sábado, 30 de outubro de 2021

Grande Angular - Os perigos do vazio

A realização de eleições antecipadas é evidentemente a mais útil, menos prejudicial e mais adequada solução para os problemas dos tempos que vivemos. Ou antes, não se trata de uma solução, mas de um caminho. Que nem todos pretendem. Já há pressões e alusões, sobretudo por parte dos que derrubaram o governo (nomeadamente o Bloco e o PCP), no sentido de encontrar vias de escape: segundo orçamento, governo minoritário, a prazo, por duodécimos, etc. Nunca aos portugueses faltou a imaginação para o artificial excêntrico e a catástrofe inteligente!

Apesar de inevitáveis, a verdade é que o derrube do governo e a dissolução do Parlamento foram gestos inúteis e nefastos. Provocaram instabilidade e desgaste político interno. Criaram perplexidade e receio internacional. Perturbam o funcionamento da economia, aumentam as carências sociais, dificultam os serviços de educação e de saúde e atrasam as respostas aos mais urgentes problemas do emprego, do investimento público e privado e da luta contra a corrupção. Em tempos de grandes dificuldades decorrentes da pandemia, do nosso endividamento e da crise internacional de abastecimentos, pior não se poderia inventar! Em vez de as fortalecer, enfraquecem-se as instituições. Mas, depois da recusa do orçamento, forçada pela esquerda, desejada pela direita e não enjeitada pelos socialistas, não há outra solução razoável. E todos, infelizmente, partilham responsabilidades.

que falhou com esta dissolução e com este período estranho de coligação disfarçada e de aliança implícita foi, em primeiro lugar, a crença numa solução de esquerda, isto é, das esquerdas. Apesar de pouco recomendável, juntar todas as esquerdas, considerando a democracia e a liberdade como secundários, ainda é o desejo de alguns. Também falhou a esperança de criar um duelo entre esquerda e direita. Como falharam os projectos seja de federar a esquerda, desejo longínquo do PS, seja de submeter os socialistas, esperança dos seus quase aliados. Também não vingou a expectativa de reduzir a extrema-esquerda do PCP e do Bloco a entidades facultativas, anexas ou dependentes do PS.

Foi igualmente defraudada a hipótese de uma grande federação de direita e de centro-direita. Inibida, pelo menos por agora, ficou também a fé num grande Centro político, moderado, socialista da variante social-democrata, liberal e democrata-cristão nas franjas. Entrámos assim num período em que a política portuguesa e o seu centro de gravidade se encontram por definir e redesenhar. Quer isto dizer que os portugueses têm agora de escolher entre dois princípios: o do afrontamento e o da agregação.

O princípio do conflito parece ter falhado. Dado que falhou a federação das esquerdas, também se tornou inviável o confronto clássico entre esquerda e direita. Outros conflitos radicais parecem igualmente afastados ou, pelo menos, incapazes de orientar o futuro político. Por fraqueza do trabalho e por debilidade do capital, a luta entre capital e trabalho parece distante das perspectivas mais próximas de nós. Outro conflito possível, entre Europa e nacionalismo, não vinga nem alimenta um projecto de futuro. A luta entre democracia e não democracia também não parece ter muitos adeptos: à esquerda e à direita, o Bloco, o PCP e o Chega não são suficientes para ocupar os papéis cruciais da vida política nacional. Outros conflitos tradicionais, como os da religião versus laicismo, ou da República contra monarquia, estão de tal modo longe da actualidade que não servem para perturbar, muito menos para reorganizar o sistema e a vida política. A bipolarização, sonho de tantos políticos portugueses, é um desejo impossível.

O princípio alternativo, o de agregação ou de união, que também pode ser de convergência ou de aliança, encara actualmente dificuldades. A federação das esquerdas parece impossível. A federação das direitas também. O crescimento da extrema-direita, da direita nacionalista ou da direita populista é muito improvável. Parece que a união só seria viável ao centro.

