sábado, 26 de novembro de 2022

Grande Angular - E tudo mudou...

 De vez em quando, em cada dez anos, chegam números novos. São os resultados do Censo da População. Com imprecisão, muitos defeitos e ausências, falta de ilegais ou incapacidade de contar os emigrantes que regressam, os que se vão e os temporários. Na maior parte dos casos, as falhas são da vida, não dos técnicos. Sabe-se isso tudo. Mas é o melhor que temos. E o grau de aproximação da realidade é melhor do que muitos dizem.

 

É nesta altura que os governos, os partidos, os sindicatos, os comentadores e os académicos sacodem as cabeças, prepararam as gargantas e afiam os lápis. Quase a seguir, os cépticos vituperam. Os governantes gabam-se, denunciam os governos anteriores, fazem promessas demagógicas, anunciam que está em preparação mais um programa de reformas profundas, garantem que tudo o que correu bem é graças a eles e o que vai mal é por causa do inimigo, isto é, do governo anterior do outro partido. O trivial.

 

É triste e infeliz, mas é bom que assim seja. Ao menos, dá-nos um pouco de luz para olhar para a realidade. Ganhamos alguma certeza dos factos de que falamos todos os dias, geralmente sem dados, muitas vezes com palpites. As realidades estatísticas que começam com “consta”, “diz-se”, “parece” e “acho” são geralmente produto de miopia ou mentira deliberada. Com os Censos, aproximamo-nos da vida.

 

Olhando para o que temos diante de nós, já podemos ir tomando algumas notas. A população portuguesa está a diminuir. Eis o primeiro e mais importante facto. De igual ou parecido, só na década de 1960, quando se assistiu ao primeiro grande êxodo migratório. O Censo então realizado foi censurado até pelo Presidente da República de então (Américo Tomás), de tal maneira foi considerado atentatório da dignidade nacional. Um país como o nosso não podia admitir que a população emigrasse e diminuísse! Só se o seu povo fosse infeliz e não tivesse esperança nem oportunidades, o que estava fora de questão. Chegou a proibir-se a publicação integral dos resultados do Censo.

 

Voltando ao presente. O número de residentes (portugueses e estrangeiros legais) diminuiu de cerca de 220.000, passando a população total de 10.560.000 para 10.340.000. Isto, apesar do regresso muito importante de antigos emigrantes: cerca de 430.000 voltaram a Portugal nos últimos dez anos. A quebra de população fica a dever-se, como é natural, à baixa de natalidade e à emigração. Nem sequer a muito forte imigração de estrangeiros (quase 400.000 em dez anos) bastou para compensar as perdas demográficas.

 

A emigração para o estrangeiro continua em patamares muito elevados, a fazer pensar nos anos de 1960. Pior: o número de emigrantes por cada 1.000 habitantes é, na última década, superior ao registado na década de 1960. É talvez este o maior falhanço da economia, da sociedade, da política e das políticas públicas das últimas décadas.

 

De notar ainda o aumento da imigração. O número de imigrantes entrados por ano varia muito, conforme o ano, entre 15.000 e 70.000 nos últimos vinte anos. A parte da população estrangeira legal é um dos factos mais salientes. Os estrangeiros residentes e legais serão hoje cerca de 700.000, o número mais elevado da história. Estaremos perto do 7% do total da população residente, sem contar os ilegais (são muitos, mas ninguém sabe quantos…). Também não se incluiu a população de origem estrangeira naturalizada. Até porque já se trata de portugueses.

 

Entre os imigrantes por nacionalidade, vêm à cabeça os Brasileiros (200.000). Por continente de origem, o maior “stock” é o dos Europeus: são mais de 255.000. Contam-se os Ingleses (41.000), Romenos (30.000), Italianos (30.000), Ucranianos (28.000), Franceses (26.000), Espanhóis, (18.000), Moldavos (5.000) e outros. Africanos serão perto de 100.000, com Cabo Verde (35.000), Angola (25.000) e Guiné (20.000) nos principais lugares. Os Asiáticos serão igualmente cerca de 100.000. Os primeiros lugares pertencem à Índia (30.000), China (23.000) e Nepal (22.000).

 

Outra realidade notável, resultado da quebra de natalidade, da emigração e do aumento da esperança de vida, consiste no envelhecimento da população. Para muitos uma tragédia, para outros uma alegria. Vive-se mais, vive-se melhor. Há mais saúde. Há melhor alimentação e mais água potável. Há mais conforto. O problema é que, como se sabe, uma população envelhecida perde saúde, energia, inovação, esperança, ânimo, produção, criatividade, impostos e receitas. E gasta mais em saúde, segurança, pensões e apoios. A equação, nestes termos, é desastrosa. E exige uma economia mais saudável e pujante.

