sábado, 28 de maio de 2022

Grande Angular - Cuidar dos vivos

Os últimos anos foram destruidores. Entre as crises financeiras, a pandemia e agora a guerra na Ucrânia, pouco nos foi poupado. Com um resultado sempre previsível: sofre mais quem menos pode. Doentes, desempregados, idosos e pobres são mais atingidos do que os que o não são. Com as crises, as desigualdades aumentam sempre.

As últimas décadas foram devastadoras. Crises económicas, guerras “locais”, muito terrorismo, um crescimento intolerável da corrupção, a crescente predação dos bens públicos e o agravamento acelerado das perturbações do clima. É verdade que, em prazos longos, o melhoramento das nossas vidas foi evidente. Toda a gente (ou quase) está melhor hoje do que há cinquenta anos. Mas também é certo que a desigualdade, depois de ter francamente diminuído, voltou a agravar-se marcadamente.

O último meio século foi fulgurante. A globalização aproximou toda a gente. Os progressos da ciência e da tecnologia foram fenomenais. Os avanços da medicina foram espantosos. O aumento da produção alimentar formidável. Mas a democracia, depois de mostrar avanços significativos, começou a recuar, por força dos seus inimigos e por fraqueza dos seus adeptos. A paz, na Europa e no mundo, afirmou-se claramente, mas depois, com o terrorismo e os governos autoritários, começou a perder e está hoje ameaçada e ferida.

Que podemos fazer? Tudo o que é dramático e decisivo para a mundo, a guerra, a miséria, a doença e a opressão estão fora do nosso alcance, quase nada podemos fazer para resolver. Mas podemos contribuir, tal como temos vindo a fazer, devagar, aos poucos, gradualmente. Na medida dos nossos recursos. Além disso, podemos tratar de nós, da nossa sociedade, dos conterrâneos. Será isto egoísmo, pura e simplesmente? Parece, mas não é. O melhor contributo que podemos dar consiste em tratar da nossa comunidade.

É muito pouco o que podemos fazer pelas vítimas da invasão russa na Ucrânia, contra a pandemia por todo o lado, contra a fome e a sede em África, contra a doença no mundo inteiro, contra as ameaças das alterações do clima…. É pouco, mas pode servir de exemplo. E talvez ajudar. Mas é muito o que podemos fazer cá dentro, na nossa comunidade, contra as desigualdades na economia, na sociedade e na Justiça. É muito o que podemos fazer para diminuir os efeitos desiguais das grandes crises. Sabemos que a pandemia e a pobreza afectam mais os pobres, os desempregados e as classes de rendimentos exíguos. Podemos fazer pouco ou nada contra a pandemia ou contra a guerra. Mas podemos cumprir os nossos deveres, cá dentro, em nossa casa. 

Pode parecer patético comparar os milhares de problemas do nosso dia a dia com as mortes na guerra. Pôr em paralelo as dificuldades no acesso aos serviços públicos e os milhões de mortos da pandemia parece deslocado. Como é delicado confrontar as desigualdades no acesso à justiça, à saúde e à educação com a fome e a seca que se desenham diante dos mais pobres e desafortunados deste mundo. É verdade que há qualquer coisa de paradoxal. Mas o que está ao nosso alcance é tratar com justiça e humanidade os nossos iguais, a nossa comunidade e a nossa cidade.

O tratamento que as empresas dos serviços, dedicadas ao que se designa por serviços públicos (“public utilities”), reservam aos cidadãos portugueses é geralmente desastroso. Mau grado a permanente enxurrada de cartas, “newsletters”, circulares e avisos que recebemos todos os dias na caixa do correio ou no email, a verdade é que os cidadãos em geral são tratados com desprezo e desigualdade. É frequentemente infernal tratar do telefone, da electricidade, das multas e dos reembolsos fiscais. Isto, apesar dos meios técnicos fabulosos que estão ao nosso alcance. Infelizmente, servem para ganhar dinheiro, não para aliviar o cidadão.

