sábado, 30 de dezembro de 2023

Grande Angular - A festa acabou

Foi bonita a festa! Enquanto durou. Ano sim ano não, com uns problemas pelo meio, a verdade é que os 50 anos depois de Abril foram inesquecíveis. Geralmente para melhor. Com a pesada excepção das centenas de milhares de portugueses que viviam no Ultramar e que foram maltratados pelos homens e pela história, quase toda a gente vive melhor, vive mais, com mais conforto, mais decentemente e com mais dignidade. Saúde, esperança de vida, alimentação, educação, igualdade entre cidadãos, conforto e facilidades de vida quotidiana: em todas estas áreas, há razões para festejar. Com as excepções e as contradições de uso, é difícil encontrar serviço, dispositivo, bem ou equipamento que não se tenha generalizado: esgoto, água corrente, luz, electricidade, aquecimento, gás, estradas, automóvel, telefone, televisão, computador, vestuário, divertimento, cultura, vida nocturna e férias anuais.

 

Nestes 50 anos, fez-se a União Europeia, coisa nova e diferente, bonita de ver, numa Europa que viveu um inédito período de 70 anos sem guerra. O mundo democrático pareceu, a partir de certa altura, vencer. O número de países que queria ser democrático aumentava. Mesmo quando não o eram, reclamavam-se de tal qualidade. O apartheid ruiu. O comunismo desfez-se.

 

É verdade que as antigas colónias portuguesas se entregaram à guerra civil, como nunca no tempo português, tendo morrido centenas de milhares de pessoas, talvez mais de um milhão. É também verdade que noutros países africanos, Congo, Ruanda e Nigéria por exemplo, milhões de pessoas morreram. Mas a tendência geral era a da democracia e do desenvolvimento.

 

Tudo está hoje em causa. Guerra no mundo. Cada vez menos democracias. Os países em evidência são autocráticos. O terrorismo islâmico passa por virtude inocente. O imperialismo russo é aceite como inevitável. Qualquer que seja o resultado ou a situação na Ucrânia, ficaremos, em 2024, pior, muito pior. Qualquer que seja a evolução da situação em Gaza, na Palestina e em Israel, o mundo ficará pior e mais perigoso.

 

No horizonte, o Irão, a Rússia e a China, a que se acrescentam a possível eleição de Trump, os erros dos democratas europeus e a ascensão da extrema-direita fazem um planeta mais insuportável e ameaçador.

 

E Portugal… Uma oligarquia socialista dominante tem vindo a ocupar o país e as instituições. Acrescentou-se e ultrapassou uma clique social democrata que durante alguns anos se banqueteou. Ambas se adicionaram à cleptocracia corporativa que só aparentemente tinha desaparecido.

O estado lamentável em que se encontram os serviços públicos parece irrecuperável. O SNS está a ser metodicamente destruído. Se fosse deliberado, não teria sido tão eficaz. Assim, só por incompetência. Com efeitos semelhantes, a loucura que se apoderou do sistema educativo e das escolas públicas transformou a educação numa farsa em vias de subdesenvolvimento. A venda desbragada de património nacional, das terras às águas, das empresas à habitação, tem transformado o país, não num primor de eficiência, mas sim num universo de vida airada e descalabro.

 

Houve jeito para distribuir, faltou o talento para produzir. Houve vontade de educar, não existiu competência para ensinar. Multiplicaram-se direitos, reduziram-se os deveres. A festa acabou. Mal e tristemente. Se ao menos, em vez de festa, tivéssemos trabalho, estudo, organização, gestão, igualdade e democracia…. Então sim, valeria a pena a festa ter acabado.

 

A festa acabou, mas não a democracia. Este ano, há eleições. Poderia ser o princípio de qualquer coisa. A nossa escolha é o essencial. Pode, evidentemente, votar-se num partido pelas más razões. Por reflexo condicionado. Por consciência de classe. Por medo. Por convicção religiosa. Por dívida pessoal. Por repetição a que se chama coerência. Mas… as melhores razões não são essas. São, isso sim, as que decorrem do que se quer, do que se precisa e do que se pensa que é melhor para o país. É possível, mas não necessário, que estas razões nos conduzam a votar de modo diferente, de cada vez. Daí não deveria vir mal ao mundo. A competição partidária e a concorrência eleitoral são os melhores instrumentos de escolha.

 

Uma regra de ouro é a de não votar em alguém simplesmente pelo que é ou parece. Ou porque é um hábito. Aliás, em Portugal, hoje, nenhum partido merece que se vote nele pelo que é. Nem a direita, nem a esquerda, com currículos pouco recomendáveis após as últimas décadas.

 

O PS tem muito pesadas responsabilidades na degradação da vida nacional. Contribuiu, mais do que os outros, para os êxitos dos últimos 50 anos. Mas esse facto não desculpa a deterioração sistemática dos serviços públicos, a perda de capacidade para criar riqueza de modo consistente, nem a partilha de autoria e de culpas em todos os processos de corrupção e nepotismo.

 

O PSD tem enormes responsabilidades no declínio da vida nacional, tanto da economia como da cultura, da sociedade e da política. Depois de, com mérito indiscutível, ter contribuído para a consolidação da pertença europeia e para a afirmação democrática da direita portuguesa, este partido desinteressou-se da independência nacional e da afirmação da empresa portuguesa pública ou privada.

 

Em conjunto, PS e PSD, deixaram afundar o Serviço Nacional de Saúde e a educação pública. Um a vegetar na mais inacreditável desordem que se possa imaginar. Outra entregue à futilidade lúdica e a exibir os piores resultados de sempre.

 

O PCP, sempre o mesmo, tão irredutível e seguro de si! É-lhe indiferente ter 20%, 10% ou 3% dos votos, ou 40, 20 ou 5 deputados. Garante que tem sempre razão contra a população que não vota nele, que é quase toda. Persiste em afirmar que representa todos os trabalhadores, que a história sempre lhe deu razão. Até à derrota final. Até ao desaparecimento eleitoral.

 

O Bloco, moralmente superior e arrogante, convencido, presunçoso como poucos, firme na sua beatitude política e seguro da sua virtude ideológica, nunca fez nada de jeito que lhe dê qualquer espécie de currículo, qualquer folha de serviços prestados à sociedade.

 

O Chega não merece o voto só porque protesta, denuncia e ataca. Não é convincente, não tem políticas, não dá sinais de qualquer género de competência ou de saber. Utiliza as mais baratas receitas disponíveis, do nacionalismo ao grito dos descamisados.

 

A IL parece saída de uma produção laboratorial. É só mais um partido, sem currículo nem experiência, a vender camisolas de lã no deserto.

 

Nas próximas eleições, o momento é calhado, mais propício do que nunca, para votar de acordo com compromissos, em vez de repetirmos os gestos do sonâmbulo. Votar em compromissos é melhor do que votar em rebanho.

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sábado, 16 de dezembro de 2023

Grande Angular - Estranha crise

 Este fim de semana, os socialistas vão escolher o seu novo secretário geral. O eleito será, logo a seguir, candidato a Primeiro-ministro. Não é seguro, mas é possível que, depois, seja também Primeiro-ministro. O mais interessante, nesta eleição, é o facto de, entre dois dos mais sérios responsáveis pela política do governo desde há oito anos, a alternativa ser estranha. 

 

Pode facilmente pensar-se que não houve, nem há, crise política muito séria. É possível entender esta eleição simplesmente como rivalidade pessoal. Não custa a acreditar que os socialistas estejam persuadidos da bondade deste governo durante oito anos, para já não pensar nos seis anteriores de José Sócrates. Imagina-se que os socialistas não estão convencidos de que são eles os responsáveis pela grave crise dos serviços públicos fundamentais (saúde, educação, justiça…). É tudo possível. Na verdade, com a eleição deste fim-de-semana, os socialistas apagam os erros recentes e consideram-se prontos para um novo e virginal recomeço. As próximas eleições nacionais, as legislativas, serão bem diferentes.

