sábado, 27 de novembro de 2021

Grande Angular - Quanto pior… pior!

Foram anos de medíocre crescimento económico. De endividamento acelerado. E de bancarrota oficial. São já dois de pandemia que causou sofrimento, feriu o tecido social e perturbou os sistemas colectivos. Foram muitos de corrupção enraizada, de inoperância da justiça e de captura dos bens públicos. A política, a economia, a banca, a Administração Pública e a Justiça deram todas as oportunidades aos bandidos e assaltantes. Nestes vinte anos, Portugal e os portugueses não souberam aproveitar as oportunidades, explorar as aberturas comerciais, beneficiar dos fundos europeus, atrair investidores, punir os infractores e melhorar a sorte dos pobres. Talvez não seja possível dizer que está tudo pior, não é verdade. Mas pouco, muito pouco está melhor. Nestes anos, têm reinado a mediocridade, a mediania e a estagnação. Parece que os portugueses adoptaram a estranha noção de que progresso não é melhorar, é não piorar.

Posta à prova em singulares circunstâncias, a saúde pública é um bom exemplo. Depois de um excepcional esforço de médicos, enfermeiros, auxiliares, autarcas, técnicos, funcionários, militares e investigadores, será sempre necessário, um dia, avaliar, saber se o que foi feito está certo, se houve erros e se era possível fazer melhor. Uma coisa é certa: parece que cumpriram, com honra, o seu dever, fizeram mais do que deviam e se lhes pedia. O problema que sobra é o do SNS e de todo o sistema de saúde pública. Parece que o SNS está de rastos. Se assim é, todos os alarmes devem estar activos: corremos o risco de perder o que de melhor temos.

Quase tudo o resto, muito do que é essencial está em risco e sob ameaça. De desorganização. De falta de pessoal qualificado. De penúria financeira. De profundo cansaço. O endividamento público agrava-se. A educação não melhora. O investimento privado está muito longe do que deveria ou poderia ser. A justiça é o mais doloroso retrato da impotência.

Para fazer frente a esta situação, há meios. Poucos, sobretudo europeus, mas alguns existem. Pessoas também, pelo menos por enquanto, apesar de termos agora vivido a segunda mais grave crise de emigração do século. Instituições também, apesar de definhadas por políticas de favoritismo. Empresas ainda, apesar de algumas das maiores e das melhores terem sido praticamente destruídas. Falta saber quem pode e quem deve.

Nestas situações históricas difíceis, procuramos sempre quem possa fazer melhor, quem seja capaz de inverter o plano inclinado e com que meios lutar contra a mediania. Por isso, olhamos para os partidos políticos. Em democracia, o dever deles é esse mesmo, lutar contra a mediocridade e pelo melhoramento. Ainda por cima em vésperas de eleições. Olhamos à volta e o que vemos é inquietante. Parece que os partidos fazem parte da crise, em vez de a combater.

O PS vive a sua crise de poder a mais, com fracturas internas difíceis de remediar. Aquele que poderia ser o principal centro de recuperação económica e social e o primeiro responsável por uma racionalidade política actualizada, está em vias de procurar o enriquecimento sem justa causa. Sem talento para a recuperação económica, polarizado na despesa pública, sem capacidade para atrair investimentos e mercados, este partido inventa todos os dias causas menores e adversários inexistentes. Quer ganhar as próximas eleições essencialmente com a mediocridade dos outros. Isto é, ganhar com o mal dos outros, não com o seu bem. Está disponível para tudo, desde que lhe dêem votos e poderes. Do mercado ao planeamento soviético, do privilégio para as elites à luta contra a desigualdade, é um verdadeiro partido espargata.

O PSD é um dos casos mais interessantes da história partidária portuguesa das últimas décadas. Foi o que melhor se colou à sociedade, às classes, às comunidades, aos grupos de interesses e às crenças. É o mais plural e diversificado de todos. A sua vasta riqueza política permitiu-lhe todas as querelas e todas as barafundas. Várias vezes se fez e refez. Não se poupa a nenhuma trapalhada. Desta feita, parece irreversível. A campanha interna não tem sentido nem programa. É talvez o momento da sua história em que mais perto se encontra de uma profunda clivagem. São barões contra barões, transviados sem causa. Entre uma maioria impossível e uma oposição ineficaz.