As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais e as listas de espera para consultas, cirurgias e internamentos continuam aflitivas, não melhoram, melhoram pouco ou agravam-se ano após ano. Por causa da burocracia, das regras processuais e dos recursos, os tempos de espera na justiça deixam em crise todo o sistema. As empresas dos grandes serviços públicos, como a electricidade, o gás, a água, o esgoto, o correio, as comunicações, a televisão e os transportes públicos esmeram-se na venda e na propaganda, mas são geralmente negligentes no serviço, na assistência e na manutenção. As esperas ao telefone nos “call centers”, nova praga insuportável, podem medir-se por horas, com música evidentemente, tantas vezes sem resultado.

As grandes administrações públicas, a começar pelas dos impostos e a acabar nas da justiça, persistem em tratar desigualmente, por vezes indignamente, os cidadãos em geral, os fracos especialmente. Ou antes, tratam toda a gente mal, mas quem tem meios defende-se, quem tem conhecimentos protege-se e quem tem recursos satisfaz as suas necessidades.

Os atrasos nos reembolsos de impostos, taxas ou pagamentos indevidos penalizam sempre os que menos podem. As grandes administrações de serviços públicos alteram os preços, modificam os contractos, mudam as regras e agravam as condições com majestática indiferença e absoluto desprezo pelos consumidores e pelos seus clientes. Sabem que quase não há concorrência, que o “cambão” (ou entendimento entre agentes económicos) é fácil e tolerado. 

Acesso, resposta, atendimento, consulta, manutenção, reparação e reembolso: eis alguns dos termos que colocam em crise o Estado social moderno e os serviços públicos. São os pecados capitais dos serviços públicos. Estado e serviços estão sempre disponíveis para vender e divulgar o mais moderno e o mais caro. Mas têm absoluto desprezo pela manutenção e a reparação.

A sociedade é fraca. As associações de defesa de consumidores e contribuintes são débeis e tantas vezes dependentes das autoridades. Os municípios e as freguesias pouco se interessam e têm poucos meios. As entidades reguladoras, grande arma do capitalismo de rosto humano e do socialismo democrático, têm-se revelado incapazes de se ocupar destes problemas, os da maneira como são tratados os cidadãos, os consumidores, os eleitores e os contribuintes, para já não falar dos idosos, doentes, crianças e pobres. Se as associações civis quisessem e soubessem, o nosso país seria diferente. Melhor.

Público, 28.5.2022


sábado, 21 de maio de 2022

Grande Angular - Orgulho

O “Índice de Liberdade de Imprensa”, publicado pelos “Repórteres sem Fronteiras”, confere a Portugal o sétimo lugar, digo bem, o sétimo lugar, num total de 180 países. Nos últimos tempos, o nosso país tem-se colocado entre os lugares 40 e 12. O progresso tem sido seguro. E é motivo para alegria e algum orgulho.

Esta situação merece tanta mais atenção quanto vivemos tempos difíceis para a liberdade e para a imprensa. Assim como para as liberdades de pensamento e de expressão, conceitos próximos, mas diferentes. Segundo a organização citada, assim como para as instituições que se preocupam com estes problemas, a liberdade de imprensa está a viver períodos de recuo. Já nem se conta o número, que aumenta todos os anos, de profissionais vítimas (feridos, mortos, prisioneiros, detidos…) da luta pelo exercício livre da profissão. Nem se contam os governos, as empresas, os partidos políticos, os grupos económicos, as religiões e as instituições sectárias que, em qualquer parte do mundo, atentam contra a liberdade de expressão e a imprensa livre.

Grupos terroristas, forças armadas de certos países e polícias de vários continentes não esquecem que a liberdade de imprensa vem à cabeça da luta pelas liberdades. Jornais, rádios, revistas, televisões, plataformas de informação… nada nem ninguém escapa. Até as chamadas “redes sociais”, inicialmente festejadas pelo seu contributo para a expansão das liberdades, acabam por ser contaminadas por quem tem ou quer ter poder.

O lugar de Portugal, logo a seguir aos nórdicos, é pouco habitual. Portugal nunca brilhou pela liberdade da imprensa nem pelos direitos de todos à expressão livre. Mas encontra-se finalmente, de acordo com os critérios desta classificação, em lugar honroso. Pode até talvez dizer-se desproporcionado, na medida em que, na maior parte dos indicadores relativos à cultura, à educação, aos direitos humanos e aos tribunais, Portugal faz quase sempre triste figura. Parece não ser o caso este ano. Felizmente.

