EM JULHO DE 1974, já depois de vir a Portugal “ver o 25 de Abril”, voltei a Genebra tratar da minha vida e preparar-me para regressar a Portugal. Antes disso, fui “despedir-me da Europa”, escolhi uma viagem à Grécia, onde nunca tinha ido. Cheguei a Atenas no dia do “golpe” que derrubou a ditadura dos Coronéis. Sorte a minha! Tinha perdido o 25 de Abril, tive, em troca, um “golpe democrático”. Fiquei por Atenas uns dias a festejar. Invoquei a minha qualidade, duvidosa, de correspondente do jornal “República” (tinha um cartão de identidade) e estive em todos os locais importantes. Assisti à Chegada de Karamanlis e aos primeiros encontros com os democratas gregos. Nas ruas, era uma enorme agitação festiva. Nesta imagem, a polícia tenta conter a multidão que cercava o hotel onde os democratas se reuniam e onde Karamanlis acabava de chegar. (1974)
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
domingo, 27 de dezembro de 2009
Quatro décadas: da mudança à incerteza - Intervenção na Academia das Ciências de Lisboa
.
Texto integral [aqui]
ERA UM PAÍS FECHADO. Um Estado autoritário. E um povo inculto. Era Portugal do início dos anos sessenta. Pequeno, pobre e periférico. País rural, quarenta por cento da população, mais do que qualquer outro na Europa ocidental. Uma alta natalidade estava na origem da população mais jovem do continente. Uma obscena mortalidade infantil (mais de oitenta por mil) e uma esperança de vida reduzida (sessenta anos para os homens e sessenta e cinco para as mulheres) denunciavam o atraso social e económico. Os horizontes eram fechados, a escola medíocre e insuficiente, a saúde pública quase inexistente, poucos os empregos industriais e a liberdade diminuta. A maior parte dos agregados domésticos não tinha acesso aos serviços públicos de água, de electricidade ou de saneamento. As infra-estruturas eram pobres e ineficazes, as deslocações eram difíceis. Os portugueses viajavam pouco dentro do seu próprio país. O número de analfabetos elevava-se a quarenta por cento da população. Legalmente oprimidas, as mulheres tinham pouco empregos (apenas quinze por cento da população activa), eram mantidas à margem do espaço colectivo e não tinham o mesmo estatuto de cidadania que os homens: viviam e morriam, em maioria, fechadas nas suas vidas domésticas. Era assim que viviam os portugueses há cinquenta anos.
À margem da Europa, o país vivia um relativo isolamento. Virado para o Atlântico e para África, onde possuía o último e imenso império colonial, os seus contactos com os países vizinhos eram reduzidos. Para as autoridades políticas, o isolamento era uma virtude. A tradição nacional, que valorizava o catolicismo e a ruralidade, era defendida e cultivada. A memória de um passado glorioso era o substituto de um futuro incerto. O oceano, fonte de memórias antigas, abria o país ao mundo. Mas a fronteira terrestre separava-o, mais do que aproximava, do único e grande vizinho, com o qual as relações não eram, quase nunca tinham sido, próximas, boas e amistosas. O Ultramar era o horizonte. Poderoso na ideologia e na retórica, mas afastado na geografia e na economia. A versão oficial proclamava uma sociedade multirracial, da Europa à Ásia. Mas, na verdade, a sociedade portuguesa era uma das mais homogéneas de todas as europeias. Os seus traços característicos punham em evidência uma grande unidade cultural, religiosa e étnica. Uma só língua dava forma a esta homogeneidade. Nas ruas das cidades, era raro, muito raro, cruzar um africano, um asiático ou qualquer outro estrangeiro. Além de tudo isto, o regime autoritário reforçava a ausência de pluralidade na sociedade portuguesa. (...)
À margem da Europa, o país vivia um relativo isolamento. Virado para o Atlântico e para África, onde possuía o último e imenso império colonial, os seus contactos com os países vizinhos eram reduzidos. Para as autoridades políticas, o isolamento era uma virtude. A tradição nacional, que valorizava o catolicismo e a ruralidade, era defendida e cultivada. A memória de um passado glorioso era o substituto de um futuro incerto. O oceano, fonte de memórias antigas, abria o país ao mundo. Mas a fronteira terrestre separava-o, mais do que aproximava, do único e grande vizinho, com o qual as relações não eram, quase nunca tinham sido, próximas, boas e amistosas. O Ultramar era o horizonte. Poderoso na ideologia e na retórica, mas afastado na geografia e na economia. A versão oficial proclamava uma sociedade multirracial, da Europa à Ásia. Mas, na verdade, a sociedade portuguesa era uma das mais homogéneas de todas as europeias. Os seus traços característicos punham em evidência uma grande unidade cultural, religiosa e étnica. Uma só língua dava forma a esta homogeneidade. Nas ruas das cidades, era raro, muito raro, cruzar um africano, um asiático ou qualquer outro estrangeiro. Além de tudo isto, o regime autoritário reforçava a ausência de pluralidade na sociedade portuguesa. (...)
Texto integral [aqui]
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
domingo, 20 de dezembro de 2009
As reformas difíceis
.
American Club - Lisboa, 17 de Novembro de 2009
EM PORTUGAL E NO MUNDO OCIDENTAL, há duas décadas, a palavra reforma transformou-se no santo-e-senha da política contemporânea. Para os governos, que as querem fazer ou fizeram; para as oposições, que denunciam os governos por as não fazer; para a sociedade civil que ora as deseja com entusiasmo, ora as receia e contraria com veemência; para as instituições internacionais, mais ou menos tecnocráticas, que as consideram sempre essenciais.
As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.
Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.
Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.
Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.
Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.
Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.
Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.
Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.
Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.
Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.
Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.
Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.
A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.
Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.
Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.
O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.
A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.
Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.
A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.
São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.
A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.
Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.
O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.
As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.
Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.
Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.
Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.
Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.
Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.
Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.
Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.
Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.
Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.
Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.
Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.
A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.
Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.
Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.
O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.
A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.
Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.
A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.
São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.
A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.
Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.
O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.
American Club - Lisboa, 17 de Novembro de 2009
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Prémio Pessoa
.
O JÚRI DO PRÉMIO PESSOA, de que faço parte, designou o laureado deste ano: D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, teólogo e historiador. Tenho honra e prazer em pertencer a tal júri. Recordei o lançamento do livro dele, “Um só propósito...”, no Porto, em Março deste ano, no qual tive a oportunidade de dizer algumas palavras. Estas foram já publicadas nos blogues Sorumbático e no Jacarandá. É para eles que remeto os leitores.
O JÚRI DO PRÉMIO PESSOA, de que faço parte, designou o laureado deste ano: D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, teólogo e historiador. Tenho honra e prazer em pertencer a tal júri. Recordei o lançamento do livro dele, “Um só propósito...”, no Porto, em Março deste ano, no qual tive a oportunidade de dizer algumas palavras. Estas foram já publicadas nos blogues Sorumbático e no Jacarandá. É para eles que remeto os leitores.
domingo, 13 de dezembro de 2009
Saúde e sociedade, Solidariedade e liberdade
NÃO VOU FALAR do Hospital [de Santa Maria]. Outros o farão. Conheço mal a sua história. Sei que terá sido decidido em 1934 e desenhado por Hermann Diestel em 1938. Dizem que os planos de Santa Maria e de S. João, no Porto, são iguais e que deveriam ser de hospitais a construir na Alemanha. Não foram, por causa da guerra. Diz também a lenda que o projecto era vantajoso: saía mais barato sendo para dois! Foi iniciada a construção em 1940, concluída a obra em 1953 e inaugurado a 27 de Abril. Ainda me lembro dos ecos da sua inauguração que chegaram a Trás-os-Montes, assim como, poucos anos depois, os da abertura do S. João. Eram consideradas obras excepcionais, de relevo internacional.
Santa Maria faz portanto agora 75 anos de decisão, 69 de construção, 56 de inauguração e 55 de início da operação. Parabéns pois. Aos seus dirigentes, aos que aqui trabalham e sobretudo aos que aqui foram tratados. Outros vos falarão do Hospital, das suas várias fases de vida e dos melhoramentos recentes que, segundo se diz, têm sido realmente importantes. Não vos posso dar testemunho pessoal, dado que, por sorte minha, não sou frequentador de hospitais. Por enquanto. Mas não esqueço uma frase de João Lobo Antunes, ouvida na rádio, creio eu. Dizia ele que, de manhã, quando se dirigia para aqui, para o trabalho, se sentia feliz. É tão raro ouvir tal que nunca mais esqueci. Pode ser “coisa” dele, esta atitude, mas não poderia ser verdade se o Hospital não oferecesse alguns motivos para essa felicidade. Espero que ele nos diga porquê.
Parece, de qualquer modo, ser verdade que este hospital vive um ciclo de transformação e de modernização que muitos consideram exemplar. Regozijo-me com o facto. Não é frequente ver velhas e gastas instituições serem capazes de se renovar e de transformar os seus hábitos. Parabéns também por isso.
Os anos 50, de criação deste hospital e do de S. João, foram anos importantes em Portugal. Para todos os efeitos, tínhamos saído da guerra sem nela participar. Havia reservas e meios. O regime julgava-se seguro e esperava ser reconhecido internacionalmente, por todos os países do mundo, na ONU, e especialmente pelas democracias ocidentais, na NATO. O que veio a acontecer. Até à ligação à OCDE e à fundação da EFTA, esta última em 1959. O regime, já com cerca de trinta anos, não cedia nas liberdades, mas preparava-se para um esforço extraordinário. Nas infra-estruturas (estradas, barragens, produção e distribuição de energia, organização das corporações, produção de adubos, cimentos e aço...), nas Obras Públicas, no planeamento (Planos de Fomento), na Assistência e na Saúde. Os dois grandes hospitais fazem parte desse esforço. A criação da Fundação Gulbenkian, quase na mesma altura, foi o mais fértil acto de sorte de que os Portugueses jamais beneficiaram e que não deixou de ter efeitos profundos na saúde. Logo a seguir, a criação da Radiotelevisão deu nova dimensão à comunicação, à informação e à integração do espaço, português.
Começa nesta altura um processo gradual de melhoramento da situação social dos Portugueses, com especial relevo para a Assistência e a Saúde. Até então, os Portugueses viviam um estado de pobreza raro na Europa, talvez único, deixando de lado a Espanha, saída de uma guerra civil. No final dos anos quarenta, apenas uma muito pequena minoria tinha acesso a serviços hospitalares e a ajudas assistenciais. Depois, lentamente, talvez mesmo muito lentamente, os apoios vão-se alargando. Os beneficiários da Previdência, por exemplo, começam a ter acesso aos cuidados hospitalares. Mas ainda se trata de uma pequena parte, menos de trezentas mil pessoas. Tal como na Segurança Social: em 1960, apenas 120.000 pessoas usufruem de pensões, o que compara com as actuais 2 milhões e meio! Na saúde, todavia, o crescimento virá a ser mais significativo e ilustrado pelo número de pessoas assistidas pelos serviços médico-sociais da Previdência. Pouco mais de 300.000 no início dos anos cinquenta. Um milhão e meio em 1960. Cinco milhões em 1970 e sete milhões em 1975.
Desde estes anos cinquenta até hoje, o progresso e a expansão foram constantes. Consistentes até 1974 e acelerados depois do 25 de Abril. Todos os indicadores revelam mudanças importantes. Nem todos são de interpretação simples, dado que os modos de organização e os métodos de administração dos cuidados de saúde são hoje muito diferentes do que eram há três ou quatro décadas. Apesar disso, é possível ver os progressos na cobertura nacional, no acesso dos cidadãos aos serviços e no alargamento do pessoal médico e paramédico em serviço.
O número de médicos passou de cerca de 6.000 para mais de 35.000. Podem distinguir-se três períodos. O primeiro, de crescimento lento, até 1975. O segundo, de aumento rápido, de 1975 ao final da década de oitenta. O terceiro, de estabilização e de desenvolvimento gradual, desde então. De pouco menos de 80 médicos por 100.000 habitantes, em 1960, chegou-se actualmente a uma taxa de mais de 300. Aumentos semelhantes verificaram-se ainda com as outras profissões: dentistas, enfermeiros e técnicos de diagnóstico.
Uma avaliação da eficácia e dos resultados de um serviço público de saúde não se pode fazer apenas a partir dos dados quantitativos. Mas a verdade é que o sistema conheceu um crescimento considerável. Este poderá ser confirmado pelas informações relativas ao acesso aos estabelecimentos de saúde públicos. Os internamentos passaram de 460.000 por ano para perto de dois milhões. As consultas de cerca de 8 para mais de 43 milhões por ano, o que equivale a 4,2 por habitante. As urgências saltaram de 588.000 para 15 milhões por ano.
A assistência ao parto registou igualmente uma evolução notável. No início deste período, apenas 18% dos partos ocorriam com assistência médica em estabelecimentos hospitalares e equiparados. Hoje, é praticamente a totalidade dos partos que se verifica nessa situação. Também a propósito deste indicador se pode distinguir uma primeira fase de crescimento lento, até ao princípio da década de setenta; e uma segunda, a partir de então, de progresso rápido.
