domingo, 30 de julho de 2017

Sem emenda - Segredo de injustiça

Como foi possível chegar aqui, a esta polémica obscena a propósito dos fogos, em que quase todas as opiniões sobre os desastres, as causas, as soluções e as responsabilidades são dominadas pela simpatia partidária? O governo e apoiantes tudo fazem para esconder o falhanço, dissolver responsabilidades, acusar os serviços e denunciar a oposição. A oposição vitupera e acusa, faz demagogia, aproveita e aproveita-se. Toda a gente sofre em directo e chora para as notícias das oito. Fala-se em nome dos mortos, poucos referem os vivos.

Percebem-se os incêndios. Com o clima mediterrânico, as nossas matas, a desordem florestal, a insuficiência de bombeiros profissionais, a inércia dos governos fora da estação dos fogos, os criminosos mal castigados, as nomeações partidárias para os serviços de prevenção, a aquisição de um sistema de comunicações pelo ministro de então que é o Primeiro-ministro de hoje, as misteriosas compras de equipamento pesado, os estranhos contratos de aluguer de meios de combate, a corrupção imposta por alguns bancos e umas tantas empresas de serviços, com tudo isto, percebe-se que haja incêndios, que não haja prevenção adequada, que a luta contra os fogos acabe por ser descoordenada e ineficaz, que se coloquem em perigo de vida os bombeiros, os polícias, os enfermeiros e os guardas, para já não falar dos cidadãos, dos lavradores e dos velhotes.

Mas há algo que não se percebe. Como foi possível que um conjunto de instituições, prestigiadas umas, outras menos, considere que um desastre esteja em “segredo de Justiça” e que este se aplique a uma lista de mortos… Segredo de justiça? Para acidentes deste género? É simplesmente absurdo! Como é possível admitir que um governo invoque o segredo de justiça e se reclame da separação de poderes para não publicar a lista de mortos desde o primeiro minuto? Como foi possível chegar a esta hipocrisia canhestra que tenta esconder-se atrás de argumentos jurídicos que nada têm a ver com o assunto? Uma lista de mortos a enterrar é um segredo? De quem? Para quem? Os governos, as direcções gerais, as empresas de seguros, os bombeiros e os autarcas não têm obrigações perante os cidadãos? O que estava realmente em segredo? Os nomes? As circunstâncias? O sitio da morte? Ou as responsabilidades do governo?

Como é possível que se tenha estabelecido um black out informativo tentando impedir que autarcas, bombeiros, comandantes de guardas e polícias, responsáveis pela prevenção e pela saúde informem o público? E que se acuse de oportunismo e demagogia quem quer que faça perguntas sobre o que se passou? E que os partidos que apoiam o governo sejam incapazes de uma exigência de informação? Desde quando é demagógico fazer perguntas? Por que razão não se pode ou não se deve discutir o que realmente fez a diferença, isto é, a falha de previsão, a ausência de prontidão, a falta de coordenação e a carência de autoridade? Quem assim reage, como reagirá em todos os outros casos?

Como foi possível desnaturar de tal modo a democracia e os costumes para se chegar a este ponto? Como foi possível deixar que esta democracia se parecesse com a ditadura aquando das inundações de Lisboa e de outros desastres, para já não falar dos feridos e mortos da guerra do Ultramar com os quais o governo tentava também fazer selecção e tratamento? Como deixaram os deputados, os magistrados, os militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias que se chegasse a este ponto?

Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto.

