sábado, 18 de março de 2023

Grande Angular - Pode acabar mal

Não é provável. Mas é possível. Isto pode acabar mal. O que é “isto”? O regime democrático, as liberdades públicas, a paz social e um razoável desenvolvimento. Mas sobretudo a democracia e a liberdade.

 

Poderá mesmo acabar mal? Não será demasiado pessimismo? Mais uma vez Cassandra? Ou os habituais Profetas da Desgraça?

 

É mesmo o caso. Pode acabar mal. Ainda há pouco, havia trunfos inesquecíveis. Há ou havia dinheiro e capital disponível. Não era português, nem privado. Era europeu. Mas havia. E era capital. Havia paz social. Nas ruas e nas empresas vivia-se um relativo conforto. Sem fortuna, nem exaltação. Mas alguma serenidade. O desemprego era baixo. Ou antes, não era alto. Tempos houve em que 6% era muito. Agora, já parece ser aceitável. O parlamento gozava de maioria absoluta, um dos mais formidáveis instrumentos de governo, um trunfo raro na história da democracia portuguesa. Era claro e indiscutível. O trunfo continua lá. Mas as dissensões dentro do partido do governo revelam tempestades para amanhã. E a desordem nos espíritos é má conselheira. Entretanto, da rua e da vida, vêm constantes rumores. Descontentes.

 

O primeiro ministro parece cansado. Não se sabe se é só isso ou se é incerteza quanto ao que há para fazer. Ou vontade de ir embora. A sucessão de demissões deixou má impressão no país. Fica-se com a sensação de que os governantes não sabem que fazer, não têm competência ou não se interessam. A história da TAP, do aeroporto, dos comboios, do TGV e dos transportes públicos é reveladora desta incapacidade. As únicas coisas em que o governo parece especialista são a distribuição de subsídios e a encomenda de estudos inúteis.

 

Que aconteceu para que as escolas e os professores estejam em crise como raramente se viu? Que aconteceu para que os hospitais, as maternidades, as urgências, os médicos e os enfermeiros, para já não falar dos doentes, se encontrem neste estado? Que aconteceu para que surjam, nas áreas metropolitanas, novas barracas, mais sem abrigo e mais droga nas ruas? Que se está a passar com as políticas de população, quando a emigração continua e a imigração aumenta, com os incentivos que o governo dá ao mercado negro de trabalhadores, ao tráfico de imigrantes e ao trabalho ilegal? Que continua a passar-se com a justiça, incapaz de resolver os casos difíceis de poderosos, de afortunados e de políticos? Que se passou com o mercado da habitação que vive na desordem e revela a sua maior violência social, sem que as autoridades tenham a noção do que deve ser feito, a não ser acudir aos miseráveis?

O que se passou ou está a passar na Armada, na Madeira e relativamente ao NRP Mondego, parece ser de gravidade extrema. Poderia ser apenas um caso isolado ou um incidente episódico sem dia seguinte, mas tudo leva a crer que seja sintoma de mal-estar, de perda de confiança e de disciplina, de falha na coesão na Armada e nas Forças Armadas. Ou até de abismo entre o poder político e as Forças Armadas. Até agora, ainda não houve esclarecimento. Os órgãos de poder político esforçam-se por disfarçar. Após tantos sinais de inquietação, já seria tempo de ver o poder político preocupar-se com as Forças Armadas: não só com as questões habituais, o equipamento, a organização, os efectivos, as capacidades e os orçamentos, mas também com as questões mais importantes, o clima geral no seu interior, a relação das Forças Armadas com a sociedade e com o Estado. Era tão bom que os políticos percebessem de uma vez por todas que, sem Forças Armadas, não há democracia, nem liberdade, nem paz social!

 

A Igreja católica portuguesa, uma das mais importantes instituições nacionais, acaba de se afundar numa das suas piores crises. Por sua obra e graça! Os católicos vão ficar a perder, não se sabe por quanto tempo. Os portugueses também. A crise actual da Igreja é provavelmente a mais grave do último século. Com uma característica: não tem origem em ataques feitos a partir do exterior, da política, dos costumes e de crenças concorrentes, mas sim a partir de dentro. A Igreja, a sua hierarquia e os seus sacerdotes só se podem queixar de si próprios. A Igreja pecou por altivez e presunção. 

 

Esta crise vai ter consequências na sociedade. Crise de confiança, tanto por parte da população em geral, como do lado dos seus crentes. A dúvida e a incerteza perante a Igreja são sinais de desconfiança. Nas instituições da sociedade civil, nas instâncias do poder político, nas regras de direito e no funcionamento da Justiça. Apesar disso tudo, é difícil detectar um esforço de correcção dentro da Igreja portuguesa. Mas quase só é visível a tentativa de encobrimento, de subvalorização, de menoridade e de complacência.

 

De fora, do mundo, não chegam boas notícias. Guerra sem fim à vista. Tensão política e militar internacional. Nova crise financeira e bancária. Incerteza sanitária. Novas crises de imigração. Sérias perturbações sociais em vários países europeus. Crescimento das políticas radicais. Para tudo isto, em Portugal, era necessária uma política segura, uma democracia sólida e instituições estáveis. Além de confiança da população nos seus dirigentes. O que não parece ser o caso.

 

O Governo está a passar um mau bocado. Portugal e os portugueses também. Era bom estarmos atentos. O pior pode acontecer. Há instituições, mas são frágeis. Há recursos financeiros, mas estão a ser distribuídos e um dia acabam. Há defensores das liberdades, mas também há desconfiança e afastamento. Há partidos políticos democráticos, mas também há os que o não são e ameaçam a democracia. Há protesto político, mas o descontentamento social, sem conotação partidária, exprime-se nas ruas. Os partidos estão presentes nos meios mais agitados, mas nas escolas, nos hospitais, no Serviço Nacional de Saúde, nos transportes públicos e nos supermercados é crescente a convergência entre esquerda e direita, a ponto de se poder dizer que o protesto social é pouco partidário. O regime e o sistema de governo parecem estar a perder talento, competência e capacidade para tratar das questões de fundo e das crises presentes.

 

Há um mau ambiente social evidente. Muito mais perigoso do que a estridência política e a berraria de candidatos a salvar a pátria.  O que é realmente ameaçador é o mau ambiente, essa espécie de burburinho permanente, o descontentamento da população, as dificuldades em que vivem os cidadãos. O pior pode acontecer. Não é provável. Mas pode.

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Público, 18.3.2023

sábado, 11 de março de 2023

Grande Angular - Imigrantes: As políticas (3)

 No Mediterrâneo, recomeçou a estação de tráfico, refúgio e acidente. A Europa no seu todo e cada país em particular não conseguem elaborar e pôr em prática uma política de controlo do acesso e menos ainda de decência no acolhimento. A desordem, o sofrimento e a morte têm mãos livres neste mar e nas suas praias. O que a Europa faz favorece a travessia clandestina, o refúgio ilegal e o sacrifício de crianças e idosos. Os “negreiros” e os traficantes vivem das políticas europeias e das hesitações dos seus dirigentes. A generosidade e a compaixão de muitos europeus são vilmente utilizadas como estímulos ao crescimento do tráfico.

 

Sucedem-se os sinais de crise iminente. Surgem novas barracas e alojamentos miseráveis na área metropolitana de Lisboa. Aparecem novos edifícios inóspitos na margem Sul. Publicam-se notícias sobre o alojamento degradado ocupado por imigrantes e minorias. Descobrem-se cubículos com dezenas de pessoas amontoadas em beliches. É crescente a acidez nas discussões sobre questões raciais e de imigração. Novas disposições legais estabelecem o visto automático para as pessoas dos países da CPLP. Em Angola, são longas as filas de espera de cidadãos que tentam obter os vistos de residência em Portugal, agora facilmente distribuídos. Começa a correr o processo de legalização expedita de milhares de residentes ilegais. Dizem os jornais que, segundo o SEF, se espera legalizar de imediato perto de 150.000 imigrantes. E receber outros tantos nos próximos dois anos. A verificarem-se estas previsões, serão os mais elevados contingentes de imigrantes jamais chegados a Portugal. Descobrem-se novas fileiras de imigração especialmente usadas por mulheres à beira de dar à luz e outras situações a configurar emergência médica. Não se conhecem progressos nas numerosas situações de imigrantes alojados em condições precárias e malsãs junto às culturas forçadas e às agriculturas hiper-intensivas. As questões raciais e os incidentes envolvendo problemas de imigração, de minorias e de estrangeiros ocupam cada vez mais a atenção e as preocupações. 