A mortalidade materna e infantil reflecte cabalmente o alargamento e a universalização dos serviços de saúde. A mortalidade infantil geral desceu de 77,5 por mil, em 1960, para menos de 6 por mil no fim da década de noventa e para pouco mais de 3 por mil actualmente, naquela que é uma das mais baixas taxas do mundo.
Uma observação superficial dos dados relativos a causas de óbito revela também uma situação que sublinha a melhoria dos cuidados de saúde. Com efeito, certas doenças que denotam especialmente os atrasos dos serviços de saúde pública, como a tuberculose e as doenças infecciosas e parasitárias, registaram descidas notáveis, sendo hoje responsáveis, em conjunto, por cerca de 1% das causas de óbito, quando o eram por 13% em 1960.
A todo este desenvolvimento do sistema correspondeu um aumento considerável da despesa pública com a saúde: só entre 1980 e 2007, mais do que triplicou. Independentemente da qualidade, da prontidão, da eficácia e do conforto dos serviços de saúde prestados aos cidadãos, a verdade é que o sistema público cresceu muito significativamente nestas quatro décadas. Em certo sentido se poderá mesmo dizer que foi neste período que estes serviços nasceram, dado que, anteriormente, apenas uma parte da população tinha realmente acesso aos cuidados essenciais. Até porque os serviços de saúde estavam longe de cobrir integralmente o território. Os dados relativos à esperança de vida, assim como às taxas de mortalidade infantil e materna, sem esquecer os de certas causas de óbito, reforçam a ideia de que a saúde pública se generalizou no período em estudo.
As comparações com os restantes países europeus confirmam tanto o atraso inicial de Portugal, como os rápidos progressos verificados. Por exemplo, Portugal tinha o menor número de médicos por habitantes; encontra-se hoje muito próximo das médias europeias, colocando-se mesmo acima de vários países. Também os dados relativos a indicadores físicos (estabelecimentos hospitalares e camas) confirmam o atraso inicial de Portugal, assim como o facto de, hoje, o país se encontrar próximo das médias europeias.
Dois indicadores demográficos, a esperança de vida e a mortalidade infantil, traduzem apropriadamente certos aspectos da eficácia dos serviços de saúde. Em ambos os casos, a evolução de Portugal confirma o que se tem vindo a afirmar. À partida, o país registava valores que revelam indiscutivelmente o seu atraso: a mais baixa esperança de vida e, de muito longe, a mais alta mortalidade infantil. Em finais da década de noventa, a esperança de vida dos portugueses, tanto no caso dos homens como no das mulheres, continua a ser a mais baixa, mas já praticamente ao mesmo nível dos restantes países europeus. Quanto à despesa pública e privada com a saúde, Portugal revela um dos mais altos valores. Em relação ao produto, a despesa portuguesa, com cerca de 8%, situa-se entre os primeiros.
Do ponto de vista político e social, deverá sublinhar-se o momento em que se começa a falar de “direito à saúde”, no início da década de setenta, ainda timidamente. Poucos anos depois, com a Constituição de 1976, é o pleno reconhecimento dos direitos sociais e, com eles, o do direito à saúde. Logo a seguir, é criado o Serviço Nacional de Saúde, uma das mais interessantes realizações da democracia portuguesa. Estamos já longe dos períodos em que a caridade individual, a assistência e a previdência foram sendo, progressivamente, os métodos de socorro à doença e à destituição. É possível afirmar-se que, mau grado diferenças e desequilíbrios, a saúde e a medicina chegam a todos os espaços geográficos e a todas as classes sociais.
Há evidentemente problemas por resolver, alguns mais sérios do que outros. Ainda há listas de espera cuja solução já deveria ter sido encontrada. As Unidades de Saúde Familiar, que parecem ter constituído um êxito, avançam muito devagar. A relação entre a saúde pública e as comunidades locais está por rever. As relações entre os sectores públicos e privados continuam em mau estado, ora virados de costas, ora em banho de promiscuidade. Há questões sérias por resolver na combinação entre as competências científicas, a responsabilidade clínica e a posição na carreira. Ainda não foi encontrado um equilíbrio quantitativo na formação universitária dos médicos. Parecem anunciar-se, a curto prazo, défices na disponibilidade de várias especialidades médicas, em particular a da saúde familiar e a da pediatria. É persistente o desequilíbrio na relação entre médicos e enfermeiros. Há problemas sérios na área da Bioética. Os desperdícios financeiros e materiais no sistema e nos estabelecimentos hospitalares são ainda elevados. E tem faltado liberdade de espírito e pragmatismo para pensar a reorganização do Serviço Nacional de Saúde.
Estes são alguns dos problemas, outros haverá. Mas a verdade é que, globalmente, ao longo das últimas décadas, os serviços de saúde e a medicina em geral registam talvez os maiores êxitos da vida pública do nosso país. Os inquéritos independentes levados a cabo, as sondagens e estudos de opinião, as taxas de mortalidade infantil e por doença de condição “social”, a esperança de vida e a mortalidade num certo número de doenças significativas revelam os melhoramentos conseguidos.
Nunca teremos, obviamente, uma situação perfeita e sem problemas. Esse ideal não é do domínio dos vivos. Como o demonstra o estado da saúde pública em vários países, cujos progressos e “performance” se julgava estarem na vanguarda, mas que são sempre e novamente objecto de acesa discussão. Mas é gratificante saber que a evolução tem sido permanente e consolidada. Como é satisfatório ter a certeza de que, geralmente, a expansão quantitativa tem sido acompanhada por uma melhoria qualitativa de serviços e cuidados. Parece banal e normal, mas não é. Outros sectores existem na sociedade, como a Educação e a Justiça, por exemplo, nos quais os melhoramentos de qualidade têm sido mínimos, ou até negativos, apesar dos progressos em recursos e quantidade.
Por que razões é a saúde o sector que melhor se porta? São várias as causas. Cito apenas algumas. Em primeiro lugar, o “ethos” profissional dos que aqui trabalham: pode haver oportunistas, gananciosos e predadores, mas, no essencial, as regras morais desta profissão são baseadas na decência e no sacrifício. Segundo, o lugar dominante da ciência nas regras e nas práticas, em detrimento da ideologia e das crenças filosóficas ou religiosas. Terceiro, o carácter aberto da profissão, das administrações e dos resultados. Quarto, a existência de alternativas a qualquer profissional, instituição, estabelecimento ou fornecedor. Quinto, a emulação entre organizações. Se compararmos com outros sectores, a Educação e a Justiça, em particular, depressa veremos que, nesses, alguns ou todos estes critérios não desempenham qualquer papel. Daí o poder dos corpos profissionais e daí a ineficácia das pressões sociais e das aspirações das populações.
Gostaria ainda de acrescentar um factor de sucesso, apesar de não ter estudado suficientemente a matéria. Mas creio ser verdade que, na Saúde, talvez justamente pelo efeito do peso da ciência e do escrutínio universal, houve mais estabilidade institucional, mais permanência de critérios e procedimentos e mais regularidade na organização do que noutros sectores, onde as mudanças de políticos, de políticas e de práticas se sucedem.
Dito isto, vivemos actualmente momentos difíceis de reflexão, de debate e de incerteza. Não de circunstância e conjuntura, mas em profundidade e no médio e longo prazo. Na verdade, é conhecido agora que as despesas com a saúde crescem infinitamente. Por todas as razões tecnológicas, comerciais e psicológicas, mas também e sobretudo porque a esperança de vida e a longevidade são factores inexoráveis de aumento de despesa.
É igualmente sabido, apesar de ser um conhecimento envergonhado, que os cuidados e os exames não poderão ser totalmente gratuitos para sempre, nem os gastos com a saúde poderão ser inteiramente suportados pelo Estado e pelos contribuintes.
Por outro lado, faz hoje parte do património público a ideia de que é necessário um sistema de saúde pública que cuide e proteja uma parte importante da população.
Finalmente, é igualmente reconhecido que a saúde, como qualquer outro sistema sem emulação, sem competição e sem comparação, pode causar desperdício e ineficiência.
Qualquer destas ideias está hoje em debate público, pelo menos no mundo ocidental. Como ocorre em quase todos os países europeus e ocidentais, como se vê nos Estados e na Inglaterra, onde, com ou sem eleições, os sistemas de saúde e as responsabilidades do Estado constituem o mais ácido tópico de debate político e social.
Em Portugal, o debate tem sido difícil. Por razões políticas e ideológicas e porque o debate está demasiadamente tolhido por crispações partidárias. Discute-se o Serviço Nacional de Saúde e a dita “Liberdade de escolha” como se ambos fossem alternativos e incompatíveis. Por outras palavras: quem defende o serviço público considera que a liberdade de escolha é um atentado e a destruição daquele. Quem prefere a liberdade de escolha entende que o serviço nacional é ineficaz, injusto, burocrático e fonte de desperdício ou de corrupção. Assim, não temos solução. Assim, não há saída. Tenho para mim que a única solução reside na superação da dicotomia. Há Serviço Nacional de Saúde com e sem liberdade de escolha. Como há medicina privada e liberdade de escolha com ou sem Serviço Nacional de Saúde.
Defensor convicto do Serviço Nacional de Saúde, cuja destruição seria uma catástrofe social, estou também do lado da liberdade de escolha. Não por tentar ser salomónico ou ecléctico, não por querer agradar a uns e outros, mas pela simples razão que considero que há aqui dois princípios dignos de serem respeitados. O da solidariedade e o da liberdade. Mais: estou também convencido de que a associação entre a liberdade e a solidariedade é a garantia de preservação e desenvolvimento do serviço público. Não consigo, aliás, perceber as razões filosóficas e morais pelas quais os defensores da hipótese radical de Serviço Nacional não querem conferir aos cidadãos a liberdade de escolha.
Não creio que a melhor defesa do Serviço Nacional de Saúde seja a da fortaleza, imóvel e aparentemente robusta. É, bem pelo contrário, a sua eficácia, a sua maleabilidade e a sua humanidade que melhor o defendem. Se o Serviço Nacional de Saúde souber garantir a solidariedade que protege e a liberdade que respeita os cidadãos, teremos saúde pública por muitos e bons anos.
Hospital de Santa Maria, Lisboa - Sessão comemorativa dos 55 anos
Dezembro, 8, 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
domingo, 6 de dezembro de 2009
«História de Portugal» (*)
.
(*) «História de Portugal» - Rui Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalo Monteiro. Esfera dos Livros, Lisboa 2009
ESTAMOS DE PARABÉNS! O que temos diante de nós é uma “História” que vai marcar o seu tempo. A sua dimensão vai talvez fazer dela uma História popular. É verdade. Mas as suas maiores qualidades são outras. Em primeiro lugar, a clareza e a elegância. Parece simples e fácil, mas não é. Exige muito trabalho, muita sabedoria e uma enorme preocupação com a forma de expressão. Poder-se-ão notar, aqui e ali, diferenças de ritmo, o que também depende da distância temporal a que nos encontramos, mas, no essencial, não parece escrita a três mãos.
Apesar de irregulares, há boas “Histórias” a muitas mãos, mas sente-se esse facto e a fluidez sofre. Como podem ser evidentes as concepções historiográficas dos diferentes autores, o que nem sempre facilita a compreensão. Esta, limitada a três autores, revela uma consistência surpreendente. Só um excelente trabalho de equipa, uma elevada cumplicidade e um grande esforço de coordenação poderiam chegar a este resultado. Prova superada, pois!
Além da fluidez do texto e da narrativa, tenho a sublinhar o facto de poder ser lida por quem quer que seja. Estamos longe, muito longe, dos textos tribais, escritos a pensar nos pares e nos iniciados. Se é verdade que, em Ciências sociais e nas Humanidades, quase tudo o que é complexo pode ser tornado claro, em História, exige-se muito especialmente o cumprimento desse dever. O jargão hermético e os medonhos parágrafos que traduzem uma grande confusão de espírito estão simplesmente ausentes. Estes autores escreveram para todos nós, sem evitar o rigor da explicação e o cuidado no tratamento dos factos.
Tenho ainda de referir o colossal esforço que exigiu este empreendimento. Esforço intelectual e físico. Não é fácil escrever uma “História de Portugal” num só volume: a concentração exige um enorme labor. A razoável homogeneização da escrita e a fluidez da narrativa pediram ainda mais trabalho.
Finalmente, a actualidade da obra é seguramente um dos seus principais valores. Pode aquela notar-se na longuíssima enumeração de fontes e de obras consultadas. É, a partir de agora, a mais actualizada bibliografia e pesquisa de fontes que se pode imaginar. Do manual ao tratado, da monografia ao seminário, do arquivo municipal ao acervo privado e ao catálogo: nada parece ter escapado. Muitas vezes, obras deste género dispensam a consulta de novidades ou evitam a sua referência em livro. Podem ganhar em peso, mas perdem em utilidade. Neste caso de absoluta actualidade, temos um novo e imprescindível instrumento de trabalho.
A actualidade e a riqueza desta “História de Portugal” reflectem o extraordinário desenvolvimento que a historiografia portuguesa conheceu ao longo das últimas décadas. Multiplicaram-se os estudos, artigos e livros, como proliferaram as investigações e as monografias, tanto sobre temas e sectores, como sobre povoações e localidades, famílias e indivíduos, feitos e factos. De toda esta produção, esta “História” é um formidável repositório.