Mas o centro da vida política nacional está vazio. À espera… De quem o ocupe, pois claro. Ou de quem o liquide, em caso de conflito radical. Os portugueses têm em geral uma atitude marialva e sectária relativamente às soluções de centro. “Bloco central” ou “Centrão” são expressões malditas na política e no comentário nacionais. Na Academia, é de bom-tom afirmar que o Centro é um Centro de interesses e de corrupção. Entre intelectuais, o Centro, por bruto e plebeu, é desprezado. É pena que assim seja, dado que as soluções “de centro” (na forma ou no conteúdo) têm sido benéficas e salvadoras. Mas é assim! O bairrismo fanático leva sempre a melhor, sobretudo em tempos de eleições. 

Mesmo antes de ser uma hipótese ou um tema real em discussão, já há, na direita, no CDS e no PSD, quem recuse liminarmente o bloco central. O mesmo na esquerda, seja entre os irascíveis comunistas e bloquistas, seja entre os moderados socialistas. Toda a gente contra o centro! A ponto de se verem transformados em virtudes os mais básicos defeitos da política: o sectarismo e o fanatismo. É de tal modo arreigada esta ideia que se chega a pensar que foram as experiências de bloco central as que mais fomentaram a corrupção. Ora, a verdade é bem diferente: foram os governos de um só partido à direita ou de um só partido à esquerda que mais corromperam, que mais se deixaram corromper, que mais negócios ilícitos promoveram e que mais usaram de favoritismo e nepotismo!

Vivemos um momento particularmente interessante, mas também arriscado, em que dois grandes princípios de organização da vida política, o do conflito e o da agregação, se confrontam, não sendo previsível o resultado. Em todas as sociedades em todos os tempos, há sempre conflito e união, há sempre antagonismo e aliança. O problema interessante é o das proporções ou das doses de cada um. Isto é, o império do conflito sobre a união ou do antagonismo sobre a aliança. Sem um princípio de reorganização da vida política, há um evidente risco de deriva, de fragmentação excessiva e de desordem pública. E certamente de estagnação económica e de carência social. E também há momentos em que nenhum dos dois princípios prevalece. Parece ser o caso da actualidade em Portugal.

Há gente a mais à direita. Há gente a mais à esquerda. E o centro está vazio. Mas é aqui que estão as soluções. Em paz, claro.

 

Público, 30.10.2021

sábado, 23 de outubro de 2021

Grande Angular - Estratégias

 Já houve outras modas. Foram os Planos, Nacionais ou Integrados. Sem falar nos de Fomento, invenção portuguesa para fugir à má fama dos planos soviéticos. Os planos mantiveram-se ao longo do tempo, mas hoje estão em perda de importância. Vieram depois os Programas e os Projectos. E finalmente os Observatórios. Criaram-se para tudo, desigualdades, violência, crime, droga, justiça, família, cultura… Há cerca de uma década, contavam-se 85 Observatórios (nacionais, regionais, municipais e sectoriais), geralmente recheados de amigos. Os resultados desta incansável actividade são por vezes interessantes, mas em maioria são medíocres. Os Observatórios dedicam-se à propaganda, mais do que à observação.

Agora, são as Estratégias! A complexidade da vida social, a preocupação em dar a entender que as autoridades têm ideias e a obsessão com a aparência fizeram com que os governos desenvolvessem esta lucrativa actividade: a da elaboração de estratégias. Estas têm todas as vantagens. Parecem inteligentes e competentes. Recorrem a numerosas contribuições disciplinares. Prometem mundos sem responsabilidades práticas. Conseguem calar as reclamações. Sugerem que o destino está sob controlo. Ocupam muita gente a elaborar, escrever e reunir. Permitem a contratação de amigos, familiares, agências de comunicação e empresas de consultoria. Assim é que, para quase todos os problemas nacionais, há estratégias. Pode mesmo dizer-se que a grande estratégia consiste em… elaborar estratégias!

Umas têm meia dúzia de páginas, outras centenas. Com gráficos ou texto. Imagens ou links. Organigramas e calendários. Coligem informação e criam emprego. Saber se as estratégias são eficazes, se são compreendidas, se contentam os destinatários… esses são outros problemas. Saber se os beneficiários (eleitores e contribuintes) querem aqueles fins e respectivos meios, isso é também outro problema.

A maior parte das vezes procuram a resolução de problemas, como a desigualdade social ou a corrupção. Isso é verdade. Mas fazem-no sempre com segundas intenções. Primeira, mostrar que toda a gente na Administração está unida. Segunda, criar uma sensação de dever cumprido. Este último facto é particularmente chocante, num país exímio em formidáveis soluções jurídicas, mas que falham diante da vida.