 

A escolha do novo Secretário-geral sugere uma decisão entre dois mundos, dois estilos e duas pessoas. É possível. Mas não será, como deveria ser, uma escolha entre duas políticas.  Teremos, do lado de José Luís Carneiro, a sonolência democrática, a gestão conservadora e a obediência às regras. Do lado de Pedro Nuno Santos, será o sonho ideológico, a exaltação adolescente e o puro abuso de poder. Um gere, o outro faz. Não se sabe bem o quê, nem quando, nem como. Mas, no mundo despolitizado, estes vícios são virtudes.

 

Que querem eles fazer para acudir ao desastre do Serviço Nacional de Saúde? Como pretendem lutar contra a crise da habitação? Que farão a favor da igualdade social? Quais são as suas ideias e os seus planos para tratar da instabilidade e da ineficácia da educação? Como querem tratar do investimento privado? Quais são as suas políticas para a Justiça, a segurança e as polícias? Como explicam a profunda crise, inédita nas últimas décadas, nos serviços públicos? Não se perca tempo: não sabem. Ou não dizem. Ou não querem que se saiba.

 

A competição é adjectiva. Estão em causa procedimentos, processos e intenções. Além das aparências e da imagem, visivelmente diferentes, algo os separa radicalmente. José Luís Carneiro sonha com o partido bem-comportado, capaz de diálogo, com provável preferência pelas políticas centrais, eventualmente mesmo as do “bloco central”, entidade detestada pela vida política nacional. Pedro Nuno Santos anseia por um partido de rupturas políticas e fracturas sociais, idealiza a grande coligação das esquerdas, vive para os restos da revolução que confunde com sonhos.

Os dois candidatos esforçam-se por ser solidários com o governo e a maioria a que ainda pertencem e de que são, aliás, dos mais responsáveis. Mas não querem ser identificados com esse governo. Mas também não querem ser acusados de detractores. Gostariam de ser considerados como alternativas críticas a esse governo, sem que se perceba muito bem que o são. Ambos querem ser alternativas a António Costa e ao governo actual. Mas ambos sonham com o apoio de António Costa e o respeito pelo governo actual. Já toda a gente percebeu que tanto um como outro farão a diferença, mas não querem que se saiba.

 

É uma eleição adjectiva. Quem é mais à esquerda? Quem é mais dialogante? Quem ocupa melhor o centro? Quem está com mais capacidade para fazer alianças? Quem combate melhor o grande fantasma da próxima eleição, o Chega? Quem é mais alternativo, fazendo crer que é a continuidade? Quem é mais continuador, dando a entender que é a ruptura?

 

Muito mais estranho do que esta eleição socialista é a crise nacional. Em certo sentido, a eleição socialista é parte da crise nacional. Poderá um dia figurar nos anais da história como a “crise italiana”. Só que não se sabe se florentina, se siciliana. Verdade é que esta crise nasce e desenvolve-se por exclusiva vontade dos seus protagonistas e dos seus perpetradores.

 

É uma crise inútil, resultado das últimas versões do semipresidencialismo e da competição entre órgãos de soberania (magistratura incluída…). É difícil perceber, hoje, quem será a principal vítima desta crise, se o Governo de São Bento, se o Presidente de Belém. Mas podemos ter a certeza de que se trata de crise inútil e de paixões menores. Ainda não se conhecem os factos e as datas com indiscutível certeza. Mas já se percebeu que grande parte destas operações foi de denúncia premeditada, de revelação calculada e de sentido apurado de circunstâncias e de cronologia. Ninguém sai bem destas histórias. Dos “Influenciadores” às “Gémeas brasileiras”, as trapalhadas foram tais que nos envergonham.

 

Corrupção, cunhas, favoritismo, nepotismo e amiguismo, há de tudo em quantidade. E mais uma vez há a fragilidade da justiça, a vulnerabilidade dos sistemas de honra e a debilidade dos procedimentos honestos. A vida política portuguesa parece feita e imaginada por um espírito mau, diabólico e maquiavélico, que quis criar as condições para a destruição da democracia. A eleição proporcional, o estabelecimento da disciplina de voto, a hegemonia dos partidos, a perversão semipresidencialista e a fraqueza das instituições civis são estímulo à corrupção e protecção dos corruptos. 

 

É uma crise para ficar na história. Não se percebe quem ficou a ganhar. Nem quem perdeu. É mesmo provável que não haja realmente vencedores. Todos perdem, a começar pelos portugueses. O que é que Marcelo Rebelo de Sousa vai retirar destas crises? O que é que António Costa vai lucrar? O que é que os ministros, os partidos políticos e as instituições ficaram a ganhar? Pode repetir-se: todos ficaram a perder. 

 

 

Têm medo da revolução? Do regresso dos comunistas e dos soldados revolucionários? Receiam a extrema-direita e os fascistas? Abominam os justicialistas e os virtuosos de vão de escada? Assustam-se com o crescimento do partido Chega? Vivem apavorados com o surgimento e o crescimento de grupos e partidos estranhos, extremistas, vingadores, puros e totalitários? Têm pesadelos com poderes autoritários e purificadores que destroem as liberdades públicas? Vivem apavorados com a hipótese de surgirem no horizonte movimentos de salvação? Então olhem para onde devem, para a ausência de justiça, para a opacidade do sistema político, para o privilégio partidário, para o segredo de Estado, para a corrupção e para o nepotismo. Olhem e vejam-se ao espelho.

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Público, 16.12.2023

sábado, 9 de dezembro de 2023

Grande Angular - Uma tragédia

 Em Gaza, encontramos muitos dos condimentos que fazem uma verdadeira tragédia. O sofrimento ilimitado. O sentimento de inevitabilidade. A sensação de que os deuses não se entendem entre si e nem sequer eles conseguem evitar a dor e a morte. A ideia de que mesmo os heróis são impotentes e não evitam o seu destino dramático.

 

Ali perto, por razões idênticas, Jerusalém é outro sinal vivo dessa tragédia. Uma das mais impressionantes criações da humanidade está condenada, como sempre esteve. Os seus dramas são eternos, como sempre foram. E não têm solução, como nunca tiveram. A não ser remendos temporários e frágeis, quase sempre impostos pela força.

 

Os protagonistas da tragédia regem-se por princípios de exclusão mútua. Se deixam de se excluir, morrem. Se continuam a excluir-se, vivem na dor e no drama. Contra as suas próprias vontades, a fatalidade impõe-se: a guerra ou a morte! E ninguém escapa à sua sorte.

 

O massacre hediondo levado a cabo pelo Hamas, a 7 de Outubro, foi o sinal de partida para mais um doloroso episódio de morte e chacina cujo fim não se antevê. E que, como sempre, depende de fora, das potências, dos financiadores, dos clientes, dos mandantes e dos fornecedores. Mas não se pense que aqueles povos são meros instrumentos, simples marionetes. Não. Já se percebeu que também agem pelas suas forças e pelas suas cabeças.

 

Israel tem o direito de ripostar e o dever de se defender. Atacado da maneira miserável como foi, em morticínio particularmente sádico, Israel luta simplesmente pela sua sobrevivência como Estado e pela vida dos seus cidadãos. Ao defender o melhor, a sua existência, Israel também defende o pior, a política dos colonatos, por exemplo.

 

Israel e os Judeus constituem um exemplo único: há quem queira destruir o Estado, eliminar os Judeus e liquidar aquele povo. Os Islamitas que o pretendem não se escondem atrás de retórica cínicas: é o que querem e afirmam-no. 

 

O actual governo de Israel respondeu, com justo furor, mas ultrapassou os limites: sem distinguir entre culpados e inocentes, entre terroristas e civis, entregou-se também a um massacre da população palestiniana. Gradualmente, o Governo israelita afasta o seu Estado da democracia, enquanto a Palestina e os seus aliados islâmicos se fortalecem, como sempre fizeram, fora da democracia.