 

A imigração, em Portugal, faz-se sem política e sem escolhas. E sem respostas às questões difíceis. Há recursos humanos, de equipamento e de capital, para abrir as portas? Há cidades e habitação decente à altura? A economia necessita desta mão-de-obra? Haverá emprego suficiente para os residentes e para os novos imigrantes? Estão preparados os serviços sociais, as escolas, os hospitais, a habitação e os transportes para estes novos fluxos de população? Algumas vez estas políticas foram sufragadas pelo eleitorado e aprovadas pelo Parlamento?

 

A habitação é quase um problema à parte. Pela sua natureza, pela dimensão, pelo custo e pela durabilidade das decisões, os problemas de habitação são uma espécie de lugar geométrico de todas as questões sociais da imigração. Por vias da habitação, definem-se bairros, prédios e ruas, numa palavra, comunidades. Em grande número de países europeus a distribuição geográfica das comunidades imigrantes tem conduzido à fixação de áreas de especialidade nacional, de concentração étnica e de segregação. As cidades europeias, tanto os seus centros históricos como as suas periferias, transformam-se em territórios próprios e exclusivos de comunidades nacionais. As grandes cidades fragmentam-se de modo ameaçador para a paz social e o convívio entre povos. A segregação aumenta a separação, o confronto e o conflito, o que agrava as dificuldades de integração social. O descontrolo das migrações e a abstenção relativamente à organização das sociedades e dos espaços são convites à marginalidade. É uma infâmia o mercado ilegal de residências, vistos, autorizações de trabalho, certificados de casamento, títulos de adopção, contratos de trabalho falsos e outras habilidades destinadas a fomentar uma imigração oportunista.

 

As novas modas e doutrinas apoiam de modo crescente as opções multiculturais. O que quer dizer que se defende que cada comunidade, nacional ou imigrante, mantenha as suas tradições, a sua cultura, os seus costumes e até as suas regras “legais”. Ora, é superior a política que recorre e aceita imigrantes, mas que opta deliberadamente pelas políticas de integração cultural, social e económica, em detrimento das políticas do multiculturalismo, de preservação do mosaico de regras e costumes, geralmente propícios à instalação de sociedades paralelas, de comunidades marginais e de estranhas formas de apartheid.

 

A integração é, em democracia, um factor de agregação e não de fragmentação, como é o multiculturalismo. Este último, aliás, levanta problemas de enorme dificuldade. Que fazer, numa sociedade que privilegia o multiculturalismo, com a aprendizagem da língua, o respeito pelas leis sobre violência física e familiar, a poligamia, as regras de saúde e higiene pública, o respeito pela individualidade da pessoa humana e a crença na inviolabilidade da vida humana? 

 

É difícil formular políticas de integração, mesmo sabendo que são essas as que melhor defendem os direitos dos imigrantes, tanto quanto os dos já residentes. É difícil porque os inimigos da coesão social consideram essas políticas racistas ou autoritárias. Mas são princípios simples. Os imigrantes não devem ter direitos diferentes, em nenhum aspecto, aos dos residentes e nacionais. A imposição de regras pelos traficantes de mão de obra deve ser recusada. Ninguém ilegal, indocumentado ou clandestino deve ser aceite, a não ser em casos excepcionais de sofrimento e perigo. A aprendizagem da língua deve ser promovida. A mera utilização de serviços de saúde por estrangeiros que assim abusam das facilidades existentes deve ser proibida. A integração vem acima de tudo.

 

O multiculturalismo acrescenta-se à política de porta aberta e de acolhimento universal. São duas tendências perniciosas. Pela segunda, um país renuncia ao seu direito e ao seu dever de organizar, programar, legalizar e cuidar dos fluxos migratórios. Mesmo que nunca seja possível, a não ser em ditadura, controlar absolutamente estes movimentos populacionais, é sempre possível aumentar o controlo, o planeamento e a previsão, a fim de melhor organizar a sociedade e os serviços públicos. Pela primeira atitude, a que defende o multiculturalismo, abre-se a porta a verdadeiros apartheids culturais, com regras e direitos próprios, verdadeiros alfobres de conflitos sociais e raciais. Sob a aparência de respeito pelas culturas e pelas identidades, o multiculturalismo é um convite à ilegalidade e à fragmentação. Nestas questões, a complacência é tão perigosa quanto a opressão.

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Público, 11.3.2023

segunda-feira, 6 de março de 2023

Grande Angular - Imigrantes: As escolhas (2)

 Por egoísmo e necessidade, Portugal acolhe todos os anos uns milhares de imigrantes de que precisa. No quadro da quebra de natalidade verificada nas últimas décadas, os motivos são muitos. Os mais importantes estão ligados ao trabalho e à economia. Sobressaem as necessidades de mão-de-obra. Há falta de trabalhadores em muitos sectores. Os residentes emigram ou fogem de certos trabalhos. Os imigrantes ajudam à produção nacional e à exportação de bens e serviços, assim como ao aumento do consumo. Os legais contribuem para os rendimentos da Segurança Social e para as receitas fiscais. Por todas estas razões, Portugal necessita de imigrantes.

 

Não é só por necessidade que Portugal acolhe imigrantes. Há também motivos relacionados com os valores dominantes em cada tempo e sociedade, como sejam a humanidade e a solidariedade. Ou obrigações ligadas a compromissos e ao espírito prevalecente em comunidades internacionais. Sem falar na humanização destas políticas, como se pode verificar quando há imigrantes que se justificam pela reunião famílias. Cada país tem refugiados em múltiplas situações que ilustram estes motivos para as migrações e que estão por vezes bem longe do interesse e da necessidade.

 

Há, no mundo, milhões de candidatos à emigração para países mais ricos, desenvolvidos, abertos e com necessidades de mão-de-obra. Conforme os quadrantes geográficos e as relações sociais, políticas e económicas, os candidatos à emigração dirigem-se para os países da sua escolha. Ou que se enquadrem numa tradição social, política e cultural. Ou simplesmente países que oferecem oportunidades. Há também milhões que tentam fugir por desespero e miséria, para sobreviver. Dirigem-se para qualquer país possível. Muitos são perseguidos e procuram abrigo. A grande maioria dirige-se para os países europeus e norte-americanos. Há também, em números consideráveis, pessoas que se deslocam para qualquer sítio, de preferência países vizinhos, para fugir às guerras. Vários países africanos estão nestas circunstâncias. Actualmente, também da Ucrânia partiram milhões de deslocados.

 

As políticas dos países de acolhimento variam. Uns têm controlos apertados e exigem contratos de trabalho, períodos experimentais, actividades sazonais antes de empregos permanentes e autorizações temporárias antes das definitivas. Há países que tentam administrar as migrações segundo as necessidades da economia, as oportunidades de trabalho, a existência de familiares já estabelecidos e as especialidades profissionais. Há ainda os que tentam definir quotas por nacionalidade, isto é, só aceitar originários de certos países. Há finalmente países que abrem as portas a imigrantes sem controlo ou quase sem condições.

 

Importa notar que, entre os países que recebem imigrantes e refugiados, contam-se só democracias. As ditaduras e regimes equiparados não aceitam imigrantes nem refugiados. Não há imigrantes na China, na Rússia, na Bielorrússia, na Venezuela ou na Coreia do Norte. Como não havia na União Soviética ou nos países comunistas, nem nos países fascistas. Das ditaduras foge-se, para elas não se emigra. Os êxodos de massas em situação de guerra podem, como foi várias vezes o caso em África, orientar-se para países próximos da ditadura, mas trata-se de emergências vitais.

