Em cinquenta anos, Portugal mudou. De modo radical. Nestes últimos trinta, também. De modo irreversível. Apesar disso, Portugal continua. É esse o segredo das nações. Tudo muda, mas o essencial fica. Ou antes, muito do que é essencial mantém-se. A língua, a história, a memória. Até quando, ninguém sabe. Mas de uma coisa podemos ter a certeza: é a de que, um dia, Portugal também acaba. Como nos ensinou, além de outros, Jared Diamond: os países podem sucumbir. Se é o que os povos querem, muito bem. Se não é o que querem, aí já podemos ter problemas.
Estes últimos dias trouxeram várias estatísticas. É uma colheita de fim de ano. A começar pelos primeiros dados, provisórios, do Último Censo. Se dez anos (intervalo entre censos) não chegam para grandes conclusões, uma perspectiva alargada dá indicações preciosas. Que sublinham a afirmação anterior: Portugal mudou muito.
Desde os anos sessenta do século anterior, o número de Portugueses aumentou dois milhões, mas agora, desde há vinte anos, já perdeu mais de duzentos mil. E só não perdeu mais, porque chegaram umas centenas de milhares de imigrantes, em maioria vindos de países não europeus, Brasil e África à cabeça. A população imigrante estrangeira residente em Portugal rondará hoje, incertamente por causa dos ilegais, os 5% a 6% do total. Eram menos de meio por cento há quarenta anos e 3% há vinte. Apesar disso, Portugal continua. Mudou de cor, está a mudar de língua, de gastronomia, de roupa, de deuses e de costumes, mas continua. Até onde, até quando, não se sabe.
O envelhecimento da população é a realidade mais importante de toda esta evolução. Os velhos já foram cerca de um quarto dos jovens, mas são hoje quase o dobro. Os que têm mais de 65 anos eram há pouco tempo 8% da população, são hoje 24%. Os pensionistas e reformados eram 120 000 há meio século, são hoje perto de 4 milhões. Em percentagem da população adulta, os pensionistas eram 2%, são hoje mais de 40%. Por cada idoso, havia 8 activos, hoje não chegam a 3. Os jovens com menos de 15 anos eram um terço do total, são hoje apenas 12%.
Os nascimentos já foram mais de duzentos mil por ano, são agora perto de oitenta mil. Aquela que era provavelmente a mais alta taxa de natalidade da Europa é hoje talvez a mais baixa, seguramente uma das mais baixas. Os nascimentos e os filhos ditos “fora do casamento” eram há três ou quatro décadas menos de 10%, são hoje quase 60%, isto é, a maior parte dos nascimentos pertence a essa categoria.
O número de casamentos reduz-se todos os anos de modo impressionante, sendo que os casamentos civis são grande maioria, pelo menos 70%. O casamento religioso, provavelmente católico, é uma raridade. Como é sabido, até 1974, por causa da política e da Concordata, quase não havia divórcios. Hoje, o seu número aproxima-se de 60% dos casamentos.
As pessoas a viverem sozinhas (na estatística chamam-lhe “famílias unipessoais” ou “agregados de uma só pessoa”) já foram cerca de 10% da população, constituem hoje um quarto (25%).
A posição das mulheres na sociedade conheceu mudanças profundas nestas décadas. Ainda faltará muito para se atingir uma relativa igualdade, dizem alguns, com razão. Mas o que já ocorreu, em tão pouco tempo, foi colossal. A não ser no sacerdócio católico, já não há profissões ou estatutos reservados aos homens, incluindo as forças armadas, as polícias, a magistratura e a tauromaquia. As mulheres são a maioria na Administração Pública, nas escolas, nos hospitais, na universidade, entre os licenciados e doutorados anualmente (e quase no corpo docente do ensino superior). Médicos e enfermeiros, advogados e juízes são, em maioria, mulheres. Diferenças existem, e grandes, a favor dos homens, nos níveis de salários, nos quadros superiores das empresas privadas, nas instâncias superiores da política e em áreas de reserva de poder, como sejam os oficias das Forças Armadas, o Supremo Tribunal de Justiça e os órgãos superiores do Estado.
Os sectores de actividade dos residentes também mudaram neste meio século. Em resumo, os 45% da agricultura são hoje menos de 5%. Os quase 40% da indústria são menos de um quarto (24%). Com uma particularidade que convém assinalar: ao contrário de quase todos os países europeus, Portugal nunca teve uma população maioritariamente industrial. Passou directamente do sector primário (agricultura) para o terciário (serviços).
O universo da educação é um dos que regista mais mudanças. Os 40% de analfabetos dos anos 1960 são agora talvez 5%. Os Portugueses chegaram à literacia com cem a duzentos anos de atraso relativamente aos países europeus, naquela que é talvez a mais persistente chaga da história nacional. Finalmente, com a excepção de alguns idosos, a totalidade da população frequenta a escola.
A demografia do sistema de ensino é curiosa. Na verdade, por causa das quebras de natalidade, o número de portugueses a frequentar o ensino básico é menor do que era há cinquenta anos. Mas nos graus de ensino seguintes, a explosão foi absolutamente fenomenal. Os alunos do secundário eram dez mil, são hoje quatrocentos mil! E os do superior, cerca de 25.000 em 1960, são hoje mais de 410.000. Hoje, cerca de 20% dos residentes têm um curso superior, quando, há meio século, eram menos de 1%.
O que está a acontecer na sociedade portuguesa é evidente e inelutável: uma mudança profunda. O grande problema consiste em saber o que se pretende, ou o que se espera, com essa mudança. Assim como onde se quer chegar, sabendo que nunca se chega a um termo. Mas a verdade é que forças enormes estão a deslocar o edifício nacional, já em curso de alteração. Para além das técnicas, essas forças são conhecidas. A globalização e a perda de referências nacionais. O desaparecimento do Estado nacional. A democratização igualitária. O “Inverno” demográfico. As migrações. A miscigenação étnica e cultural. O turismo e as viagens. A destruição da produção industrial e similar, substituída pelos serviços.
Os políticos, as autoridades, os dirigentes económicos e sociais interessam-se pelo presente, pelo futuro imediato e pelo previsível. Mas todos os dias se tomam decisões invisíveis que vão marcar o destino. O que é melhor para a liberdade, a democracia e o bem-estar? O que é melhor para a felicidade dos portugueses? O quadro nacional preservado ou a sociedade global europeia e universal? A referência histórica e a memória ou a mutação e o eterno recomeço? Pode uma população não escolher concretamente o seu futuro. É verdade. É pena, pois serão outros a escolher.
Público, 18.12.2021