 

Convém também olhar para outros números, os da economia e do produto (PIB), dados que chegam da Comissão Europeia. Em poucas palavras, Portugal ocupava há vinte anos o 15º lugar na classificação dos países segundo o PIB por habitante (em poder de compra). Vinte anos depois, ocupa o 20º lugar. Quer dizer, está a perder em termos comparativos. Noutras palavras: em vinte anos, Portugal cresceu muito, desenvolveu-se e melhorou. Mas os outros também. Mas os outros ainda mais. Mas os outros mais depressa. E melhor.

 

O que há de muito curioso e motivo de reflexão (para compreender, estudar as causas e avaliar as consequências) é a conjugação de várias tendências bem expressas. E aparentemente contraditórias. A população diminui. A emigração para o estrangeiro aumenta. O regresso de emigrantes portugueses aumenta. A imigração de estrangeiros aumenta. Trata-se de mistura explosiva. Perde-se a ideia de uma política de migrações ou de uma linha de incentivos. Percebe-se que não existe uma visão ou uma ideia. O país e as autoridades olham para o que acontece e limitam-se a deixar acontecer. Os portugueses emigram à procura de melhores condições, mais oportunidades e melhores salários? Pois seja. A economia tem uma enorme falta de mão de obra? Venham os imigrantes. Há uma imensa procura ilegal de mão de obra clandestina? Deixe-se correr. Mantem-se e persiste a política e o modelo de salários baixos? É o possível. Aumenta o trabalho clandestino. Desenvolvem-se as redes de bandidos traficantes de mão de obra. Surgem cada vez mais os empregadores de imigrantes legais. Aumenta a população estrangeira residente não legalizada. Multiplicam-se os alojamentos miseráveis e clandestinos. Crescem as tensões entre comunidades nacionais e estrangeiras. Proliferam formas de marginalidade, da criminalidade à quase escravatura, passando pelo tráfico de droga e pela prostituição. Tudo isto perante a inexistência de uma qualquer vontade de controlar (o possível…) os movimentos migratórios. Deixar correr é sempre a pior das políticas.

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Público, 26.11.2022

sábado, 19 de novembro de 2022

Grande Angular - O pecado da complacência

O maior inimigo da tolerância é a complacência. Admitir o inadmissível, desculpar o indesculpável. Arranjar sempre uma justificação para o que a não tem. Perdoar por causa das origens sociais, da etnia, da idade, do género ou do partido. Não ver a realidade por causa do alegado interesse nacional. Esquecer por sentimento de culpa. Confundir a bondade com a passividade. À covardia, chamar coragem. Admitir que o interesse e o poder justificam e desculpam tudo. E deixar que a permissividade se transforme em cumplicidade.

 

Até quando nos deixaremos inexoravelmente tentar e convencer pelos piores males do mundo, na esperança de disso retirarmos prazer e vantagens, ou de por essa via sermos capazes de conquistar os bárbaros deste planeta para os benefícios da civilização? Até quando seremos cegos e surdos e não percebemos que ceder aos antidemocratas, aos assassinos, aos terroristas, aos intolerantes e aos traficantes não é meio caminho andado para a sua conversão, mas sim meio caminho para a nossa abdicação e a nossa capitulação?

 

Até quando poderemos pensar que uma aliança política com um partido de extrema-direita não democrático ou antidemocrático permitirá que esse partido se aproxime gradual ou rapidamente da democracia e que essa será a melhor maneira de evitar derivas populistas? Até onde se poderá pensar que uma aliança política de partidos democráticos com partidos de extrema-esquerda não democráticos fará com que se assegure a estabilidade e levará esses partidos a converter-se à democracia e a deixar-se convencer pelas bondades deste regime? Até quando se poderá permitir que se encarem ou façam alianças com o diabo, na esperança de o convencer a renunciar à sua vocação e de o seduzir pela superioridade da virtude?