 

Em Portugal, como em quase todos os países da Europa e da América do Norte, discutem-se as políticas de acolhimento. Os problemas são muito graves. Já se percebeu que esta questão está em agravamento e vai transformar-se num dos mais sérios problemas da Europa. Ainda por cima, estamos a tratar de questão que exige aproximação global, isto é, europeia, mas também nacional. É provável que nunca se consiga pôr em prática uma política europeia. Cada povo tem a sua história, a sua cultura e os seus amigos. Por mais que se avance na integração europeia, a diversidade marcará as escolhas e as políticas. E quando esta não é respeitada, as pulsões nacionalistas, democráticas ou não, surgem imediatamente.

 

A política dita de porta aberta, de acolhimento de quem vem, de tolerância com a ilegalidade, é um estímulo às piores condições de imigração. Por exemplo, às redes de tráfico de trabalhadores, uma espécie de negreiros, que, dos confins da Ásia ao Próximo Oriente e do Mediterrâneo a África, organizam os fluxos, incluindo salva-vidas deficientes, mudanças de barcos e de aviões, alternância de autocarros e outros meios de transporte. Esta gente deveria ser perseguida. Os preços de uma passagem para qualquer país da Europa podem oscilar entre três e trinta mil euros. Os acidentes, os naufrágios e as mortes acidentais fazem parte da pressão exercida sobre os países de acolhimento para que, por motivos humanitários, recebam toda a gente, especialmente mulheres, crianças, idosos e parturientes. Pior ainda: os acidentes estimulam o negócio.

 

Quaisquer que sejam os argumentos, das necessidades de mão-de-obra à humanidade, uma coisa é certa: as práticas seguidas actualmente por Portugal são incentivos à clandestinidade, ao tráfico e ao abuso dos imigrantes pobres, sobretudo dos ilegais. Por isso, as melhores políticas de acolhimento são aquelas que definem os princípios orientadores de controlo de movimentos e de legalidade de contratos de trabalho e de autorizações de residência. 

 

Além disso, é natural que um país queira privilegiar umas tradições e umas culturas, isto é, umas nacionalidades, em detrimento de outras. Também parece natural que um país, o seu povo e os seus representantes queiram definir preferências profissionais, isto é, imigrantes que venham preencher lacunas, abrir oportunidades e desenvolver certas actividades. 

 

As políticas de imigração, em Portugal e noutros países europeus, não são sufragadas pelo eleitorado. E deveriam ser. Quase não há referendos sobre a imigração, nem aliás é certo que esse seja o melhor método de decidir. O parlamento nunca foi chamado a aprovar uma política consistente e pormenorizada de imigração. Nos programas eleitorais, os partidos ficam-se por proclamações vistosas sem medidas concretas. Em geral, os partidos têm medo de se comprometer com as migrações. Preferem agir, no governo, por medidas administrativas. Ou deixar correr a vida e acudir quando há problemas.

 

Ora, uma coisa é segura. É absolutamente legítimo que um povo queira decidir o que é melhor para si, sobretudo no que toca à população. A melhor maneira de o fazer é evidentemente a de escolher as vias e os compromissos que lhes são apresentados. Desde que o sejam!

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Público, 4.3.2023 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Grande Angular - Imigrantes: As contas (1)

Ninguém sabe ao certo quantos estrangeiros vivem em Portugal. Nem a que título. Nascido no estrangeiro ou aqui? De nacionalidade estrangeira ou naturalizado? Imigrante temporário ou definitivo? Com ou sem familiares? Legal ou ilegal? Turista, empresário, assalariado, reformado ou desportista? Com ou sem idosos, crianças e parturientes para os serviços de saúde? À procura de oportunidade para ir para outro país europeu? À espera de autorização? Tratador de estufas ou comerciante de endereços falsos? Africanos, europeus, latino-americanos, árabes ou asiáticos? Do INE à PORDATA, passando por vários organismos oficiais (ACM, SEF, etc.), pelos jornais, pelas universidades e por entidades privadas, não se conseguem números aproximados. Entre 400.000 e 850.000 tudo é possível. O que revela pelo menos um facto essencial: ninguém realmente se interessa e as autoridades preferem esta situação pois lhes poupa esforços, clareza no propósito político e escolhas difíceis. Mesmo as indispensáveis previsões para os impostos, assim como os grandes serviços de saúde, educação e segurança social são impossíveis!

 

Com valores anuais de emigração de portugueses para o estrangeiro oscilando entre os 30.000 e os 70.000, o nosso país voltou a uma era parecida com a dos anos 1960: são dois períodos muito parecidos neste denominador comum, o do falhanço da economia e da sociedade para alimentar e empregar a sua população. Mas com diferenças interessantes. Primeiro, na altura, não havia imigração, agora há, com valores por vezes parecidos (20.000 a 50.000 por ano). Segundo, então, saiam portugueses analfabetos, sem formação profissional, pobres e dispostos a tudo. Hoje, saem portugueses educados, com formação profissional e experiência, muitas vezes com diplomas superiores e universitários. Portugal fica a perder e muito! Terceiro, a emigração, naqueles anos, contribuiu para a rarefacção da mão-de-obra, o pleno emprego e o aumento generalizado dos salários. Hoje, a imigração é um incentivo ao decréscimo de salários e à precaridade do emprego.

 

Não tenhamos dúvidas: a emigração continua a ser um problema sério do país e a imigração está a transformar-se numa das mais graves questões da sociedade. Tal como noutros países europeus, a imigração e as suas consequências mudaram as sociedades e têm influência na política muito acima do que se esperava. A discussão está de tal modo envenenada que poucos são os que dizem claramente o que pretendem e o que propõem.

 

Há grandes mal-entendidos e enormes preconceitos relativamente aos imigrantes. Do lado positivo, rejuvenescem e diversificam a população, aumentam a democraticidade e o pluralismo da sociedade, dão rendimentos ao país e sustentabilidade à segurança social, fazem o que os portugueses já não querem fazer, ajudam à exportação através de muito trabalho com salários baixos, permitem uma grande flexibilidade no recurso à força de trabalho por parte das empresas, diminuem a rigidez do mercado de emprego, alargam os horizontes cultuais e religiosos do país e diminuem a carga nacionalista da educação e da cultura nacionais.

 

Do lado negativo, não são menores as consequências da chegada de imigrantes que desvirtuam a identidade nacional, alteram as características culturais do povo, não respeitam as regras e leis do país que os acolhe, promovem a ilegalidade, vivem na marginalidade, alimentam redes de tráfico e de criminalidade, comportam-se como verdadeiros racistas, exigem que os seus usos e costumes se sobreponham às leis em vigor, contribuem para o desemprego de nacionais, fazem concorrência desleal aos trabalhadores nacionais e forçam a manutenção de salários baixos.

 

Em tudo o que precede, há verdade e mentira, há facto e preconceito. Mas há de tudo. E é por isso que a questão da imigração é tão difícil. Num mundo simples, há duas políticas essenciais. De um lado, a porta aberta, a aceitação de todos os imigrantes que queiram vir para o país, o fácil acolhimento dos que vêm, a ajuda automática aos que querem residir aqui, eventualmente trabalhar, fazer família, educar, recorrer aos serviços públicos… Os defensores desta atitude proclamam que ninguém deve ser obrigado a legalizar-se à chegada, que não se deve exigir autorização de residência nem contrato de trabalho. Que se devem aceitar, sem condições, os que venham à procura de trabalho. Que não se devem impor regras e costumes contrários às suas crenças e se devem respeitar os seus costumes. Que se deve permitir a imigração de núcleos familiares completos e não apenas dos trabalhadores. Que se deve garantir a todos os imigrantes, legalizados ou não, acesso gratuito e universal aos cuidados de saúde e à educação dos menores.