Estas estratégias são de uma enorme utilidade suplementar: revelam a tendência autoritária e dirigista das tradições políticas portuguesas. O que está a acontecer, a propósito do género, da idade, do sexo, da origem racial, da comunidade étnica, da nacionalidade, da natureza e da alimentação, é simplesmente insuportável. As autoridades fazem suas as ideias mais mirabolantes que se atravessam nos circuitos culturais e nos movimentos sociais, sobretudo das classes médias urbanas com gosto para ditar a virtude.

São excelentes exemplos da vontade de unificar o público e o privado, os modos de vida e as crenças, os comportamentos e as atitudes. As estratégias designam o pecado e a virtude, o Bem e o Mal. As estratégias são simulacros democráticos de ideologias autoritárias e são os sucedâneos dos dogmas religiosos ou laicos.

As estratégias são documentos e textos oficiais, aprovados por quem de direito, através de Resoluções do Conselho de Ministros e decretos-lei do governo. De muitas delas se diz que foram submetidas a debate público, o que quer dizer que se cumpriram uns procedimentos burocráticos destinados a encenar a discussão. 

Vejamos alguns exemplos das estratégias disponíveis. Estratégia Portugal 2030. Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas. Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade. Estratégia Nacional para as Florestas. Estratégia Nacional para o Mar. Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento. Estratégia Nacional de Inteligência Artificial. Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas. Estratégia Nacional para os Direitos da Criança. Estratégia Nacional para as Cidades Sustentáveis. Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal. Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho. Estratégia Nacional de Prevenção e Controlo da Dor. Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção. Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo. Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar. Estratégia Nacional de Segurança do Ciberespaço. Estratégia Nacional para a Habitação. Estratégia Nacional de Educação Ambiental. Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde. Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais. Estratégia Nacional para os Pagamentos de Retalho. Estratégia Nacional para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade. Estratégia Nacional para a Inclusão e a Literacia Digitais. Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Estratégia Nacional de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente. Estratégia Nacional para as Pessoas com Deficiência. Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situações de Sem Abrigo. Estratégia Nacional para o Envelhecimento Activo e Saudável. Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação.

Esta última é, sem dúvida, a jóia. Começa assim: A Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação – Portugal + Igual” (ENIND) assenta numa visão estratégica para o futuro sustentável de Portugal, enquanto país que realiza efectivamente os direitos humanos, assente no compromisso colectivo de todos os sectores na definição das medidas a adoptar e das acções a implementar. Esta abordagem integrada potencia a colaboração e coordenação de esforços, valorizando uma visão comum que simultaneamente tenha um efeito mais estruturante e sustentável no futuro que se pretende construir”. A esta gloriosa entrada em matéria, seguem-se as considerações mais fantasiosas, alucinadas e totalitárias que seja possível imaginar. A ENIND propõe-se eliminar os estereótipos e liquidar os preconceitos próprios de todas as formas de discriminação e desigualdade, de género, de fortuna, de origem racial, idade, cultura, estatuto social… Para esse fim, recorrerá a todos os meios e todas as intervenções nas áreas publicas e privadas, no trabalho, na escola, nas instituições… Enfim, na vida.

Público, 23.10.2021

sábado, 16 de outubro de 2021

Grande Angular - Coreografia orçamental

O debate orçamental, anualmente coreografado, é de reduzida importância nacional. O orçamento é importante, com certeza, mas o debate não. Pouco ou nada se explica à população, a não ser com intuitos demagógicos. Há sessões das comissões onde alguma coisa interessante se passa, às vezes. Há documentos produzidos pela UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) que são de real utilidade. Pouco mais do que isso. O hemiciclo destina-se a encenações ridículas, à berraria habitual, a poses para a televisão e a frases para os jornais. Realmente, pouco se passa. 

Ou antes, o que ali se passa é revelador do pobre estado em que a política nacional se encontra. O que ali se vê são tentativas obsessivas de incomodar os adversários e de se mostrar na televisão. A inclusão no debate da questão das eleições antecipadas é sintomática. 