 

O terrorismo islâmico e que inclui a Al Qaeda, o Jihad islâmico, o Isis ou o Daesh, o Hamas, o Hezbollah e outros menos noticiados, representa actualmente o pior que a humanidade propõe e conhece. O Hamas comete alguns dos piores horrores da vida contemporânea: a tomada de reféns inocentes, a execução de prisioneiros e de reféns e o esconderijo militar a coberto de creches, escolas, lares e hospitais. O chamado “escudo humano”, feito de reféns, hospitais e crianças, tem como objectivo claro ter vítimas para contar, motivos para sensibilizar a opinião mundial, oportunidade para filmar e fotografar a miséria e a violência infligidas por Israel. Acontece que, sabendo isso, Israel não poderia nem deveria bombardear tais sítios e massacrar os civis que lá se encontram. Ao fazê-lo, condena-se a si próprio.

 

Uma vaga de anti-semitismo no Ocidente surpreendeu muita gente. Na verdade, os europeus e outros ocidentais, pouco disponíveis para apoiar os Judeus e condenar a mortandade de 7 de Outubro, têm revelado uma formidável energia activista para protestar contra Israel e apoiar os Palestinianos em geral, o Hamas em particular. E não se pense que, nessas manifestações, se trata sobretudo de imigrantes muçulmanos. Os europeus, cristãos ou ateus, têm revelado uma constante solidariedade. Nunca a chaga do anti-semitismo europeu foi extinta, há muito não era tão visível como agora. Mas Israel deu alguns contributos para este anti-semitismo: as suas indiscriminadas acções de guerra são bons exemplos.

 

O totalitarismo islâmico é visível e activo onde quer que seja: nos movimentos de resistência, nos grupos e partidos terroristas, nos regimes confessionais, nos Estados do petróleo e até nas madraças. Sem eleições, sem parlamentos democráticos, sem sondagens e sem liberdade de imprensa, nunca saberemos o que pensam realmente os seus povos. Do outro lado, de Israel, temos eleições, parlamento e imprensa livre. Mesmo nessas circunstâncias, Netanyahu é apoiado no Parlamento. Parece evidente que, com ele e com as ditaduras islâmicas, é frustrada qualquer esperança de solução equilibrada e pacifica, mesmo temporária, mesmo frágil.

 

É de qualquer maneira legítimo perguntarmo-nos qual é o apoio real dos povos do Próximo-oriente, de Israel, da Palestina e de Gaza às políticas actuais de Israel e da Palestina. É bem possível que uma grande parte das populações da região seja favorável à guerra e à destruição do outro, do adversário e do inimigo. O ódio em vigor naquelas paragens é tal que custa acreditar que se trata apenas de opiniões das elites militares, dos dirigentes políticos, dos dignatários religiosos, dos vendedores de armamentos e dos comerciantes de petróleo. Há muito mais. É por isso que é tão difícil. Ambos os lados, a ditadura islâmica e a democracia israelita, parecem apoiar a guerra.

 

O Hamas sabia o que estava a fazer. Sabia muito bem que iria desencadear uma resposta violentíssima. Como sabia que iria perder milhares de militantes e dirigentes, toneladas de armamento, quilómetros de esconderijos e centenas de refúgios. Tinha a certeza de que, com as suas forças, era impossível destruir Israel. Previa evidentemente a destruição de Gaza pelas armas israelitas. Mesmo assim, tomou a iniciativa. É um facto incompreensível.

 

Como não é possível acreditar que Israel nada soubesse do que se passava. Que não percebesse que, durante anos, milhares de militantes, de milicianos e de terroristas treinavam e se preparavam. Que centenas de quilómetros de túneis eram escavados. Que milhares de toneladas de armamento eram preparadas, fabricadas e importadas para o território. Não é crível pensar que Israel não sabia. Também este facto é incompreensível. Parece que ambos, Israel e o Hamas, queriam a guerra!

 

A luta pela dignidade palestiniana e a luta pela sobrevivência israelita são incompatíveis, contraditórias e adversárias. A luta pelos dois Estados é uma solução. Parece mesmo ser a única solução. Impossível. Que ninguém quer. Talvez que, por isso mesmo, seja a única pela qual vale a pena lutar.

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Público, 9.12.2023

sábado, 2 de dezembro de 2023

Grande Angular - Vésperas sicilianas

 Eleições! É do melhor que a democracia tem a oferecer. São ricas a despertar sentimentos e emoções. Ânimos e medos. Entusiasmos e mentiras. Ciúmes e alianças. Por vezes, também, razão e responsabilidade. É possível que as eleições não sejam necessariamente bons momentos criativos, nem sequer boa fonte de soluções. Mas uma coisa é certa: sem eleições, não há democracia. Em períodos de calma ou de agitação. Em ocasiões de paz ou de conflito. A eleição é sempre um passo solene. Mesmo quando não traz imediatamente soluções.

 

A preparação de eleições, já o sabemos há muito, provoca o melhor e o pior nos políticos. E em muitos eleitores também. As vésperas das eleições são momentos particularmente pródigos em surpresas, em pulhice e em revelações sórdidas. Neste nosso tempo, nada nos faltará, como já se pode ver.

 

Todas as eleições são importantes. E decisivas. Mas há umas mais do que as outras. Temos diante de nós uma dessas, tão essencial quanto todas as outras, mas mais determinante do que muitas. Tão perigosa nos seus resultados, como nos seus processos. Por razões nacionais e por motivos internacionais, estas eleições vão decorrer em momento de enorme tensão.

 

No mundo, é aflitiva a dificuldade em estabelecer acordos vitais, como sejam os relativos ao clima. Alguma coisa se fará, tarde ou cedo, mas será insuficiente. É inquietante a impossibilidade de se chegar a um acordo mundial razoável. A divisão do mundo não estava assim há décadas. Mau prenúncio!

 

Na Ucrânia e na Europa Oriental, em Israel, na Palestina, no Mediterrâneo e no Próximo Oriente, as coisas vão de mal a pior. Estes conflitos tiveram a capacidade de dividir o mundo. Dentro da União Europeia. Entre a Rússia e os Estados Unidos. Entre os Estados Unidos e a China. Entre a democracia e a autocracia. E temos ainda um quadro geral de dificuldade económica, de regresso ao proteccionismo, de aumento das desigualdades sociais e entre países.

 

Em Portugal, não teremos evidentemente qualquer influência nos problemas acima referidos. Muito menos nas soluções. Mas todos aqueles terão enormes consequências em Portugal. Como o agravamento da situação económica e o descontrolo dos movimentos migratórios.

 

Neste quadro geral, imprevisível e ameaçador, vamos a eleições. Inesperadas. Atabalhoadas. Eleições que provocarão, inevitavelmente, alterações no panorama político. Mas também causarão mudanças na definição programática dos partidos e respectivas direcções.

 

São grandes os riscos que corremos com estas eleições. O primeiro é o da divisão do país e do eleitorado como raramente foi o caso. Talvez como nunca. Paradoxalmente, as experiências de maioria absoluta (Cavaco Silva, José Sócrates e António Costa) não dividiram o país em dois blocos. Foi sempre possível ver, à direita ou à esquerda, uma salutar diversidade. Que tinha como principal efeito o de não misturar as esquerdas (democrática e não democrática) nem as direitas (democrática e não democrática). Agora, o desastre da divisão está na esquina da rua. Na direita e na esquerda, as forças de aglomeração crescem e ganham importância. Apesar da boa fama de que goza esta divisão, conhecida como bipolarização, a consolidação dos dois blocos é anúncio de catástrofe. Se as direitas (democráticas e não democráticas) e as esquerdas (democráticas e não democráticas) se unirem, temos desastre à porta.

 

Muita gente refere a probabilidade da fragmentação partidária. Quer isto dizer, a redução do peso eleitoral dos dois grandes partidos e a multiplicação dos pequenos e médios. Diz-se que esta situação torna o país ingovernável. Pode ser verdade, o que é mau. Mas pior ainda será o estabelecimento de blocos federados, à esquerda e à direita. Com uma agravante: sem força dominante, estes blocos são o reino da chantagem e das artimanhas.

 

Risco é ainda a impossibilidade futura da revisão constitucional. A que estava em curso não era grande coisa, nada queria fazer de essencial (o sistema eleitoral, por exemplo), mas havia uma energia salutar. Tudo isso acabou. Para recomeçar, seria necessário um esforço do centro político, desde que este exista no Parlamento e tenha eco no eleitorado. O que parece pouco provável.