 

Do outro lado, ninguém propõe, que se saiba, a porta fechada, isto é, a total proibição de imigração, mas defendem-se várias orientações ou políticas, como sejam a restrição de candidatos à imigração em conformidade com as necessidades do mercado e da economia e a obrigatoriedade de chegar ao país já com um contrato de trabalho. Defende-se que ninguém tenha vistos e autorizações permanentes sem contratos e residência e sem ter previamente uma história de contratos temporários. Que se devem institucionalizar formas de integração como sejam a prática da língua nacional e o conhecimento de fundamentos da história do país. Que se devem taxativamente proibir todas as práticas culturais dos imigrantes que manifestamente promovam a violência contra as mulheres e as crianças.

 

Quaisquer que sejam os argumentos e as justificações, das necessidades de mão-de-obra à humanidade e da competitividade à fraternidade, uma coisa é certa: as políticas e as práticas seguidas por Portugal, actualmente, são incentivos à clandestinidade, ao tráfico de mão-de-obra, ao abuso dos trabalhadores e a novas formas de racismo. As tensões que se anunciam, exploradas já por grupos políticos activistas, são resultado da falta de certeza e de clareza nas políticas públicas. Por exemplo, as ideias anunciadas pela comunicação social relativas à abertura de legalizações aceleradas de mais de uma ou duas centenas de milhares de imigrantes até ao fim do ano são perigosas e nefastas.

O que fará a qualidade da sociedade portuguesa não é o número de imigrantes que o país receberá. Mas sim o conforto, o respeito e a dignidade com que souber acolher os que cá viverem. E a fraternidade com que saibamos receber alguns por reconhecer o desespero e o sofrimento nos seus países de origem.

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Público, 25.2.2023

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Grande Angular - O perdão, o castigo e a desculpa

 É o pior que pode acontecer: confundir o perdão e a desculpa. Neste caso, a Igreja, uns Bispos, um grande número de padres e outros poderão ter perdão, o que é um assunto da hierarquia, dos fiéis, das vítimas e dos familiares destas. Mas não têm desculpa, e este assunto pertence à sociedade e às instituições. E se não têm desculpa, merecem castigo.

 

A Igreja pode suspender ou expulsar Bispos, Padres e outros. Mas não os pode castigar pelos crimes cometidos. Esta última função é das instituições. Aquilo de que se trata é de crimes, não de divergências religiosas, nem de polémicas litúrgicas. A Igreja é conivente, os arguidos são os padres. 

 

Os crimes foram vários. Abuso sexual de menores, violação, cumplicidade e encobrimento. Nenhum destes crimes merece o perdão da sociedade, muito menos desculpas. O encobrimento, em particular, que atingiu uma dimensão considerável.

 

Apenas uma muito pequena parte dos crimes aparece neste relatório. Em circunstâncias proporcionais, menos do que em muitos outros países, como os Estados Unidos, a Irlanda e a França. A Igreja não ajudou. Os meios e o tempo foram escassos. Os arquivos mantiveram-se excessivamente fechados. Já houve sacerdotes, membros da comissão e fiéis que declararam, sem hesitar, que tudo o que foi desvendado fica muito aquém da realidade. Se esta comissão parece ter cumprido o seu dever, já a Igreja está muito longe de o ter feito.

 

Sabemos, todavia, que a natureza do regime político e a liberdade de expressão não foram variáveis importantes. Na verdade, estes crimes praticados na Igreja e por eclesiásticos, durante setenta anos, tanto o foram durante a ditadura, como na democracia. Além disso, o clima de frugalidade e de repressão sexual, como era antigamente, e o de permissividade e de exibicionismo, como é agora, conviveram igualmente com estes crimes.

 

Uma primeira lição a retirar é a de que a Igreja, por si só, não é capaz de pôr um termo a estas práticas e castigar os seus autores e responsáveis. Há muito que a Igreja sabia. Há muito que “todos sabiam”. Mas ninguém tinha provas. Nem queriam ter.

 

Uma segunda lição, ou conclusão, é a de que a Igreja ficará com o encargo de tratar das questões internas, da liturgia, da suspensão, da expulsão e da prevenção, mas depende da justiça e das instituições uma acção mais eficaz e mais justa: legislar, castigar, prevenir e publicitar. Mas a Igreja tem também de estar consciente de que o seu silêncio é o pior incitamento ao crime e à prossecução destes actos. Quer isto dizer que deve, também para efeito internos, colocar um termo à ocultação, à desculpa e à cumplicidade.

 

O que podem os cidadãos, as instituições e as autoridades fazer para ajudar a Igreja a tratar destas questões? Antes disso, é preciso que a Igreja aceite ser ajudada e queira resolver e prevenir. Se assim for, às instituições e aos cidadãos compete sobretudo a função de legislar, prevenir, julgar e castigar. E demonstrar que um crime cometido na Igreja tem um valor diferente do mesmo crime perpetrado na sociedade.

 

O que podem fazer os fiéis para ajudar a Igreja a evitar a perpetuação deste problema? Ter mais voz, participar nos assuntos da congregação, sem pensar que está a pôr em causa a fé. É como na política: sem a pressão dos fiéis e sem a participação dos crentes, a Igreja não se emendará. Talvez fosse possível, há séculos, manter o silêncio e a passividade. Hoje, já não é. Os costumes mudaram. As liberdades mudaram. A consciência cívica mudou. As solicitações multiplicaram-se. As vocações estão em crise fatal (pelo menos nos países ocidentais). A prática religiosa também. 

 

É verdade que a Igreja abriu portas e gavetas. Ou antes, entreabriu. Esperemos que faça mais, muito mais. Esperemos que os fiéis exerçam os seus direitos e não tenham receio de enfraquecer a Igreja com a exigência da verdade e da justiça. Pelo contrário. Se a Igreja quer sair desta história com alguma força, não será com ocultação que o conseguirá. 

 

A Igreja fez muito, ao longo dos séculos, por Portugal, pela Europa e pela cultura ocidental. Devem-se-lhe identidade, valores, artes e serviços incontáveis. Até para a separação de Deus e de César, ou a distância entre o Livro Santo e a Constituição, o cristianismo e a Igreja católica foram mais longe do que outras crenças. É uma história sólida. Os tempos modernos e o sexo estão a destruir esse património. E a arredar a Igreja para uma despensa de velharias. Quando não para uma cave de torturas. A Igreja está obrigada a pensar e a reformar-se de modo a poder continuar a prestar serviços aos cidadãos. Aliás, se houver reparação das vítimas, é à Igreja que compete suportar os encargos, não ao Estado.

 

Nem sempre, nos últimos séculos, a Igreja portuguesa se ilustrou por um contributo marcante de bondade, de justiça e de igualdade, apesar de se considerar sempre fiel a esses valores. Mas a verdade é que, desde o fim da ditadura e do início da democracia, a Igreja brilhou pelo seu papel moderador e agregador. Apesar do jacobinismo reinante e do anticlericalismo sempre em moda, o balanço da acção da Igreja é positivo. Agora, está em causa este passado recente. É incerta a possibilidade de ser útil ao país e aos cidadãos, não apenas aos seus fiéis.

 

O que pode fazer a Igreja para retomar o seu papel importante e moderador na sociedade portuguesa? Nada se fará se for só na Igreja portuguesa. Se não houver o resto, a começar pelo Vaticano, nada será feito aqui. Mas se a Igreja souber castigar, sem desculpar, então teremos esperança. Mais ainda, se a Igreja entregar à Justiça o que à Justiça pertence.

 

Será que a justiça portuguesa, tão tíbia e ineficaz perante casos difíceis, está à altura de avaliar e julgar dezenas de padres e uns tantos Bispos pelos crimes de abuso sexual de menores ou encobrimento? Poderá a justiça estar à altura dos outros casos? É que, evidentemente, na Igreja, não há só abuso de menores. Há também os abusos, o assédio e as violações de adultos. Sem falar nas numerosas instituições sociais e equiparadas, colégios privados, internatos, organizações desportivas e militares, lares, associações de juventude e outros. Sem esquecer, evidentemente, que é no seio da família que ocorre a maioria de abusos e de violência, sexual e de género, de menores e de adultos. Verdade é que nem este alargamento de âmbito pode servir, como já há quem o tente fazer, para dissolver as responsabilidades da Igreja e dos padres. Nem a visibilidade titilante dos crimes da Igreja deve permitir pensar que não há mais. Mas há. Muito mais.

