Como foi possível chegar aqui, a
esta polémica obscena a propósito dos fogos, em que quase todas as opiniões sobre
os desastres, as causas, as soluções e as responsabilidades são dominadas pela
simpatia partidária? O governo e apoiantes tudo fazem para esconder o falhanço,
dissolver responsabilidades, acusar os serviços e denunciar a oposição. A
oposição vitupera e acusa, faz demagogia, aproveita e aproveita-se. Toda a
gente sofre em directo e chora para as notícias das oito. Fala-se em nome dos
mortos, poucos referem os vivos.
Percebem-se os incêndios. Com o
clima mediterrânico, as nossas matas, a desordem florestal, a insuficiência de
bombeiros profissionais, a inércia dos governos fora da estação dos fogos, os
criminosos mal castigados, as nomeações partidárias para os serviços de
prevenção, a aquisição de um sistema de comunicações pelo ministro de então que
é o Primeiro-ministro de hoje, as misteriosas compras de equipamento pesado, os
estranhos contratos de aluguer de meios de combate, a corrupção imposta por
alguns bancos e umas tantas empresas de serviços, com tudo isto, percebe-se que
haja incêndios, que não haja prevenção adequada, que a luta contra os fogos
acabe por ser descoordenada e ineficaz, que se coloquem em perigo de vida os
bombeiros, os polícias, os enfermeiros e os guardas, para já não falar dos
cidadãos, dos lavradores e dos velhotes.
Mas há algo que não se percebe. Como
foi possível que um conjunto de instituições, prestigiadas umas, outras menos,
considere que um desastre esteja em “segredo de Justiça” e que este se aplique
a uma lista de mortos… Segredo de justiça? Para acidentes deste género? É
simplesmente absurdo! Como é possível admitir que um governo invoque o segredo
de justiça e se reclame da separação de poderes para não publicar a lista de
mortos desde o primeiro minuto? Como foi possível chegar a esta hipocrisia
canhestra que tenta esconder-se atrás de argumentos jurídicos que nada têm a
ver com o assunto? Uma lista de mortos a enterrar é um segredo? De quem? Para
quem? Os governos, as direcções gerais, as empresas de seguros, os bombeiros e
os autarcas não têm obrigações perante os cidadãos? O que estava realmente em
segredo? Os nomes? As circunstâncias? O sitio da morte? Ou as responsabilidades
do governo?
Como é possível que se tenha
estabelecido um black out informativo
tentando impedir que autarcas, bombeiros, comandantes de guardas e polícias,
responsáveis pela prevenção e pela saúde informem o público? E que se acuse de
oportunismo e demagogia quem quer que faça perguntas sobre o que se passou? E
que os partidos que apoiam o governo sejam incapazes de uma exigência de
informação? Desde quando é demagógico fazer perguntas? Por que razão não se
pode ou não se deve discutir o que realmente fez a diferença, isto é, a falha
de previsão, a ausência de prontidão, a falta de coordenação e a carência de
autoridade? Quem assim reage, como reagirá em todos os outros casos?
Como foi possível desnaturar de
tal modo a democracia e os costumes para se chegar a este ponto? Como foi
possível deixar que esta democracia se parecesse com a ditadura aquando das
inundações de Lisboa e de outros desastres, para já não falar dos feridos e
mortos da guerra do Ultramar com os quais o governo tentava também fazer
selecção e tratamento? Como deixaram os deputados, os magistrados, os
militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias
que se chegasse a este ponto?
Que é feito dos homens livres do
meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos
públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos
subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é
feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do
desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e
conforto.
DN, 30 de Julho de
2017