O mais provável é que Marcelo Rebelo de Sousa tenha razão. O seu veto ao programa de habitação do Governo e do Parlamento, isto é, do PS, justifica-se plenamente. Segundo a maior parte dos comentários independentes e das associações interessadas, para já não falar de todas as oposições, de esquerda ou direita, as propostas do Governo são insuficientes, erradas, demagógicas, desnecessárias e gravosas. Os técnicos e especialistas que se têm exprimido e não pertencem à esfera governamental são unânimes: criticam e condenam as propostas feitas. Ninguém as considera à altura dos problemas e da crise actual, quase toda a gente garante que a situação ficaria ainda pior. Quem sabe garante que as intenções governamentais integram e prolongam os erros e as deficiências dos últimos governos que ajudaram a consolidar a crise actual.
Já que pode fazê-lo, o Presidente vetou tudo. Não por motivos constitucionais, jurídicos ou institucionais, mas por razões políticas e programáticas. Não sendo absolutamente inédito, o facto é novo e merece observação. A actuação do Presidente deve ser vista com cuidado, até pelo que implica de novidade ou de impulso inovador. Além do tradicional, o Presidente parece agora desempenhar vários papéis. O de fiscal da acção política, assim como o de provedor do cidadão. Coloca-se como co-legislador, função curiosa e interessante. Assume-se como responsável pelas políticas públicas, em grau e de feição nunca antes atingidos. Assim é que o regime continuará semipresidencialista, mas já não é o mesmo. Além de que esta é uma via sem regresso: será difícil que este Presidente ou os futuros reduzam a sua área de competência e intervenção.
O Presidente da República desempenhou na Ucrânia, com garbo e competência, a sua função de representação do Estado. Fê-lo política, cultural e afectuosamente, com brilho e distinção. Mas ultrapassou evidentemente as tradições de cerimónia. Dentro das margens toleradas pela Constituição, foi um verdadeiro chefe de Estado e chefe da política externa, tendo superado, nesta questão ucraniana, os limites semânticos e formais até hoje determinados pelo governo e pelo Primeiro Ministro. Tal como foram expressos pelo Presidente, o conteúdo e o grau de envolvimento do país responsabilizam o Estado e todos os órgãos de soberania como nunca antes. Não é crível que, depois deste ensaio, o Presidente ou outros presidentes futuros aceitem diminuir as suas responsabilidades e os seus poderes. É possível que desta maneira termine ou diminua a patética exibição da dualidade de representação do Estado tantas vezes observada.
Assim é que o semipresidencialismo português conhecerá novas formas e diferentes feições. Não é seguro que seja um progresso. Não há provas da superioridade, em Portugal, de qualquer das formas, parlamentar, presidencialista e ou semipresidencialista. Dado que se trata de uma história curta e recente, não temos outras experiências em democracia. Certo é que há quem prefira uma ou outras das formas conhecidas. Por boas e pelas más razões. Mas é verdade que os eventuais conflitos entre órgãos de soberania, os chamados conflitos institucionais, que são também conflitos entre pessoas e entre opções políticas, resultam deste nosso sistema semipresidencialista.
Estamos a assistir a uma mudança do regime. O semipresidencialismo é uma espécie de ocapi: bicho esquisito, tem de burro e de cavalo, de girafa e de zebra. Restringe os poderes do presidente, mas não faz dele um adorno democrático. Modera e limita a representatividade do parlamento, reduzindo por vezes esta instituição a um plano secundário. Reforça e reduz, ao mesmo tempo, os poderes e as responsabilidades do governo. Concebido em tempos difíceis, à saída de uma revolução e com o fim de evitar outra, receando o cesarismo e a intenção sidonista, com um carinho dúplice e não confessado pela primeira República e pelo Estado Novo, o semipresidencialismo português é uma espécie híbrida de menor dos males e de maior denominador comum. Àquelas fontes inspiradoras, os nossos constituintes acrescentaram uma picante influência francesa. O resultado é o que temos, nem carne nem peixe. Com prejuízo para a democracia parlamentar.
Vivemos tempos de revisão. Já se percebeu que não haverá nada de jeito, a não ser, eventualmente, uma reforma secundária, com pouco significado e alguma demagogia. Se houver revisão, será um exercício fútil de acrescentos e remendos, não de tentativa de reformar e rever.
Pense-se, por exemplo, no mais urgente, no mais grave: a reforma da Justiça, a necessitar adequação constitucional. Nada acontecerá. Reflicta-se ainda nos dois mais graves entraves à democracia parlamentar que são o sistema eleitoral e o semipresidencialismo. Podemos ter a certeza de que não teremos novidades nestas áreas. Acrescente-se o facto de hoje se poder ser ministro sem ser deputado. Ou que os partidos decretam a disciplina de voto com tranquilidade sem que haja sequer uma pequena revolta. Se o regime evolui, como se disse, é para não ser revisto.
Estamos a escolher, por inércia e tradição, uma via de mudança de regime não explicita e não discutida. À margem da querela jurídica, interminável e estéril, o que está a acontecer é o estabelecimento, por parte do Presidente da República, de uma prática política, de um hábito de intervenção presidencial programática, doutrinária, de contrapeso, de fiscalização política e social e de colaboração legislativa, não apenas constitucional e jurídica. Esta mudança é quase imperceptível, mas lá que existe…
É verdade que muito depende das personalidades dos presidentes. Cada novo presidente acrescenta. Veja-se a França, por exemplo. Ao longo de quase um século, assistimos a várias mudanças do regime, o que não é exactamente a mesma coisa que mudança de regime. Com personalidades tão diferentes, nenhum presidente pôs realmente em causa o semipresidencialismo gaulista.
Estas mudanças operam-se diante de nós. Pode parecer estranho, mas é assim. Estamos habituados a pensar sempre em mudanças radicais de regime. Mais ou menos revolucionárias, umas vezes violentas, outras impostas por forças exteriores. Por dentro, pacificamente, gradualmente, não são casos muito frequentes, mas também não são raros. Em certo sentido, os regimes são como as pessoas ou as nações. Mudam, mas ficam as mesmas. Não são iguais, são diferentes, mas são os mesmos regimes. Como as mesmas nações.
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Público, 26.8.2023