 

Até quando seremos tolerantes, bondosos e complacentes para com os criminosos, bandidos, terroristas e fanáticos, desde que sejam de outras etnias, de outras crenças, de outra cor, de outra religião e de outra condição económica? Até onde seremos capazes de desculpar o crime de roubo, o tráfico de mulheres, o contrabando de armas, a violência doméstica, o assédio sexual e até o assassinato, desde que os perpetradores sejam pobres, imigrantes, desempregados, drogados ou refugiados? Até quando estaremos sempre prontos a tolerar os muito ricos, permitindo que eles comprem a sua inocência, paguem pela sua paz, cobrem pela sua honestidade, bloqueiem a justiça, influenciem partidos políticos e subornem a Administração Pública?

 

Até quando estaremos dispostos a tolerar e fechar os olhos aos comportamentos aberrantes e selvagens por parte daqueles que conseguem invocar a história e o facto de serem sucessores dos descendentes das antigas vítimas, de serem filhos de escravos, netos de colonizados, bisnetos de prisioneiros e tetranetos de conquistados? Até quando aceitaremos fechar os olhos à opressão das mulheres, à violência exercida sobre crianças, às liturgias de amputação, aos rituais de mutilação, à aplicação das penas de Talião e à tortura imposta aos humanos, desde que os seus autores sejam de outras religiões, de antigos povos colonizados, escravizados, racializados, dominados ou conquistados?

 

Até quando deixaremos de ser tolerantes com os ricos, os muito ricos, os produtores de petróleo ou gás, os senhores da banca e das finanças, os proprietários de matérias-primas, os governantes de nações onde o salário miserável é a regra, os ditadores de países que não reconhecem as regras do direito, muito menos os direitos humanos? Até onde poderemos colaborar com os facínoras deste mundo com um sorriso na cara e os braços abertos fingindo ignorar o que nos deveria separar? Até quando não seremos capazes de traçar uma fronteira nítida e rígida entre as necessidades realistas de coexistência Internacional e a colaboração cordial e amistosa? Os salários e o mercado chineses são suficientes para esquecer? O petróleo árabe basta para fechar os olhos? O gás russo chega para olhar para o lado? O dinheiro de qualquer origem é suficiente para comprar a nossa moral, a nossa honra, as nossas crenças e os nossos valores? A glória do futebol permite tudo?

 

Até onde deixaremos que a “ética republicana” se tenha transformado num manual de emprego privilegiado, num salmo para ajuste directo, numa regra para encomendas familiares e um tratado de recrutamento preferencial? Até quando deixaremos passar, sem pena nem condenação, as novas regras de comportamento político que perdoam a corrupção, aceitam o nepotismo, permitem o lenocínio, estimulam o compadrio e sustentam o favoritismo, desde que entre gente e famílias do mesmo partido e entre vencedores de eleições? Até quando estaremos dispostos a aceitar que a justiça atrase, adie, esqueça ou feche os olhos aos crimes e tráfico de influências no quadro das regras informais da democracia?

 

Até quando aceitaremos que os costumes do futebol e do dinheiro dominem os códigos jurídicos, as regras éticas e os costumes civilizados, a ponto de ser oficial e admitido que ambos, dinheiro e futebol, se regem pelas suas próprias leis, têm os seus usos e criam uma espécie de soberania que submete a civilização e o direito? Até onde nos dispomos a tolerar, admirar, copiar e respeitar as regras que impõem, no meio do futebol, os regimes alimentares e de bebidas, o modo de vestir, o aviltamento das mulheres e a violência sobre humanos, em favor do reconhecimento de ditaduras brutais e da mercantilização do desporto e dos desportistas? Até onde estaremos prontos a deixar que o dinheiro, a falsa crença religiosa, o petróleo, o investimento financeiro e a capacidade de corrupção sejam suficientes para estabelecer e normalizar as mais selvagens ditaduras que se possa imaginar?

 

Até quando continuaremos a tudo tolerar a quem tenha dinheiro e petróleo, armas e mercado, fábricas e salários baixos?  E tudo desculpar a quem atribua os seus crimes à pobreza, ao desemprego, às origens sociais, à escravatura e ao colonialismo? E tudo permitir a quem favoreça o partido, a seita, a família e a congregação? E a deixar que seja possível invadir escolas, ocupar universidades, conquistar ruas e impedir outros de trabalhar, desde que se escolham bem os argumentos, como o clima e a ecologia?

 

A abdicação e a complacência são o início da barbárie. 

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Público, 19.11.2022

 

sábado, 12 de novembro de 2022

Grande Angular - Requiem para a cidade de Lisboa

Foi esta semana anunciada a decisão de transformar o edifício da Caixa Geral de Depósitos em sede do governo. Era para ser apenas uma parte, sabe-se agora que será por inteiro. As mudanças já começaram. Parece que dentro de quatro anos a operação estará terminada. É possível que a maior parte do governo e dos ministérios se localize ali, naquele que a opinião designou, há anos, por Palácio Ceausescu, versão reduzida de um dos mais horrorosos edifícios de toda a Europa!