 

reorganização dos dois grandes partidos já está em curso. No PSD, a conversa é a de uma maioria abrangente, no PS é a de uma estratégia de união das esquerdas. Ninguém se esforça por uma maioria absoluta. Também é verdade que ninguém a merece. Verifica-se o esvaziamento doutrinário dos dois partidos, que será combatido por uma reafirmação de programa e de prioridades. Vão estar em causa as preferências internacionais (UE, NATO, CPLP, Ucrânia, Israel, Palestina e EUA), as políticas de imigração, o papel da empresa privada, o Serviço Nacional de Saúde, a política de educação, a Segurança Social e a Justiça. Que ninguém duvide: os dois grandes partidos e os eventuais grandes blocos vão rever tudo isso. Para o melhor e o pior. A social-democracia e o socialismo democrático preparam uma revisão profunda. Feita mais por pressão do oportunismo eleitoral do que por evolução doutrinária.

 

Risco também é o de se proceder a um reforço dos lados negativos do semipresidencialismo, isto é, do conflito entre órgãos de soberania e da interferência do Presidente da República. Os sinais dados pelos primeiros mandatos de Mário Soares e de Marcelo Rebelo de Sousa são hoje longínquos e parecem pertencer à ficção. Tal como num vulcão adormecido, o pior do semipresidencialismo, os seus inúteis conflitos, volta à actualidade.

 

As eleições, sobretudo as controversas, são oportunidades para as mais inesperadas operações. Este ano, estamos bem servidos. Intervenções de ministros estridentes não faltaram. Manobras com grandes serviços e empresas públicas foram muitas. Iniciativas inusitadas dos altos poderes judiciais surpreenderam toda a gente. Tremores nos grandes processos adiados, Operação Marquês, Face Oculta, Influencers, Sócrates, Salgado, Pinho, Berardo e outros sucedem-se.

 

Parece ser neste universo pré-eleitoral, de revisão disfarçada e de reorganização partidária, que se pode incluir a revelação do caso das “Gémeas brasileiras”. Ou toda a gente se portou mal, ou toda a gente mentiu, ou ambas as coisas. Raramente se viu em Portugal história mais mal contada. É possível que, entre os mencionados, haja inocentes. Mas nem esses conseguem defender-se com clareza. Confirma-se: vésperas de eleições, tempos de traições!

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Público, 2.12.2023

sábado, 25 de novembro de 2023

Grande Angular - 25

 Hoje, 25 de Novembro, é dia de festa. Apesar de ser data controversa e detestada por alguns. Mas é natural que haja opiniões diferentes relativamente ao 25 de Novembro, sua importância e sua recordação. Ainda bem! Foi mesmo para isso, também para isso, que se fez o 25 de Novembro: para permitir que se tenham opiniões diferentes. Também há muita gente que não aprecia especialmente o 25 de Abril, mas tal não basta para que se apague a data.

 

Os que perderam, nesse dia de Novembro de 1975, choram e fazem o possível por esquecer. São, em geral, comunistas, outros de extrema-esquerda e militares revolucionários. Desses, uns estão hoje no PCP, alguns no Bloco de Esquerda e outros em sítio nenhum. 

 

Os que ganharam recordam com prazer, às vezes com orgulho. Uns estão hoje nos grandes partidos da democracia, o PS e o PSD, alguns em todo o sítio e outros em parte nenhuma.

 

Mas há grupos especiais e que merecem referência. Alguns militares moderados do MFA (Movimento das Forças Armadas) e uns tantos socialistas venceram então e têm vergonha hoje. Fazem o possível por esquecer. Não querem que se recorde, pois tal pode “abrir feridas”, dizem. É este grupo que merece ácida reflexão.

 

A polémica alimenta-se de ridícula comparação: qual é a data mais importante, o 25 de Abril ou o 25 de Novembro? É tão idiota a ideia que nem apetece perder tempo. Por todas as razões, o 25 de Abril é a principal data, a mãe de todas. Mas também há o 25 de Abril de 1975, dia das primeiras eleições livres, as constituintes, que revelaram a fraqueza dos revolucionários e afirmaram a vantagem dos democratas, assim como desviaram, para os eleitores, os poderes que se limitavam aos activistas. E ainda há o 25 de Abril de 1976, dia das eleições legislativas, alicerce do Estado democrático em vias de fundação. Entre estes 25, há o de Novembro, o motivo das polémicas, mas que entra, de pleno direito, nesta espécie de galeria. Neste último dia, derrotaram-se os revolucionários que queriam uma ditadura e que procuravam explicitamente impedir a democracia parlamentar.

 

Ao lado destas datas, ainda é possível acrescentar o 1º de Maio de 1974. É talvez o dia das maiores manifestações da história do país. Com a particularidade de não se manifestar contra ninguém, mas com a intenção de festejar a liberdade. Foi nesse dia que o “golpe de Estado” se transformou em levantamento popular. Foi nesse dia que a liberdade se socializou. Foi nesse dia que se percebeu que a democracia não seria outorgada, nem de cariz militar ou hipotecada aos movimentos revolucionários, antes seria de todos, do soberano, do povo. Ainda demorou muito. Ainda houve riscos, tentativas revanchistas e tentações totalitárias para implantar regimes de farsa, como uma “democracia avançada”, eufemismo para ditadura. Tivemos isso tudo, mas foi o 25 de Novembro que estabeleceu as fronteiras. 

 

É possível que, sem o 25 de Novembro, não houvesse necessariamente ditadura comunista ou militar. Era muito arriscado, mas teoricamente possível. O problema é que o maior risco ainda era a guerra civil e a divisão definitiva de portugueses. Nesse sentido, ao contrário do que se diz hoje em certas instâncias, o 25 de Novembro não é fracturante. Não foi na altura, nem a sua comemoração o é hoje. Pelo contrário, o 25 de Novembro impediu uma fractura radical, violenta e ameaçadora.

 

Além de tudo o mais, o 25 de Novembro contribuiu para um dos mais importantes traços da democracia portuguesa: afastou uma revolução e impediu uma restauração, sem vingança, sem novos presos, sem novas interdições, sem adiamentos eternos de eleições e sem vagas promessas de democracia. Deste ponto de vista, o 25 de Novembro e a democracia que se seguiu fizeram algo de único ou de raro na história recente: derrotaram uma revolução e não fizeram prisioneiros nem proibições. E muito menos mortos e feridos. A vaga das democracias europeias dos anos 1990 e seguintes deu exemplos notáveis de instauração pacífica do novo regime. É verdade. Mas não resultaram de processos exclusivamente internos, de revolução e derrube de ditaduras. Nem travaram uma revolução em curso. Na verdade, o apodrecimento do comunismo começou, sem revolução, na União Soviética e contagiou vizinhos e clientes.

 

Sabe-se que há gente de direita que vibra mais com a correcção de Novembro do que com início de Abril. Como há muitas pessoas de esquerda que sonham com o que se perdeu em Novembro. Tudo isso é normal e previsível. O problema não é o de quererem comemorar uma data e outra não. Nem o de saber por que querem festejar ou de que modo pretendem recordar. Os gostos discutem-se, é bom que assim seja. O problema também não é o de não querer comemorar. O problema é o de quem quer que os outros não comemorem. De quem não reconhece o valor nacional de uma data libertadora (Abril ou Novembro). E de quem quer impedir que as instituições democráticas festejem o que democrático é.

 

Como é sabido, os despotismos e as vocações ditatoriais, de esquerda ou direita, são muito exigentes na semântica. O politicamente correcto, por exemplo, é em parte uma luta por uma semântica aceite e outra condenada. Também neste caso estamos perante uma destas armadilhas de vocabulário. Para os candidatos a déspotas, Novembro não rima com democracia. Por isso, estes esforços incansáveis de pessoas e partidos contra a comemoração de Novembro em sede oficial, nas instituições. Chocante, todavia, é ver tantos que a Novembro muito devem aceitar o ditame comunista contra a vitória democrática daquela data. 

