo menos estranho. E a democracia cristã garante que não é bem isso, mas sim social cristã. E a extrema-direita tem vergonha de dizer que é salazarista. O mais curioso é o facto de o PSD se dizer social-democrata. O essencial da direita anda por ali. Mas há por lá uns tantos social-democratas e uns poucos liberais. São genuínos, mas não fazem com que o partido o seja. Aquele partido tem de tudo, mas tem sido historicamente um travão ao crescimento da extrema-direita, mas esse papel, tão benfazejo, parece agora esgotar-se. O PSD está hoje mais disponível a conviver ou coexistir com a extrema-direita do que a barrar-lhe o caminho.

Também a religião tem papel importante na direita em geral e na portuguesa em particular. Até há pouco tempo, quando a Igreja era, sem hesitação, maioritária ou essencialmente de direita, o panorama estava claro. Jacobinos e republicanos à esquerda, católicos e monárquicos à direita. Mas a Igreja mudou. É hoje fácil encontrar, no seu seio, grupos, pensamentos e valores de esquerda. Em todo o caso, inspirações que a aproximam do mundo do trabalho e dos sindicatos, assim como do universo dos costumes mais permissivos, solidários e igualitários.

Estrangeiros, imigrantes e minorias sempre foram questão importante. Não é verdade que as direitas sejam claramente xenófobas e racistas, e que as esquerdas sejam solidárias e inclusivas, para utilizar termos tão em moda. Há xenofobia e racismo nos dois lados. Como há em cada lado políticas favoráveis e desfavoráveis à imigração. Mas também é verdade que é nas direitas que se encontram mais sensibilidades patrióticas, mais crentes na portugalidade, mais defensores da civilização cristã, mais oposição às políticas de abertura aos imigrantes e aos refugiados. Como é também nas direitas que é mais vincada a atitude favorável a uma integração “forte” dos imigrantes e estrangeiros, isto é, devem vir poucos e os que vêm devem adoptar valores e costumes portugueses. O “multiculturalismo” existe em todo o lado, mas é mais próprio das esquerdas e menos apreciado nas direitas.

Há ainda a questão do mérito. Uma das mais estranhas. Na verdade, tempo houve em que o mérito se opunha à família, ao sangue e à herança. Era o mérito de cada um que podia criar condições de igualdade de oportunidades. O mérito era um valor da democracia e até da esquerda. Curiosamente, o valor do mérito tem vindo a diminuir para a esquerda. E não se sabe se a crescer para a direita. Para as empresas, talvez. Para a política e a sociedade, menos.

A direita prefere o mercado, a concorrência e a iniciativa privada, mas recorre ao Estado sempre que precisa. O problema é que precisa muitas vezes. A direita é hoje menos rígida diante de certos valores, como sejam a permissividade sexual, a liberdade de género, a igualdade de sexos, o aborto, o divórcio ou a união de facto. Uma coisa é certa: o futuro da democracia depende tanto da esquerda como da direita. Se ambas souberem ser democráticas. E conseguirem derrotar os seus inimigos.

Público, 6.3.2021