Podem parecer de menor importância estes aspectos aparentemente formais. Não são. Em Portugal, em tantas áreas, faltam os instrumentos de investigação, as obras de base, os trabalhos de iniciação e os livros eruditos de larga difusão. São obras como esta que fazem a ponte entre a academia e a sociedade, entre os consagrados e os principiantes, entre a sabedoria circunspecta de uns poucos e a curiosidade de tantos. São livros como este que estabelecem o contacto entre a “alta cultura” e a “cultura popular”, ao mesmo tempo que põem em crise o velho mito de o povo só se interessar por expressões menores e assuntos triviais. Auguro uma indiscutível utilidade desta “História” para as escolas, tanto no ensino secundário como no superior. É minha convicção que a História tem sido maltratada nos curricula, nos programas, nos manuais e no método. Com um livro deste género e desta dimensão, temos um instrumento que fazia falta.
Esta será uma História clássica por outras razões. Ignorou as discussões sobre a epistemologia, as escolas de pensamento e as correntes filosóficas que contaminam tantos livros de História nas últimas décadas. Tendo optado por uma História narrativa, primordialmente política, não esqueceu as aquisições e as exigências da História social e económica, cumprindo as regras que sugerem que os factos políticos tenham o seu contexto alargado. Os três autores não perderam tempo a explicar as suas preferências teóricas, pois estas estão implícitas em todo o livro. Não foram complacentes nem vaidosos, por isso não propõem debates estéreis entre funcionalistas e estruturalistas, entre idealistas ou materialistas. Pouparam-nos os sermões filosóficos, assim como as novas modas da “construção” da História, da disciplina como “representação” e da invalidade da interpretação histórica.
Afastada também a concepção de uma história das estruturas sociais e económicas que se pretendia sempre difusa e universal, que dissolvia justamente o Estado e o poder político, isto é, a vontade dos homens e das populações, a decisão das elites e a regra dos dirigentes. Em certo sentido, trata-se de um regresso à narrativa e à história política, enriquecida agora com as aquisições que os movimentos sociais e a longa duração trouxeram.
As questões relativas ao “sujeito” em História, eterna polémica, parecem resolvidas a contento. Quem é o sujeito? Os indivíduos? Os chefes políticos? Os heróis? Os grupos, famílias e dinastias? As classes e suas fracções? Os povos? Os Estados? Será que não há sujeito, em História, isto é, os determinismos, as circunstâncias e as relações sociais são tais que colocam em cena protagonistas involuntários, todos os acima mencionados, que se limitam a desempenhar papéis estabelecidos ou cuja necessidade é determinante? As respostas preferidas a estas perguntas estão na origem de outras tantas correntes de pensamento historiográfico que têm moldado a disciplina ao longo das décadas.
Estes três autores, sem serem salomónicos, nem eclécticos, muito menos bissectrizes, conseguem um “tour de force”, isto é, não se deixam encerrar nas fronteiras de nenhuma destas escolas, cujas insuficiência e esterilidade são conhecidas. Esta “História” consagra a liberdade de decisão dos homens, não sem sublinhar os seus limites e condicionamentos. Os descobrimentos portugueses são o fruto da aventura e da sobrevivência, dos meios técnicos e da pobreza, da ciência e do acaso, da determinação de um homem e da cupidez de vários grupos sociais, da diplomacia e da geografia, da vontade nacional e da necessidade de um continente, da busca do ganho e do imperialismo religioso! E a mesma inteligência explicativa encontra-se na Restauração do século XVII, nas guerras civis do século XIX, no Estado Novo de 1933 ou na revolução de 1974.
Nos capítulos mais próximos de nós, os autores souberam ultrapassar escolhos difíceis e usuais. Não se deixaram impressionar pelas grandes rupturas políticas (a 1ª República, a Ditadura Militar, o Estado Novo e a Democracia), trouxeram-nas à vida com serenidade, sem nunca deixar de navegar entre as mais duráveis continuidades da sociedade e do país, por um lado, e as efémeras e sonantes rupturas políticas, por outro. Assim, percebemos melhor o que cada viragem trouxe, assim como o que a causou, ao mesmo tempo que avaliamos com mais delicadeza o que dela resultou.
A verdade é que nunca ficámos com a impressão de que há “intrusos” na história, defeito recorrente em muitas obras de História contemporânea. Nem o liberalismo, nem o absolutismo, se é que chegaram a existir. Nem, mais tarde, a Monarquia constitucional na sua fase terminal, a República, o Corporativismo autoritário, a tentativa revolucionária ou a democracia. Não há intrusos, nem parêntesis. A História foi o que foi, não há lugar para julgamentos. Qualquer dos regimes políticos modernos que os Portugueses viveram, desde Pombal à época contemporânea, é tratado com igual serenidade académica, sem veleidades para ajustes de contas. E até, antes disso, a dinastia dos Filipes é tratada com invulgar serenidade. Parece fácil, mas não é. Prevejo, aliás, algumas páginas negras na crítica e na recensão que se vão seguir a esta edição: os autores não escaparão a acusações de simpatias políticas. Não porque as exprimam, mas por não terem aceitado o santo-e-senha de grande parte da comunidade académica e política do século XX, isto é, por não terem explicitamente condenado certos regimes e alguns heróis. Tivessem os autores protegido os Jesuítas ou louvado Pombal; elogiado os Miguelistas ou enaltecido os liberais; condenado os Thalassas ou arrasado os pedreiros-livres; vituperado os fascistas ou desprezado os comunistas; e teriam adquirido fidelidade e louvores. Não foi o caso, para nossa felicidade e para bem do conhecimento.
Um dos feitos desta “História” consiste nesta espécie de “normalização” do século XX, marcado por rupturas e polémicas recentes e exibindo ainda feridas abertas. Os autores não se deixaram intimidar por essa contemporaneidade ameaçadora. A narrativa deste século apenas difere da dos outros pelo ritmo: quanto mais próximos de nós, mais os tempos históricos parecem curtos, isto é, mais numerosos são os pormenores e mais vagaroso parece o caminho da História. A “normalização” de que falo reside na serenidade com que abordam três revoluções benquistas ou malditas, assim como os respectivos regimes, sem se deixarem impressionar pelos reflexos condicionados que ainda hoje caracterizam muitos académicos, intelectuais ou políticos. A História não é compatível com as condenações morais e políticas retroactivas, próprias, com certeza, dos cidadãos, mas desajustadas dos profissionais. A facilidade com que se fala entre nós de restauração (da independência, da Pátria, da liberdade, da democracia...) sugere a existência de um Portugal permanente, ideal, talvez eterno, periodicamente vandalizado ou sujeito a interregnos mais ou menos ilegítimos. Apesar das três revoluções, de um sem número de golpes e pronunciamentos, de vários assassinatos de Chefes de Estado e de Governo, de milhares de presos políticos, de deportados, de exilados e de vítimas mortais, o século XX não pode ser uma sucessão de actos ora legítimos ora intrusos, por esta ordem ou pela contrária, conforme as crenças de cada um. À História pertence compreender e não julgar. Os nossos autores parecem obsessivamente apostados a cumprir essa missão.
A diversidade do Estado Novo, assim como a conflitualidade entre as forças que o apoiavam, encontram nesta obra uma consagração devida. Apesar da sua longevidade, da figura de proa do seu ditador e da aparente continuidade, este regime foi diverso e teve várias vidas. Conheceu o isolamento e o reconhecimento internacional. Revelou imobilismo e desenvolvimento. Mostrou hesitação e determinação. Deu sinais de pobreza confrangedora, mas também de crescimento económico ímpar. Afirmou o primado do Atlântico e de África, mas também se virou para a Europa. Só não mudou num ponto essencial, as liberdades. E não soube mudar, já na fase final, a guerra no Ultramar, o que lhe seria fatal.
Dizem que as “Histórias de Portugal” são o fruto do seu tempo. Parece um lugar-comum, mas talvez seja verdade. Mais importante do que isso, as boas “Histórias de Portugal” marcam o seu tempo. E constituem mesmo uma revisão da identidade de um país. É o futuro que prevejo para esta obra. Até porque parece termos chegado ao fim de uma longa caminhada, de um rude trajecto que nos levou de uma História feita de mitos patrióticos e de narcisismo até às versões contemporâneas e às interpretações racionais da história de um povo e de um país. Foram décadas, foram séculos a pensar que Portugal era quase eterno e sempre tinha existido. Que era original e singular. Único e irrepetível. Bafejado pela Graça e construído por um povo excepcional. Separado geograficamente e muito diferente de Espanha. Com uma identidade tão própria que já havia Portugueses antes de Portugal!
Vivi muitos anos com a “História de Portugal” e o “Portugal Contemporâneo”, de Oliveira Martins. Não são propriamente modelos de historiografia, mas, pela inteligência, pela interpretação e pela vivacidade, deixaram-me marcas. Ainda hoje recordo a primeira frase do “Portugal Contemporâneo”: “Sua Majestade fora a Belém comer uma merenda. Era nos primeiros dias de Março. Quando voltou a palácio achou-se, à noite, mal: cãibras, sintomas de epilepsia. Vieram médicos, o barão de Alvaiázere e o valido cirurgião Aguiar. No dia seguinte, o estado do enfermo piorou; e o rei decidiu-se a despir de si o pesado encargo do governo”. Começava assim, acrescento eu, uma série de acontecimentos que o autor designa por um excepcional caos. Era uma “História” animada, frequentemente incrível, mas que nos obrigou, mais do que a maioria dos livros escritos desde então, a reflectir sobre o país.
Mal conheci as de Pinheiro Chagas e Fortunato de Almeida. Talvez fossem mais “Histórias”, como hoje as entendemos, do que as de Oliveira Martins. Já a de Damião Peres, a famosa “de Barcelos”, me fez companhia no exílio, durante os anos sessenta. A ideologia irritava-me, o nacionalismo de alguns capítulos também. Também neste caso era logo advertido na primeira página com a afirmação inicial de que Portugal era “territorialmente pequeno, mas grande pela beleza da paisagem, pela suavidade do clima e pelo valor do seu povo...”. Apesar disso, era do que de melhor se fazia e lia. Muito mais útil, interessante e valioso foi, anos depois, o “Dicionário de História de Portugal”, de Joel Serrão, obra ímpar e inovadora, que, aliás, viria a permitir, mais tarde, novas tentativas de interpretação ou de narrativa global. Oliveira Marques, João Medina e Veríssimo Serrão vieram a seguir, tal como José Hermano Saraiva e novamente Joel Serrão, desta vez em parceria com Oliveira Marques. E assim cheguei, já nos anos noventa, ao principal monumento do género, a que foi dirigida por José Mattoso. Citei, deliberadamente, “Histórias” de amplitude e dimensão bem diferentes, mas creio que foram estas as que mais marcaram as décadas.
Deste elenco pessoal, não menciono evidentemente as “Histórias” escolares, que não me deixaram recordações. A não ser a de ter ganho, cinquenta anos depois, um jantar a alguém que não acreditava que um rei português tivesse tido o cognome de “O Gordo”. Com essa ressalva, aquela literatura quase me arredou desta bela disciplina. A ideologia do poder e a apologia do patriotismo mais boçal só foram vencidas por um professor excepcional e pela virtude da curiosidade.
A evolução da História de Portugal foi também a evolução da identidade nacional. Em grande parte, é a primeira que faz a última. E, nessa identidade, as origens do país e a sua configuração inicial ocupam lugar de relevo. Depois de Herculano e também graças a ele, Oliveira Martins ajustou contas com a historiografia nacionalista que, durante séculos, fazia repousar Portugal nos Lusitanos e, com eles, na homogeneidade étnica, na unidade cultural e, mais estranhamente ainda, na singularidade geográfica. A sua História começa, como se deve, com o Condado Portucalense, não sem antes sublinhar o que forma uma nacionalidade: o governo, a história e, subsidiariamente, a cultura, a língua e a religião. Acontece que, apesar de Herculano e Oliveira Martins, o século XX ainda assistiu a um prolongamento atávico da concepção unitária e lusitana da origem de Portugal.
Foi também o século XX que viu desenvolver-se a História de longa duração, transformando-a em História de tudo quanto viveu e aconteceu no território hoje habitado pelos Portugueses. Assim, temos “Histórias” que começam com o paleolítico e o Neandartal, alargando a vinte, trinta ou cinquenta mil anos esta História de 850! São, evidentemente, perspectivas legítimas, curiosas e, por vezes, inteligentes. Mas deixam quase sempre este indelével e desagradável sensação de estarmos diante de uma contínua e persistente jornada, portuguesa e lusitana.
Só gradual e recentemente, se foi afirmando que Portugal partia da diversidade, não da unidade. Os nossos três autores comungam dessa perspectiva. Os primeiros ensinamentos de Herculano tinham dado fruto. Nos anos quarenta, Orlando Ribeiro e, nos anos oitenta, José Mattoso, além de outros, confirmaram e consolidaram a ideia da diversidade e da metamorfose de um povo, afastando a concepção da unidade original. A unidade e a homogeneidade, aliás excepcionais, foram construídas, são ponto de desenvolvimento e de chegada, não de partida.