DN, 30 de Julho de 2017

Sem emenda - Segredo de injustiça

Varanda renascentista das Capelas Imperfeitas no Mosteiro da Batalha – Não é facilmente visível. Para a encontrar, tem de se saber o que se procura. É uma extraordinária varanda construída numa fase adiantada das Capelas que virão a ficar “Imperfeitas”. Os seus autores serão Miguel Arruda e João Castilho, arquitectos do Mosteiro nos anos 1530 e 1540. A varanda (tribuna ou janela), recheada de imagens e símbolos de difícil interpretação, fica ofuscada pelo portal manuelino sobre o qual se encontra. A distância que nos separa dela ajuda a passar desapercebida. Mas é uma obra inesquecível. Além das personagens cimeiras, quimeras e seres híbridos, temos, na base das três colunas, o rei D João III ladeado por um Africano e um Índio! As esculturas, de autor desconhecido, terão sido feitas a partir de modelo, o que era raro e, no caso do rei, inédito até essa altura. Na verdade, são retratos. Aquelas duas personagens no mesmo nível e com quase a mesma dignidade do rei deixam-nos a meditar na nossa história.

DN, 30 de Julho de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Varanda renascentista das Capelas Imperfeitas no Mosteiro da Batalha – Não é facilmente visível. Para a encontrar, tem de se saber o que se procura. É uma extraordinária varanda construída numa fase adiantada das Capelas que virão a ficar “Imperfeitas”. Os seus autores serão Miguel Arruda e João Castilho, arquitectos do Mosteiro nos anos 1530 e 1540. A varanda (tribuna ou janela), recheada de imagens e símbolos de difícil interpretação, fica ofuscada pelo portal manuelino sobre o qual se encontra. A distância que nos separa dela ajuda a passar desapercebida. Mas é uma obra inesquecível. Além das personagens cimeiras, quimeras e seres híbridos, temos, na base das três colunas, o rei D João III ladeado por um Africano e um Índio! As esculturas, de autor desconhecido, terão sido feitas a partir de modelo, o que era raro e, no caso do rei, inédito até essa altura. Na verdade, são retratos. Aquelas duas personagens no mesmo nível e com quase a mesma dignidade do rei deixam-nos a meditar na nossa história.

DN, 30 de Julho de 2017

domingo, 23 de julho de 2017

Sem emenda - Tirania

Onde nasce a tirania? Antiga pergunta a que muitos tentaram dar resposta. Umas vezes com cultura e isenção, outras com fanatismo e crença. Mas há décadas ou séculos que a pergunta se repete e que as respostas se sucedem. Há poucos meses, mais um ensaio sobre o tema foi publicado por Timothy Snyder. Recomenda-se. É quase um manual de vida prática sobre o que fazer para evitar a tirania. Em tempos difíceis, como os de hoje e dos últimos anos, a interrogação volta sempre.

Onde nasce a tirania? A pergunta é actual. Não porque, em Portugal, o governo ou a oposição nos ameacem. Nem porque haja sinais evidentes de que a besta espreite. Mas simplesmente porque é sempre actual e porque, no mundo, dos Estados Unidos à Rússia, passando pelo Islão e pela Europa, há gente de sobra que a aprecie. A tirania é sempre do Estado ou através do Estado. Difícil é saber onde começa.

Como se sabe e é verdade, a tirania pode nascer da família, da terra, do capital e da espada. Mas também do voto, da assembleia, do sindicato e do partido. Do poder dos fortes, dos deuses e dos sacerdotes. Mas também do poder dos homens sobre as mulheres e dos mestres sobre os alunos. Do poder dos brancos, dos pretos e dos amarelos sobre qualquer uma das outras cores e do poder dos militares sobre os civis.

A tirania nasce de todos os poderes excessivos, mesmo legítimos, mesmo legais e mesmo maioritários. Nasce quando o poder é de um grupo ou uma entidade, um país, uma classe, uma igreja, um sindicato, uma etnia, uma profissão ou um banco. Nasce quando, num país, se recorre ao nacionalismo para afirmar a autonomia ou a independência. Nasce quando o singular se sobrepõe ao plural e quando a uniformidade leva a melhor sobre a diversidade. Nasce com o catecismo, o livro de citações, a cartilha, o livro único e o manifesto. Nasce quando o grupo se sobrepõe e domina o indivíduo ou quando este se submete e resigna.