O Bloco de Esquerda prepara-se acidamente para uma má jornada. Perdeu a mão, a negociação com o governo saiu-lhe mal. Não soube avaliar a sua força. Ou antes, não percebeu a sua fraqueza. O seu papel de reserva ideológica da jovem burguesia urbana e de agitador cultural de esquerda parece estar esgotado. Não fora o seu predomínio indiscutível na comunicação social e já teria organizado exéquias. As perspectivas eleitorais são péssimas.

O PCP vive momentos de terrível crise de consciência e existência. Colaborou pela primeira vez com a direita social-democrata e com a burguesia democrática, mas as coisas não correram bem. Quase não teve vantagens, a não ser as de uma vaga reputação de bom comportamento, mas com os danos de uma experiência frustrada. As previsões eleitorais são altamente reservadas.

O CDS prepara cuidadosamente o seu funeral. É difícil perceber todas as razões doutrinárias, políticas, sociais e pessoais que conduziram o partido a esta situação estranha. As facções lutam por nada. São duelos sem donzela.

O PAN Entrou em zonas de baixios e sarilhos. Por definição, é partido destinado a enriquecer uma margem. E a manter uma pressão contra a crueldade e, apesar do nome, a desumanidade. O que quer dizer que a sua dimensão eleitoral não é o seu trunfo mais importante. Mas, não sem surpresa, surge como se tivesse sido infectado pelos desastres contemporâneos que tanto condenou nos outros.

O Chega vem abandonando o seu ímpeto revolucionário. Pretende jogar o jogo e elabora um programa, o que é contrário ao impulso justiceiro. Dedica-se à intriga própria dos sistemas democráticos. Quer ter uma fatia do bolo, tempo de antena, minutos de porta-voz, local de recepção, vez nas audiências, parceria nos debates, notícias nos telejornais e posição nas listas do protocolo. Talvez deixe de ser marginal. Se assim for, a boa notícia é que deixa de ser revolucionário. A má notícia é que pode aumentar a fragmentação da política. As hipóteses eleitorais apresentam-se muito incertas.

A IL é um doce mistério. Não sabemos, não se sabe realmente o que quer. Nem o que vai fazer. Será que eles sabem?

A lanterna de Diógenes faz falta. O ponto de apoio e a alavanca de Arquimedes também.

Público, 27.11.2021

sábado, 20 de novembro de 2021

Grande Angular - Maiorias

O mais importante é a política. O próximo governo terá de tentar aumentar o investimento público e privado, atrair investidores e iniciar uma nova era de crescimento e desenvolvimento. E terá também de associar essas políticas económicas a um esforço de redução das desigualdades e de aumento dos rendimentos dos portugueses, sobretudo dos que trabalham. Será ainda necessário assegurar um clima de confiança e reformar a Administração, sobretudo a da Justiça. O próximo governo pode ter a certeza de que limitar a actividade e a iniciativa privada será a sua ruína. Sua e de todos nós. Mas também saberá que tem de reforçar a acção do Estado em muitas áreas sociais. Quem fizer o próximo governo sabe já que vai ter, como raramente na história recente, um enorme conflito entre liberdade e igualdade, entre rigor e despesa, entre dívida e desenvolvimento. E também entre Estado e sociedade civil.

O que precede é de tal modo claro que se tornou necessário e imperativo de interesse nacional formar um governo de maioria parlamentar, de estabilidade de políticas, de cooperação entre partidos e de partilha de responsabilidades. O que quer dizer governo de maioria absoluta de um partido ou governo de maioria parlamentar de coligação pré-eleitoral ou de aliança pós-eleitoral.

Estas evidências, dificilmente contestáveis, são rejeitadas pelos preconceitos habituais contra as maiorias absolutas e contra as coligações e as alianças. 

Todos os partidos sonham com o poder e com uma maioria absoluta, mas nunca ou dizem. Não querem parecer ambiciosos, nem que se imagine que só pensam no poder. Não querem “dar parte de fracos” e ter de justificar, depois das eleições, que não obtiveram a almejada maioria absoluta.