Curiosamente, para os nossos três autores de hoje, a narrativa começa com a chegada dos exércitos muçulmanos à Península. É um sinal dado nas primeiras páginas: Portugal nasceu contra! Parece que os autores sugerem: serão os séculos de conquista que formarão Estados e povos. E formarão Portugal. Sabe-se hoje, sempre se deveria ter sabido, não fora a ideologia, que há mais diferenças entre as regiões portuguesas do Norte, do Centro e do Sul, do que entre estas e os seus prolongamentos galegos, castelhanos e estremenhos. População diversa, povo plural, território heterogéneo, mas poder central e unitário, concentrado, com reduzida negociação, desde o Condado Portucalense. Neste paradoxo, a singularidade portuguesa. Mas que não se trata de uma singularidade excepcional e única: todos os países são singulares, caso contrário não seriam países. E é com alegria que vejo o título do último capítulo desta História: “Uma democracia europeia”. Nas minhas palavras, um país como os outros! Parece banal e resignado. Mas é uma vitória da razão.
Estamos longe das concepções redentoras da pátria, segundo as quais, antes de Portugal, já havia portugueses, mesmo se com outro nome. Ultrapassada também a ideia de que a nação precedeu e criou o Estado, estes autores sublinham e confirmam uma outra, a de que foi o Estado, isto é, o poder político organizado ou em vias de organização, que criou a nação, o que durou séculos, a ponto de só recentemente se poder falar de um país inteiramente integrado, de uma sociedade articulada, de mercados entrosados, de cidadãos livres e de uma consciência nacional que deixava de ter como horizontes as planícies ou as montanhas que a vista alcançava!
Que país, que Portugal resulta desta História? É difícil sintetizar, tanto mais que este volume não inclui ensaios propriamente teóricos sobre o tema. Além de que não houve tempo para ler e reler tão compacto volume. Mas não deixo de sublinhar vários fenómenos.
A determinação política de um povo e de um Estado que persistiram em existir e afirmar-se contra todas as probabilidades. A ideia de que Portugal nasceu contra alguém e contra alguns. A certeza de que o país e o Estado se mantiveram graças a poderes exteriores, do Vaticano a Paris e a Londres, passando pelo concerto de todas as potências europeias.
A periferia europeia que os Portugueses transformaram em proximidade do mar e dos outros continentes. A falta de recursos que foram procurar alhures. O emprego que foram criar noutros sítios. A falta de sábios e cientistas suprida com a imigração de Europeus. A míngua de capital, de empresários e de organização, colmatada com a importação do necessário. A certeza de que os Portugueses nunca souberam sobreviver nem puderam melhorar a sua vida apenas em Portugal.
A habilidade com que, através dos séculos, os dirigentes nacionais souberam jogar as suas fraquezas na cena internacional e aproveitar as alianças e o acaso para sobreviver como país, quando os factores adversos eram evidentes.
A omnipresença de um Estado que desempenhou todos os papéis, o de inovador e o de conservador, o de revolucionário e o de reaccionário, o de motor e o de obstáculo ao desenvolvimento, o de abertura e o de fecho ao mundo exterior, o de déspota e o de liberal. Parece que quase tudo começou e acabou no Estado. Conquista e reconquista, expansão e retracção, instrução e obscurantismo foram obra de um Estado que pouco espaço deixava para a sociedade de classes, grupos e homens livres e independentes.
O ponto de partida, marcado pela pluralidade e pela diferença, de um país que construiu a sua homogeneidade, rara na Europa e no mundo, agora novamente contrariada por uma diversificação humana, cultural e religiosa em curso e que, em trinta anos, já mudou a sociedade.
Apesar da homogeneidade social e humana e da pequenez territorial e económica, uma integração nacional e respectiva consciência muito tardias, com os mercados, a moeda, a escola, o exército, a burocracia, a justiça, as comunicações e a política a articularem-se e a cobrirem todo o país e toda a população já nas décadas do século XX.
A mediania económica, resultado da falta de recursos naturais e da reduzida população, mas elevada a quase prosperidade durante um tempo de descoberta e de exploração de outros continentes, seguida do empobrecimento que, até quase aos nossos tempos, marcou grande parte da história moderna e contemporânea.
A consciência sofrida e frustre do atraso diante das outras nações por parte de uma elite, primeiro, de um povo inteiro, depois, que conheciam a riqueza de outros, que sabiam dos progressos alheios, mas que não os conseguiam radicar entre nós.
A rapidez com que, em vários séculos, as elites souberam importar ideias de vanguarda e adoptar modelos e procedimentos progressistas ou mesmo revolucionários, sempre nas formas legais, quase sem cuidar da sua exequibilidade, de modo a que as grandes inovações, como eram sentidas em seu tempo, esbarravam depois numa sociedade de valores e comportamentos atávicos.
A evidência dos factores externos no desenvolvimento e na consolidação do país. A África e o Brasil, o Oriente e o Atlântico, a Europa e as Américas, a EFTA e a União Europeia estão na origem dos ciclos de crescimento e de prosperidade, em contraste com os períodos de fechamento, mais vizinhos do empobrecimento.
Não sou historiador, nem este é o momento para analisar em pormenor um volume destas dimensões e desta ambição. Ao apresentá-la, presto-lhe a devida e merecida homenagem. A hipótese crítica teria certamente validade, como, por exemplo, perante a ausência de um olhar mais profundo sobre os costumes, as mentalidades e a cultura, a menor atenção prestada às empresas económicas ao longo dos tempos modernos ou a análise superficial das estruturas produtivas. Talvez lamente ainda, nos últimos séculos, mais largas referências ao contexto internacional, sem o qual alguns mistérios da evolução de Portugal não se compreendem bem. Mas são pormenores de reduzida importância em comparação com o esplendor da obra conseguida. Por isso, sem esforço, me curvo diante dos seus autores. Rui, Bernardo e Nuno, vocês fizeram obra duradoura, que liberta os Portugueses de fantasmas, que despreza mitos e que, em poucas palavras, dá prazer à inteligência.
-Além da fluidez do texto e da narrativa, tenho a sublinhar o facto de poder ser lida por quem quer que seja. Estamos longe, muito longe, dos textos tribais, escritos a pensar nos pares e nos iniciados. Se é verdade que, em Ciências sociais e nas Humanidades, quase tudo o que é complexo pode ser tornado claro, em História, exige-se muito especialmente o cumprimento desse dever. O jargão hermético e os medonhos parágrafos que traduzem uma grande confusão de espírito estão simplesmente ausentes. Estes autores escreveram para todos nós, sem evitar o rigor da explicação e o cuidado no tratamento dos factos.
Tenho ainda de referir o colossal esforço que exigiu este empreendimento. Esforço intelectual e físico. Não é fácil escrever uma “História de Portugal” num só volume: a concentração exige um enorme labor. A razoável homogeneização da escrita e a fluidez da narrativa pediram ainda mais trabalho.
Finalmente, a actualidade da obra é seguramente um dos seus principais valores. Pode aquela notar-se na longuíssima enumeração de fontes e de obras consultadas. É, a partir de agora, a mais actualizada bibliografia e pesquisa de fontes que se pode imaginar. Do manual ao tratado, da monografia ao seminário, do arquivo municipal ao acervo privado e ao catálogo: nada parece ter escapado. Muitas vezes, obras deste género dispensam a consulta de novidades ou evitam a sua referência em livro. Podem ganhar em peso, mas perdem em utilidade. Neste caso de absoluta actualidade, temos um novo e imprescindível instrumento de trabalho.
A actualidade e a riqueza desta “História de Portugal” reflectem o extraordinário desenvolvimento que a historiografia portuguesa conheceu ao longo das últimas décadas. Multiplicaram-se os estudos, artigos e livros, como proliferaram as investigações e as monografias, tanto sobre temas e sectores, como sobre povoações e localidades, famílias e indivíduos, feitos e factos. De toda esta produção, esta “História” é um formidável repositório.
Podem parecer de menor importância estes aspectos aparentemente formais. Não são. Em Portugal, em tantas áreas, faltam os instrumentos de investigação, as obras de base, os trabalhos de iniciação e os livros eruditos de larga difusão. São obras como esta que fazem a ponte entre a academia e a sociedade, entre os consagrados e os principiantes, entre a sabedoria circunspecta de uns poucos e a curiosidade de tantos. São livros como este que estabelecem o contacto entre a “alta cultura” e a “cultura popular”, ao mesmo tempo que põem em crise o velho mito de o povo só se interessar por expressões menores e assuntos triviais. Auguro uma indiscutível utilidade desta “História” para as escolas, tanto no ensino secundário como no superior. É minha convicção que a História tem sido maltratada nos curricula, nos programas, nos manuais e no método. Com um livro deste género e desta dimensão, temos um instrumento que fazia falta.
Esta será uma História clássica por outras razões. Ignorou as discussões sobre a epistemologia, as escolas de pensamento e as correntes filosóficas que contaminam tantos livros de História nas últimas décadas. Tendo optado por uma História narrativa, primordialmente política, não esqueceu as aquisições e as exigências da História social e económica, cumprindo as regras que sugerem que os factos políticos tenham o seu contexto alargado. Os três autores não perderam tempo a explicar as suas preferências teóricas, pois estas estão implícitas em todo o livro. Não foram complacentes nem vaidosos, por isso não propõem debates estéreis entre funcionalistas e estruturalistas, entre idealistas ou materialistas. Pouparam-nos os sermões filosóficos, assim como as novas modas da “construção” da História, da disciplina como “representação” e da invalidade da interpretação histórica.
Afastada também a concepção de uma história das estruturas sociais e económicas que se pretendia sempre difusa e universal, que dissolvia justamente o Estado e o poder político, isto é, a vontade dos homens e das populações, a decisão das elites e a regra dos dirigentes. Em certo sentido, trata-se de um regresso à narrativa e à história política, enriquecida agora com as aquisições que os movimentos sociais e a longa duração trouxeram.
As questões relativas ao “sujeito” em História, eterna polémica, parecem resolvidas a contento. Quem é o sujeito? Os indivíduos? Os chefes políticos? Os heróis? Os grupos, famílias e dinastias? As classes e suas fracções? Os povos? Os Estados? Será que não há sujeito, em História, isto é, os determinismos, as circunstâncias e as relações sociais são tais que colocam em cena protagonistas involuntários, todos os acima mencionados, que se limitam a desempenhar papéis estabelecidos ou cuja necessidade é determinante? As respostas preferidas a estas perguntas estão na origem de outras tantas correntes de pensamento historiográfico que têm moldado a disciplina ao longo das décadas.
Estes três autores, sem serem salomónicos, nem eclécticos, muito menos bissectrizes, conseguem um “tour de force”, isto é, não se deixam encerrar nas fronteiras de nenhuma destas escolas, cujas insuficiência e esterilidade são conhecidas. Esta “História” consagra a liberdade de decisão dos homens, não sem sublinhar os seus limites e condicionamentos. Os descobrimentos portugueses são o fruto da aventura e da sobrevivência, dos meios técnicos e da pobreza, da ciência e do acaso, da determinação de um homem e da cupidez de vários grupos sociais, da diplomacia e da geografia, da vontade nacional e da necessidade de um continente, da busca do ganho e do imperialismo religioso! E a mesma inteligência explicativa encontra-se na Restauração do século XVII, nas guerras civis do século XIX, no Estado Novo de 1933 ou na revolução de 1974.
Nos capítulos mais próximos de nós, os autores souberam ultrapassar escolhos difíceis e usuais. Não se deixaram impressionar pelas grandes rupturas políticas (a 1ª República, a Ditadura Militar, o Estado Novo e a Democracia), trouxeram-nas à vida com serenidade, sem nunca deixar de navegar entre as mais duráveis continuidades da sociedade e do país, por um lado, e as efémeras e sonantes rupturas políticas, por outro. Assim, percebemos melhor o que cada viragem trouxe, assim como o que a causou, ao mesmo tempo que avaliamos com mais delicadeza o que dela resultou.
A verdade é que nunca ficámos com a impressão de que há “intrusos” na história, defeito recorrente em muitas obras de História contemporânea. Nem o liberalismo, nem o absolutismo, se é que chegaram a existir. Nem, mais tarde, a Monarquia constitucional na sua fase terminal, a República, o Corporativismo autoritário, a tentativa revolucionária ou a democracia. Não há intrusos, nem parêntesis. A História foi o que foi, não há lugar para julgamentos. Qualquer dos regimes políticos modernos que os Portugueses viveram, desde Pombal à época contemporânea, é tratado com igual serenidade académica, sem veleidades para ajustes de contas. E até, antes disso, a dinastia dos Filipes é tratada com invulgar serenidade. Parece fácil, mas não é. Prevejo, aliás, algumas páginas negras na crítica e na recensão que se vão seguir a esta edição: os autores não escaparão a acusações de simpatias políticas. Não porque as exprimam, mas por não terem aceitado o santo-e-senha de grande parte da comunidade académica e política do século XX, isto é, por não terem explicitamente condenado certos regimes e alguns heróis. Tivessem os autores protegido os Jesuítas ou louvado Pombal; elogiado os Miguelistas ou enaltecido os liberais; condenado os Thalassas ou arrasado os pedreiros-livres; vituperado os fascistas ou desprezado os comunistas; e teriam adquirido fidelidade e louvores. Não foi o caso, para nossa felicidade e para bem do conhecimento.