 

Alguns socialistas, em especial, têm enorme jeito para acrobacia e outras artes de contorção. Um partido que cresceu, em 1975, graças à luta contra o comunismo, acabou por não ter remorsos numa aliança com aquele partido. De modo parecido, um partido que sobreviveu graças ao 25 de Novembro, não vê com bons olhos os que o querem assinalar.

 

Em Portugal, em 1975, Novembro salvou Abril. Salvou a liberdade e a democracia. Permitiu a Constituição e as eleições. Prometeu o pluralismo, que garantiu. Não vingou, não matou, não prendeu, nem proibiu os responsáveis pela deriva autoritária e revolucionária. Sem Novembro, teríamos talvez a ditadura ou uma a guerra civil. Mas não a liberdade.

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Público, 25.11.2023

sábado, 18 de novembro de 2023

Grande Angular - Corrupção e impunidade

 Por António Barreto

Nos anos a vir e nos seguintes, assim como na história futura, esta semana, estes tempos e os próximos ficarão para sempre. Inesquecíveis. De triste recordação. E de inquietação crescente. Entraram em crise elementos básicos da confiança e da esperança. A certeza das instituições, a serenidade das elites e a segurança da justiça falharam. Ou não deram garantias. O Estado de Direito foi posto explicitamente em crise.

 

Descobrem-se em abundância casos de corrupção e favoritismo. São ordenadas detenções apressadas e mal fundamentadas. Reinam as fugas de informação e as violações do segredo de justiça. Uma reunião confidencial do Conselho de Estado, um dos últimos redutos da serenidade, é desvendada. O Primeiro ministro demite-se de modo incompreensível. A dissolução do Parlamento não é cabalmente justificada. As decisões do Ministério Público e da Procuradora Geral revelam ligeireza e leviandade. Um Parlamento dissolvido, a prazo, aprova um orçamento de Estado, a correr, antes de partir para campanha eleitoral. Um governo demitido, a prazo, aprova aumentos da Função Publica e do salário mínimo. Um ministro demitido, a prazo, pretende resolver, à pressa, a crise dos médicos e da saúde.

 

O Primeiro-ministro e outros governantes sugerem que, em certos casos, a necessidade política e as exigências da vida económica podem obrigar a ponderar o sentido da aplicação da lei. Parece que basta o rigor legal na decisão, sendo que a aplicação prática das leis obedeceria a outros critérios, designadamente do interesse público definido pelos próprios políticos. É possível que nunca se tenha ido tão longe, nas últimas décadas, no desrespeito pelo Estado de Direito.

 

Por vezes importa tomar um pouco de distância. Como se pode corrigir? Que se pode fazer para melhorar, punir e prevenir? Pouco. Muito pouco. Talvez nada a curto prazo. Talvez alguma coisa a longo prazo. Com outras gerações. Mais leis, não vale a pena. Já temos e a mais. Formar novo pessoal político e novos magistrados? É possível. Demora décadas e coloca sempre o problema existencial: quem forma o pessoal e quem forma os formadores? Liquidar a democracia? Não resulta, pois já sabemos que a ditadura e o populismo são, sempre e em todo o sítio, piores do que a democracia.

 

A nossa democracia não conseguiu, nas áreas da corrupção e da justiça, ser melhor do que a ditadura. Tem mil vantagens. É superior em muitos aspectos, na liberdade, nos direitos individuais, na dignidade das pessoas, na cultura, na educação, no trabalho e na saúde. Mas na justiça e na corrupção não consegue ser melhor. Até porque, com o capitalismo, a democracia e a sociedade aberta, há mais corrupção e mais interesses. Mais e mais democratizados. O nacionalismo demagógico, o justicialismo virtuoso e a ditadura puritana são sempre e serão piores do que a democracia. A história de Portugal e do mundo demonstra-o nitidamente.

 

A situação, na justiça e na política, por causa da corrupção e do favoritismo, está má. E vai ficar pior. E não tem cura tão cedo. Pessimismo? Nem por isso. Realismo, talvez. A sociedade e as instituições não são melhores do que as classes dirigentes e ilustradas. Nem melhores do que os políticos. E estes não são melhores do que a sociedade em que têm origem. E é mesmo isso que é crítico, é esse o problema: das classes dirigentes, das elites, esperava-se mais e melhor!

 

Portugal sofre, há décadas e séculos, de peste de país pobre, de povo sem liberdade e de país dependente do Governo. Sem liberdade, sem democracia, sem imprensa livre, sem empresas poderosas, sem mercado e sem sociedade aberta, cultiva-se facilmente a corrupção, o nepotismo e o favoritismo. A “cunha” e o “jeitinho” fazem parte do quotidiano. A “palavrinha” e o “empenho” são modos de vida. A nomeação de parentes e de correligionários também. Passar à frente nas filas de espera ou nas competições é usual. Abrir concursos “com fotografia”, isto é, que só podem ser ganhos por pessoa certa, é uma arte. Rechear os gabinetes com assessores, consultores e especialistas, pagos pelo erário público, mas para benefício do próprio, é aceitável.

 

As modalidades de pequena e média corrupção abundam e são bem conhecidas. Uso privado de carros de função, realização de obras domésticas à custa de dinheiros públicos, nomeação de filhos e afilhados, pagamento de refeições caras, luvas de grandes negócios, estágios e cursos superiores em instituições reputadas, percentagens depositadas “lá fora” e avenças estranhas, de tudo um pouco, os portugueses conhecem bem. Infelizmente, parece que também vivem bem com isso. O que é triste e desesperante é verificar que os raros mecanismos de combate à corrupção e ao favoritismo são a inveja e a concorrência. Quando são vários os predadores e só uns os beneficiários, é quase certo que os outros arranjarão maneira de denunciar. Em nome do bem público, alegam.

 

O problema, não sabemos bem se sobretudo nosso ou se partilhamos com outros, é o da dualidade de conceitos. Por um lado, como no futebol, o que os “nossos” fazem está bem, o que é da autoria dos “outros” é condenável. Mais inquietante é a diferença moral entre a esfera privada e a partidária. Para muitos, a verdadeira corrupção é aquela de que se aproveitam os indivíduos, as suas famílias e os seus amigos. O que é para proveito pessoal é condenado e pode ser exposto. O que é para uso do partido não tem o mesmo tratamento: a “ética republicana” e a legitimidade política garantem que é justa a distribuição de despojos e razoável o benefício partidário. Quer isto dizer que, para muitos, as eleições democráticas conferem uma legitimidade a toda a prova, que se sobrepõe a outros critérios morais ou legais. Por outras palavras, quem está no poder, usa-o.

 

É este sentido de legitimidade que explica, em parte, o facto de tantas pessoas inteligentes, sabedoras, por vezes competentes, eventualmente cultas e experientes terem comportamentos condenáveis sem recear a lei ou a opinião. É o pior de tudo: o sentido da impunidade. A certeza de que o voto dá direitos e de que a democracia oferece vantagens pessoais e partidárias. O “quero, posso e mando” do soba ou do ditador não é pior do que o “quero, posso e mando” do democrata eleito…

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Público, 18.11.2023

 

sábado, 11 de novembro de 2023

Grande Angular - Um verdadeiro desastre!

 É o maior desbaratamento da história da democracia portuguesa. O governo tinha tudo o que era preciso. Um Primeiro-ministro hábil e habilidoso. Uma maioria absoluta. Um partido de governo coeso e unido. Um Presidente da República cooperante e colaborador como nunca se tinha visto. As esquerdas destroçadas. O Chega a subir, não de mais, mas o suficiente para diminuir o PSD. Uma oposição tépida e desorientada. Um Programa de financiamento europeu de montante inimaginável. Uma situação económica e financeira melhor do que se esperava ainda há pouco tempo. O erário público com uma folga confortável. A admiração, o respeito, a necessidade e a dependência das academias, da administração, das instituições e da imprensa. A colaboração do capital internacional. A atenção dos empresários. E os autarcas em fila de peditório.