A tirania nasce onde fraqueja a razão, o recurso, a liberdade e a oposição. Surge onde faltam a liberdade do artista, a palavra do escritor e a livre iniciativa. A tirania nasce na desigualdade de condição e na igualdade imposta. Nasce da extrema pobreza e da extrema riqueza. Mais ainda do que na desigualdade, a tirania nasce na injustiça.

A tirania nasce no rancor e no ressentimento dos derrotados a quem não é dada uma segunda oportunidade. E ainda no medo dos que já tiveram qualquer coisa e correm o risco de perder tudo. Mas também nasce na corrupção, na promiscuidade e na condescendência com a desonestidade. Como nasce na impunidade dos mais fortes e dos mais ricos, dos que têm mais votos ou mais sócios.

Nasce da fraqueza da sociedade civil, isto é, na fraqueza dos empresários, dos sindicatos, das associações, das igrejas e dos jornais. A tirania nasce no desenraizamento, na desordem cívica e no caos institucional. Nasce onde não há instituições, associações, igrejas e empresas ou onde todas estas dependem do Estado ou do partido. Onde o produto é mais importante do que o produtor e o consumo domina o consumidor.

Nasce quando o argumento é substituído pela proclamação. Quando o debate cede lugar ao insulto. Quando as opiniões são recitadas. Quando a força do dinheiro, da arma ou do voto exige a obediência.

Os inimigos da liberdade e as fontes da tirania estão longe e no exterior, mas também perto e no interior, dentro da democracia. A tirania nasce nas maiorias que não reconhecem as minorias, mas também nas minorias esclarecidas que têm a certeza de ter ideias para os outros e para todos. Nasce da multidão, tanto quanto da vanguarda.

A tirania nasce das ideias de perfeição, de pureza, de igualdade, de virtude, de utopia, de salvação e do homem novo. Nasce nas revoluções e alimenta-se do imprevisível.

A tirania nasce na ausência de Justiça.

DN, 23 de Julho de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

O Terreiro do Paço, com a estátua de D. José, o cais das Colunas e o cacilheiro no rio Tejo – A praça existiu durante quase três séculos, até ser destruída pelo Terramoto. A versão que lhe sucedeu foi construída depois. O seu arquitecto foi Eugénio dos Santos. A estátua equestre é de Machado de Castro e foi fundida, em 1774, de um só jacto, o que, para aquelas dimensões, era raríssimo na altura. O rei morreria três anos depois, o que ditou o imediato afastamento do Marquês de Pombal, cujo poder exercia, durante mais de vinte e cinco anos, quase sem contrapeso ou moderação. Ainda hoje, a personalidade e a política deste “secretário de Estado do Reino”, uma espécie de Primeiro-ministro, são controversas. Esta bonita praça, que os ingleses chamaram, durante um século ou dois, “do Cavalo Preto”, já teve comerciantes, mercadores, marinheiros, ministros, soldados, mendigos, árvores e automóveis. Agora tem turistas. 
 DN, 23 de Julho de 2017

domingo, 16 de julho de 2017

Sem emenda - Habilidades

Os dicionários são de grande utilidade. Habilidoso, por exemplo, tem vários significados no dicionário da Academia das Ciências. “Que tem destreza para executar determinada tarefa com perfeição; que tem habilidade”. Ou ainda “Que age de modo adequado, com perícia…”. Ou finalmente “Que se quer fazer passar por bom; que usa de manhas para que o julguem capaz”. Estamos entendidos. A precisão na língua ajuda a compreender.

A remodelação feita esta semana tem razões misteriosas, mas foi conduzida com habilidade. É verdade que não precisamos de saber tudo. A ideia de que tudo deve ser transparente é ridícula. Para muitas decisões, exige-se discrição. Mas é claro que, quando não se sabe o necessário sobre um qualquer acto público, ficamos autorizados a toda a especulação, desejável ou não, a fim de perceber. Esta remodelação, que não é remodelação, ficará connosco como um gesto que suscita legítima desconfiança e revela falta de qualidades do Primeiro-ministro. E quem quer recato, paga depois a factura.