 

Será então a altura para prestar atenção, comparar e reflectir. À Lisboa do Governo do Terreiro do Paço e da Praça do Comércio, do Cais das Colunas e da Ribeira das Naus, sucede a Lisboa do Governo da Caixa e da arquitectura vulgar e pseudo… Pseudo monumental, pseudo pós-moderna, pseudo funcional e pseudo ousada! 

 

Entre as duas cidades, houve hesitação. Durante dois séculos, o coração e o poder balanceavam entre as Necessidades, a Ajuda e Belém. Os Ministérios foram dispersos. Parecia desenhar-se São Bento como lugar de referência, primeiro por causa de Salazar e da sua residência, depois por causa dos deputados e seu Parlamento. Mas nunca foram suficientes para organizar a cidade e seus poderes. O retrato agora é simples: da Lisboa do Terreiro do Paço para a Lisboa da Caixa.

 

A serena majestade do Terreiro do Paço, o apuramento de linhas dos edifícios, o equilíbrio das arcadas e das janelas, a abertura para o rio, o comovedor Cais das Colunas, a calma do tablado central, a nascença das ruas pombalinas, a vista para algumas colinas, a visão do Castelo São Jorge e um sentimento de grandeza recatada serão substituídos pela medonha arquitectura pagode da burocracia. Aliás, a evolução desenhava-se. Na Praça do Comércio, a que outros também chamam a Praça do Cavalo Negro, vem crescendo a cidade do burburinho pechisbeque, feita de hamburgers e tuk-tuk, hotéis atrevidos e restaurantes pretensiosos, à procura dos turistas da cerveja e da bola.

 

Apesar das chamadas de atenção e mau grado os programas eleitorais, a cidade prossegue o seu declínio. Ou antes, a sua metamorfose, a transformação numa cidade desinteressante, difícil, incaracterística, suja, barulhenta e desconfortável.

 

A cidade é seguramente uma das mais belas do mundo. A sua disposição, a sua geografia e a sua orografia fazem dela uma raridade. Vista da Outra Banda, do Cristo Rei, das pontes, do Tejo, do Parque de Monsanto ou de qualquer outro local que permita uma panorâmica, a cidade exibe-se esplendorosamente. A Lisboa de Carlos do Carmo, de Ary dos Santos e seus amigos é inesquecível, emparceira com as mais bonitas do mundo. 

 

O problema é Lisboa por dentro, Lisboa por perto, às voltas em Lisboa, Lisboa de todos os dias, Lisboa das ruas e do comércio, Lisboa do trabalho e do passeio, Lisboa do património e da vida.

 

A Lisboa histórica está a desaparecer. É natural. Nada é eterno. Mas o que muda, para diferente, pode ser para pior ou melhor. Com cuidado, o que se transforma pode incluir o que de melhor tem e trazer o que de melhor se pode ter. Com Lisboa, pode simplesmente tratar-se do pior dos mundos. Desaparece o melhor, a história, a beleza, a identidade… E aparece o pior, a uniformidade, o excêntrico, a insegurança, o banal, a vulgaridade com ar de contemporâneo, a infâmia inestética e parola. Para além do que desaparece, e mal, e do que aparece, pior ainda, há o que fica, o que se mantém e agrava. Este é o pior capítulo.

 

Assistimos a um verdadeiro assassinato da cidade de Lisboa, mais propriamente da Baixa de Lisboa, da Lisboa histórica, da Lisboa da tradição. Morrem as melhores Lisboa. A Baixa Pombalina, um prodígio urbano em vias de demolição. A Lisboa mourisca, quase única na Europa, em vias de destruição. A Lisboa burguesa dos séculos XIX e XX, com irrepetível personalidade. A Lisboa dos monumentos, dos Palácios, das quintas nobres e das quintinhas e dos retiros. A Lisboa do rio e das colinas. 