 

Por isto tudo, não se percebia bem a razão pela qual o governo não conseguia tratar da situação social que não corria muito bem. As lutas e as greves nos hospitais, nas escolas e nos tribunais persistiam e os respectivos ministros não conseguiam tratar nem dialogar. Os serviços públicos em geral davam claros sinais de que se aproximava o colapso, com enormes prejuízos para a população. Os aumentos do custo de vida e a inflação ameaçavam o bem-estar de grande parte das famílias. A crise na habitação atingia alturas de quase calamidade. Alguns ministérios ressentiam-se da mediocridade dos seus ministros, com relevo para a saúde, as infra-estruturas, a educação e a justiça. O governo sabia distribuir, mas não organizar e criar.

 

Em oito anos de governo, várias perturbações gravíssimas ameaçaram tudo. A pandemia dominou a vida pública durante dois anos. A guerra na Ucrânia destruiu a paz europeia, com efeitos nefastos para todos os países. Agora, a guerra na Palestina e em Israel revelou novas ameaças para o mundo, cujas consequências estão ainda longe de ser medidas.

 

Não foram, todavia, as dificuldades sociais internas nem as perturbações internacionais que deram cabo do governo e da estabilidade política. Foram questões morais, foi a falta de seriedade, foi o nepotismo partidário, foi a incompetência de vários ministros, foram os escandalosos abusos de poder dos ministros nas questões do aeroporto, da TAP, do lítio e de outros grandes projectos. Foi a auto-suficiência de ministros e de dirigentes partidários que se sentiam capazes de tudo, do melhor e do pior e que julgavam que podiam tratar da felicidade dos outros e da riqueza de alguns. Foi a incapacidade de servir o país e os cidadãos.

 

A causa da crise não foi social, nem económica, muito menos internacional. Foi o mau governo. O bem e o mal andam de braço dado! O que parecia um bom governo era feito de maus ministros. Em certos casos, gente vaidosa e prepotente. Noutros, medíocres fantasmas.

 

Esta crise surpreendeu toda a gente. Não só a crise, como também o modo como muitos reagiram. Alguns comportamentos das autoridades deixaram perplexos os cidadãos. O Presidente da República aceita o pedido de demissão, mas não demite, para já. Anuncia a dissolução do Parlamento, mas não dissolve, por agora. Apesar de anunciar a sua intenção de demitir o governo e dissolver o Parlamento, marca eleições! Será que estamos perante a criação de novos dispositivos constitucionais, tal como a declaração de intenções?

 

O Presidente da República afirma que é necessário aprovar o orçamento de Estado e promulgar várias leis e dispositivos legais necessários à economia. Por isso, afirma que demite e dissolve, mas só o fará daqui a umas semanas! Entretanto, o governo e o Parlamento exploram o mais possível este extraordinário período de terra de ninguém e de tempo de todos. Sem orçamento de Estado aprovado, depois de aceite o pedido de demissão do Primeiro ministro e de marcadas as eleições sem dissolução prévia, o Conselho de Ministros aprova, a correr, o maior aumento da história do salário mínimo! Antes de estar aprovado o orçamento de Estado, já depois de o pedido de demissão do Primeiro ministro ter sido aceite e depois de o Presidente da República ter declarado que dissolveria o Parlamento, o Conselho de Ministros aprova aumentos salariais para a Função Pública.

 

Esta crise ainda revela fenómenos estranhos. Um Primeiro ministro, cuja pedido de demissão foi aceite, propõe ele próprio o seu sucessor! O Parlamento é ignorado em todo este processo. O partido maioritário é marginalizado. O grupo parlamentar do partido maioritário é ignorado pelo chefe do partido, pelo Primeiro-ministro e pelo Presidente da República. O presidente não se sente obrigado a pedir ao partido maioritário (e não apenas ao Primeiro ministro demitido…) que indique, se for capaz, um novo Primeiro-ministro, como se faz em países com experiência democrática. Todos concordam, estranhamente, com a ideia de que o governo da nação não é do Parlamento, nem do partido maioritário, mas sim do chefe do partido.

 

Outros factos surpreendentes são visíveis para todos. Circulam nos jornais, nas televisões e nas redes centenas de transcrições de interrogatórios, de declarações, de despachos confidenciais e de escutas telefónicas. A Procuradora geral da República utiliza formas sibilinas e estranhas à clareza do Direito e ao respeito pela dignidade das pessoas, com o que desencadeia uma crise política sem precedentes. Se não tiver razão, deve ser banida e afastada. Se tiver razão, tem de mudar o seu estilo, dado que o actual não é próprio da democracia e da justiça.

 

Mais ainda do que noutros tempos, vamos ter meses sem governo pleno, sem Parlamento completo, sem orçamento a sério, sem novo programa… O próximo governo vai querer mudar e alterar. Não há costumes nem tradição suficientes para poder viver uns tempos sem governo ou com pouco governo. Tudo depende do Estado e do governo. Vão ser precisos meses para demitir, dissolver, convocar, realizar congressos, estabelecer listas de candidatos, sanear uns, promover outros, fazer campanha, eleger, apurar, formar governo e ir ao Parlamento. Sem orçamento, sem autonomia financeira e sem autoridade de serviço público. Há países onde é possível viver meses e meses sem novo governo e sem novo parlamento em plenas funções. Aqui, não. Os prazos legais são absurdos. Os costumes obsoletos. As regras fantasmagóricas.

 

É assim que os portugueses vivem.

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Público, 11.11.2023

 

sábado, 4 de novembro de 2023

Grande Angular - Uma reforma de papel

 O novo sistema de controlo de estrangeiros e de imigração entrou em vigor há dias. É provável que a causa desta reforma das instituições ligadas às migrações seja o homicídio de um candidato ucraniano ao refúgio (ou imigração). O caso teve lugar nas instalações do SEF, no aeroporto, há cerca de três anos. Se assim é, a boa notícia é a de saber que as autoridades reagem com preocupação a esta lamentável ocorrência. A má notícia é a de ver que se aproveita a situação para fazer reformas aparentemente fundamentais. Este género de resposta, em cima do acontecimento, é raramente equilibrado e eficaz, mostra inquietação, mas na verdade revela má consciência.

 

Aprovada a respectiva lei há mais de dois anos, só agora o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a que pertenciam os culpados pelo homicídio, está extinto. Foi substituído por vários organismos. O AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) surge à cabeça. Mas funções muito importantes são delegadas ou transferidas para a PSP, a GNR e a PJ, assim como para o IRN (Instituto dos Registos e Notariado). Além destes, são definidas competências para as autarquias, o SSI (Sistema de Segurança Interna) e a nova UCFE (Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros).

 

Ainda é cedo para avaliar estas reformas. Também é cedo para ter uma ideia sobre este novo sistema. Mas já é possível exprimir dúvidas. Uma é evidente: uma autoridade que necessita de centralidade de planeamento, eficácia e capacidade de resposta acaba por ser pulverizada. As diversas funções são distribuídas por várias instituições. A ponto de se ter também criado um gabinete de coordenação entre todos, isto é, o Gabinete de Coordenação e Gestão Integrada de Fronteiras!

 

A nova legislação e o novo sistema foram apresentados a público, há dias, com aparato. A Ministra anunciou pomposamente “um novo paradigma” e referiu-se aos méritos de Portugal na recepção de estrangeiros e subsequente hospitalidade, uma verdadeira “referência de humanismo e respeito pela dignidade humana”. O facto de Portugal ter adoptado um sistema único na União Europeia, diferente de todos os outros países, parece não ter suscitado dúvidas. É sempre assim, quando se diz que somos diferentes dos outros! Mas a verdade é que, numa área como esta, que inclui circulação entre países, aceitação de refúgio, regras de Schengen, valor dos passaportes, travessia de fronteiras e títulos de residência, seria bom que, em vez de brilhar pela diferença, nos ilustrássemos pela adopção de sistemas experimentados e consagrados. Mas as autoridades preferem a vaidade, talvez injustificada, de termos “um modelo único na Europa”! 

 

De qualquer maneira, convém estar atento. A concepção de reformas dos governantes nacionais, talvez especialmente dos socialistas, envolve sempre reformas globais, abordagens “sistémicas” e teorias grandiloquentes. As promessas imediatas referem a necessidade de legalizar, renovar e autorizar mais de 600.000 candidatos até Março de 2024! Como se fosse possível! Destes, mais de 350.000 são “pendências”, isto é, atrasados e ilegais à espera. Como é possível acreditar na boa fé e na eficácia de governantes que, em oito anos de governo, deixaram apodrecer a situação deste modo, com centenas de milhares de ilegais e atrasados? Pretende o governo esconder o facto de que é ele o principal responsável por esta situação?