Deveríamos ter hábitos de realizar alianças ou coligações. Seria claro e promissor. Saberíamos o que nos espera. Em cinquenta anos, tivemos poucas. A AD (Aliança Democrática), a APU (Aliança Povo Unido), a CDU (Coligação Democrática Unida) e a FRS (Frente Republicana e Socialista) são talvez os melhores exemplos. PAF (Portugal à Frente) e as coligações entre o PSD e o CDS ou PS e CDS também devem ser incluídas. O Bloco Central foi uma aliança pós-eleitoral entre o PS e o PSD, com partilha de governo. Esta coisa em nome de aliança e que se designa vulgarmente como Geringonça sem partilha de governo é outro exemplo. Alianças e coligações parecem muitas, mas na verdade são poucas, de curta duração e pouco êxito. 

Houve maiorias absolutas de um só partido (do PSD de Cavaco Silva e do PS de José Sócrates) ou de coligações (da AD, com Sá Carneiro e Pinto Balsemão, do PS e do CDS, com Mário Soares, do PSD e do CDS, com Durão Barroso e Santana Lopes e do PAF, com Passos Coelho). Gostemos ou não, foram maiorias parlamentares que fizeram história. Os governos minoritários foram mais breves, poucos terminaram bem. Se fizermos um balanço, logo veremos que há de tudo, bem e mal, com qualquer forma de governo, com ou sem maioria parlamentar. Mas também verificamos que esta última é condição essencial para as mais importantes reformas constitucionais, legislativas e políticas levadas a cabo. Nesse mesmo balanço, depressa verificamos que houve tanta corrupção em governos de um partido, como nos de alianças e coligações. Assim como houve vícios equivalentes em governos de maioria ou minoritários.

Impressionante é a má reputação da maioria absoluta. Os mais interessados (os principais partidos) têm vergonha. Os menos interessados (os pequenos partidos) detestam-na, pois perdem a capacidade de negociação e chantagem. Curioso é o facto de grande parte da opinião pública não gostar de maioria absoluta. Parece que prefere as intrigas.

Uma coligação de direita é rapidamente designada como ameaça fascista, pelo menos autoritária. O Bloco central foi apodado de bloco de negócios e alfobre de corrupção. A aliança das esquerdas, além de antecâmara do comunismo, é olhada com horror. As negociações e alianças pós-eleitorais são oportunistas e traidoras. As coligações pré-eleitorais são sinal de fraqueza. A verdade é que alguns dos mais importantes instrumentos da democracia (a negociação, a aliança, a cooperação) têm entre nós mau nome.

Entre os dirigentes partidários, há uma verdadeira fobia das maiorias de aliança. Cooperar e partilhar não têm muita saída. A Constituição nada faz para promover governos de maioria parlamentar. Consagra aliás mecanismos que favorecem a tentação minoritária. Por exemplo, não exige que o programa de governo seja aprovado. Não prevê sequer que a composição de um governo tenha o voto favorável dos deputados. Alturas houve em que se tentou inventar um mecanismo estranhíssimo e bizantino, de origem alemã, chamado “moção de censura construtiva”, que obrigaria o parlamento a só votar uma censura ao governo se tivesse preparado uma solução alternativa. O que parece uma condição favorável à maioria não passa, afinal, de uma protecção aos governos de minoria.

Na verdade, há, na política portuguesa, estranhas particularidades. Não se percebe muito bem porque nasceram. Mas têm existência e influenciam directamente os comportamentos políticos. Seja os dos cidadãos, seja os dos partidos políticos.

Há uma espécie de culto da minoria e dos arranjos. A Constituição não obriga a que os ministros vão a votos, muito menos o governo. Depois de formado, se não houver moção de censura nem voto de confiança, o governo minoritário fica.

Os partidos não dizem que querem uma maioria absoluta. Mesmo os que só sonham com isso, o PS e o PSD em particular, não têm hábito nem coragem de o afirmar. Receiam ter de dizer, depois das eleições, que não conseguiram.

Com excepções, os partidos procuram fugir às coligações e alianças pré-eleitorais. Consideram que tal é fraqueza.

Os partidos, os cientistas políticos, os académicos, os comentadores e até os jornalistas, em maioria, tudo fazem para proteger os governos minoritários e para sublinhar os riscos de corrupção dos governos de maioria. É dominante o sentimento de que os governos maioritários são tendencialmente autoritários.

As próximas eleições poderiam trazer algumas boas notícias, a começar pela maioria absoluta parlamentar. De um só partido. De uma coligação pré-eleitoral que a obtenha. Ou uma aliança formal pós-eleitoral que a consagre. Se assim não for, esta dissolução e estas eleições antecipadas ficarão no rol das inutilidades. Um desperdício!