É verdade que muito depende das organizações que elaboram estas classificações, dos critérios que utilizam e dos métodos de recolha e tratamento da informação. Como é certo que todos esses critérios e métodos são discutíveis. Mas esta organização já deu provas. Podemos confiar no que faz. Discutir sempre tudo, mas confiar. Pode haver outros critérios e outras classificações. Mas esta vale por si.

Conhecemos as inúmeras dificuldades que, em Portugal, tanto nas últimas décadas como no último século, pesam sobre a liberdade de imprensa ou ameaçam o pluralismo. Quase todos os governos e primeiros-ministros tentaram, de uma maneira ou de outra, influenciar a imprensa escrita e as televisões. Houve mesmo quem tentasse comprar, por interpostas pessoas, órgãos de informação. Foram poucos os governos que resistiram à tentação de nomear administradores e directores dos canais públicos de televisão e rádio, assim como das agências e plataformas de informação.

Sabemos que os políticos portugueses no activo (governantes ou deputados) têm uma especial predilecção pela colaboração em jornais, rádios e televisões, privados ou públicos, o que conseguem graças ao seu poder. Sabemos que há políticos, no activo, que aceitam salário para escrever ou falar regularmente, como sabemos que há os que o fazem gratuitamente, na condição de ter um lugar cativo. Sabemos ainda que certos ministros publicam artigos seus quando lhes interessa e convém.

É público e notório que existe um predomínio das esquerdas nos meios de informação (tanto públicos como privados, mas seguramente mais naqueles do que nestes), o que enviesa o pluralismo ou condiciona a isenção. Se, em parte, isso resulta do poder político das esquerdas, também é consequência de vocações culturais e tendências sociais. Todas as espécies de jornalismo e de animação cultural atraíram sempre mais as esquerdas do que as direitas. A “luta cultural” e o “activismo” são um lugar de eleição das esquerdas, o que acontece sem interferência directa dos governos. Bem mais negativas são as concepções do “jornalismo de causas”, do “jornalismo activista” e do “jornalismo empenhado”. Sem falar no jornalismo ao serviço da “luta de classes” e da “hegemonia cultural”. Acrescente-se que os canais de televisão, sobretudo nos debates, concretizam esta hegemonia de esquerdas, que completa o indiscutível poder do governo.

Muito grave é a intervenção invisível do poder político. Esta processa-se de modos variados. Por exemplo, a selecção dos órgãos de informação a quem se dá, em primazia, certas informações. Ou a escolha daqueles a quem se dá de preferência a publicidade oficial (muitíssimo valiosa). Ou o favor que se faz a empresas privadas de grandes anunciantes para que estas, em troca, possam exercer as suas influências junto dos jornais e dos canais de televisão. O governo tem um enorme poder na “marcação da agenda”, de modo a que a imprensa siga as prioridades estabelecidas pelos interesses políticos. Muitas são as vias dos senhores da política que os levam a condicionar a imprensa.

Mesmo assim, ameaçada pela política, limitada pelo poder económico, em crise de publicidade e subjugada pelas redes sociais, mesmo assim, a imprensa portuguesa tem sabido manter defesas, preservar alguma dignidade e conservar uma certa independência. Mesmo com todas as dificuldades, Portugal, entre 180 países, está em sétimo lugar no “Índice de Liberdade de Imprensa”!

Não creio que tal se deva aos políticos, nem às autoridades. O currículo destas, nas últimas décadas, não é particularmente brilhante. Também não se deve ao amor que os cidadãos têm pela imprensa: na verdade, os indicadores de leitura e de audiência dos órgãos de informação colocam Portugal entre os mais deficientes da Europa, talvez mesmo os piores. Não penso que seja possível atribuir à magistratura e aos tribunais um papel muito relevante na defesa da liberdade de expressão: são frequentes as sentenças que a condicionam, como são repetidas as decisões ou sentenças dos tribunais europeus contra o Estado português por causa dos direitos mal defendidos ou violados.

Quer isto dizer que aquele “sétimo lugar”, classificação honrosa entre quase duzentos países, se deve sobretudo aos jornalistas, a uma parte deles, que se esforçam por manter elevados graus de dignidade e de isenção. Bem hajam!

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Apostila: E melhor que tudo, neste Verão difícil, o esplendor dos Jacarandás de Lisboa!