Um dos feitos desta “História” consiste nesta espécie de “normalização” do século XX, marcado por rupturas e polémicas recentes e exibindo ainda feridas abertas. Os autores não se deixaram intimidar por essa contemporaneidade ameaçadora. A narrativa deste século apenas difere da dos outros pelo ritmo: quanto mais próximos de nós, mais os tempos históricos parecem curtos, isto é, mais numerosos são os pormenores e mais vagaroso parece o caminho da História. A “normalização” de que falo reside na serenidade com que abordam três revoluções benquistas ou malditas, assim como os respectivos regimes, sem se deixarem impressionar pelos reflexos condicionados que ainda hoje caracterizam muitos académicos, intelectuais ou políticos. A História não é compatível com as condenações morais e políticas retroactivas, próprias, com certeza, dos cidadãos, mas desajustadas dos profissionais. A facilidade com que se fala entre nós de restauração (da independência, da Pátria, da liberdade, da democracia...) sugere a existência de um Portugal permanente, ideal, talvez eterno, periodicamente vandalizado ou sujeito a interregnos mais ou menos ilegítimos. Apesar das três revoluções, de um sem número de golpes e pronunciamentos, de vários assassinatos de Chefes de Estado e de Governo, de milhares de presos políticos, de deportados, de exilados e de vítimas mortais, o século XX não pode ser uma sucessão de actos ora legítimos ora intrusos, por esta ordem ou pela contrária, conforme as crenças de cada um. À História pertence compreender e não julgar. Os nossos autores parecem obsessivamente apostados a cumprir essa missão.
A diversidade do Estado Novo, assim como a conflitualidade entre as forças que o apoiavam, encontram nesta obra uma consagração devida. Apesar da sua longevidade, da figura de proa do seu ditador e da aparente continuidade, este regime foi diverso e teve várias vidas. Conheceu o isolamento e o reconhecimento internacional. Revelou imobilismo e desenvolvimento. Mostrou hesitação e determinação. Deu sinais de pobreza confrangedora, mas também de crescimento económico ímpar. Afirmou o primado do Atlântico e de África, mas também se virou para a Europa. Só não mudou num ponto essencial, as liberdades. E não soube mudar, já na fase final, a guerra no Ultramar, o que lhe seria fatal.
Dizem que as “Histórias de Portugal” são o fruto do seu tempo. Parece um lugar-comum, mas talvez seja verdade. Mais importante do que isso, as boas “Histórias de Portugal” marcam o seu tempo. E constituem mesmo uma revisão da identidade de um país. É o futuro que prevejo para esta obra. Até porque parece termos chegado ao fim de uma longa caminhada, de um rude trajecto que nos levou de uma História feita de mitos patrióticos e de narcisismo até às versões contemporâneas e às interpretações racionais da história de um povo e de um país. Foram décadas, foram séculos a pensar que Portugal era quase eterno e sempre tinha existido. Que era original e singular. Único e irrepetível. Bafejado pela Graça e construído por um povo excepcional. Separado geograficamente e muito diferente de Espanha. Com uma identidade tão própria que já havia Portugueses antes de Portugal!
Vivi muitos anos com a “História de Portugal” e o “Portugal Contemporâneo”, de Oliveira Martins. Não são propriamente modelos de historiografia, mas, pela inteligência, pela interpretação e pela vivacidade, deixaram-me marcas. Ainda hoje recordo a primeira frase do “Portugal Contemporâneo”: “Sua Majestade fora a Belém comer uma merenda. Era nos primeiros dias de Março. Quando voltou a palácio achou-se, à noite, mal: cãibras, sintomas de epilepsia. Vieram médicos, o barão de Alvaiázere e o valido cirurgião Aguiar. No dia seguinte, o estado do enfermo piorou; e o rei decidiu-se a despir de si o pesado encargo do governo”. Começava assim, acrescento eu, uma série de acontecimentos que o autor designa por um excepcional caos. Era uma “História” animada, frequentemente incrível, mas que nos obrigou, mais do que a maioria dos livros escritos desde então, a reflectir sobre o país.
Mal conheci as de Pinheiro Chagas e Fortunato de Almeida. Talvez fossem mais “Histórias”, como hoje as entendemos, do que as de Oliveira Martins. Já a de Damião Peres, a famosa “de Barcelos”, me fez companhia no exílio, durante os anos sessenta. A ideologia irritava-me, o nacionalismo de alguns capítulos também. Também neste caso era logo advertido na primeira página com a afirmação inicial de que Portugal era “territorialmente pequeno, mas grande pela beleza da paisagem, pela suavidade do clima e pelo valor do seu povo...”. Apesar disso, era do que de melhor se fazia e lia. Muito mais útil, interessante e valioso foi, anos depois, o “Dicionário de História de Portugal”, de Joel Serrão, obra ímpar e inovadora, que, aliás, viria a permitir, mais tarde, novas tentativas de interpretação ou de narrativa global. Oliveira Marques, João Medina e Veríssimo Serrão vieram a seguir, tal como José Hermano Saraiva e novamente Joel Serrão, desta vez em parceria com Oliveira Marques. E assim cheguei, já nos anos noventa, ao principal monumento do género, a que foi dirigida por José Mattoso. Citei, deliberadamente, “Histórias” de amplitude e dimensão bem diferentes, mas creio que foram estas as que mais marcaram as décadas.
Deste elenco pessoal, não menciono evidentemente as “Histórias” escolares, que não me deixaram recordações. A não ser a de ter ganho, cinquenta anos depois, um jantar a alguém que não acreditava que um rei português tivesse tido o cognome de “O Gordo”. Com essa ressalva, aquela literatura quase me arredou desta bela disciplina. A ideologia do poder e a apologia do patriotismo mais boçal só foram vencidas por um professor excepcional e pela virtude da curiosidade.
A evolução da História de Portugal foi também a evolução da identidade nacional. Em grande parte, é a primeira que faz a última. E, nessa identidade, as origens do país e a sua configuração inicial ocupam lugar de relevo. Depois de Herculano e também graças a ele, Oliveira Martins ajustou contas com a historiografia nacionalista que, durante séculos, fazia repousar Portugal nos Lusitanos e, com eles, na homogeneidade étnica, na unidade cultural e, mais estranhamente ainda, na singularidade geográfica. A sua História começa, como se deve, com o Condado Portucalense, não sem antes sublinhar o que forma uma nacionalidade: o governo, a história e, subsidiariamente, a cultura, a língua e a religião. Acontece que, apesar de Herculano e Oliveira Martins, o século XX ainda assistiu a um prolongamento atávico da concepção unitária e lusitana da origem de Portugal.
Foi também o século XX que viu desenvolver-se a História de longa duração, transformando-a em História de tudo quanto viveu e aconteceu no território hoje habitado pelos Portugueses. Assim, temos “Histórias” que começam com o paleolítico e o Neandartal, alargando a vinte, trinta ou cinquenta mil anos esta História de 850! São, evidentemente, perspectivas legítimas, curiosas e, por vezes, inteligentes. Mas deixam quase sempre este indelével e desagradável sensação de estarmos diante de uma contínua e persistente jornada, portuguesa e lusitana.
Só gradual e recentemente, se foi afirmando que Portugal partia da diversidade, não da unidade. Os nossos três autores comungam dessa perspectiva. Os primeiros ensinamentos de Herculano tinham dado fruto. Nos anos quarenta, Orlando Ribeiro e, nos anos oitenta, José Mattoso, além de outros, confirmaram e consolidaram a ideia da diversidade e da metamorfose de um povo, afastando a concepção da unidade original. A unidade e a homogeneidade, aliás excepcionais, foram construídas, são ponto de desenvolvimento e de chegada, não de partida.
Curiosamente, para os nossos três autores de hoje, a narrativa começa com a chegada dos exércitos muçulmanos à Península. É um sinal dado nas primeiras páginas: Portugal nasceu contra! Parece que os autores sugerem: serão os séculos de conquista que formarão Estados e povos. E formarão Portugal. Sabe-se hoje, sempre se deveria ter sabido, não fora a ideologia, que há mais diferenças entre as regiões portuguesas do Norte, do Centro e do Sul, do que entre estas e os seus prolongamentos galegos, castelhanos e estremenhos. População diversa, povo plural, território heterogéneo, mas poder central e unitário, concentrado, com reduzida negociação, desde o Condado Portucalense. Neste paradoxo, a singularidade portuguesa. Mas que não se trata de uma singularidade excepcional e única: todos os países são singulares, caso contrário não seriam países. E é com alegria que vejo o título do último capítulo desta História: “Uma democracia europeia”. Nas minhas palavras, um país como os outros! Parece banal e resignado. Mas é uma vitória da razão.
Estamos longe das concepções redentoras da pátria, segundo as quais, antes de Portugal, já havia portugueses, mesmo se com outro nome. Ultrapassada também a ideia de que a nação precedeu e criou o Estado, estes autores sublinham e confirmam uma outra, a de que foi o Estado, isto é, o poder político organizado ou em vias de organização, que criou a nação, o que durou séculos, a ponto de só recentemente se poder falar de um país inteiramente integrado, de uma sociedade articulada, de mercados entrosados, de cidadãos livres e de uma consciência nacional que deixava de ter como horizontes as planícies ou as montanhas que a vista alcançava!
Que país, que Portugal resulta desta História? É difícil sintetizar, tanto mais que este volume não inclui ensaios propriamente teóricos sobre o tema. Além de que não houve tempo para ler e reler tão compacto volume. Mas não deixo de sublinhar vários fenómenos.
A determinação política de um povo e de um Estado que persistiram em existir e afirmar-se contra todas as probabilidades. A ideia de que Portugal nasceu contra alguém e contra alguns. A certeza de que o país e o Estado se mantiveram graças a poderes exteriores, do Vaticano a Paris e a Londres, passando pelo concerto de todas as potências europeias.
A periferia europeia que os Portugueses transformaram em proximidade do mar e dos outros continentes. A falta de recursos que foram procurar alhures. O emprego que foram criar noutros sítios. A falta de sábios e cientistas suprida com a imigração de Europeus. A míngua de capital, de empresários e de organização, colmatada com a importação do necessário. A certeza de que os Portugueses nunca souberam sobreviver nem puderam melhorar a sua vida apenas em Portugal.
A habilidade com que, através dos séculos, os dirigentes nacionais souberam jogar as suas fraquezas na cena internacional e aproveitar as alianças e o acaso para sobreviver como país, quando os factores adversos eram evidentes.
A omnipresença de um Estado que desempenhou todos os papéis, o de inovador e o de conservador, o de revolucionário e o de reaccionário, o de motor e o de obstáculo ao desenvolvimento, o de abertura e o de fecho ao mundo exterior, o de déspota e o de liberal. Parece que quase tudo começou e acabou no Estado. Conquista e reconquista, expansão e retracção, instrução e obscurantismo foram obra de um Estado que pouco espaço deixava para a sociedade de classes, grupos e homens livres e independentes.
O ponto de partida, marcado pela pluralidade e pela diferença, de um país que construiu a sua homogeneidade, rara na Europa e no mundo, agora novamente contrariada por uma diversificação humana, cultural e religiosa em curso e que, em trinta anos, já mudou a sociedade.
Apesar da homogeneidade social e humana e da pequenez territorial e económica, uma integração nacional e respectiva consciência muito tardias, com os mercados, a moeda, a escola, o exército, a burocracia, a justiça, as comunicações e a política a articularem-se e a cobrirem todo o país e toda a população já nas décadas do século XX.
A mediania económica, resultado da falta de recursos naturais e da reduzida população, mas elevada a quase prosperidade durante um tempo de descoberta e de exploração de outros continentes, seguida do empobrecimento que, até quase aos nossos tempos, marcou grande parte da história moderna e contemporânea.
A consciência sofrida e frustre do atraso diante das outras nações por parte de uma elite, primeiro, de um povo inteiro, depois, que conheciam a riqueza de outros, que sabiam dos progressos alheios, mas que não os conseguiam radicar entre nós.
A rapidez com que, em vários séculos, as elites souberam importar ideias de vanguarda e adoptar modelos e procedimentos progressistas ou mesmo revolucionários, sempre nas formas legais, quase sem cuidar da sua exequibilidade, de modo a que as grandes inovações, como eram sentidas em seu tempo, esbarravam depois numa sociedade de valores e comportamentos atávicos.
A evidência dos factores externos no desenvolvimento e na consolidação do país. A África e o Brasil, o Oriente e o Atlântico, a Europa e as Américas, a EFTA e a União Europeia estão na origem dos ciclos de crescimento e de prosperidade, em contraste com os períodos de fechamento, mais vizinhos do empobrecimento.