Esta estranha remodelação tem como ponto de partida uma história banal de bilhetes de avião charter e de um camarote num jogo de futebol. Consta que o voo era de ida e volta no mesmo dia. E que incluía uma sanduíche embalada e uma gasosa. Parece mentira mas é verdade. Ou antes, será parte da verdade. Horas depois de o “caso” ser conhecido, são tornadas públicas as decisões judiciais de arguição daqueles VIP de futebol. E dias depois, apareceram as medidas fiscais sobre a reavaliação de activos e os benefícios de várias centenas de milhões de euros que algumas empresas, entre as quais a GALP e a EDP, vão receber do Estado. Falta saber por onde andava a PT. Uma dessas empresas, pelo menos, também gosta de futebol.

A história recente destes grupos, GALP, EDP e PT, trindade à qual se deve acrescentar o grupo BES em todo o seu esplendor, assessorado pelo BPN e pela CGD, será contada, um dia, com pormenores dignos de obra romanesca, operática ou de cordel. Mas seguramente triste. Para essa história, sabemos que contribuíram, primeiro, o governo de José Sócrates e António Costa, depois o de Passos Coelho e Paulo Portas e finalmente o de António Costa.

Enquanto António Costa se exercitava em golpes de habilidade junto dos seus parceiros e dentro do seu partido, ou em truques retóricos diante dos adversários no Parlamento, tudo parecia correr bem, no melhor dos mundos, com sorte e carisma. A ajuda preciosa do Presidente da República era um presente dos deuses. O crescimento económico da Europa e do turismo confirmavam o velho lugar comum segundo o qual a fortuna sorri aos audazes. Só que, de repente, sem prevenir, o destino bateu à porta. Três ou quatro vezes, mais do que o carteiro. Nas florestas de Pedrógão, foi a calamidade. Nos paióis de Tancos, foi o desastre, a roçar a farsa, não fora a crise aberta nas Forças Armadas. A venalidade pateta de alguns secretários de Estado foi um entremez burlesco. A reavaliação de activos foi choque inesperado. A anunciada greve dos juízes é sinal de extrema gravidade. Em menos de um mês, revelou-se a imperícia de um governo e a fragilidade de uma solução política.

O ataque do Primeiro-ministro ao grupo Altice barra PT barra Meo destina-se a lamber as feridas auto infligidas. O ataque à PT barra SIRESP tem como objectivo retirar António Costa desta enorme embrulhada na qual estão metidos todos os governos desde os tempos de Sócrates e António Costa. A identificação da PT como culpada de parte dos desastres dos incêndios e da falta de prevenção navega no mesmo sentido. As perguntas feitas publicamente aos serviços envolvidos nos incêndios e na prevenção constituíram um golpe da mais sofisticada demagogia. A tentativa de atribuir as culpas ao governo anterior e aos serviços, aos organismos subalternos e aos bombeiros, aos polícias e aos guardas, é um esforço de dissolução de responsabilidades sem precedentes. Tanta habilidade só tem um problema: é que agora percebemos tudo.
DN, 16 de Julho de 2017 

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

O rio Tejo, com barco, em dia de neblina, diante da Ribeira das Naus, em Lisboa – Quase toda a minha vida se passou em cidades com rios. O Douro. O Corgo e o Cabril. O Mondego. O Ródano. O Tejo. E novamente o Douro, sempre. Sem esquecer que as mais belas cidades da minha vida têm rio: Arno, Tibre, Sena, Tamisa, Neva, Forth, Amstel, Danúbio e Moldava. Quem fundou as cidades sabia o que estava a fazer. Há quarenta anos, quando cheguei a Lisboa, a história desta cidade com o seu rio era a de um acto falhado. Tinha passado, mas quase não tinha presente. Hoje, entre as pontes e as margens, as esplanadas e os passeios, os barcos e a vela, os cruzeiros e as praças à beira rio, algo se passa. Há romance. Ainda faltam muitas árvores e jardins, mas lá chegaremos.

DN, 16 de Julho de 2017