 

Prossegue o despovoamento do centro, da Baixa e dos bairros históricos. Multiplicam-se os hotéis e escritórios de aparente luxo, para reciclar capitais sorrateiros e Vistos Gold. Nas ruas, alastra o turismo nómada do souvenir e da placa magnética para colar no frigorifico. Nas ruas pombalinas e no Rossio, ainda se poderia ouvir grito desesperado “Acudam, que matam Lisboa!”, mas já é tarde. As ruas da Baixa estão inundadas de lojas de mau gosto, com grafiti e souvenirs plásticos, portas e janelas tapadas com tijolos para proteger dos sem abrigo, da droga e dos ratos. Multiplicam-se as lojas que nunca se perceberá o negócio que fazem, dado que os recuerdos não chegam para pagar a luz, quanto mais as rendas de milhares de euros. Crescem os comércios que negoceiam residências falsas e contratos fictícios para imigrantes ilegais. Há lojas de fachada e de droga. Há lojas de residência e de contrato. Há lojas de conveniência e de contrabando. Há lojas de tatuagem e casas de passe. Há negócios escuros para pagar rendas milionárias com que nenhum comércio legítimo será capaz de competir.

 

Como se fosse pouco, há a sujidade tradicional, aumentada pelo turismo, pela indiferença, pela megalomania dos planos integrados incapazes de arrumar e calcetar. Buracos voltaram a aparecer. Nas ruas e nos passeios, trotinetas e bicicletas são ameaças para os velhos, os deficientes, as crianças e os doentes. Não é seguramente o vereador X ou o presidente Y nem sequer o partido Z… São vários em sucessivos anos que deixaram Lisboa morrer e definhar. Regressaram os pedintes. Voltaram os esfomeados. Cresceram os sem abrigo. Estão por ali novamente falsas mães com crianças de empréstimo para pedir esmola. Sobram os receptadores de telemóveis, carteiras, iPad, computadores e equipamentos dos automóveis. Esgueiram-se por todo o lado os carteiristas da Carris. Pululam os indocumentados, os imigrantes ilegais e os candidatos a refugiados. A Baixa divide-se por grupos étnicos, por ramos de negócio ilegal, por sectores de actividades nocturnas e por artigos de contrabando.

 

Todos os dias a Câmara, as autoridades e o Governo têm invenções. Vias para bicicletas, centros de negócios, congressos de web, passes gratuitos, é só pensar. Mas o mais simples, lavar e limpar, remendar e tapar buracos, pintar e restaurar, alojar e legalizar, fica para trás. À espera de negócios obscuros e de demolição, casas devolutas e palacetes arruinados morrem devagar, até que a grua e o caterpílar ponham termo à cidade. Lisboa necessita de habitantes, moradores, estudantes residentes, lojas decentes, limpeza e cuidado, não necessita de start-ups chiques.

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Público, 12.11.2022

 

 

sábado, 5 de novembro de 2022

Grande Angular - Serviços públicos, Call Centers e cidadania

 Quem nunca esteve minutos e horas à espera de atendimento de uma entidade, instituição ou empresa, pública ou privada, a fim de tratar de assuntos da sua vida? Quem nunca sentiu a ineficácia e a indiferença de tantos serviços de atendimento?

 

Quando se tenta falar com certos serviços ou empresas, nunca se sabe quem responde do outro lado. Um funcionário? Um empregado de um Call Center situado a centenas de quilómetros? Um gravador em Espanha? Uma empresa com sede em Cabo Verde? Qualquer reposta pode estar certa, depende do Serviço e da organização. Em muitos casos, é indiferente. A possível rapidez de comunicação e a facilidade de organização da resposta são tais que a distância é indiferente. É verdade que, para tratar de questões portuguesas, é conveniente que quem me responde fale português correcto e tenha uma vaga noção da geografia… Explicar a um estrangeiro, que mal “arranha” português, um problema de saúde, de comunicações, de impostos ou de seguros é uma tarefa quase inútil.

 

De qualquer modo, os meios técnicos à nossa disposição permitem uma prontidão a toda a prova. Por isso as deficiências têm causas que não são técnicas. Por exemplo: a importância atribuída ao cidadão. Capacidade de organização. Investimento em meios e pessoas. Obrigatoriedade de atender prontamente. Formação profissional dos funcionários. Condições de trabalho destes últimos.

 

Há certas coisas que exigem que delas se fale na primeira pessoa. É, pois, esta a minha experiência e a de pessoas que frequento. As respostas do 112, do INEM, do SNS 24, dos bombeiros, da PSP e do meu banco são rápidas e eficientes. Isto é, não espero horas, não aturo longas gravações de publicidade, de recados monocórdicos e de música insuportável. Podem ou não as questões ser, depois, resolvidas. Mas o essencial aqui é o atendimento. É sobre isso que falamos.