 

Esta reforma, burocrática e de fachada, evita tudo o que é essencial. Na verdade, as políticas portuguesas para as migrações limitam-se a banalidades abstractas. Acolhimento generoso, regresso dos portugueses à pátria, direitos dos imigrantes, vantagens do multiculturalismo, tolerância, etc. As questões difíceis e que deveriam estar no topo das definições estão em geral afastadas.

 

Portugal opta pela porta aberta a todos? Quantos imigrantes podem entrar em Portugal? Há limites? Se sim, quais? E quem os define? Interessam-nos imigrantes de todos os continentes? Ou preferimos de países com os quais temos relações estreitas? Podemos fixar montantes ou fasquias para certas nacionalidades? Temos uma política igual para todos ou preferimos os originários de países de língua portuguesa? Há prioridade para trabalhadores desqualificados e indiferenciados ou para técnicos e pessoal qualificado? Portugal deve exigir contrato de trabalho prévio e residência assegurada antes de dar acolhimento? Podemos expulsar os ilegais ou devemos legalizar todos os que entrarem no país? Se os portugueses preferem emigrar para certos países, é justo que também possam preferir certos nacionais em detrimento de outros? Aceitamos que vivam em Portugal dezenas de milhares de ilegais?

 

Convém notar que, na história dos movimentos migratórios, há constantes bem interessantes. Os emigrantes vão dos países pobres para os ricos. De países sem emprego para onde há trabalho. De países onde há trabalhadores, mas não trabalho, para os que têm trabalho, mas não trabalhadores. De países em guerra para locais de paz. De países sem liberdade para democracias. De países atrasados para mais avançados. Portugal, tal como outros, tem a particularidade de estar em duas posições, a de atrasado e a de desenvolvido. Dezenas de milhares de portugueses partem todos os anos para a Europa e as Américas, enquanto dezenas de milhares de estrangeiros chegam de África, da América Latina e da Ásia.

 

Tentar controlar ao pormenor estes movimentos de população é do domínio da fantasia ou do impossível. As sociedades e o mundo têm uma margem de liberdade e de imprevisto que não se pode dominar ou extinguir. Mas é possível medir e avaliar, tentar orientar e adequar acontecimentos às necessidades. Fixar quantitativos, preferir nacionalidades de origem, valorizar as qualificações, exigir a legalização e o contrato de trabalho, punir a ilegalidade e o tráfico de força de trabalho e recusar a entrada aos criminosos são atitudes e opções aceitáveis e convenientes.

 

Nos tempos actuais, as migrações estão no centro das preocupações europeias. E talvez mundiais. O pior que pode acontecer, a Portugal, à Europa e a outros países, é deixar correr. A pretexto da “porta aberta” e do “acolhimento generoso”, cometem-se verdadeiros crimes políticos e deixa-se desenvolver o conflito, o crime e o tráfico. As velhas e doces ideias da liberdade de circulação e da escolha de local de vida e de residência, ligadas à cultura e ao trabalho, são postas em causa por esta negligência irresponsável.

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Público, 4.11.2023

sábado, 28 de outubro de 2023

Grande Angular - No círculo do Inferno

 O secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, teve uma frase infeliz, pouco cuidadosa, susceptível de interpretações contraditórias, erradas ou equívocas. A não ser, evidentemente, que ele quisesse dizer exactamente o que disse. Se for esta última hipótese, o assunto é mais grave e o tema mais importante do que um mero deslize de linguagem. Com efeito, tal quereria dizer que o Hamas tem explicação e motivos para fazer o que faz. Ora, quem tem explicação e motivos tem, sempre ou frequentemente, desculpa. O massacre de 7 de Outubro teria assim as suas raízes nas decisões das Nações Unidas de 1947, na opressão israelita, na desigualdade social, nos colonatos e na pobreza do povo palestiniano. O que quer dizer que, além do Hamas, também o Hezbollah, a Jihad, a Al Qaeda, o Irão e a Síria têm desculpa e justificação. O que significa que também a Alemanha nazi, os Estados Unidos, Israel, a Rússia, o Congo e o Ruanda têm explicação e justificação. O que se aplicaria ainda a Hitler, Mengele, Eichmann, Estaline, Mao Tsé Tung e Pol Pot. O que nos ajuda a perceber as causas do comportamento de Al Capone, Pablo Escobar e Jack o Extirpador. De acordo com o argumento inicial, toda esta gente, todos estes povos e os respectivos governos foram sempre meros agentes históricos, veículos sociais, protagonistas involuntários, sem responsabilidades pessoais, sem culpas de partido ou de grupo, sem livre escolha dos seus actos. Todos os comportamentos sociais e políticos teriam assim justificação. O que é diferente de explicação. O que diminui a culpa e a autoria. E reduz as responsabilidades.

 

Evidentemente, não deveria ser necessário dizê-lo, tudo tem as suas origens e as suas causas. Como tudo tem o seu contexto e a sua circunstância. Cada momento da história de um povo tem as suas grandezas e as suas misérias. Mas nada permite que as glórias e os sofrimentos passados justifiquem e desculpem os crimes de hoje, as agressões, os massacres e as violações do direito internacional. O massacre de 7 de Outubro não tem justificação nem desculpa. É um acto de pura agressão e de mortandade. Como tal tem de ser julgado. A responsabilidade não é de 100 anos de pobreza palestiniana, nem de 50 de colonatos. É, sim, das escolhas e das decisões dos dirigentes do Hamas e dos seus aliados.

 

            Compreende-se a reacção de Israel, que pretende justamente liquidar um movimento político que proclama a destruição de um Estado e de um povo. Mas, pela mesma ordem de ideias, não se compreende que esse mesmo Estado recorra a meios condenados pelo direito internacional, tal como o bombardeamento sistemático de populações. Não por causa do passado, nem da história, nem do contexto. Mas simplesmente por causa da humanidade e da vida. Nem um nem outro se justificam. A pobreza não desculpa o 7 de Outubro. Como os pogroms não perdoam o bombardeamento.

 

Globalmente, no universo das rivalidades, no panorama das relações internacionais, estou do lado de Israel. Não porque esteja sempre de acordo com os seus governos. Não porque aceite tudo quanto fazem. Também não por tudo o que são e defendem. Nem por serem brancos. Nem ainda por terem sido vítimas de perseguições, de expulsões e de massacres. Mas apenas e tão só porque, tudo somado, Israel está mais do lado da liberdade e da democracia do que os outros países seus rivais, adversários e inimigos. Em caso de divergência e luta, não é a cor da pele, a religião, a tradição, a etnia e a língua que me fazem tomar partido ou simpatizar com uns, em detrimento de outros. É o lado da liberdade e da democracia. Em caso de conflito, nenhum critério, pele, língua, etnia ou religião, me faz tomar partido por um qualquer país, em qualquer parte do mundo, Rússia, China, América ou África. Mas a democracia, sim. Não tenho dúvidas: em última instância, Israel fará sempre mais pela democracia do que o Hamas, o Hezbollah e os governos do Irão, da Síria ou da Rússia. Como também não tenho dúvidas em condenar a política do governo de Israel e de Netanyahu relativamente aos colonatos, ao reconhecimento do Estado da Palestina e ao embargo contra Gaza. Mesmo assim, estas políticas não são argumento suficiente para ter uma qualquer simpatia por quem quer destruir o Estado de Israel. E nem mesmo a compaixão pela sorte do povo da Palestina me faz acreditar no Hamas e desejar a extinção de Israel.