Os debates orçamentais deveriam desenrolar-se com antecedência. Com informação e estudos de avaliação do que se fez. Com “a questão” do governo acertada na altura própria, não neste momento. Discutir uns benefícios para um grupo de pessoas, sem que a questão da maioria esteja resolvida, faz com que todas as discussões, por mais insignificantes que sejam, tenham sempre uma medida de chantagem: reprovar o orçamento e votar contra o governo. Em Portugal, não se discute orçamento nenhum, discute-se, isso sim, o governo e a maioria.

O que está em causa numa discussão sobre o orçamento? Uma percentagem reduzida da despesa e da receita. A parte flexível do orçamento ou a respectiva margem de folga é mínima. Muito mais de 90% estão comprometidos. É uma margem quase insignificante da despesa que permite, com leviandade, afirmar que o orçamento é de “esquerda” ou é de “direita”. E assim, informar a opinião, da vitória ou da derrota parlamentar.

A quase totalidade do orçamento está comprometida com despesas inadiáveis, direitos adquiridos, pagamento de juros e de dívidas, obras em curso, prestações e amortizações, vencimentos de cerca de 800.000 funcionários e pensões de alguns milhões de pessoas. As Obras Públicas, o funcionamento do Estado (com a Saúde, a Educação, a Segurança Social e as Forças Armadas à cabeça, sem esquecer os elefantes como a TAP, a CP e o BES), as pensões e os juros da dívida esgotam os recursos. A ideia de que se pode discutir muito, fazer alterações, obrigar a cedências e modificar radicalmente a orientação e a “filosofia social” das políticas públicas é falsa ou ingénua. E sobretudo uma fantasia. Quando os partidos aparecem na televisão a defender alterações radicais, mundos e fundos de nova despesa, mais subsídios e indemnizações em volume significativo, sabem que é mentira e não têm qualquer esperança de obter ganho de causa. Na verdade, o que fazem quase se esgota nisso mesmo: aparecer na televisão a fazer exigências. Para depois contar aos fiéis e aos eleitores. No caso de obterem migalhas, poderão voltar à televisão e garantir ao eleitorado que as vantagens, se as houver, foram da sua responsabilidade. Nada de novo.

O sentido da discussão orçamental é o da oportunidade de falar na televisão, de um partido se queixar de que as suas propostas não são aceites, de que as suas sugestões foram cruciais para um qualquer interesse de um grupo de pessoas. E também para se poder, meses depois, garantir ao eleitorado que o que se fez foi por causa das suas insistências e propostas.

Este ano, além da coreografia habitual, tivemos um foco, uma questão central, um enredo dramático: reprovação do orçamento, seguida de desordem política, dissolução do parlamento e eleições antecipadas. Que ninguém duvide: a transformação das eleições em arma política contra os adversários e contra as oposições dentro do partido é um recurso sórdido. O melhor que a democracia tem, as eleições livres, é transformado no seu pior, em arma vulgar, no mais baixo dos argumentos e na chantagem mais rasteira!

As eleições deveriam ser regulares e periódicas, certas como um relógio, previsíveis. Só excepcionalmente, muito excepcionalmente, teríamos eleições fora de prazo, adiadas ou antecipadas. Ao fazerem ameaças com eleições, ao aderirem à ideia de chantagem eleitoral, os democratas e os dirigentes partidários estão a tornar esse gesto e esse momento indignos e desprezíveis.

A democracia presta-se a dezenas de definições, com múltiplos adjectivos. Em geral, são descartáveis e servem para fins de circunstância. A mais simples definição de democracia é a do regime político em que todas as pessoas têm o direito de voto secreto, em eleições livres e regulares, após as quais quem ganha governa e respeita quem perde. Note-se a regularidade, que faz parte essencial da democracia. A eleição é um fim, um processo e um meio. Por isso deve ser previsível e regular. Partidos e eleitores devem saber ao que vêm. Ameaçar com eleições antecipadas, só por fraqueza e grosseria política. Utilizar as eleições antecipadas para trocar as voltas aos adversários, incomodar os correligionários ou obter vantagens indevidas é nefasto. Antecipar eleições implica quase sempre fugir ao debate político, evitar a aliança formal ou arredar a coligação conhecida. Com raras excepções, as eleições antecipadas mais não são do que golpes ou sinais de imaturidade democrática. É até possível que não haja brevemente eleições antecipadas, mas o que está em causa é a sua utilização como chantagem, própria de uma situação anormal que é a de parlamento e governo sem maioria, de arranjos provisórios e de elevação do oportunismo à categoria de arte de governo. Medida excepcional, a eleição antecipada deveria ser um recurso para reorganizar a democracia e dar nova vida ao governo, não para matar adversários.

