sábado, 28 de agosto de 2021

Grande Angular - Provavelmente…

Dizem que as autárquicas são centenas de eleições locais: cerca de 300 municípios e 3000 freguesias. É verdade. Mas também é certo que têm sempre significado nacional, dependem muito de um ambiente e de uma tendência. Assim será dentro de poucas semanas. Apesar de locais, as conclusões vão ser sobretudo nacionais. Como sempre, os que perdem dirão que as verdadeiras eleições são as legislativas. Os que ganham garantirão que esta foi a primeira volta das legislativas. O governo tem a desculpa do poder: se ganhar, foi graças à obra feita; se não ganhar, foi apesar da obra feita; se perder, será por causa das dificuldades. São lugares comuns. Como tal, verdadeiros. E inúteis.

Tudo somado e repensado, a vitória dos socialistas é previsível. Perderão algumas câmaras, não se sabe se ganham outras. No cômputo geral, o partido vai poder dizer que foi uma grande vitória obtida em condições difíceis de pandemia, de crise económica mundial, de inquietação generalizada, de alarme perante as alterações climáticas e de enorme ansiedade decorrente da derrota ocidental no Afeganistão. Na verdade, ninguém, entre forças políticas, estará à altura de mostrar as deficiências dos socialistas, nem de com eles rivalizar.

Os socialistas exercem uma rara preponderância na administração económica e social, no seio das actividades culturais, na comunicação social e no universo das relações públicas e de imprensa. A ajuda da esquerda mais radical, nos sindicatos e na imprensa, tem-se revelado indispensável para a paz social que parece reinar. Na educação, apesar da mediocridade de resultados, o império das esquerdas entre docentes tem contribuído de modo indelével para o ambiente cordial que se vive.

As medonhas responsabilidades dos socialistas aparecem estranhamente diluídas na pandemia. Mas sabemos que os socialistas têm uma pesada quota parte no adiamento de soluções, na degradação de problemas e na manutenção de questões como as do BES, do Banco Novo, do BCP, da TAP, do Aeroporto do Montijo barra Alcochete barra OTA barra incerteza, da CP, da EDP, das barragens hidroeléctricas, das Parcerias Público Privadas, da PT e do julgamento dos casos de corrupção e branqueamento. Mau grado persistir em acusar os governos anteriores, o PS sabe que já é autor ou co-autor de todos estes problemas.

As enormes dificuldades económicas e financeiras, incluindo as que decorrem da pandemia e da respectiva recessão, são vistas como inevitáveis e parece poder pensar-se que se os socialistas não fizeram mais e melhor foi porque realmente não puderam. Apesar da partilha, da co-autoria e da cumplicidade absoluta dos actuais dirigentes com os dos tempos de Sócrates, os socialistas gozam de uma espécie de áurea divina e de impunidade que constituem êxito inédito na história política recente do país.

O verdadeiro génio de António Costa é o da gestão política. Deve-se-lhe o ascendente sobre a imprensa e a comunicação. Assim como a absolvição dos socialistas no fiasco na luta contra a corrupção e o nepotismo. Com estes trunfos e com um domínio incontestável do seu partido, António Costa é o principal responsável pela estabilidade política. É sabido que esta é também uma virtude. Não vale todas as virtudes, mas é em si um trunfo de indiscutível valia. E substitui-se a um pensamento para o país. 

O congresso do PS deste fim-de-semana situa-se entre a entronização, a epifania e a acção de graças. Vai confirmar um vencedor. Adiar as lutas internas por mais uns anos. Preparar o partido para a vitória das próximas legislativas. Aprovar a verdadeira política de armadilha e chantagem que tanto fez sofrer os seus aliados de esquerda. E abençoar a estratégia vencedora que é a da ausência de estratégia nacional.

O Partido Socialista tem conseguido perpetuar e manter a política de terra queimada. À sua volta, nada existe. Ou pouco. Ou dependentes. Ou queixumes dos que se deixaram enganar e atrair. Esta paz podre agrada aos socialistas que a preferem a ter de se distinguir entre gigantes.

Muitos dos clichés usados para denegrir o Partido Socialista são verdadeiros. Não tem alma, nem ideologia. Não tem doutrina, nem cultura. Não tem estratégia, nem programa. Não tem afecto, nem simpatia. Não tem substância cultural, nem identidade política. Não tem orgulho, nem compaixão. Estes chavões são todos verdadeiros. Mas, no PS, não são defeitos. São virtudes. Provavelmente.