Não sou historiador, nem este é o momento para analisar em pormenor um volume destas dimensões e desta ambição. Ao apresentá-la, presto-lhe a devida e merecida homenagem. A hipótese crítica teria certamente validade, como, por exemplo, perante a ausência de um olhar mais profundo sobre os costumes, as mentalidades e a cultura, a menor atenção prestada às empresas económicas ao longo dos tempos modernos ou a análise superficial das estruturas produtivas. Talvez lamente ainda, nos últimos séculos, mais largas referências ao contexto internacional, sem o qual alguns mistérios da evolução de Portugal não se compreendem bem. Mas são pormenores de reduzida importância em comparação com o esplendor da obra conseguida. Por isso, sem esforço, me curvo diante dos seus autores. Rui, Bernardo e Nuno, vocês fizeram obra duradoura, que liberta os Portugueses de fantasmas, que despreza mitos e que, em poucas palavras, dá prazer à inteligência.
(*) «História de Portugal» - Rui Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalo Monteiro. Esfera dos Livros, Lisboa 2009
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Luz - Londres, Wapping (1985)
.
No princípio da década de 1980, por iniciativa do governo de Margaret Thatcher, transformaram-se as docas de Londres (parte delas) em conjuntos de nova arquitectura e sedes de grandes empresas. Foi nessa altura que Rupert Murdoch e Lord Blake, a fim de quebrar as solidariedades dos jornalistas de Fleet Street, rua onde tradicionalmente os grandes jornais londrinos tinham as suas sedes, redacções e até tipografias, levaram para lá as suas empresas. Construíram-se enormes edifícios (para a escala de Londres...), entre os quais o famoso Cannary Warf, o mais alto de Inglaterra.
domingo, 29 de novembro de 2009
As reformas difíceis
.
American Club
Lisboa, 17 de Novembro de 2009
EM PORTUGAL e no mundo ocidental, há duas décadas, a palavra reforma transformou-se no santo-e-senha da política contemporânea. Para os governos, que as querem fazer ou fizeram; para as oposições, que denunciam os governos por as não fazer; para a sociedade civil que ora as deseja com entusiasmo, ora as receia e contraria com veemência; para as instituições internacionais, mais ou menos tecnocráticas, que as consideram sempre essenciais.
As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.
Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.
Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.
Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.
Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.
Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.
Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.
Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.
Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.
Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.
Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.
Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.
A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.
Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.
Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.
O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.
A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.
Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.
A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.
São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.
A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.
Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.
O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.
As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.
Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.
Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.
Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.
Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.
Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.
Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.
Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.
Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.
Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.
Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.
Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.
A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.
Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.
Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.
O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.
A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.
Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.
A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.
São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.
A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.
Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.
O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.
American Club
Lisboa, 17 de Novembro de 2009
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Luz - Algarve
.
Numa esquina da rua, alguns homens esperam, conversam, passam. Na parede, um resto de cartaz festejando a aliança do Povo com o MFA. (1975)
domingo, 22 de novembro de 2009
A grande esperança
.
Anuário de Economia Portuguesa, número relativo a 2009
TODOS, DESDE HÁ PELO MENOS três séculos, esperaram sempre muito, quase tudo, da educação. Dos iluministas aos positivistas, dos cristãos aos ateus, dos fascistas aos democratas, dos conservadores aos marxistas, todos consideraram, em seu tempo e para sempre, que a escola e a educação (ou instrução) trariam as virtudes necessárias ao cumprimento das suas ambições e dos seus propósitos para as sociedades. Desejou-se tudo da escola. Julgou-se que a razão nasceria naqueles bancos. Pensou-se que o espírito cívico seria aprendido nas salas de aula. Não se duvidou de que o professor iria formar novos homens. Teve-se a certeza que uma escola ajudaria os cidadãos a respeitar a lei e a ordem. Acreditou-se em que uma boa educação elevaria o nível cultural das populações e seria fonte de desenvolvimento. Esperou-se firmemente que a escola seria obreira da igualdade social. Todos pensaram que a escola seria o mais importante factor de mobilidade social. Houve quem julgasse, com benevolência, que a escola acabaria por subverter a ordem estabelecida. Como houve quem tivesse a certeza de que a escola ajudaria a temer a Deus e a respeitar as hierarquias. De toda esta esperança, repetida e renovada, nasceram crenças, certezas e mitos de vida dura. A ponto de quase não se ser capaz de perceber que os países, as sociedades, as pessoas e as culturas nas quais nasceram as escolas actuais já não existem. Mas continua a esperar-se que a escola forneça o que os mitos decretam.
Estas grandes esperanças marcaram as políticas dos governos dos países ocidentais. E de muitos outros. A despesa pública e privada com a educação atingiu patamares insuportáveis da ordem dos dez e mais por cento do produto nacional. Abriram centenas de milhares de escolas e milhões de professores foram formados e contratados. Os Ministérios da Educação transformaram-se em enormes instituições que procuram ansiosamente gerir e administrar milhares de escolas, centenas de milhares de professores e milhões de alunos, o que fazem através de normas e instruções que multiplicam quotidianamente e com que os professores devem gastar uma parte preciosa do seu tempo. Em Inglaterra, por exemplo, só este ano, o Ministério da Educação emitiu cerca de 3.000 páginas de novas regras e procedimentos, a acrescentar às dezenas de milhares já em vigor! Não se conhecem os números em Portugal, mas sabe-se que a produção ministerial pode sofrer de tudo, menos de infertilidade!
Olhando, hoje, para aqueles países, nota-se a semelhança dos problemas. Não há talvez país onde não se fale da “crise da educação” e da necessidade, mais uma vez, de a “reformar”. Os resultados escolares são cada vez mais medíocres. Com poucas excepções, as dificuldades na Matemática e nas línguas maternas são comuns. Os orçamentos dos Estados não conseguem esticar mais para suportar despesas crescentes e sem travão. Há violência nas escolas, seja entre alunos, seja entre alunos e professores. Apesar dos enormes esforços feitos para contrariar as tendências, o abandono e o insucesso mantém-se ou são estatisticamente disfarçados. Periódica e alternadamente, atribui-se a responsabilidade por este estado de coisas ao Estado, aos Pais, aos Professores, aos alunos, à sociedade global ou aos métodos pedagógicos. Como quase toda a gente continua a acreditar nos efeitos salvadores da educação, é sabido que todos reclamam mais uma reforma.
As últimas três ou quatro décadas foram férteis em reformas. Quase todos os países europeus e outros ocidentais ou asiáticos fizeram as suas. Conforme os casos, foram privilegiados certos aspectos: o papel do Estado, o financiamento, os currículos e programas, a gestão da escola, os métodos de ensino, a organização do tempo escolar, etc. Gradualmente se vai vendo que não há solução radical e definitiva para nenhum dos grandes males que afligem a educação. Após décadas de reformas, os resultados não melhoram, a violência aumenta, o desperdício cresce, a mediocridade prevalece... Não há país europeu que não afirme que a educação está crise. Em Portugal também, até mais do que noutros. Gradualmente se vai percebendo que a crise na educação é permanente e que não há solução. Pode haver remédios, para este ou aquele problema. Mas não há solução para a crise. Nunca haverá, pela simples razão que a educação não resolve os problemas sociais, culturais e políticos. Não cria os homens e as sociedades de que se estava à espera. Não gera por si própria desenvolvimento. Não contribuiu decisivamente para a igualdade e a discriminação social permanece muito evidente. É esse o sentido da crise: esta existe porque a educação não pode satisfazer a esperança que nela depositaram e não cumpre as promessas que lhe atribuíram.
Por isso é confrangedor ver o tempo que se perde e os recursos que se gastam, em todo o Ocidente, em Portugal também, com as reformas da educação pensadas geralmente para remediar erros e deficiências, ou até para melhorar os sistemas, mas sempre dentro de quadros estabelecidos, sempre no respeito por tabus que não se discutem, sempre conforme aos cânones definidos há décadas ou séculos, mas que, hoje, estão gastos e ultrapassados. É verdade que se discute quase tudo. A avaliação dos professores, por exemplo, é objecto de estudo e debate em todos os países. A função dos exames e das notas, assim como das retenções, é objecto polémico. Os modelos de gestão das escolas são tema de longos e repetidos seminários e congressos. Os métodos de ensino, mais democráticos uns, mais disciplinados outros, servem de assunto de doutoramentos e de programas de televisão. A carga horária, a função dos testes, o sentido da “área escola” e da “área de projecto” ou o número ideal de alunos por turma e por professor, quase nada escapa à ansiedade dos pais, dos professores e dos políticos, quase todos desmoralizados com os resultados, desiludidos com a mediocridade e preocupados com os gastos e a violência.
Tudo se discute... Quase... Tudo, menos os tabus e os mitos. Há excepções, mas, na maior parte dos países ocidentais estabeleceu-se que as escolas devem constituir um “sistema” e que este deve ser único, integrado e centralizado. Assim como se definiu, para a eternidade, que o currículo deve ser nacional e único. Tal como se decretou, para todo o sempre, que os professores devem ser recrutados no plano nacional e “às cegas”, transformando-se em funcionários públicos. Do mesmo modo, é crença e lei que, apesar de a escolaridade ser “obrigatória”, a educação é um “direito”, incluindo a formação superior e científica. E, finalmente, não é nem pode ser objecto de discussão a certeza de que compete ao Ministério da Educação definir e zelar pelo cumprimento de normas, regras e manuais de procedimentos.
É crime pensar que as escolas poderiam ter uma liberdade quase total e uma vasta autonomia que lhes permitissem recrutar elas próprias os seus professores e alunos. Ou admitir que estas escolas não pertencem ao Estado, mas sim à comunidade, a quem devem prestar contas. É considerado sacrilégio encarar a hipótese de os directores, professores ou não, serem contratados, pela escola ou pela comunidade, para exercício dos seus mandatos durante quatro ou cinco anos. Pensa-se que é totalmente descabido estudar a possibilidade de cada escola adoptar os seus métodos de ensino, adaptando-os às necessidades e corrigindo os erros e as deficiências. Julga-se ser absurdo que os professores não tenham de seguir as normas e regras ditadas pelo Ministério. Nem se ousa imaginar que o Ministério da Educação, a ter de existir, não tenha autoridade sobre as escolas. Não se aceita que o currículo nacional seja reduzido ao mínimo necessário para assegurar a livre circulação dos cidadãos dentro do mesmo país. Recusa-se a ideia de que os programas, os currículos, as cargas horárias, os manuais e os exames não sejam nacionais. Não se admite que seja posta em causa a existência de carreiras nacionais únicas para os professores do básico e secundário, assim como para o universitário. Afasta-se a hipótese de as comunidades e as escolas definirem as suas próprias regras disciplinares. Em poucas palavras, não se admite que a educação não constitua um “sistema” único, integrado e centralizado.
A verdade é que, enquanto não se ousar pensar de outra maneira e não se explorem novas vias e diferentes soluções, continuaremos a engessar pernas de pau e a remendar mantas gastas e esburacadas. Mesmo que muitas das novas soluções se venham a revelar erradas ou desajustadas, é necessário pensar de outra maneira e pensar de novo. Como é indispensável pensar em novas soluções em função de princípios e critérios fundamentais. Como a justiça social, por exemplo. Esta terá sido um dos principais critérios que presidiram às modernas reformas da educação. A abolição do chamado ensino técnico e comercial, assim como a criação das escolas “unificadas”, foram pensadas por causa dessa preocupação de igualdade. A unificação total do sistema e a sua absoluta integração foram levadas a cabo pelo mesmo motivo. O estabelecimento de discriminações positivas para certos grupos da população foi também uma resposta a essa preocupação. Convém, por isso, olhar para trás e pensar no futuro. Esse objectivo de uma maior justiça social e de uma maior igualdade foi atingido? Obteve algum êxito? A mobilidade social aumentou significativamente? Como se sabe, a resposta é, muitas vezes, senão sempre, negativa. A discriminação social no ensino secundário e no ensino superior é vigorosa e não dá mostras de recuar.
A força dos mitos e das ideologias é enorme. Resiste à razão, à verdade, à análise e à experiência. O ensino único é republicano. O sistema centralizado é democrático. A escola integrada é justa. O ensino unificado oferece mais oportunidades. O direito à educação é mais igualitário. A educação é uma condição de desenvolvimento económico e social. As discriminações positivas são justas. Estes são apenas alguns dos mitos mais conhecidos, verdadeiros lugares comuns. Convinha rever estes mitos. Ver, minuciosamente, se os objectivos explícitos foram atingidos. Verificar se o “sistema” criado para sociedades nacionais, mais ou menos homogéneas, não está totalmente ultrapassado por realidades novas. Recentemente, um filme documentário francês, “A turma”, mostrou a impossibilidade de gerir as escolas nos moldes estabelecidos e revelou, com uma triste resignação, o desaparecimento do património comum ocidental que fundamenta a cultura e a escola.
Em Portugal, muito especialmente, convinha estudar, com seriedade e independência, o que realmente se passa nas escolas e no mundo imediatamente envolvente. Olhar, sem consideração pelos tabus, para a violência nas escolas, para a desmoralização dos professores, para a apatia dos pais e para a indiferença das autarquias. Verificar que a autoridade pedagógica nas escolas, dos professores, está a desaparecer, ao mesmo tempo que se afirma a autoridade política e burocrática do ministério. Perceber o que está a acontecer, socialmente, com o desenvolvimento do ensino privado, com a abertura das fronteiras e com a destruição dos estudos clássicos. Analisar as causas das elevadas taxas de desemprego de jovens licenciados e mestrados. Tentar compreender por que razão é impossível administrar o “sistema” a partir do centro. E saber por que motivos, periodicamente, o sector da educação está em guerra aberta. Só uma discussão livre e fundamental poderá mostrar caminhos inteligentes. Sem isso, continuaremos a ver, regular e alternadamente, as crises da colocação de professores, do acesso à universidade, da violência nas escolas básicas e secundárias, da avaliação de professores, da falta de manuais, da mediocridade dos resultados em Matemática, da manipulação dos exames e das nomeações políticas comandadas pelo ministério. Se é isso que queremos, então estamos bem assim!