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Público, 18.2.2023

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Grande Angular - Governo forte de Estado fraco

 É uma ilusão pensar que o Estado é, em Portugal, enorme, pesado e forte. Talvez seja enorme. Pesado é certamente. Forte é que não é seguramente. Alvo de predadores. Isco de caçadores. Pretexto de manobradores. E pedaço para gananciosos. Qualquer dos epítetos lhe serve. Forte é que não. Instrumento de poderosos. Volúpia de minorias. Burocracia de insaciáveis. Ferramenta dos mais fortes. Protecção dos estabelecidos. Tudo lhe serve. Forte é que não. Volúpia dos democratas. Lascívia dos autoritários. Sonho dos ditadores. E encanto dos Republicanos. Qualquer imagem lhe fica bem. Forte é que não. Cão de fila dos ricos. Esperança dos fracos. Paraíso dos racionalistas. Sonho dos fantasiosos. Também estes rótulos se lhe aplicam. Forte é que não.

 

Não tenhamos dúvidas: o governo, os sucessivos governos destruíram a força do Estado, decapitaram-no, amordaçaram-no, liquidaram a sua isenção e definharam a sua inteligência. Além de terem atrofiado, activa ou passivamente, a sua mais nobre função, a da administração da Justiça.

 

Há em Portugal um clima de cortar à faca, aquele onde se sente a corrupção, onde se vive da cunha, onde se julga que a democracia é o poder discricionário de quem tem os votos. Os últimos episódios de nomeação, demissão e substituição apressada de ministros, secretários de Estado, assessores, conselheiros, Altos funcionários, directores e administradores, são reveladores de desorientação. Ainda estamos longe da “noite das facas longas”, mas o ambiente é de terror. Só não há mais fugitivos, porque todos sabem, ou esperam, que a justiça não funcione. Como tem sido o caso.

 

É longo o catálogo de episódios, dramáticos uns, picarescos outros, que nos últimos meses e anos ilustram este ambiente pouco sadio para a democracia. Entre os mais recentes, as festividades das Jornadas da Juventude têm revelado graus de incompetência e de subserviência inimagináveis. Jacobinos de quatro costados, beatos de primeira água e ateus virtuosos parecem ter combinado entre si a elaboração deste auto burlesco, revelador de imprevidência e oportunismo. E quem pior se portou foram os poderes públicos.

 

Em todas as grandes obras e empresas que, recentemente, têm estado nas primeiras páginas, nota-se a persistência dos mesmos defeitos. Falta de capacidade científica do Estado. Incapacidade de previsão e planeamento. Emaranhamento de interesses legítimos ou não.

 

Há casos que serão um dia capítulos dos manuais de história, dos compêndios de gestão, dos tratados de administração, dos dicionários de práticas nocivas e eventualmente de súmulas de casos de justiça. O novo aeroporto de Lisboa é o exemplo mais importante. Adiado, atrasado e refeito durante décadas, foi objecto, pelas mesmas pessoas, pelos mesmos gabinetes, pelos mesmos governantes ou por governantes dos mesmos partidos, de decisões contrárias e contraditórias à distância de décadas, de anos e de meses. O futuro aeroporto de Lisboa já teve seis localizações, três das quais definitivas. Regulamente, volta ao princípio, à casa de partida. É obsceno o que já se gastou, disse e fez para o aeroporto de Lisboa. Há décadas que o poder político não decide. Que os técnicos do Estado não conseguem prever e avaliar. Que as empresas que trabalham para o Estado ganham para fazer o que lhes mandam, em vez de fazer o que devem: planear, projectar e antecipar.

 

Se este é o caso mais confrangedor, de outros reza a história de que não nos cansamos de ouvir falar. Porque estão sempre aí. O SIRESP, sistema de comunicações do Estado é outro exemplo que nos enfeitiça. Novos contratos, novas indemnizações, novas falhas e novos sócios: há matéria para sagas perpétuas. A linha de TGV e a nova rede de caminho de ferro estão também aí, há décadas, à espera, sempre prontas a recomeçar e esquecer.

 

A TAP está no quadro de honra da incompetência, da má gestão, do oportunismo e provavelmente da corrupção. Sempre com o governo no centro das decisões. Sabemos o que aconteceu com outras grandes empresas de serviços e de indústria, nos sectores das máquinas, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e dos combustíveis. O país perdeu importantes centros de decisão. Os governos não se emendaram. E o denominador comum destas decisões parece ter sido sempre a falta de competência técnica e de capacidade científica do governo.

 

O Estado dispensou gradualmente centenas ou milhares de técnicos competentes e de especialistas qualificados, trocando todos por pessoal burocrático, com poderes para tratar das vidas dos outros e da sua, mas sem conhecimentos para avaliar e prever. Aos técnicos, aos cientistas, às pessoas qualificadas que dariam à decisão política a certeza e o rigor necessários ao bem público, o Governo prefere assessores, conselheiros, especialistas de imagem, técnicos de comunicação e encarregados de imprensa que compram e vendem o que quer que seja, pessoas certas, ideias erradas, projectos verdadeiros, mentiras e verdades. 

 

Este Estado vive sem instituições autónomas, pois tenta controlar tanto quanto possível, deixando que a auto-regulação seja cada vez mais uma figura de estilo. A actual discussão sobre as novas leis que regulam as Ordens profissionais é mais um sinal inequívoco. A pretexto de lutar contra o corporativismo, bandeira que fica sempre bem, o Governo pretende simplesmente mandar nas Ordens, regular os reguladores e ditar as regras. As suas novas leis para as Ordens profissionais são quase um mandato de captura! 

 

Ainda a sofrer de décadas de pretenso igualitarismo, os vencimentos dos quadros superiores do Estado e dos sectores públicos são ridículos, verdadeiros incentivos à emigração para o estrangeiro, para o sector privado e para a criação de escritórios e empresas que acabam por desempenhar as tarefas de que o Estado foi despojado, mas a preços verdadeiramente especulativos. Submetidos à direcção política tantas vezes incompetente, obrigados a cumprir regras absurdas, os técnicos e os cientistas mais capazes não são motivados e não se sentem atraídos pela esfera pública.

 

Mas não se trata apenas, nem sobretudo, do problema dos vencimentos dos quadros superiores do Estado. É também o facto de assim se poder recorrer a empresas de negócios exteriores. E ainda o pormenor de o poder político decidir sozinho, sem o rigor da ciência e da técnica. Presa de interesses económicos e políticos, o Estado português não tem capacidade científica. Não tem inteligência. Não tem isenção. Não tem sabedoria.

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Público, 11.2.2023

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Grande Angular - A morte do Parlamento

 A lei dita da Eutanásia não é a lei da Eutanásia. É, isso sim, a lei da Morte Medicamente Assistida, com duas hipóteses: uma, a do Suicídio Medicamente Assistido; outra, a da Eutanásia praticada, a pedido do doente, pelo Medico Assistente. Quer isto dizer que a Eutanásia não solicitada pelo doente, assim como qualquer outra forma de terminar a vida de alguém, sem pedido nem acção do doente, está excluída desta lei. Espera-se que para sempre.

 

A lei foi votada por partidos. Os que votaram a favor, os que se abstiveram e os que votaram contra foram sempre partidos. Com ou sem declaração de voto, com ou sem frases sopradas para jornalistas de conveniência à saída de uma reunião, não se conhecem pensamentos, decisões, deliberações, argumentos ou sentimentos individuais dos deputados. Sabe-se o que pretendem os partidos, mas, salvo raríssimas excepções, não se sabe o que querem os deputados. Cada um dos 230 pensa e diz o que o seu partido pensa e diz; acredita e vota no que o seu partido acredita e vota. São muito poucos os que entendem que os seus eleitores têm o direito de saber o que eles pensam e votam, não apenas os seus partidos. Como é sabido, votar livremente, de acordo com a sua consciência, pode ser, se for diferente do seu partido, um gesto muito perigoso para a carreira.