As direitas estão tolhidas de medo perante a hipótese de eleições antecipadas. As esquerdas estão apavoradas com a hipótese de antecipar eleições. O governo já não quer antecipar eleições. Mas todos falam disso, porque pensam atemorizar os outros. Como conteúdo e estratégia de debate parlamentar orçamental não se poderia inventar pior. São dias maus para a República. E para a democracia.

Público, 16.10.2021 

sábado, 9 de outubro de 2021

Grande Angular - Um apetite insaciável

Os últimos anos da legislatura parecem ficar marcados pela vontade socialista de alargar o Estado, de aumentar o poder do governo sobre a sociedade, de consolidar a autoridade das instituições políticas sobre a sociedade civil e de reforçar a presença do sector público na vida privada, seja na economia, na educação, na saúde, na habitação ou na cultura.

A ascensão das esquerdas socialistas dentro do partido é uma das causas. A existência de vastíssimos recursos financeiros europeus disponíveis para o investimento público é outra. A necessidade de aprofundar as alianças com os partidos ou os eleitores das esquerdas radicais é também uma realidade. O despertar do corporativismo republicano sempre dormente também conta. A volúpia de tantos dirigentes e activistas, descontentes com notícias sobre a ganância dos seus rivais da direita também pesa neste novo estado de espírito e da nação. Finalmente, para acolher estas circunstâncias, a velha crença tão socialista e tão republicana no primado do Estado e no papel do sector público como motor do desenvolvimento.

Há já alguns meses que assistimos às primeiras iniciativas ditas do PRR, Plano de Recuperação e Resiliência. Já se pode confirmar que se trata do maior plano de despesa da história do país. E já foi possível verificar que aqueles fundos ou são gastos directamente pelo governo, ou investidos de acordo com os planos do governo, ou distribuídos pelo governo. A decisão, a iniciativa e a acção pertencem ao governo. Como se sabe que o Estado não tem actualmente competência técnica e científica suficiente, vai necessitar dos contributos empenhados e muito bem pagos de empresas nacionais e estrangeiras, de faculdades e universidades, de laboratórios e organizações que, no conjunto, ficarão dependentes do governo. O sector público e o Estado crescem com este plano. Os sectores privados, civis e académicos, científicos e culturais, ficarão muito mais dependentes do governo. A convicção de que um membro do governo, um director da Administração, um funcionário público ou um encarregado de missão das autoridades, só por serem do sector público, são mais competentes, mais leais, mais sérios, mais produtivos, mais responsáveis e mais honestos, é eterna no PS. A certeza de que os funcionários públicos e os organismos do Estado, assim como os membros do governo, são mais capazes de criar emprego, investir, produzir, gerir e organizar, é inabalável.

Em paralelo, foi aprovada legislação abrindo as portas à censura da informação e da expressão por vias digitais e outras, a exercer por intermédio de instituições públicas em parceria com organismos privados transformados em controladores morais e supervisores da verdade. Reclamados por alguns académicos e intelectuais, sugeridos por academias, apoiados pela União Europeia e pelo governo, foram criados mecanismos de monitorização do pensamento e da expressão. Depois do salazarismo e dos dois anos do período dito do Gonçalvismo comunista, foram estas as piores iniciativas tomadas em Portugal no sentido do controlo do pensamento e da censura da expressão.

 

Recentemente, a questão das Forças Armadas e da reorganização dos comandos superiores foi outro exemplo do apetite socialista. É verdade que foram os problemas da exoneração e da substituição do Chefe de Estado-maior da Armada que ocuparam a atenção de todos. E com razão, dada a infâmia que o governo preparou. Mas o que realmente sobrou e estava em causa era a tutela do governo sobre as Forças Armadas. Por outras palavras, a governamentalização das Forças Armadas. Isto é, a certeza de que estas últimas servem em primeira-mão e principal instância o governo do dia. As estruturas dos comandos superiores foram de tal modo redesenhadas que parecia defender-se apenas uma concentração de poderes no Chefe de Estado-maior General. A verdade é que esta era e é uma real camuflagem para uma dependência superior do Ministério e do Ministro e para a obediência ao governo.