Público, 20.11.2021

sábado, 13 de novembro de 2021

Grande Angular - Acreditar em si próprio

 As surpresas políticas e eleitorais resultam muitas vezes de um estranho, mas frequente, fenómeno: acreditar em si próprio, crer em tudo o que lhe interessa e convém, aceitar como boa toda a informação que os seus amigos, profissionais, empregados, agentes, admiradores e correligionários repetem todos os dias. Nos jornais, nos canais de televisão, nas estações de rádio, nas revistas e nos cafés ou nos salões: há hoje uma verdade dominante, um espírito do dia, uma voz comum. Verdade ou fantasia é indiferente.

Acreditar em si próprio, nesta acepção, é muito mais do que confiar nas suas virtudes e na sua determinação. É sobretudo acreditar no que os seus admiradores, seguidores e dependentes dizem de si. Ler deliciado, nos jornais, os seus boatos e as suas patranhas, pode ser um exercício de narcisismo interessante, mas o problema é que depressa se torna em vício e rapidamente se acredita no que se inventou.

Nos gabinetes dos governantes ou dos altos funcionários da Administração, são muitas as centenas de encarregados de relações com a imprensa, de porta-vozes e de responsáveis por relações públicas que todos os dias, com empenho, às vezes com competência, se desdobram em informações, contactos e disseminação da informação. 

Além destas estruturas directas de divulgação, importa contar as dezenas ou centenas de agências de comunicação que todos dias preenchem os canais de informação, os anúncios, a publicidade paga, as informações não pagas e as “newsletters” que crescem por todo o lado.

Finalmente, há os profissionais “plantados”, genuínos especialistas de informação e divulgação colocados em jornais, serviços de informação, canais e estações, onde acabam por fazer carreira. É verdade que alguns contrariam o efeito Pigmaleão e se tornam independentes ou oficiais de outros mestres. Mas muitos ficam fiéis a quem lhes deu entrada e função.

Os governantes encantam-se com os noticiários das oito, os debates das dez, os jornais de todas as horas, os online de sempre. Com algumas excepções, poucas, a realidade virtual é, para o governo e os socialistas, a realidade verdadeira. Como foi, até há pouco tempo, para o Bloco e o PCP. Para estes dois, agora, a fantasia é outra. Mas ainda fantasia.

É mesmo muito interessante ver como perdem e se perdem os que acreditam nas suas próprias fantasias. Não é imediato, pode demorar, sobretudo se existe um forte controlo da informação, por autoridade, ou uma grande influência na comunicação. Mas, quando a fantasia se torna visível, a queda é radical.

Marcelo Caetano foi seguramente um bom exemplo da crença, não em si próprio, que era reduzida, mas na realidade que os seus amigos criavam. Eram os primórdios da desinformação. Salazar, antes dele, não necessitava de políticas de informação ou disseminação, bastavam-lhe as polícias, a censura, as represálias, as nomeações e as ameaças. Céptico, Salazar acreditava em si, não na sua realidade. Enquanto Marcelo Caetano, conhecedor da sua fragilidade, não acreditava em si, mas na realidade que os seus sequazes criavam.

O Movimento das Forças Armadas (MFA) e o Partido Comunista acreditaram piamente no seu triunfo e na vitória de revolução. Tiveram uma das maiores e mais imprevistas derrotas da história politica eleitoral portuguesa. Em 1974 e 1975, os jornais e a televisão traziam-nos todos os dias uma realidade fantástica, feita de revolução e ilhas socialistas, de conquistas e avanços, de seguidores e apoiantes. Lia-se com apreensão que as greves contra os privados se sucediam. Demissões e ocupação de casas, de explorações agrícolas e de empresas eram às centenas por semana. O saneamento de fascistas, informadores, reaccionários, capitalistas e outros contra-revolucionários progredia heroicamente todos os dias. Tudo, sempre, apoiado por multidões. As eleições de 1975 foram o golpe de misericórdia nas fantasias revolucionárias. 

A derrota de Freitas do Amaral, nas eleições presidenciais de 1986, foi a todos os títulos inesperada. Viviam-se já tempos de Cavaco Silva e do PSD. As sondagens e os sinais eram indiscutíveis. E, no entanto…

A derrota de Cavaco Silva, na presidencial de 1996, depois de dez anos como primeiro-ministro e de duas maiorias absolutas, surpreendeu toda a gente, a começar pelo próprio, que tinha enorme confiança em si e na sua realidade.