-Estas grandes esperanças marcaram as políticas dos governos dos países ocidentais. E de muitos outros. A despesa pública e privada com a educação atingiu patamares insuportáveis da ordem dos dez e mais por cento do produto nacional. Abriram centenas de milhares de escolas e milhões de professores foram formados e contratados. Os Ministérios da Educação transformaram-se em enormes instituições que procuram ansiosamente gerir e administrar milhares de escolas, centenas de milhares de professores e milhões de alunos, o que fazem através de normas e instruções que multiplicam quotidianamente e com que os professores devem gastar uma parte preciosa do seu tempo. Em Inglaterra, por exemplo, só este ano, o Ministério da Educação emitiu cerca de 3.000 páginas de novas regras e procedimentos, a acrescentar às dezenas de milhares já em vigor! Não se conhecem os números em Portugal, mas sabe-se que a produção ministerial pode sofrer de tudo, menos de infertilidade!
Olhando, hoje, para aqueles países, nota-se a semelhança dos problemas. Não há talvez país onde não se fale da “crise da educação” e da necessidade, mais uma vez, de a “reformar”. Os resultados escolares são cada vez mais medíocres. Com poucas excepções, as dificuldades na Matemática e nas línguas maternas são comuns. Os orçamentos dos Estados não conseguem esticar mais para suportar despesas crescentes e sem travão. Há violência nas escolas, seja entre alunos, seja entre alunos e professores. Apesar dos enormes esforços feitos para contrariar as tendências, o abandono e o insucesso mantém-se ou são estatisticamente disfarçados. Periódica e alternadamente, atribui-se a responsabilidade por este estado de coisas ao Estado, aos Pais, aos Professores, aos alunos, à sociedade global ou aos métodos pedagógicos. Como quase toda a gente continua a acreditar nos efeitos salvadores da educação, é sabido que todos reclamam mais uma reforma.
As últimas três ou quatro décadas foram férteis em reformas. Quase todos os países europeus e outros ocidentais ou asiáticos fizeram as suas. Conforme os casos, foram privilegiados certos aspectos: o papel do Estado, o financiamento, os currículos e programas, a gestão da escola, os métodos de ensino, a organização do tempo escolar, etc. Gradualmente se vai vendo que não há solução radical e definitiva para nenhum dos grandes males que afligem a educação. Após décadas de reformas, os resultados não melhoram, a violência aumenta, o desperdício cresce, a mediocridade prevalece... Não há país europeu que não afirme que a educação está crise. Em Portugal também, até mais do que noutros. Gradualmente se vai percebendo que a crise na educação é permanente e que não há solução. Pode haver remédios, para este ou aquele problema. Mas não há solução para a crise. Nunca haverá, pela simples razão que a educação não resolve os problemas sociais, culturais e políticos. Não cria os homens e as sociedades de que se estava à espera. Não gera por si própria desenvolvimento. Não contribuiu decisivamente para a igualdade e a discriminação social permanece muito evidente. É esse o sentido da crise: esta existe porque a educação não pode satisfazer a esperança que nela depositaram e não cumpre as promessas que lhe atribuíram.
Por isso é confrangedor ver o tempo que se perde e os recursos que se gastam, em todo o Ocidente, em Portugal também, com as reformas da educação pensadas geralmente para remediar erros e deficiências, ou até para melhorar os sistemas, mas sempre dentro de quadros estabelecidos, sempre no respeito por tabus que não se discutem, sempre conforme aos cânones definidos há décadas ou séculos, mas que, hoje, estão gastos e ultrapassados. É verdade que se discute quase tudo. A avaliação dos professores, por exemplo, é objecto de estudo e debate em todos os países. A função dos exames e das notas, assim como das retenções, é objecto polémico. Os modelos de gestão das escolas são tema de longos e repetidos seminários e congressos. Os métodos de ensino, mais democráticos uns, mais disciplinados outros, servem de assunto de doutoramentos e de programas de televisão. A carga horária, a função dos testes, o sentido da “área escola” e da “área de projecto” ou o número ideal de alunos por turma e por professor, quase nada escapa à ansiedade dos pais, dos professores e dos políticos, quase todos desmoralizados com os resultados, desiludidos com a mediocridade e preocupados com os gastos e a violência.
Tudo se discute... Quase... Tudo, menos os tabus e os mitos. Há excepções, mas, na maior parte dos países ocidentais estabeleceu-se que as escolas devem constituir um “sistema” e que este deve ser único, integrado e centralizado. Assim como se definiu, para a eternidade, que o currículo deve ser nacional e único. Tal como se decretou, para todo o sempre, que os professores devem ser recrutados no plano nacional e “às cegas”, transformando-se em funcionários públicos. Do mesmo modo, é crença e lei que, apesar de a escolaridade ser “obrigatória”, a educação é um “direito”, incluindo a formação superior e científica. E, finalmente, não é nem pode ser objecto de discussão a certeza de que compete ao Ministério da Educação definir e zelar pelo cumprimento de normas, regras e manuais de procedimentos.
É crime pensar que as escolas poderiam ter uma liberdade quase total e uma vasta autonomia que lhes permitissem recrutar elas próprias os seus professores e alunos. Ou admitir que estas escolas não pertencem ao Estado, mas sim à comunidade, a quem devem prestar contas. É considerado sacrilégio encarar a hipótese de os directores, professores ou não, serem contratados, pela escola ou pela comunidade, para exercício dos seus mandatos durante quatro ou cinco anos. Pensa-se que é totalmente descabido estudar a possibilidade de cada escola adoptar os seus métodos de ensino, adaptando-os às necessidades e corrigindo os erros e as deficiências. Julga-se ser absurdo que os professores não tenham de seguir as normas e regras ditadas pelo Ministério. Nem se ousa imaginar que o Ministério da Educação, a ter de existir, não tenha autoridade sobre as escolas. Não se aceita que o currículo nacional seja reduzido ao mínimo necessário para assegurar a livre circulação dos cidadãos dentro do mesmo país. Recusa-se a ideia de que os programas, os currículos, as cargas horárias, os manuais e os exames não sejam nacionais. Não se admite que seja posta em causa a existência de carreiras nacionais únicas para os professores do básico e secundário, assim como para o universitário. Afasta-se a hipótese de as comunidades e as escolas definirem as suas próprias regras disciplinares. Em poucas palavras, não se admite que a educação não constitua um “sistema” único, integrado e centralizado.
A verdade é que, enquanto não se ousar pensar de outra maneira e não se explorem novas vias e diferentes soluções, continuaremos a engessar pernas de pau e a remendar mantas gastas e esburacadas. Mesmo que muitas das novas soluções se venham a revelar erradas ou desajustadas, é necessário pensar de outra maneira e pensar de novo. Como é indispensável pensar em novas soluções em função de princípios e critérios fundamentais. Como a justiça social, por exemplo. Esta terá sido um dos principais critérios que presidiram às modernas reformas da educação. A abolição do chamado ensino técnico e comercial, assim como a criação das escolas “unificadas”, foram pensadas por causa dessa preocupação de igualdade. A unificação total do sistema e a sua absoluta integração foram levadas a cabo pelo mesmo motivo. O estabelecimento de discriminações positivas para certos grupos da população foi também uma resposta a essa preocupação. Convém, por isso, olhar para trás e pensar no futuro. Esse objectivo de uma maior justiça social e de uma maior igualdade foi atingido? Obteve algum êxito? A mobilidade social aumentou significativamente? Como se sabe, a resposta é, muitas vezes, senão sempre, negativa. A discriminação social no ensino secundário e no ensino superior é vigorosa e não dá mostras de recuar.
A força dos mitos e das ideologias é enorme. Resiste à razão, à verdade, à análise e à experiência. O ensino único é republicano. O sistema centralizado é democrático. A escola integrada é justa. O ensino unificado oferece mais oportunidades. O direito à educação é mais igualitário. A educação é uma condição de desenvolvimento económico e social. As discriminações positivas são justas. Estes são apenas alguns dos mitos mais conhecidos, verdadeiros lugares comuns. Convinha rever estes mitos. Ver, minuciosamente, se os objectivos explícitos foram atingidos. Verificar se o “sistema” criado para sociedades nacionais, mais ou menos homogéneas, não está totalmente ultrapassado por realidades novas. Recentemente, um filme documentário francês, “A turma”, mostrou a impossibilidade de gerir as escolas nos moldes estabelecidos e revelou, com uma triste resignação, o desaparecimento do património comum ocidental que fundamenta a cultura e a escola.
Em Portugal, muito especialmente, convinha estudar, com seriedade e independência, o que realmente se passa nas escolas e no mundo imediatamente envolvente. Olhar, sem consideração pelos tabus, para a violência nas escolas, para a desmoralização dos professores, para a apatia dos pais e para a indiferença das autarquias. Verificar que a autoridade pedagógica nas escolas, dos professores, está a desaparecer, ao mesmo tempo que se afirma a autoridade política e burocrática do ministério. Perceber o que está a acontecer, socialmente, com o desenvolvimento do ensino privado, com a abertura das fronteiras e com a destruição dos estudos clássicos. Analisar as causas das elevadas taxas de desemprego de jovens licenciados e mestrados. Tentar compreender por que razão é impossível administrar o “sistema” a partir do centro. E saber por que motivos, periodicamente, o sector da educação está em guerra aberta. Só uma discussão livre e fundamental poderá mostrar caminhos inteligentes. Sem isso, continuaremos a ver, regular e alternadamente, as crises da colocação de professores, do acesso à universidade, da violência nas escolas básicas e secundárias, da avaliação de professores, da falta de manuais, da mediocridade dos resultados em Matemática, da manipulação dos exames e das nomeações políticas comandadas pelo ministério. Se é isso que queremos, então estamos bem assim!
Anuário de Economia Portuguesa, número relativo a 2009
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Luz - Alfarrabista de Hay-on-Wye
.
Esta aldeia, na fronteira de Inglaterra com o País de Gales, alberga cerca de 80 alfarrabistas. Visitam-na milhares de turistas, intelectuais, comerciantes de livros e curiosos. É um ambiente extraordinário. Pelas ruas, centenas de pessoas a comprar livros, a ler livros, a falar de livros, à procura de livros e a negociar livros... Nesta imagem, um dos alfarrabistas ao ar livre! (1995)
domingo, 15 de novembro de 2009
Luz - Açores
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Luz - À beira do Tamisa, Oxford
.
Em Oxford, existem vários braços do Tamisa. Uns “naturais”, outros construídos de maneira a formal um canal navegável. Em parques de vários colégios, há troços desses canais, ao longo dos quais estudantes, professores e visitantes podem viajar em pequenos barcos de recreio. Nas margens, há sempre pessoas a descansar, ler, namorar, dormir e conversar.
Falta acrescentar que o snobismo das gentes de Oxford os leva a dizer Ísis e não Tamisa! (1996)
Falta acrescentar que o snobismo das gentes de Oxford os leva a dizer Ísis e não Tamisa! (1996)
domingo, 8 de novembro de 2009
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Luz - Palais Royal
domingo, 1 de novembro de 2009
O lugar da Ciência: A Universidade
.
Seminário “O financiamento das Universidades” - Universidade de Lisboa
12 de Outubro de 2009
NAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS, assistimos a um desenvolvimento notável da investigação científica em Portugal. Tratou-se de uma evolução constante, a partir dos anos oitenta, mas com fenómenos de aceleração evidentes. A última década, em particular, terá sido a que melhor exibe um crescimento sem par. Este é visível em todos os indicadores: orçamentos destinados à investigação; número de centros e laboratórios; número de cientistas e de doutorados; fundos destinados à formação e à pós-graduação; bolsas concedidas para doutoramento em Portugal e no estrangeiro; e financiamento de projectos e de instituições especializadas. A despesa com ciência e tecnologia terá já ultrapassado o patamar de 1% a 1,2% do PIB (comparados com os 0,5 ou 0,6% do início dos anos oitenta). É certo que estamos muito longe dos prometidos 2,5% do PIB para 2000, mas os progressos, esquecendo a demagogia política, foram reais. Além disso, aquilo que se pode designar de balança científica e tecnológica, com excepção das patentes, tem revelado uma tendência firme para o equilíbrio ou mesmo o saldo excedentário. Finalmente, o número de citações e de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais cresceu de modo consistente, de tal forma que se aproxima das médias europeias. O panorama quantitativo, sublinho, quantitativo, é positivo e deveras encorajador.