Público, 21.5.2022

sábado, 14 de maio de 2022

Grande Angular - O espectáculo da guerra


A
 guerra é fotogénica. Tal como a dor. Para já não falar da miséria e da fome. É mesmo provável que o sofrimento e a guerra tenham mais capacidade de atracção do que a felicidade e a paz. Muitos autores, com especial menção de Susan Sontag, têm pensado e escrito sobre este tema. E muitas e diversas são as opiniões, a tal ponto que podem ser várias as verdades.

A imagem, tanto fotográfica como televisiva, é actualmente um poderoso meio de informação, talvez o mais eficaz. Com imagens, as palavras adquirem valor. Mesmo sem texto, as imagens têm força própria. Sem imagens, os textos e as palavras perdem influência. Sobre as relações entre as imagens, a verdade, a razão e os sentimentos, diz-se tudo e o seu contrário. E em quase tudo há verdade. E falsidade.

O excesso de imagens e de reportagens satura a opinião e as consciências. Pior ainda, torna as pessoas habituadas e insensíveis. O excesso de informação faz com que  a guerra e a violência sejam quotidianas e usuais.

A profusão de imagens, de vídeos e de reportagens em directo alimenta os sentimentos, mantém as pessoas alerta, é uma permanente mobilização de solidariedade ou mesmo de protesto. A fotogenia pode influenciar os sentimentos e a razão.

Pela emoção e pelos sentimentos, as imagens são os melhores incentivos à formação de opinião. Sem imagens, as informações frias e as narrativas racionais não são mais do que isso, informações, incapazes de desencadear o afecto.

Pelo recurso às emoções, as imagens são obstáculo à compreensão, ao pensamento e à reflexão, mas são propícias à mobilização, à intoxicação e à manipulação de consciências.

Pelo excesso de filmes e de televisão, as imagens são incentivos à indignação momentânea e passageira, o que faz com que sejam também estímulos à passividade.

Pela atracção sentimental e pelo seu capital emocional, as imagens são os melhores incentivos à solidariedade e à disposição de cada um para se empenhar em causas humanas.

As imagens não incluem nova informação e novo raciocínio, limitam-se a assegurar a nossa predisposição e as nossas crenças. Olha-se para as imagens à procura de confirmação, não de informação. Quem simpatiza com os Ucranianos, vê as imagens de televisão a essa luz. Quem prefere os Russos, vê nessas imagens o que quer ver. O mesmo bombardeamento pode ser visto como um gesto bárbaro da aviação russa ou como uma encenação dos Ucranianos para comover a opinião. Já se disse que os bombardeamentos russos eram os mais bárbaros actos de agressão cometidos nas últimas décadas. Já se disse que os misseis russos eram desviados pelos Ucranianos, a fim causar mais vítimas e impressionar a opinião pública.

Os canais de televisão (portugueses, europeus, americanos e outros…) dedicam à guerra da Ucrânia tempo infinito, recursos inéditos e meios significativos. É provável que esta seja a guerra mais fotografada, mais filmada, mais transmitida em directo e mais acompanhada hora a hora. Claro está que o facto de ser a última conta: os mais sofisticados meios tecnológicos que estão ao dispor da informação permitem acompanhamento inimaginável no passado recente. Aliás, os meios de informação utilizam processos de captação de imagens, de retransmissão de divulgação impensáveis há poucos anos. Os órgãos de informação usam instrumentos tão sofisticados quanto a própria guerra: os drones são apenas os mais visíveis e que permitem as imagens mais espectaculares. Mas há muitas mais “armas” que tanto servem a guerra e a espionagem como a informação. Sem falar na utilização intensa de telemóveis que transformou todas as pessoas em fontes de informação pela imagem.

Quem pode, usa todos os meios possíveis para informar, defender, atacar, justificar e denunciar. Ou para manipular, intoxicar, enganar e acusar. É infelizmente “normal” que os Estados, os Governos, as Forças Armadas e os partidos manipulem os meios de informação para defender as suas causas e para criar dificuldades ao inimigo. É infeliz, mas é assim. Sempre foi assim. Tanto em tempo de paz como na guerra.