Os socialistas do Porto jamais pensaram que, em 2002, após mais de dez anos de poder municipal incontestado, perderiam a câmara para um recém-chegado Rui Rio. Nem mais tarde para um neófito Rui Moreira. Aos socialistas de Lisboa nunca ocorreu pensar que, em 2021, os socialistas de Fernando Medina pudessem ser sequer contestados, quanto mais derrotados.

Verdade é que a fantasia é a ultima a morrer. Vivemos, há uns anos, tempos de crença. Os socialistas de António Costa estão absolutamente convencidos de que a realidade que vêem todos os dias nos jornais e nas televisões é verdadeira. Esquecem-se do simples facto de que foram eles que lá colocaram grande parte dos dados e das informações. Que parecem tanto mais verdade quanto as alternativas não existem. O que o PSD, o CDS e o Chega afirmam não tem sustento nem merece confiança. O que o Bloco e o PCP garantem é do domínio do irreal. O que faz com que o Governo e o PS não necessitem de ser rigorosos, nem coerentes, muito menos verdadeiros. O governo e os Socialistas são incapazes de provar o que, sem pestanejar, afirmam sobre o nível de vida dos portugueses (a subir, dizem…), sobre a pobreza em Portugal (a descer…), sobre o emprego (a dilatar…), sobre o investimento privado nacional e estrangeiro (a crescer…), sobre o êxito escolar (a aumentar…) e sobre os cuidados de saúde (a melhorar…). Nas suas melhores fantasias, aumenta o investimento público e privado na economia, na cultura e na ciência. E da dívida nem se fala. Nem da mediocridade do desenvolvimento das duas décadas do século XXI.

O governo é incapaz de criticar o que há de mais negativo na realidade, a não ser que possa dizer que a culpa é dos governos anteriores. Como os socialistas gostam de dizer, desde o inefável Sócrates, a realidade socialista é uma narrativa confirmada pela mais poderosa organização de comunicação desde há muitas décadas.

Como a vida política se resume cada vez mais à intriga e ao processo, ao adjectivo e ao fútil, quase nada de essencial faz parte dos debates actuais. Vai ser uma campanha dura. Nem sequer vamos ter um duelo de fantasias.

Público, 13.11.2021

sábado, 6 de novembro de 2021

Grande Angular - O grande sarilho

 Discutir prazos, perder tempo e perder-se com processos legais e outros, não é inédito. Em Portugal, acontece quase sempre. As audiências desnecessárias, as reuniões para cumprir calendário, as questões do recenseamento, os prazos e os recursos, as exigências da campanha e a regulamentação adjectiva, são as regras em Portugal. Sempre foi assim. Sempre afligiu.

É verdade que a democracia é, em grande parte, uma questão processual. Isto é, o respeito pelos processos estabelecidos e acordados, institucionais e duráveis, é o respeito pela democracia. Mas também não é menos certo que, com frequência, o legislador se compraz em criar processos burocráticos com os quais se pretende dar garantias de igualdade democrática, mas que na verdade são mais “regras do proprietário”. Os próximos meses, até termos orçamento, primeiro pretexto para a presente dissolução, serão uma boa ilustração destes processos democráticos que defendem os actuais senhorios.

Há quem diga que “da próxima vez, espera-se que já tenhamos corrigido…”, sem que nunca se mude e melhore o lado processual que os Portugueses adoram. Desde que se percebe que tem de haver eleições, desde que se fazem sentir os efeitos de um orçamento reprovado ou de uma dissolução anunciada, começam a contar os dias, as semanas e os meses, até encontrar um momento de estabilidade, de trabalho, de resultados e de cuidado com o povo! Há países em que poucas semanas bastam para ter novo governo em exercício. Portugal não é um deles. Passam-se meses até haver parlamento e governo. E muitos mais até haver novo orçamento. E ainda mais para que a maior parte dos ministros saiba o que está ali a fazer. Nada de grave. Nada de excepcional. É a democracia a funcionar.