 

No trânsito entre São Bento e Belém, ida e volta, com paragem no Palácio Ratton, à Rua do Século e nos seus episódios, sérios uns, caricatos outros, esta lei revela mais um império partidário: no Tribunal Constitucional vota-se muito de acordo com os partidos de influência e de origem. Os jornais, solícitos e atentos, já publicam as estatísticas dos Juízes e dos seus votos de acordo com a distribuição partidária. O que, para um Tribunal Constitucional, é impensável e degradante. Mas é assim, infelizmente. É possível e por vezes interessante “classificar” os magistrados constitucionais, saber, por exemplo, os que são progressistas ou conservadores, crentes ou ateus, liberais ou reaccionários, defensores da regionalização ou centralistas. Isso é uma coisa. Que até pode variar e cruzar-se ou não com os partidos parlamentares. Mas não deveria estar garantido que, em geral, votam conforme os partidos que os designaram. 

 

Poderia pensar-se que estas fortalezas parlamentares, feitas de tropas obedientes, compostas por deputados que fazem o possível por não se distinguir e que abdicam da sua individualidade, são condições de estabilidade e de certeza política. Paradoxalmente, não é verdade. Apesar de disciplinados e anónimos, os deputados são sistematicamente tentados pelas iniciativas marginais e pelas invenções “societais” ou “civilizacionais” com que os activistas (nova e estranha categoria política…) os distraem ou tentam convencer.

Regresso a São Bento, onde, o Parlamento está a ser comandado pelas suas margens. À direita, o CHEGA condiciona o PSD, impõe-lhe regras e reflexos, sugere movimentos, lidera a sua respiração e estimula os seus reflexos. O PSD, com horroroso pavor do CHEGA, tenta fazer o seu serviço, com receio do extinto CDS, da ascendente IL e sobretudo do surpreendente CHEGA. Este último, não precisa de pensar, elaborar, estudar e propor, basta-lhe reagir, reclamar e denunciar. Nunca se viu um partido ganhar tanto fazendo tão pouco. A cada berro do CHEGA, o PSD treme. Neste partido, toda a direita treme. É verdade que o CHEGA só pensa nisso: destruir o PSD, afastar o PSD, colher votos do PSD, perturbar deputados do PSD e provocar divisões no PSD. Mas também é verdade que, no PSD, só se pensa nisso: como se libertar do CHEGA, como evitar o CHEGA e como impedir o CHEGA de crescer.

 

À esquerda, as coisas são diferentes, dado que o PS está no Governo. Mas a semelhança de situações é maior do que parece. Na verdade, as margens das esquerdas, o PCP e o BLOCO, comandam muito do que o PS é e quer ser. Até já comandam, um pouco, algumas iniciativas do Governo. Apavorados com as suas minorias e descrentes nos amanhãs e nas suas gloriosas fantasias, estes partidos, um de trabalhadores conservadores, outro de burgueses radicais, têm um só objectivo: desmembrar o PS. Criar a dúvida e a intranquilidade nos deputados socialistas, seduzi-los com rupturas radicais e revoluções de costumes e prometer ternura militante e calorosas bases sociais, são as linhas de acção destes partidos das margens. A verdade é que conseguem. Muitas das suas propostas sobre a eutanásia, o casamento, o divórcio, a adopção, a união de facto, a homossexualidade e suas variantes, as actividades culturais, as campanhas contra o racismo e aquilo a que chamam a descolonização e a desracialização, têm como o objectivo primordial desestabilizar o PS. O que têm conseguido com brilhantismo. Nunca se viu partidos tão pequenos e tão insignificantes terem tanta influência no Parlamento e na vida política nacional.

 

Temos assim que os dois grandes partidos do sistema, PS e PSD, pouco se ameaçam ou contrariam reciprocamente, antes agem em função das margens que comandam cada vez mais o Parlamento. Ainda não, muito, a vida social e política, mas sim, cada vez mais, o Parlamento. O que não é pouco. Entregar o Parlamento às margens activistas é meio caminho andado para tornar o país instável e ingovernável. Há muitos problemas a tratar e tentar resolver com enorme urgência, como sejam a educação e o Serviço Nacional de Saúde. Mas tal só se pode conseguir se houver equilíbrio e algum consenso de ponderação. Nunca se resolverá com as margens radicais.

 

Pode a liberdade individual fazer perder a qualidade da representação? É bem possível que seja o contrário a verdade. A escolha faz-se pelo valor intrínseco do que se diz e promete e pelas garantias oferecidas por um percurso, não pela autorização partidária e burocrática. Pode a liberdade de candidatura e de voto aumentar a imprevisibilidade? É provável. Mas a democracia é imprevisível por definição. E o melhor caminho para ultrapassar os riscos da imprevisibilidade não é o do arranjo autoritário, mas sim o do entendimento, da negociação e do diálogo. Será que a liberdade individual dos deputados é um risco para a estabilidade? É possível que sim. Mas a liberdade tem preços. Que valem a pena. A livre representação democrática é uma das figuras ou entidades mais dignas da vida política. É condição de nobreza da função.

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Público, 4.2.2023

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Grande Angular - A crise e os remédios

 Ninguém duvida de que vivemos uma das mais preocupantes crises das últimas décadas. Já não bastavam os problemas internacionais que nos ultrapassam. Os nossos próprios parecem pelo menos tão difíceis de resolver. A invasão da Ucrânia pelos Russos, seguida de um dos mais nefandos massacres que se pode imaginar, é suficiente para deixar o mundo perplexo. A nova tensão internacional, perigosa como poucas, vai durar muito, de mais. Mas é perante isso, as dificuldades e os imprevistos, que a competência, a força e a inteligência são necessárias. O Governo invoca aqueles factores para desculpar as suas fraquezas, mas é exactamente o contrário de que se trata: é por causa dos perigos e das ameaças que exigimos acção do Governo.

 

Os recentes episódios das demissões de governantes, em situação de crise moral, de incompetência, de sordidez ou ambição pessoal, ilustram as carências do Governo e da autoridade democrática. A situação caótica que se vive na educação e na saúde mostram a enormidade das insuficiências. O muito actual episódio das Jornadas da Juventude, verdadeiramente indecoroso pela falta de seriedade e de competência, revela a incapacidade das instâncias de poder democrático para tomar conta do que devem e assumir as suas responsabilidades. O problema não é evidentemente o dos casos, como gosta de dizer o Primeiro Ministro. O problema já é de desnorte.

 

É verdade que parece haver algum crescimento económico. Pouco. Menos do que outros. Não tanto quanto precisaríamos. Mas é alguma coisa. Não sabemos se a política do governo teve influência ou se é simplesmente a economia e a empresa. Mas aceitemos que o Governo não é culpado de ser um obstáculo às forças económicas.

 

Também parece certo que houve melhoramento nas condições da pobreza e algum progresso nas acções de redistribuição, factos a que não será estranha a acção do Governo. Mas, também aqui, sabemos nós e o Governo sabe que tal não é suficiente e que há muito mais a fazer, designadamente investimento e emprego.

 

Se há progressos, poucos, há retrocessos, bastantes, e deficiências, muitas. O SNS desorganizado e sem médicos é revoltante! Maternidades fechadas de vez em quando é absurdo. Falta persistente de enfermeiros é incompreensível. Dezenas de milhares de alunos sem um ou mais professores é escandaloso. Uma ou duas dezenas de anos de espera para julgar um arguido poderoso é imoral. O desastre reinou nas infra-estruturas, com relevo para o aeroporto e a TAP. A desorientação relativamente à imigração ilegal e aos trabalhadores clandestinos deixa prever conflitos a breve prazo. A persistência da emigração de portugueses para o estrangeiro, com valores próximos dos da década de 1960, situação que não mereceu atenção deste governo, é talvez o mais chocante sinal de incapacidade política e económica.