 

Mais do que uma moda, é um vício do pensamento. Tudo justificar pelo contexto, tudo explicar pelas origens e pelas causas, tudo desculpar pelo sofrimento de alguém. O assassino é filho de alcoólico, os seus actos necessitam ser compreendidos pela condição paterna. O ladrão cresceu na barraca, os seus gestos compreendem-se pela origem social. O desordeiro nasceu numa colónia, a sua conduta tem essa explicação. O traficante de droga é filho de pais divorciados, a falta de amor explica as suas acções. O violador é de uma família de capitalistas, os seus procedimentos têm essa justificação. O activista viveu sob domínio, pode cometer actos de terrorismo. Vítimas da colonização, da prisão dos pais, da etnia de origem, da condição da família, dos bairros de nascimento, da falta ou do excesso de religião dos progenitores, tudo é invocado para explicar e justificar. As escolhas de cada um, individuo, grupo, comunidade ou povo, têm sempre explicação e justificação. O crime é filho da miséria, da pobreza e da submissão. A violência é o resultado directo da desigualdade. Um povo historicamente perseguido tem o direito de perseguir outros. Uma comunidade submissa tem autoridade para destruir outras. Noutras palavras ainda: as opções de cada um não são as opções de cada um, são o resultado das origens. Os gestos dos indivíduos, das classes e dos povos não são as suas decisões livres, mas tão só os resultados dos processos históricos, das condições sociais e dos percursos de vida. Este é o reino da indiferença, da ausência de lei, da incerteza da responsabilidade e da marginalização dos indivíduos.

 

É também o reino da neutralidade, doença da humanidade, tal como diria Dante: é o local mais quente do Inferno, mais insuportável, reservado para os neutros, para os que escolheram a neutralidade em tempos de crise e de confronto. Reservado também para os obcecados com o compromisso. Não necessariamente o equilíbrio razoável, mas o compromisso entre tudo e todos. Ora, não há equidistância entre paz e guerra. Entre democracia e ditadura. Entre liberdade e totalitarismo.

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Público, 27.10.2023

sábado, 21 de outubro de 2023

Grande Angular - O fogo, a razão e o sentimento

 Há momentos na história em que a razão se encontra cercada por anéis de fogo: quase com estas palavras, foi um pensamento que nos deixou Marguerite Yourcenar a propósito de outros tempos e outros locais. Eram tempos de combates de morte, em que se afrontavam religiões e se digladiavam impérios e senhores. Momentos desses repetem-se ao longo dos tempos, nunca muito parecidos, a não ser na devastação do mundo, na destruição da razão e na perda de humanidade. Tivemos disso durante o século XX. Parece agora, neste novo século que se iniciou com esperança e confiança, que entramos gradualmente, mas depressa de mais, numa dessas épocas perigosas. Na Ucrânia e na Palestina, na Europa de Leste e no Próximo Oriente, tal como em partes importantes de África, chegámos a um desses momentos com todos os perigos já detectados. Aumentam as guerras, cresce o terrorismo, recua a democracia, diminui a coexistência e agrava-se a rivalidade entre países. Apesar de insuficiente, o retrato é aterrador.

 

Por mais que tentemos arranjar um “lado” e definir os “bons” e os “maus”, sabemos, no nosso íntimo, que encontrar lados já é mau caminho e que identificar os bons e os maus é um gesto recheado de mentira e de riscos. Também sabemos, para agravar as coisas, que é importante tomar partido, ser solidário, condenar quem o deve ser e apoiar os justos que o merecem. Mas nada disto é simples. Nem durável. Apoiar o lado da democracia, da liberdade e dos direitos humanos é imperioso. Mas sabe-se que, deste lado, os perigos, as distorções e as perversões são mais que muitos.

 

Condenar países ou nações é absurdo. É como condenar religiões. Ou povos. Mas pode condenar-se um governo, um partido ou um movimento, sem necessariamente condenar um Estado ou um povo. Condenar o Hamas, pelo terrorismo, não implica condenar os Palestinianos. Castigar o Hamas ou o Hezbollah não significa castigar os povos respectivos. Tal como condenar Netanyahu e as suas políticas não implica condenar Israel nem os Israelitas, muito menos os Judeus.

 

Aliás, em relação aos países ocidentais, está bem mais estabelecido que a condenação dos governos e das políticas não significa criticar as nações e os Estados. O governo italiano, o primeiro-ministro espanhol, o partido independentista catalão, o governo americano ou o presidente francês podem e devem ser criticados sem piedade, o que não quer dizer que queiramos destruir ou aniquilar os respectivos Estados. Criticar a política europeia ou americana actual não implica que queiramos pôr em causa a América como nação ou a Europa como União!

 

Estas verdades simples parecem não se aplicar ao Próximo Oriente. A amálgama entre Estados, povos, religiões, governos e dirigentes políticos é a destruição do espírito, a tradução exacta do clima de guerra e de irracionalidade. 

 

Toda esta questão do Próximo Oriente não é evidentemente apenas a questão do Próximo Oriente. É também da rivalidade entre as grandes potências ou entre vários países directamente interessados e vizinhos. É ainda uma questão de recursos financeiros, de petróleo e de gás. E do comércio de armamento. E um problema de nações, religiões, famílias, dinastias e tribos. Estes últimos factores, que envolvem identidade, são os que transformam os conflitos em guerra e morte. Poder político e recursos económicos são já letais em si. Com as identidades nacionais e as religiões, quase tudo deixa de poder ser possível.

 

Por toda a evidência diante dos nossos olhos, nos jornais e nas televisões, mas também por tudo quanto sabemos e se passou nos últimos anos, desde 1948, e nas últimas décadas, desde finais do século XIX, e desde sempre há dois mil anos, esta questão de Israel, da Palestina e do Próximo Oriente não tem solução durável. Poderá ter arremedos de equilíbrio temporário, mas o conflito e a guerra regressarão sempre.

 

A maior parte dos “defensores” dos Palestinianos, designadamente os governos do Irão, da Síria, da Rússia e de vários países árabes da região, não quer saber dos Palestinianos para nada, a não ser para servir de pretexto, isco, carne para canhão e causa piedosa. Os heróis são os Hamas, as vítimas são os Palestinianos. 

 

O Hamas, o Hezbollah, a Jihad islâmica e outros movimentos e partidos têm como objectivo central da sua existência a liquidação dos judeus e do Estado de Israel. Acessoriamente, fazem tudo o que podem para evitar que os projectos de dois povos vizinhos e de dois Estados viáveis tenham uma qualquer hipótese de concretização. Derrotar estes movimentos, sem massacrar o povo palestiniano, é condição essencial para o desenvolvimento de qualquer hipótese de paz.

 

O governo de Netanyahu é hoje um dos grandes obstáculos à paz na região. Em nome da sua sobrevivência, ele e os seus governos fizeram tudo o que puderam para tornar o Estado palestiniano inviável, para desenvolver os colonatos com pura agressividade militar e para manter o povo palestiniano arredado de um tratamento digno. A oposição israelita a Netanyahu, que tanto se manifestou e exprimiu nos últimos meses, é uma das raras esperanças de paz para a região.

 

É indispensável que o corredor humanitário seja permitido. É imperioso, até por uma questão de dignidade humana, levar água, alimentação e medicamentos aos Palestinianos em necessidade e sofrimento. É intolerável que o governo de Netanyahu impeça que esta ajuda chegue a quem dela necessite. É verdade que muitos “terroristas” quererão aproveitar este corredor. Mas também é possível permitir que a ajuda chegue sem que isso signifique que se está a alimentar o terror.

 

Se os Palestinianos forem massacrados, nunca mais a região viverá em paz. E a Europa também não. Se Israel for liquidado, será uma das maiores derrotas da história da democracia. Os países ocidentais, com os Estados Unidos e a União Europeia à cabeça, não têm feito o suficiente e o necessário, longe disso, para obrigar o governo israelita a aceitar a coexistência e a vizinhança de dois Estados viáveis. O governo russo tem feito tudo o que pode para impedir as soluções de viabilidade, para manter o clima de confronto e de guerra em potência. Tal como alguns governos vizinhos, do Irão e da Síria, por exemplo.

 

O que precede não tem provavelmente nenhuma novidade. É tão só uma maneira de evitar o fanatismo, de defender a paz, de reclamar compaixão e de condenar o belicismo. Sem ilusões. Apenas com uma réstia de esperança.

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Público, 21.10.2023