Apesar dos lugares comuns incansavelmente repetidos, a verdade é que cada vez mais se vê e sente a crise dos partidos e da democracia. Que não é só portuguesa, é europeia. Facto que não alivia, antes agrava. Uma parte do problema consiste em identificar a crise. Uns dirão que é dos partidos, mas não da democracia. Outros dizem que é sobretudo desta, não daqueles. E há finalmente os que entendem, com mais verosimilhança, que estamos perante uma crise dos dois, da democracia e dos partidos. 

Antecipar eleições não é muito raro, nem grave. É a democracia. É frequente. Acontece em Portugal e noutros países. É o sistema político a funcionar.

Dissolver o Parlamento não é excepcional, nem dramático. Acontece. É a democracia a funcionar.

Perder agora numerosos meses com processos, prazos, avisos, conferências e recursos, não é novo, é o hábito em Portugal. É a nossa democracia a funcionar.

As divergências entre partidos, a dificuldade em chegar a acordo ou convergência e a impossibilidade de abdicar de pontos de vista, para poder chegar a uma base sólida de entendimento, são frequentes em Portugal. É mesmo quase a regra, é a nossa democracia a funcionar.

A gravidade do momento e dos últimos anos, a pandemia, as hipóteses de novo surto de contágio, a crise financeira e as probabilidades de um novo resgate financeiro não são suficientes para mudar os maus hábitos, não bastam para que os partidos entendam que devem mudar de comportamento e encontrar novas soluções: nada de novo, é a nossa democracia a funcionar.

À democracia portuguesa falta maturidade para que os seus protagonistas, partidos e instituições, percebam que a discussão, a negociação e o entendimento, além de serem necessários, são benéficos. Chegar a um acordo, elaborar um contrato, subscrever uma plataforma ou assinar um tratado podem ser virtudes e obras de arte políticas. São eventualmente actos de inteligência e sabedoria. Para já não dizer que são gestos de benefício para as populações.

Entre nós, as negociações e os acordos são considerados cedências. Os fracos receiam os acordos, os fortes desprezam-nos. O bairrismo da luta de classes, a rivalidade chauvinista e o orgulho marialva levam a melhor sobre a discussão e a convergência. Estas últimas são mesmo transformadas em defeitos graves, quando deveriam ser vitórias da razão.

Chegámos assim a este interregno longo e processual, de fingimento burocrático disfarçado de democracia, durante o qual se prepara o novo governo. Sem esquecer que estes episódios nos deixaram um sarilho: a escolha no dia das eleições. Isto é, o voto!

O PCP merece ser batido. Prefere, acima de tudo, tornar difícil a democracia, a Europa e a recuperação económica. Receia aflitivamente ficar amarrado ao PS e, a exemplo de quase todos os PC do mundo, desaparecer. Hesita entre morrer mudando de natureza ou morrer sem nada mudar.

O Bloco merece ser punido. Jogou mal e perdeu. Ficou apavorado. Teme perder o que tanto custou a ganhar, um eleitorado demasiado grande para as suas qualidades e as suas capacidades. Convenceu-se de que a esquerda do PS era a sua aliada. Ainda não percebeu que a sua aparente superioridade é uma inferioridade.

O PS merece ser castigado. Mudou de propósito, primeiro queria acordo orçamental, depois queria eleições. Sonha agitadamente com maioria absoluta. Na ausência de adversários à altura, convenceu-se da sua força e do seu saber. O seu governo aguentou mas não cumpriu. Nem desenvolveu. Um belo exemplo de enriquecimento sem justa causa.

O PSD merece ser ignorado. Perde-se à deriva, desperdiça talentos e experiência, vive em êxtase permanente, não tem autoridade, perdeu crenças e convicções, não tinha eira, agora não tem beira. Querer tudo, do corporativismo à social-democracia, do Estado à sociedade liberal, era a sua riqueza. Não querer nada é a sua pobreza.

O CDS merece ser esquecido. Deixou definitivamente de perceber a sua missão, já não sabe qual é o seu lugar, perdeu o sentido de posição e delapidou a herança. Não é protagonista, nem figurante. Nunca conseguiu sequer aproximar-se do que de mais importante tinha a fazer: trazer a democracia cristã para Portugal.

O CHEGA merece ser desprezado. Vive do nada. Mestre na agitação empolada, apraz-se no seu vazio, que transformou em virtude. Percebeu que a sua força residia no pavor alheio, no receio infundado com que os outros partidos olham para si. Não adianta. É tempo perdido.

É pena que não seja matematicamente possível que todos percam.

Público, 6.11.2021