 

Não é por causa da crise internacional que o momento é de alerta. É por causa das crises nacionais que começa a fazer-se tarde. Do primeiro ministro, do seu governo e do seu partido exige-se uma reflexão a que parece recusarem-se. Podem ou não continuar? São capazes de mudar o suficiente para recuperar força e energia? Estão aptos a recorrer a novas forças e novas ideias capazes de mudar o rumo desgraçado que levamos? Conseguirão abandonar o estilo palavroso e propagandístico, tão estéril e prejudicial? Deixarão de acreditar nas estratégias teóricas e sistémicas tão do seu gosto para se ocupar de questões reais, sociais, políticas e económicas, como quem trata de problemas e não como quem faz teses de mestrado? Perceberão que grande parte da crise na Justiça se deve à sua inoperância e à sua covardia? Poderão compreender que a crise da educação, tão prejudicial, se deve em grande parte à sua demagogia? Terão entendido que a enorme crise no SNS é o resultado da sua incapacidade de gestão e da sua obsessão ideológica? Terão uma vez sentido que a sua vontade de esbater algumas desigualdades, assim como de aliviar tanta gente da pobreza, são insuficientes e que, sem emprego e sem salários decentes, os seus esforços ficam-se pela compaixão?

 

É uma velha regra da política marialva: aguentar! Resistir! Em certas ocasiões, resulta. Passadas as tempestades, o mundo recupera as suas cores, as sondagens voltam a subir. A maior parte das vezes, não resulta. Aguenta-se até perder definitivamente. Quantos derrotados persistiram no erro, acreditaram que a sorte voltaria um dia, confiaram na inteligência dos seus colaboradores e julgaram que poderiam tudo recomeçar, sem danos nem prejuízos, sem mortos nem feridos?

 

Esta atitude de “esperar que passe” e julgar que se pode recuperar com as mesmas pessoas, as mesmas ideias e o mesmo estilo, tem que se lhe diga. Prejudica o país. Causa danos irreversíveis ao partido. Pode ser fatal ao Primeiro ministro e ao governo.

 

Se assim for, mudar de pessoas, de ideias e de estilo parece imperioso. Não deve ser muito difícil. O Partido Socialista já nos habituou a mostrar que tem lá de tudo, bom e mau, inteligente e estúpido, de esquerda e de direita, incompetente e capaz, liberal e autoritário, honesto e corrupto. Há por onde escolher. Ao Primeiro ministro que, por enquanto, tem os votos, de decidir o que guarda e o que deita fora. É a ele que compete, em primeira linha, ver se tem capacidades, estimar o que deve mudar, medir a consistência da sua maioria…. É a ele e só ele que compete manter-se, remodelar, demitir-se, formar novo governo ou pedir eleições. Não é aos chefes da oposição que cabe fazer tal. Não é ao Presidente da República que compete fazer essa avaliação e tomar essa decisão. Pode acontecer. Como já foi o caso com Soares, Sampaio e Cavaco. Não sendo ilegal, esse gesto é nefasto e fere a democracia. É um engano e, como tal, mal compreendido pelo eleitorado. Pode o Presidente da República estar cansado de tanta inoperância. Podem os chefes das oposições estar com pressa e querer aproveitar o falhanço do governo para ampliar a crise. Podem os parceiros sociais, os intelectuais e os artistas considerar que um novo governo lhes dará uma vantagem. Pode tudo isso ser verdade. Mas nada disso recomenda uma intervenção abrupta, um despedimento forçado e umas eleições fora do calendário.

 

A verdade é que, na melhor normalidade política e democrática, no bom sentido da civilização parlamentar e no quadro dos bons hábitos institucionais, é ao Governo que compete escolher a remodelação, a demissão e a eleição. E, em conformidade, solicitar ao Presidente os procedimentos constitucionais adequados. Outra qualquer via só acrescentará à crise.

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Público, 28.1.2023

sábado, 21 de janeiro de 2023

Grande Angular - A virtude e a política

 O que mais surpreende, na crise actual, é a rapidez com que se instalou o declínio. Tudo em circunstâncias tão estranhas, em contraste com as condições muitíssimo favoráveis. Apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e da inflação, havia uma maioria absoluta, uma aparente experiência de muitos governantes, dinheiro europeu, uma relativa paz social, o apoio quase cúmplice do Presidente da República e uma opinião pública não muito descontente. Até que surgiram as demissões em série, as denúncias de corrupção, as dúvidas e a desconfiança, os processos e as inquirições. De repente, o mundo português ficou toldado.

 

Como sempre, não faltam as invenções. O questionário de interesses e moralidade é a mais caricata. Em vez de amadurecer, a democracia portuguesa atravessa aguda fase de infantilismo. É chocante o modo como é tratada a questão da seriedade, dos interesses e da honestidade dos políticos. Estão a inventar-se ridículos métodos de confissão e inquirição, com o principal objectivo de desculpar os políticos, dispensar a justiça, afastar as inspecções, eliminar as políticas, ignorar os magistrados, ultrapassar o Ministério Público e enganar a opinião pública.

 

E, no entanto, há coisas tão simples na vida! Quem escolhe e nomeia é responsável. Quem não cumpre a lei é castigado. O desonesto é condenado. O incompetente é afastado. Quem rouba é julgado. Quem favorece os seus é denunciado. O que corrompe é punido e o que se deixa corromper é justiçado. Métodos simples e conhecidos que dispensam os questionários virtuosos que escondem mais do que revelam. A começar pela declaração de rendimentos e pelo registo de interesses entregues no Tribunal Constitucional, uma, na Assembleia da República, outro. E que agora, pelos vistos, não servem para nada.

 

A eventual aprovação deste método de inquirição, seja com o detestável estatuto de “informalidade oficial”, seja com o selo da lei, levanta mais problemas do que resolve. Por que razão a propriedade de contas bancárias, de acções e de imóveis, além de outros bens materiais, é mais gravosa e tentadora do que outras realidades? Não há outras condições de igual importância? Não há outros interesses tão ou mais nefastos para a vida política do que os bens materiais?

 

Tudo o que é monetário tem ainda um problema suplementar: o dos limites e dos montantes. Toda e qualquer fortuna é sinal de dependência e de interesse ilegítimo? Quaisquer acções, obrigações ou contas bancárias têm esse condão de limitar os direitos e a moralidade de qualquer pessoa? Ou há limites e montantes? A partir de que volume uma pessoa é suspeita de ladroagem e de defender interesses ilegítimos? Um euro? Mil euros? Um milhão de euros? Quantas acções limitam a liberdade e dão origem à desconfiança? Uma? Mil? Um por cento? Dez por cento? E o proprietário de um apartamento poderá ser autarca ou membro do governo nas pastas das finanças, da administração interna e da habitação?

 

Se vamos inquirir a situação económica, deveríamos também vigiar as qualidades intelectuais, políticas, de gestão e de liderança. A incompetência e a incapacidade de previsão, como se vê agora com a saúde e a educação, são mais graves do que um pacote de acções de um banco ou de uma empresa de telefones. Seguindo o exemplo do que se passa com a actividade económica, seria necessário elaborar um questionário destinado a revelar as qualidades intelectuais e de gestão de um candidato a ministro. Só assim evitaríamos, por exemplo, que o número de médicos e enfermeiros ficasse muito aquém das necessidades. E só desse modo teríamos professores formados e distribuídos com a devida antecedência.

 

De qualquer modo, as condições económicas estão longe de ser as únicas ou sequer as mais importantes que afectam a seriedade na política e a isenção dos políticos. Um sócio, adepto ou dirigente de um clube de futebol, sobretudo dos grandes, pode desempenhar funções nos sectores que têm relações com esses clubes, como sejam o desporto, as finanças, o imobiliário, a justiça e as polícias? Não deveremos exigir que um político se afaste publicamente de um clube desportivo antes de tomar posse?

 

Que fazer com a pertença dos políticos a sociedades públicas, a Ordens profissionais, a associações científicas, a academias, a confrarias, a sindicatos, a grémios e grupos recreativos? A pertença a qualquer associação cultural e a grupos artísticos limita também as capacidades? Deve ser eliminatória do exercício de certas funções?