Já é menos “normal” que os jornais, as televisões, as plataformas de informação, as rádios e outros meios de comunicação, sobretudo os que se pretendem isentos e profissionais, naveguem nas mesmas águas que a informação orientada. Uns por simpatia política e outros por sensacionalismo, é frequente estarmos diante de quem engane deliberadamente, quem distorça os factos, quem oculte, quem encene e quem invente.

E também não é “normal”, pelo menos segundo os critérios e os valores vigentes em democracia, que se proíbam informações que não concordam com as verdades mais estabelecidas ou com os interesses dominantes. É por exemplo condenável que alguns países ocidentais tenham proibido o acesso a certos órgãos de informação do governo russo. Podem e devem ser desmentidos e contrariados com a verdade e com a liberdade de discussão, mas não devem é ser proibidos. A proibição ou a censura são armas de quem ataca a liberdade, não de quem defende a liberdade.

A única arma eficaz e que nos dá algumas garantias é o pluralismo e o confronto de opiniões. País que defenda e pratique o pluralismo na informação ajuda a que se acredite no que lá se diz. País onde as fontes e os meios de informação pertencem ao poder ou são dominados pelo governo é país para ignorar ou desconfiar. Nesta perspectiva, parece não haver dúvidas: nos países ocidentais há a possibilidade de ter acesso a muitas verdades e opiniões, na Rússia não há. Naqueles países, toda a gente pode exprimir e defender as suas opiniões, na Rússia não.

Mesmo admitindo que nos países ocidentais também há manipulação da informação, mesmo tendo a certeza de que os poderes estabelecidos no Ocidente exibem ou ocultam o que lhes interessa, mesmo sabendo que as autoridades dos países democráticos prezam a verdade mas nem sempre a cultivam, mesmo nestas condições, há uma verdade que não é relativa: a Rússia, o seu governo e as suas Forças Armadas agrediram e invadiram um país sem motivos que justifiquem tal acto, sem razões que fundamentem tal gesto, sem provocação e sem justa causa de autodefesa.

Mesmo sabendo que há mentiras de todos os lados, sei que no Ocidente há infinitamente mais liberdade, mais democracia, mais confronto de opiniões, mais possibilidades de apuramento dos factos, mais liberdade de expressão e mais independência dos órgãos de informação. Sobre isto, não há dúvidas.

Público, 14.5.2022

  

sábado, 7 de maio de 2022

Grande Angular- Ladainha

 Luís Valente de Oliveira e Miguel Cadilhe, notáveis políticos, técnicos reputados e humanistas de primeira água defendem com veemência a regionalização. Há anos que a ela deram parte da sua vida pública, da sua inteligência e das suas crenças. A ponto de as suas arengas regionalistas serem consideradas palavra sagrada por todos quantos comungam da mesma fé. Há duas semanas, nestas páginas, chamaram-me à pedra com particular falta de propriedade. Apesar de terem a obrigação de saber o que é a “vulgata”, não se coibiram de utilizar indevidamente o termo, como se de vulgaridade se tratasse, atribuindo às minhas palavras esse epíteto destruidor. Na verdade, preferem a ladainha regionalista.

Escrevi então que a regionalização era um embuste maior. Ou negam ou não percebem. Vários artigos da Constituição, uns aprovados por unanimidade, outros por larguíssimas maiorias, consagram e criam as regiões desde 1976. Nunca foram cumpridos. Fizeram-se leis: umas não foram aprovadas, outras não foram aplicadas. Leis aprovadas por unanimidade tiveram o mesmo triste destino. Decretos do governo não tiveram qualquer efeito. Programas de reforma intensamente regionalistas foram aprovados e comissões constituídas, sem consequências. Programas eleitorais de quase todos os partidos prometeram a regionalização: nunca tiveram qualquer espécie de concretização, a não ser no palavreado. Artigos da Constituição foram revistos, mas nem assim foram observados. Apesar do consenso, não obstante, a quase unanimidade, mau grado os exemplos europeus, nunca, em quase cinquenta anos, se deu um tímido passo. É este talvez o único capítulo da Constituição jamais cumprido. Se isto não é um embuste, como lhe chamei e que tanto incómodo causou a Valente de Oliveira e Miguel Cadilhe, então não sei o que é um embuste. Se eles, defensores e pregadores, não se sentem vítimas de um embuste, então é forçoso concluir que não perceberam o que o país quer nem o que os seus políticos fizeram. Nunca entenderão a razão pela qual tão importante projecto e tão essencial reforma, apesar de quase unanimemente aprovados, nunca foram cumpridos.