 

As respostas da Junta de freguesia, da Câmara municipal, das empresas de telefones e de telemóveis, dos hospitais públicos, dos Centros de Saúde, das empresas de electricidade, gás e água, do caminho de ferro e do aeroporto são, conforme as horas, os dias e a estação do ano, sofríveis, medíocres, más ou péssimas! Parecidas com estas, as do Serviço de estrangeiros, da Segurança social, das Finanças, dos Impostos, dos correios, das universidades e das escolas secundárias. Nota especial para os Centros de Saúde: muitos nem sequer atendem os telefones!

 

Tudo o que é comercial, desde os centros e supermercados, até às grandes lojas, passando pelos táxis e equiparados, é rápido e pronto se for serviço de venda. É moroso e pouco expedito o que for do serviço do cliente, reclamações e informações gerais.

 

É lamentável, mas é parcialmente verdade. Quando os serviços são pagos, quando as entidades ganham com o atendimento, quando o lucro é a finalidade da actividade, a resposta é razoável, boa ou muito boa. Igualmente, quando o cidadão pode escolher a entidade e denunciar o mau atendimento, é quase certo que se corrigem os seus comportamentos. Mas, quando, pública ou privada, a entidade tem a faca, o queijo, a lei e a força do seu lado, o cidadão é tratado como um perturbador ou um delinquente. Por exemplo, as empresas que usam e abusam da “fidelização” (prática que deveria ser pura e simplesmente proibida) estão entre as piores entidades: enganam, mentem, atrasam, disfarçam e nem sequer ouvem.

 

A realidade social dos Call Centers é complexa. Há muito de oculto. A precaridade reina, pelo que só se conhece uma parte da verdade. Segundo uma associação representativa do sector e os sindicatos, há quase 100.000 trabalhadores em centros ou actividades de contacto. Destes, um terço completou o ensino superior, o que diz alguma coisa sobre a situação do emprego no nosso país. E quase dois terços terminaram o ensino secundário! Não parece ser por causa da falta de estudos que este sector é deficiente. Já as condições de trabalho (duração dos contratos, horários de trabalho e níveis de vencimento), geralmente muito más, podem explicar o mau ambiente. A maior parte dos contratos são de curta duração, a precaridade reina.

 

Não seria interessante ter à nossa disposição, organizada por entidade pública ou privada, mas independente, uma classificação permanente da actividade dos centros de contacto, das grandes empresas de serviços, das principais instituições dos grandes serviços públicos de que dependemos sempre, todos os dias, tantas vezes de modo decisivo para a nossa vida e a nossa paz? Não seria interessante que os serviços de atendimento e apoio tratassem os cidadãos como gente? Olhassem para eles com a dignidade que merecem? Não seria interessante poder penalizar e apontar os maus serviços, as más empresas, as más instituições públicas ou privadas? Será muito difícil estabelecer regras e critérios para que estas classificações sejam cuidadosas, sem tráficos de influência, sem trafulhice e sem privilégios? Não seria útil que fossem os próprios cidadãos a pontuar as entidades?

 

Mais do que o socialismo e a sua natureza profunda, mais do que o capitalismo e os seus fundamentos, mais do que certas características adjectivas dos regimes políticos, mais do que tudo e logo a seguir à liberdade e à dignidade humana, é a qualidade dos serviços públicos e a natureza do tratamento de que somos objecto ou vítimas que me interessam como características da sociedade.

 

As empresas querem vender produto, convencer e impingir. Bom ou mau, bem ou mal, é o que as empresas querem. As instituições querem convencer, elogiam os governantes e desejam que os cidadãos obedeçam a uma antiga regra de vida portuguesa “o calado é o melhor”! Os jornais, as televisões, os órgãos de imprensa em geral nem sempre se vêem como intermediários entre os poderes e os cidadãos, e por isso têm dificuldade em imaginar uma função como a de provedores do atendimento.

Com certeza que a resposta imediata não é suficiente. É preciso pensar no que se dá ou vende. Há que fazer justiça, ser honesto e não mentir ou roubar. Isso é verdade. Mas se tudo começar bem, com atendimento humano, com resposta pronta, com a delicadeza de seres humanos, a afabilidade de cidadãos e o orgulho de dever cumprido, o que vem a seguir virá certamente melhor. Ser bem atendido, não ser esquecido e ser tratado como igual é o princípio de ser igual. Ser tratado dignamente é o princípio da dignidade humana. Ser tratado com indiferença é o princípio da sujeição.

Público, 5.11.2022