 

A fé ou o ateísmo, a crença numa religião, a pertença a uma igreja ou um culto, são compatíveis com o exercício isento de um cargo político? Pelos actuais parâmetros, parece bem que não. Católico, evangelista, muçulmano, budista, hindu, protestante, anglicano e judeu deveriam ser afastados da política, ou abjurar publicamente antes de serem autarcas, secretários de estado, deputados ou ministros.

 

A pertença a associações discretas ou associações secretas, como qualquer uma das duas dúzias de obediências maçónicas ou uma das muitas associações religiosas igualmente discretas, deverá ser imediatamente interdita? Ou deverá apenas limitar o exercício de funções nas áreas que possam ter envolvimentos e interesses especiais?

 

Levada esta questão, com coerência, atá às últimas consequências, chegaríamos ao ponto, absurdo, de ter de eliminar as possibilidades de um político ou um autarca exercerem as suas funções enquanto pertencerem a um partido político. A relação com este é fonte de todas a suspeitas. Mais do que qualquer outra actividade, reduz absolutamente a isenção de um político em exercício num cargo público. A actividade partidária destina-se a conquistar o poder. O exercício do poder faz-se favorecendo o partido e os correligionários. Um político que o queira ser, nas condições que se preparam nesta tão virtuosa República em que vivemos, tem de renunciar ao seu partido e afastar-se dos seus camaradas. Só assim chegaríamos ao estádio de perfeição em que um político, no exercício das suas magnificas funções, deixaria de ter fortuna, de acreditar num Deus, de pertencer a uma associação, de ser militante de um partido, de ser adepto de um clube de futebol, de possuir acções de empresas, de ser proprietário de apartamento, de ter uma quinta, de ir às reuniões da loja, de frequentar a igreja, de visitar a sinagoga, de rezar na mesquita. Este político será perfeito, leal, virtuoso, independente e íntegro. Mas não vale um caracol. E provavelmente será um ditador.

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Público, 21.1.2023

sábado, 14 de janeiro de 2023

Grande Angular - Operação de encenação e coreografia

 Pelos vistos, foi criado um “mecanismo de escrutínio dos governantes” e foi elaborado um “questionário de verificação prévio dos candidatos”. Pasme-se! O que se tem passado com as nomeações e demissões do governo, e agora com a criação deste “mecanismo”, deixa toda a gente assustada. Sejam os políticos culpados, com receios, ou os inocentes, com inquietação. Mas também cidadãos comuns. Entre estes, os que não acreditam nestes expedientes para desresponsabilizar quem escolhe. Os que imaginam que se trata de mais uma praxe para tornar a política uma actividade esotérica e reservada a uma elite partidária. Os que pensam que esta coreografia serve para restaurar uma virgindade perdida. Os que imaginam que estas regras servem para delimitar o que se pode fazer para escapar.

 

Verdade é que nada nem ninguém parece inocente. A começar pelo facto tão simples de que este procedimento desautoriza as instituições. O que se inventou é um prodígio de encenação. O Governo aprova um questionário que pretende aplicar sem que tenha força de lei. Enumeram-se dúzias de perguntas, deixando de fora dezenas. Preparam-se para fazer as perguntas por escrito, pedindo uma resposta de igual teor, mas cujo conteúdo fica privado, sem que se aceite o princípio de que os documentos deste género são necessariamente públicos. Nada justifica o secretismo. Se são invocadas a intimidade e a privacidade, os documentos não deveriam existir. Se o argumento é o interesse do Estado, então é mentira.

 

Tanto a linguagem oficial como os comentários jornalísticos mencionam, em maioria, os “candidatos” a lugares do governo. Eis mal-entendido típico de falsos beatos. As pessoas convidadas para o governo não são “candidatos” a coisa nenhuma. A decisão não é deles. O processo não é aberto. Não há vários candidatos ao mesmo lugar. As posições em causa não estão a concurso. As pessoas são seleccionadas, escolhidas e nomeadas por quem de direito. Caso aceitem, as pessoas seleccionadas deveriam submeter-se a procedimentos institucionais definidos pela lei e não serem obrigados a responder a questionários arbitrários e intrusivos.

 

Percebe-se o entendimento dos autores deste questionário. O que está em causa é dinheiro. Dinheiro público nacional e europeu. Dinheiro e subsídios a obter. Facilidades para vender. Deveres para comprar. Lucros para amealhar. Maneira de receber dinheiro através de isenções, favores e procedimentos de legalidade duvidosa e aparência legal. Uma só palavra: dinheiro.

 

Quer isto dizer que os autores deste mecanismo, assim como os que com ele concordam, não consideram mais nenhum gesto condenável ou acto que diminua as capacidades do seleccionado, aqui tratado por candidato. Ganhar dinheiro abusivamente parece ser o primeiro e último pecado. Nada é mais grave. Noutras palavras, é a principal razão pela qual se é castigado e se perde a capacidade para exercer cargos públicos. Parece pouco. Para além de crimes, há muito mais, não declarado e não em processo de justiça, que deveria ser considerado.

 

A violência doméstica deveria contar: bater na mulher, nos pais ou nos filhos. O abuso de menores também. O uso de violência junto de amigos deveria figurar na lista. O insulto e a calúnia também. Acidentes de viação não ficariam fora. Atentados contra a liberdade de outrem também não. Atitudes racistas. Pensamentos fascistas. Simpatias terroristas. Afinidades comunistas. Tudo deveria ser analisado pelo Primeiro Ministro. 

 

Com o andar dos tempos e com as novas ortodoxias, devemos ainda estar preparados para novas exclusões, isto é, para mais motivos de exclusão da vida política. A frequência de touradas, o consumo de álcool e tabaco, o uso de haxixe e outras substâncias, algumas preferências sexuais, assim como o abuso de alteradores de consciência deverão ser devidamente declarados ou sobre eles devem ser recolhidas informações adequadas. 

 

Apesar da fúria regulamentadora, ficam de fora múltiplos rendimentos que não se percebe se estarão abrangidos. Que dizer de direitos de autor relativos a obras de arte, peças de música, livros, artigos de jornal, ensaios, conferências e sermões? Podem ser trazidos à colação? De que modo comprometem o futuro ou o pretérito governante? Que dizer de prémios de concursos e lotarias? E as bolsas de estudo obtidas pelo próprio ou por seus familiares: que vínculos criam com a actividade do seleccionado?

 

O mais complicado parece ser o que fazer com a cunha. O empenho. O favor. O jeitinho. Como se pode castigar quem mete cunhas, quem aceita, quem beneficia e quem favorece outros através de cunhas? E que consequências pode ter para um político, hoje, uma cunha que meteu ou de que beneficiou há dois anos? Ou dentro de dois anos uma cunha que um político meteu quando ainda o era?

 

Como olhar para as nomeações? Do próprio ou de outros. Dos amigos, correligionários e familiares? As nomeações, da conveniência de serviço à confiança política, são a forma mais corrupta e mais corruptora do exercício do poder político. É possível que sejam mais danosas para a sociedade e para a democracia do que muitos gestos que envolvem directamente rendimentos pecuniários. Como agir, nestes casos? Como elaborar questionários? Que perguntas devem ser feitas aos seleccionados aqui designados por candidatos?

 

Sobram ainda as perguntas inevitáveis. Para que serve o Primeiro Ministro? Não é para escolher, inquirir e designar? E para tomar a responsabilidade das suas escolhas? Para que serve o Tribunal Constitucional? E os tribunais? E o Ministério Público? E o Tribunal de Contas? E a Autoridade Tributária? E as polícias? E sobretudo, acima de tudo, para que serve a Assembleia da República? Não é justamente para fiscalizar e escrutinar?

 

Uma coisa é certa: todos estes procedimentos dependem ou devem depender das instituições. O recurso a entidades aberrantes, do género do “mecanismo” agora criado, não resolve o problema, tem consequências nefastas e não reforça a democracia nem o Estado de direito. Uma e outro, pelo contrário, ficam dependentes do arbítrio político e da força de quem exerce o poder.

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Público, 14.1.2023