Hoje, o PS vai a congresso, amanhã a eleições autárquicas, depois à governação e a seguir, quem sabe, a nova vitória eleitoral e a novo mandato de governo. Não vê rivais consistentes. Tem as melhores sondagens possíveis. Vê, diante de si, largas avenidas de novos êxitos políticos. Pode facilmente imaginar recordes de tempo de governação, de mandatos camarários, de atracção de simpatizantes e de alas de vénias agradecidas. É difícil, quase impossível, imaginar quem o bata. Com uma incalculável massa de dependentes e com os maiores cofres do financiamento europeu, o PS prepara-se para mais uma temporada na via imperial do sucesso. A ausência de adversários à altura é aflitiva, não por sancionar quem merece, mas porque provoca um estado de letargia incurável. De que sofre todo o país.

Até agora, o Partido Socialista do século XXI não ficará na história por um legado importante de reformas políticas e sociais, nem por um extraordinário impulso na educação, muito menos por um desenvolvimento da cultura e do património, nem por uma acção determinada de combate à desigualdade social. Também não será recordado pela luta contra a corrupção, pela diligência na justiça económica, nem pela melhoria da acção de investigação, prevenção e julgamento dos crimes ditos de colarinho branco e de apropriação ou dilapidação de bens públicos. 

O Partido Socialista do século XXI merece os louros do melhor gestor da política, de superior atracção de simpatias, do mais eficaz distribuidor de funções, cargos e mandatos, do mais persuasivo apaziguador de reivindicações, do mais seguro criador de expectativas entre os seus aliados e do mais rápido desarme dos seus rivais. 

Sem maioria eleitoral, sem programa convincente, sem estratégia conhecida, sem resultados económicos consolidados, sem melhoramento social notório e sem legado cultural de qualquer espécie, o PS vai ganhar as próximas eleições e durar os próximos anos. Provavelmente.

Público, 28.8.2021 

sábado, 14 de agosto de 2021

Grande Angular- Os desastres da demografia

 Os portugueses comovem-se! Os dados do INE relativos à população actual confirmam o que já se conhecia: a população portuguesa está a diminuir! Não é a primeira vez que isto acontece, já tinha ocorrido nos anos 1960, aquando da grande hemorragia da emigração. Mas agora, depois de tantos progressos, é desanimador, para uns, inquietante, para outros. Em 2021, a população é igual à de 2000. Parece haver um paralelismo: vinte anos sem crescimento económico foram também vinte anos sem crescimento demográfico!

Os dados são simples. A população total está a diminuir. Os saldos naturais (diferença entre nascimentos e óbitos) estão a ficar consistentemente negativos. Os saldos migratórios (diferença entre emigrantes e imigrantes) são, em grande parte, negativos. Natalidade e fecundidade persistem na redução.

Outros dados escurecem as já sombrias cores da nossa demografia. O número de pessoas a viver sozinhas continua a aumentar. Tal como aumentam as famílias sem filhos e as famílias monoparentais (filhos e só a mãe ou só o pai). Diminui ainda o número de filhos por agregado familiar.

Os portugueses receiam os perigos de extinção daqui a umas décadas. Desaparecimento de Portugal ou dos Portugueses. Ou de ambos. Por outras palavras, o país e a população que ocupam este território serão bem diferentes do que são hoje. Dentro de algumas décadas, o nome do país, a nacionalidade e a origem étnica dos seus habitantes, a cultura e a língua dos seus cidadãos poderão ser muito diferentes do que conhecemos.

Esta tendência é geralmente considerada negativa. Fala-se de “inverno demográfico”, de “declínio populacional” e de “desistência nacional”. Por isso é tão frequente ouvir dizer que este é o mais grave problema nacional, que não deveria ser ofuscado por outros, a bancarrota, o endividamento, o desemprego, a pobreza, o racismo, a pandemia e as alterações climáticas. Sem escala de gravidade, o problema demográfico é mesmo muito importante, prioritário e grave, qualquer que seja a perspectiva.

 

Mas convém não perder de vista umas realidades simples. Primeira, na maior parte dos países do mundo, o problema é o da sobrepopulação e de altas natalidades, para o que se gastam milhões de recursos, pessoas e programas de controlo de nascimento e de contracepção. Segunda, dezenas de países estão a perder população. Portugal está longe de ser o único. Terceira, não é seguro que aumentar a população seja uma necessidade e um melhoramento.

De qualquer maneira, perante o “declínio dos Portugueses” e diante da ameaça de “desaparecimento de Portugal”, muitos são os que pensam nos remédios. No que se deve fazer. Como reter portugueses em Portugal? Como favorecer a natalidade dos portugueses? Como fomentar a fecundidade? Como convencer os portugueses a fazer filhos? Como arranjar emprego para toda a gente? Como travar a emigração? Como favorecer a imigração e a miscigenação?