última questão a surgir com fragor no espaço público foi a da revisão do regime de criação e funcionamento das associações profissionais. Isto é, da lei das Ordens (médicos, engenheiros, advogados, farmacêuticos, economistas, arquitectos, biólogos, contabilistas, despachantes, enfermeiros, dentistas, veterinários, solicitadores, revisores oficiais, notários, psicólogos e nutricionistas). É possível que muitos aspectos da nova legislação mereçam atenção e constituam uma actualização necessária dos termos e dos processos de reconhecimento e de exercício de uma profissão. Como é possível que haja capacidades excessivas de defesa corporativa dos interesses de uma dada profissão. Há seguramente, neste domínio tão impregnado de reminiscências medievais e de mecanismos de “closed shop” ou de “numerus clausus”, situações a corrigir. Mas tenhamos consciência de que o essencial desta legislação, que tresanda a salazarismo e a corporativismo, consiste numa revisão das competências de auto-regulação, de autodisciplina e de parceria entre público e privado, sempre a favor do Estado e do governo. A inclusão de pessoas de fora da Ordem e da profissão favorece evidentemente as instituições públicas, o governo em última análise. A inclusão de um novo órgão de supervisão parcialmente composto por pessoas exteriores à Ordem e à profissão tem o mesmo objectivo, o de aumentar as possibilidades de dependência e tutela por parte do governo. Bem pode o projecto de lei escudar-se atrás da União Europeia, que seria, segundo o próprio texto, quem exigiria estas alterações ao regime legal. Mas só uma pequena parte se explica por essa exigência. O essencial é uma invenção do Governo e do Partido Socialista.

Oque mais acontecerá? Depois da Economia, das Forças Armadas, da Informação, da Cultura e da organização das profissões? Haverá ainda quem esteja interessado em fazer parte de uma sociedade de cidadãos, de homens e mulheres livres e de instituições independentes?

Combinam tão bem a retórica “liberal” da direita e o palavreado “anti-corporativo” da esquerda! Modernização, investimento, desenvolvimento, educação e cultura: sempre o Estado. Na dúvida, a favor do governo.

Público, 9.10.2021

  

sábado, 2 de outubro de 2021

Grande Angular - Um conflito absurdo

Sob a aparência de um “fait divers”, está em curso um dos mais lamentáveis e graves episódios que envolvem o governo, demais autoridades constitucionais e as instituições militares, isto é, as Forças Armadas em geral, a Marinha em particular. 

Raramente assistimos, em democracia, a uma sucessão de acontecimentos tão danosos para os militares. E em última instância para a República. Nos meios de comunicação circulam narrativas que dificilmente disfarçam a sua génese deliberada e maliciosa: ora constroem cenários nos quais os militares desempenham o papel do vilão, ora se esforçam por garantir que nada se passou, que nada aconteceu e que daqui não haverá consequências.A verdade é que o normal processo de substituição de um chefe militar foi degradado, por motivos políticos e por razões menores, a ponto de ferir a honra de quem sai e a de quem entra. O que pretenderam exactamente os autores desta armadilha ou desta provocação não é totalmente visível. É mesmo fenómeno de rara opacidade. Serão simplesmente as autoridades políticas a tentar vingar-se ou exercer represálias sobre quem, mesmo sob reserva, emitiu opiniões próprias, diferentes das do governo? Ou será que os poderes políticos entendem que um militar prestigiado deva revelar vassalagem e que, posto na ordem, causará menos sarilhos a um governo e a partidos feridos com a sua falta de competência?

Será que tudo se pode resumir ao infeliz, mas matreiro, episódio da substituição do chefe de Estado-maior da Armada? Terá havido desleixo? Tratou-se de um incidente benigno no qual um subalterno não esteve consciente dos seus deveres? Foi um encarregado de imprensa que interpretou mal os seus superiores? É um assunto de rivalidades pessoais entre oficiais? Ou de competição entre políticos e militares? De um modo ou de outro, todas estas peripécias podem estar presentes, mas nenhuma diz o essencial, a nenhuma delas se resume este facto de excepcional gravidade.