Com excepção dos Açores e da Madeira, Portugal não conhece exemplos de tradições de poder, de reivindicação ou de identidade regionais. As experiências açoriana e madeirense são de êxito reconhecido, mesmo se implicaram, como era previsível, aumentos de despesa e de funcionários, competição de legitimidades, conflitos com os órgãos de soberania e ameaças. Muitos destes aspectos poderiam ter sido evitados, mas a verdade é que os resultados foram bons para a República, a nação, a região e a população.

De qualquer maneira, convém sublinhar que essas duas regiões têm singularidades irrepetíveis em Portugal. Além da história, assinale-se a especificidade geográfica, questão maior numa definição regional. Assim como se deve olhar para a certeza dos limites regionais e geográficos ou a segurança quanto ao desenho ou mapa. Na definição de uma região, convenhamos que é útil saber onde começa e onde acaba. Também contam a singularidade, um fortíssimo sentimento de presença e a identidade. Até o isolamento geográfico aumenta o espírito de comunidade regional. Considere-se ainda a ambição autonómica que atravessa todas as classes sociais e quase todas as correntes políticas. E também se pode referir uma singular afirmação económica, social e cultural.

Não fossem muitos os argumentos que contrariam a regionalização, um só bastaria: não há praticamente acordo quanto ao número, ao limite e à designação das regiões portuguesas! Cinco? Seis? Sete? Oito? Esse simples facto é significativo: é a prova de que essas regiões não existem. Oliveira e Cadilhe menosprezam o facto. Garantem que o referendo reprovou o mapa, não a ideia. Escapam-lhes a contradição e o absurdo de tal afirmação.

As propostas conhecidas para a regionalização partem de umas vagas tradições nominais, que correspondem evidentemente a qualquer coisa, mas que têm pouco significado político, cultural e geográfico. Insuficientes, aliás, para fundamentar uma entidade estatal e autárquica ou uma comunidade administrativa. Sublinham os regionalistas o facto de o referendo “apenas” ter recusado os limites das regiões! Extraordinário! “Apenas” visava o facto de não existirem!

Oliveira e Cadilhe fundamentam os seus argumentos com crença e confiança. Só lhes fica bem. Mas tais trunfos não chegam para condenar asperamente quem pensa de outra maneira. Nem os dispensa de fundamentar de maneira mais sólida do que com gráficos do Eurostat e similares. Não lhes basta dizer que acreditam, nem pedir confiança para que acreditemos neles. Por exemplo, não conseguem garantir que não haverá enormes aumentos de despesa e de funcionários. Dizem que não e basta. Pobre argumento, sobretudo contra os que se limitam a afirmar que existem sérios receios de que tal venha a acontecer.

Mas há mais. Os regionalistas crentes defendem calorosamente as vantagens das suas soluções, sempre com termos conhecidos e geralmente não demonstrados: entre outros, eficácia, democraticidade, proximidade e subsidiariedade. Mas fogem à reflexão sobre reais problemas num país onde é total a ausência de experiência. Por exemplo, nada dizem quanto aos inescapáveis conflitos de legitimidade e de representatividade entre o nacional, o regional e o local, num país onde apenas existem, com força e tradição, o nacional e o municipal. Como nada dizem sobre os previsíveis conflitos entre legitimidades directa e indirecta, entre sufrágio e designação, entre eleição e nomeação, entre representatividades democrática e institucional. Na verdade, todas as propostas conhecidas para criação de regiões no continente sugerem organismos mistos com a presença de membros eleitos directamente e de representantes eleitos indirectamente ou institucionalmente designados. Os regionalistas consideram uma riqueza admirável o que mais não é do que uma fonte de vendavais e um turbilhão de colisões.

A inexistência de forças, de afirmações, de tradições e de experiências regionais é talvez a principal razão que leva os regionalistas, predominantemente tecnocratas, a favorecer as regiões. Na verdade, aquela evidente fraqueza é a melhor garantia de que a regionalização seria sobretudo o prolongamento do poder central e não uma emanação de forças regionais. O problema é que o que consideram ser a grande riqueza é certamente o grande obstáculo.

Público, 6.5.2022