Todas estas perguntas são excelentes. Mas partem de uma princípio incerto: é melhor ter mais portugueses. Aumentar o número de portugueses? Porquê? Impedir o decréscimo do número de portugueses? Porquê? Evitar o desaparecimento dos portugueses? Que quer isso dizer? Porquê? E como aumentar o número de portugueses? Com ou sem imigrantes? Com ou sem mistura? Com que imigrantes? De que cor, de que etnia e de que continente? Mas então, o que faz ser português? Pretende-se simplesmente aumentar o número dos que aqui vivem e elevar o número de portugueses “clássicos” de acordo com critérios culturais e étnicos?

Como se pode ver, estas perguntas exigem repostas difíceis, a maior parte delas controversas, contraditórias mesmo. Quem quer travar a emigração deve fazê-lo de autoridade ou oferecer bons empregos e rendimentos elevados? Quem quiser compensar a quebra de natalidade pretende agir com abonos e condições de maternidade excepcionais ou recorrer à imigração?

Travar a emigração é muito difícil. Tal objectivo exige crescimento económico, emprego satisfatório, bom salário, bons rendimentos, alguma segurança, estabilidade, habitação decente, boas escolas para os filhos e os netos. Nessas condições, é provável que a emigração diminua. Desde que nos outros países não haja ainda melhores condições, evidentemente. É razoável pensar que, com desenvolvimento e bem-estar, não são os trabalhadores que emigram, mas sim os cientistas, artistas, intelectuais, gestores, técnicos, os investigadores…

Com a natalidade, tudo é mais difícil. Apesar da facilidade com que os demagogos dizem que é possível, travar a sua quebra é dos objectivos mais complexos que a Humanidade conhece! Aumentar a natalidade poderá exigir mais estabilidade, condições favoráveis a projectos de vida, mais rendimentos, mais educação, mais saúde, melhor habitação e mais cultura. Tudo isso parece ser verdade. Só que, quanto mais se tem isso tudo, menor é a natalidade, mais as famílias diminuem, menores são a fecundidade e o número de filhos. É possível que o trabalho a tempo parcial das mulheres ou dos pais em geral ajude. Mas há demonstração estatística de que quase nunca é assim.

Com a natalidade, é tudo complicado. Bom rendimento está relacionado com fraca natalidade. Geralmente, famílias e países com altos níveis de vida têm baixas natalidades. Isto nem sempre é verdade no plano dos países individualmente considerados. Por exemplo, a França, muito mais desenvolvida do que Portugal, tem natalidade superior. Mas a Alemanha, ainda mais desenvolvida do que Portugal e a França, tem natalidade inferior.

Os 90 países com natalidades mais elevadas do mundo são países de África, Ásia e América Latina com níveis de vida muitíssimo inferiores aos dos países com menor natalidade. Os 50 países com mais baixa natalidade do mundo são países da Europa e da América (um ou outro da Ásia), mais ricos e educados! Rendimentos, empregos, estabilidade, cultura e educação ajudam a projectos de vida mais ricos, mas não mais fecundos: quantas vezes esses projectos de vida exigem menos filhos!

Por agora, uma coisa é certa: o objectivo essencial não é o aumento do número de portugueses! O essencial é apoiar quem escolhe, quem quer cá ficar, quem quer cá fazer família e quem quer para cá vir. O objectivo das políticas públicas é o de permitir que cá vivam os que querem cá viver!

Público, 14.8.2021

sábado, 7 de agosto de 2021

Grande Angular - Tempo de decisões

 Preparemo-nos para uma longa caminhada. Que teremos de percorrer sem conhecer as dificuldades, muito menos o resultado. Preparemo-nos para decisões difíceis. É verdade que todos os tempos são decisivos, é o que se aprende com a política. Mas há os que são mais do que outros. Estamos agora, como outras vezes na nossa vida recente, em tempo de escolhas especialmente importantes. Comparáveis às que tivemos de fazer com a Constituição e o regime democrático; ou com a adesão à Comunidade Europeia. Com várias eleições e outros tantos orçamentos à nossa frente, com um poderoso programa europeu de ajuda financeira e com vários factores de crise a exigir soluções, chegamos gradualmente ao ponto em que não se pode adiar mais o fundamental: a natureza do regime político e do sistema social e económico. Que parecem consolidados, mas não estão.