Este caso só é percebido se o colocarmos no quadro das relações recentes entre civis e militares, entre os políticos e as instituições militares. Por um lado, governantes e partidos entendem que os militares não podem ter opiniões diferentes das suas ou, se as têm, delas devem abdicar. Por outro lado, os antigos chefes militares, entre os quais alguns dos mais ilustres e prestigiados das últimas décadas, foram chamados a emitir as suas opiniões, geralmente diferentes das dos civis do dia. Os nossos governantes não toleraram as opiniões diversas, mas recatadas, dos actuais chefes militares, nem admitiram que os antigos chefes militares fossem chamados ao debate e a dar opinião. Foi o que fizeram e bem, mas o governo não suportou o gesto feito de liberdade e de competência. Há aqui vingança? Há, mas não é o mais importante. Realmente decisivo é o facto de o governo querer vergar os militares, actuais ou antigos, e de pretender simplesmente afastar os que discordam ou têm ideias diferentes das suas. Como se sabe, um elevadíssimo número de antigos chefes militares opôs-se aos planos do governo para reformar as estruturas de comando militar, em gesto que teve também uma intenção implícita: a de apoiar os militares que, no activo, estão obrigados ao recato.

É verdade que, na história política portuguesa, sempre houve políticos e civis que se prostraram diante dos militares. Uns porque são assim, outros porque pretendiam utilizá-los em seu proveito. Mas, a maior parte do tempo, entre políticos civis cultiva-se facilmente o desprezo pelos militares e a complacência benévola por aqueles profissionais que “gostam de armas” e de “brincar às guerras”. Os políticos civis consideram facilmente o ofício militar com desdém ou com ironia paternalista. Assim é que tem sido fácil, entre nós, alimentar esta espécie de civilismo adolescente ou de pacifismo lírico que leva a redução das Forças Armadas a dimensões quase ridículas, assim como à desconsideração da condição militar.

Aextinção do serviço militar obrigatório, há quase vinte anos, imposta por quase todos os partidos políticos (com excepção do PCP), sem debate, em obediência à pressão das juventudes partidárias e na concretização das absolutas prioridades ao social, foi um bom exemplo do oportunismo e da demagogia com que se trata a questão militar. A par deste feito, outros confirmaram a mesma tendência: redução de orçamentos, diminuição de efectivos, anulação de compra de equipamentos e adiamento da modernização tecnológica, para já não falar das políticas de vencimentos, de saúde e de segurança social militares.

Com milhares de efectivos a menos do que deveria ser o mínimo indispensável, as Forças Armadas portuguesas têm geralmente executado as suas missões com distinção. Todas as intervenções militares internacionais das últimas décadas (em África, no Próximo Oriente, nos Balcãs, na Ásia e na Oceânia) trouxeram prestígio a Portugal e saldaram-se por êxitos políticos. Aumentaram a reputação do país e ajudaram com certeza a acção do Estado na ONU, na NATO, na UE, na CPLP, nas organizações ligadas às Migrações e às Polícias.

Nem será necessário referir que, nos últimos anos, a instituição militar foi uma espécie de último recurso em situações especialmente difíceis para as quais foram necessários meios excepcionais, a começar pela disponibilidade, a organização, a disciplina, a prontidão e a eficácia. Foram certamente os casos dos incêndios, da protecção civil, das operações de busca e salvamento e, ainda hoje, de cuidados de saúde e de vacinação.

Os políticos portugueses têm dificuldade em reconhecer a legitimidade das Forças Armadas, que não se limita à subordinação ao poder civil. Tal como na religião, na ciência e na justiça, há, na instituição militar, uma legitimidade própria e autónoma que os políticos têm de respeitar.

Os políticos portugueses, por ideologia, preconceito, ciúme e crença, não conseguem perceber que uma boa colaboração da instituição militar só enriquece a sociedade, o sistema social e o quadro constitucional. Habituaram-se a ver nos militares guardas dos déspotas ou golpistas encartados. Gostam de os ver como espécie em vias de extinção, como inimigos a abater ou como criados de servir. Não conseguem ver o que eles são hoje, defensores da liberdade.

Público, 2.10.2021