Na verdade, são decisões excepcionalmente difíceis, porque as adiámos. Mas também porque difíceis foram os tempos que vivemos neste século XXI. Os portugueses tiveram especialmente má sorte. Ou atravessaram períodos particularmente difíceis. Uns, por responsabilidades suas. Outros, porque a sua origem internacional os ultrapassaram. Mas deve reconhecer-se que se tratou de uma série excepcionalmente difícil ou dolorosa. Os governos de José Sócrates, de triste sina e má fama. A crise financeira internacional e a crise da divida soberana. A quase bancarrota nacional e o grave endividamento público e privado. A assistência internacional e a troika. A pandemia da COVID. Dois períodos de muito intenso desemprego e de elevado número de falências. Muitos outros países partilharam connosco algumas destas crises. Certos povos tiveram mesmo crises diferentes. Mas reconheçamos que nos coube um quinhão particularmente pesado. O que faz com que, em vinte anos, não crescemos, não nos desenvolvemos, nem nos aproximámos da Europa. Em vinte anos, caminhámos para o último lugar da União.

Depois de alguns anos de crescimento, de real desenvolvimento e de melhoria das condições de vida, começámos a verificar que, desde o inicio deste século, as nossas estruturas produtivas eram muito mais frágeis do que se pensava, muito menos eficientes do que se imaginava. Aquilo que se designava, nos anos oitenta, pelo eufemismo “a prosperidade é geral, mas ainda há bolsas de pobreza e de atraso”, era finalmente uma enorme ilusão. Mais depressa se tratava de “a pobreza é geral e só há algumas bolsas de riqueza e de desenvolvimento”.

Com a sucessão das crises do século XXI, a realidade ficou intensamente mais nítida e cruel. São enormes as debilidades do investimento, da criação de novas produções e de novas vias de exportação consolidada. Estas crises mostraram as fragilidades fundamentais da economia e da sociedade e a pobreza de ambas. Tornaram mais visíveis a falta de capital e de ciência, a mediocridade das estruturas empresariais e a fraqueza dos grupos económicos. Sublinharam a reduzida competência do Estado e dos governos. Patentearam a venalidade de tantos políticos democráticos, assim como a corrupção e o nepotismo que parecem ser, entre nós, costumes impunes ou aceitáveis.

Este último aspecto, o da corrupção, do nepotismo e do favoritismo, é particularmente cru, num país com tanta pobreza. A incapacidade do sistema político para combater tais deficiências e a dificuldade da justiça para punir e prevenir são especialmente dolorosas num país tão desigual.

Não é seguro que se confirme em Portugal o velho mito da destruição criadora. Na verdade, algumas das melhores empresas portuguesas, as mais internacionais, as mais produtivas e as mais avançadas foram destruídas ou submetidas a grupos e fundos externos, para os quais a economia e a sociedade portuguesas não são prioridades nem horizontes. É pouco provável que estas boas empresas voltem ou renasçam.

Até agora, resistimos. Ou antes, os portugueses conseguiram sobreviver. Endividados, com muitos desempregados em cada família, sem poupança nem aforro, com enormes dificuldades para encontrar emprego para os filhos que entretanto tiveram mais qualificações e mais instrução, muitos sentiram-se novamente obrigados a recorrer à emigração. Mas resistimos. Sem pôr em causa a coesão nacional, nem as instituições democráticas. Alguns serviços públicos aguentaram e resistiram, com especial relevo para os da saúde. Mesmo se com enorme esforço e com grandes carências.

Para sair das crises, para curar as feridas, para relançar e criar a economia e para finalmente desenvolver, vai ser necessário repensar e partir com novas bases. Os últimos anos mostraram que não se pode nem deve adiar mais. Mostraram que as escolhas são cada vez mais inevitáveis e inadiáveis. Há muito que não estávamos diante de dilemas essenciais. Como poucas vezes no passado, vamos decidir, nos próximos dois a três anos, se queremos ou não ter mercado e iniciativa privada. Se nos organizamos para o desenvolvimento económico. Se damos confiança aos investidores nacionais e estrangeiros. Se somos capazes de novos grandes projectos. Se queremos realmente promover a colaboração do público com o privado. Se queremos cuidar das bases económicas indispensáveis ao Estado social e à sua consolidação. Se estamos ou não à altura de crescer economicamente mais do que os restantes países europeus ou grande parte deles.

Teremos de decidir se somos ou não capazes de criar um poder político que seja capaz das escolhas difíceis e não se submeta à estratégia da duração e às tácticas da manutenção. Teremos em particular de decidir se aceitamos a lógica infernal da esquerda contra a direita e da prioridade aos governos sectários.

Já sabemos que a direita radical quer destruir o regime democrático. Com democracia e com uma estratégia política de interesse comum, é possível impedir tal intento. Já sabemos que a esquerda radical quer apoderar-se do regime democrático. Também é possível impedir tal intenção. O que não parece possível é tentar preservar o regime democrático com aqueles que o querem destruir. Nem com os que dele se querem apoderar.

Público, 7.8.2021