Quer isto dizer que o panorama qualitativo é negativo ou medíocre? Não. Quer apenas dizer que, do ponto de vista qualitativo, é muito mais difícil fazer um diagnóstico apressado. Com efeito, se olharmos para cada um das áreas, das ciências ou das disciplinas, seremos obrigados a diversificar o julgamento. Por outro lado, há aspectos relacionados com a selecção de candidatos, o acompanhamento dos bolseiros, a avaliação de projectos ou as prioridades programáticas, que merecem uma avaliação muito severa. E é negativa a quase marginalização a que está condenada a investigação científica em certas áreas das humanidades, das artes ou das ciências humanas e sociais. Em poucas palavras, nesta óptica qualitativa, há muito bom e muito mau. Mas não é esse o tema desta minha breve intervenção. O assunto que me ocupa é o que refiro em título: “O lugar da Ciência: A Universidade”.
A evolução das políticas para a Ciência teve, desde os anos setenta (até mesmo sessenta, nos seus primórdios), uma constante: a tentativa de construir um sistema científico com autonomia e fronteiras próprias. Isto é, um sistema integrado e paralelo à Universidade. Com muitas ligações à Universidade, com certeza, até porque a maior parte dos investigadores e cientistas eram também professores universitários, mas com uma lógica própria. Não faltaram por exemplo, os esforços para erigir laboratórios de Estado, esses sim, totalmente à margem das Universidades. Esta lógica foi sempre sendo reforçada, até chegarmos ao tempo presente em que o sistema científico, se é que se lhe pode chamar assim, está separado do sistema universitário. Como as Universidades ainda são, para todos os efeitos, os principais centros de formação de cientistas, o resultado é que, dentro das universidades, existem os enclaves científicos. No conjunto, as regras de vida da investigação são diferentes das regras de vida do ensino. Orçamentos, modos de financiamento, regras de funcionamento, critérios e métodos de avaliação, oportunidades de recrutamento, estrutura das carreiras, importância do sector para a política pública e relações com a sociedade civil e as empresas: praticamente todo o modo de vida da ciência é diferente do modo de vida da Universidade. A meu ver, isto é um factor muito negativo. Poderá esta orientação, eventualmente (mas não é seguro que assim seja), reforçar a organização e o desenvolvimento da ciência. Mas enfraquece seguramente a universidade como instituição científica, como local de ensino e formação e como sede de criação cultural e artística.
Vale a pena recordar as palavras desassombradas de Orlando Ribeiro há cerca de cinquenta anos: a Universidade deveria ser em primeiro lugar uma instituição científica onde se estuda e investiga e onde se procura a verdade. O ensino seria assim um modo de fazer progredir a ciência, a cultura e o saber. Ora, em Portugal, a Universidade era sobretudo uma instituição onde se ensina e não se estuda ou investiga (cito de memória). As décadas subsequentes agravaram este estado de coisas. A transformação das universidades em instituições de ensino massificado empurrou ainda mais a ciência para as suas margens. Com a intervenção das políticas públicas para o ensino superior e para a ciência, a separação entre ciência e ensino aprofundou-se. Agora, no entanto, com outra realidade. Agora, a ciência existe, tem recursos, programas, regras e pessoal. Agora, a ciência beneficia de um formidável apoio do Estado e da União Europeia.
Tem-se a impressão de que Portugal adoptou aquilo que se pode designar de modelo francês reforçado. A ciência, entendida como prioridade para os governos e como instrumento de desenvolvimento, foi centralizada e integrada, entregue à tutela directa do Estado. As instituições e os esforços científicos encontram-se fora das universidades, nas margens das universidades ou organizadas como enclaves independentes dentro das universidades. O que parece haver e sobrar para a ciência, falta para as universidades. O entrosamento entre investigação e ensino, entre ciência e formação, entre ciência e cultura, parece estar em causa.
Todos conhecemos o argumento. Era necessário, nestas últimas décadas, desenvolver a ciência. Primeiro, com recursos nacionais. Depois, com os colossais contributos europeus que, aliás, constituíram o factor determinante de aceleração do investimento na ciência e tecnologia. As universidades encontravam-se em crise, eram incapazes de responder às exigências. Não se pode, dizia-se, entregar a gestão e o desenvolvimento da ciência a organizações vetustas, a universitários desprestigiados, a cientistas viciados e a instituições degradadas. Também corria ainda a moda que dizia que as velhas universidades não se reformavam e era, portanto, necessário criar novas instituições. Para muitos, até a autonomia universitária era considerada um mal maior e um obstáculo ao desenvolvimento da investigação. A este quadro, deve acrescentar-se o apetite insaciável que os políticos de todos os partidos e ideologias têm pela gestão centralizada da ciência, sobretudo quando há recursos e quando se afirma a prioridade à ciência e à tecnologia. Fez-se o previsível: organizou-se a ciência à margem da universidade. Do financiamento à avaliação, tudo passou a ser diferente. Tempos houve, mesmo, em que os ministérios eram diferentes. Aliás, se hoje estão sob a alçada do mesmo, é apenas porque se pretende poupar em número de ministros e gabinetes.
O facto de Portugal ser o país da União Europeia em que a intervenção do Estado central na investigação científica e no seu financiamento é a maior de todos não resulta apenas da ineficiência da sociedade civil ou da incipiente investigação empresarial. Não decorre também só das deficientes capacidades científicas do sistema produtivo, industrial e tecnológico. Resulta também da acção deliberada do Estado, da sua vontade de centralizar os esforços e os recursos e do seu desejo de receber os respectivos louros.
Dir-se-á que a definição da estratégia e da política científica confiada ao ministério e a suas agências, nomeadamente a FCT, é mais eficiente. Duvido. Muito seriamente. Primeiro: a definição de prioridades pelo ministério é muito discutível. Centralização não é necessariamente razão. Se olharmos bem para a documentação oficial, quase tudo é prioritário. Não se percebe, por exemplo, por que é tão insuficiente a investigação em ciências do mar, da floresta e da vinha. Como é incompreensível que as ciências do património tenham tão poucos recursos. Segundo: os critérios de avaliação e as exigências são geralmente processuais e adjectivas e não decorrem de uma política nacional de desenvolvimento económico e social, nem de uma política científica e tecnológica nacional conhecida. Tem-se frequentemente a impressão de que as políticas europeias são aplicadas sem julgamento crítico e sem adaptação. Verdade é que internacionalização não é sempre razão. Terceiro: a estratégia está excessivamente virada para a “performance” quantitativa e pouco preocupada com o desenvolvimento institucional e a consolidação das universidades. Consolidação das instituições, talvez, mas desde que estas estejam na dependência do sistema científico, não do sistema universitário. Quarto: as agências centrais são incapazes de acompanhar certos processos, como sejam os doutoramentos e as carreiras académicas e científicas subsequentes. Ainda hoje, após largos anos de um formidável esforço de investimento em doutoramentos e pós-graduações no estrangeiro, não está feito um verdadeiro balanço desse esforço, nem sequer foi medido o eventual insucesso ou desperdício. Quinto: o encorajamento à actividade científica é feito, muitas vezes, de modo precário e errático, sem que tal contribua para um acréscimo de consistência das universidades. Sexto: não existem sinais inequívocos de que a liderança do Estado no investimento e no financiamento seja um passo intermédio para um aumento da autonomia das empresas e das universidades no domínio científico.
A minha preocupação, como se pode deduzir, é a da autonomia das universidades, da definição estratégica das orientações de política científica e da ligação entre ciência e ensino. As Universidades não podem ter uma política ou uma orientação estratégica científica, de nada lhes serviria. Limitam-se a recolher alguns benefícios das vantagens obtidas pelos seus docentes cientistas ou pelos centros e laboratórios. E nota-se que as universidades aceitam este modelo, pois, de outra maneira, nem sequer esses recursos estariam ao seu alcance.
Deveria a meu ver competir à Universidades definir as suas estratégias científicas, com impacto evidente nas prioridades, nas orientações financeiras, nas áreas de preferência para encorajamento de doutoramentos e pós-graduações e no lançamento de projectos de investigação. Deveriam as universidades ser as responsáveis pela sua política de investigação, pela coordenação indispensável entre actividades de formação, de pesquisa e de serviço à comunidade. Deveriam as universidades, graças à ciência, poder enriquecer as suas capacidades pedagógicas, actualmente relegadas para segundo plano, dado que a investigação é mais compensadora e parece ter superior estatuto social.
A minha conclusão é simples: o lugar da ciência é a Universidade. Não o único, mas o principal.
-Quer isto dizer que o panorama qualitativo é negativo ou medíocre? Não. Quer apenas dizer que, do ponto de vista qualitativo, é muito mais difícil fazer um diagnóstico apressado. Com efeito, se olharmos para cada um das áreas, das ciências ou das disciplinas, seremos obrigados a diversificar o julgamento. Por outro lado, há aspectos relacionados com a selecção de candidatos, o acompanhamento dos bolseiros, a avaliação de projectos ou as prioridades programáticas, que merecem uma avaliação muito severa. E é negativa a quase marginalização a que está condenada a investigação científica em certas áreas das humanidades, das artes ou das ciências humanas e sociais. Em poucas palavras, nesta óptica qualitativa, há muito bom e muito mau. Mas não é esse o tema desta minha breve intervenção. O assunto que me ocupa é o que refiro em título: “O lugar da Ciência: A Universidade”.
A evolução das políticas para a Ciência teve, desde os anos setenta (até mesmo sessenta, nos seus primórdios), uma constante: a tentativa de construir um sistema científico com autonomia e fronteiras próprias. Isto é, um sistema integrado e paralelo à Universidade. Com muitas ligações à Universidade, com certeza, até porque a maior parte dos investigadores e cientistas eram também professores universitários, mas com uma lógica própria. Não faltaram por exemplo, os esforços para erigir laboratórios de Estado, esses sim, totalmente à margem das Universidades. Esta lógica foi sempre sendo reforçada, até chegarmos ao tempo presente em que o sistema científico, se é que se lhe pode chamar assim, está separado do sistema universitário. Como as Universidades ainda são, para todos os efeitos, os principais centros de formação de cientistas, o resultado é que, dentro das universidades, existem os enclaves científicos. No conjunto, as regras de vida da investigação são diferentes das regras de vida do ensino. Orçamentos, modos de financiamento, regras de funcionamento, critérios e métodos de avaliação, oportunidades de recrutamento, estrutura das carreiras, importância do sector para a política pública e relações com a sociedade civil e as empresas: praticamente todo o modo de vida da ciência é diferente do modo de vida da Universidade. A meu ver, isto é um factor muito negativo. Poderá esta orientação, eventualmente (mas não é seguro que assim seja), reforçar a organização e o desenvolvimento da ciência. Mas enfraquece seguramente a universidade como instituição científica, como local de ensino e formação e como sede de criação cultural e artística.
Vale a pena recordar as palavras desassombradas de Orlando Ribeiro há cerca de cinquenta anos: a Universidade deveria ser em primeiro lugar uma instituição científica onde se estuda e investiga e onde se procura a verdade. O ensino seria assim um modo de fazer progredir a ciência, a cultura e o saber. Ora, em Portugal, a Universidade era sobretudo uma instituição onde se ensina e não se estuda ou investiga (cito de memória). As décadas subsequentes agravaram este estado de coisas. A transformação das universidades em instituições de ensino massificado empurrou ainda mais a ciência para as suas margens. Com a intervenção das políticas públicas para o ensino superior e para a ciência, a separação entre ciência e ensino aprofundou-se. Agora, no entanto, com outra realidade. Agora, a ciência existe, tem recursos, programas, regras e pessoal. Agora, a ciência beneficia de um formidável apoio do Estado e da União Europeia.
Tem-se a impressão de que Portugal adoptou aquilo que se pode designar de modelo francês reforçado. A ciência, entendida como prioridade para os governos e como instrumento de desenvolvimento, foi centralizada e integrada, entregue à tutela directa do Estado. As instituições e os esforços científicos encontram-se fora das universidades, nas margens das universidades ou organizadas como enclaves independentes dentro das universidades. O que parece haver e sobrar para a ciência, falta para as universidades. O entrosamento entre investigação e ensino, entre ciência e formação, entre ciência e cultura, parece estar em causa.
Todos conhecemos o argumento. Era necessário, nestas últimas décadas, desenvolver a ciência. Primeiro, com recursos nacionais. Depois, com os colossais contributos europeus que, aliás, constituíram o factor determinante de aceleração do investimento na ciência e tecnologia. As universidades encontravam-se em crise, eram incapazes de responder às exigências. Não se pode, dizia-se, entregar a gestão e o desenvolvimento da ciência a organizações vetustas, a universitários desprestigiados, a cientistas viciados e a instituições degradadas. Também corria ainda a moda que dizia que as velhas universidades não se reformavam e era, portanto, necessário criar novas instituições. Para muitos, até a autonomia universitária era considerada um mal maior e um obstáculo ao desenvolvimento da investigação. A este quadro, deve acrescentar-se o apetite insaciável que os políticos de todos os partidos e ideologias têm pela gestão centralizada da ciência, sobretudo quando há recursos e quando se afirma a prioridade à ciência e à tecnologia. Fez-se o previsível: organizou-se a ciência à margem da universidade. Do financiamento à avaliação, tudo passou a ser diferente. Tempos houve, mesmo, em que os ministérios eram diferentes. Aliás, se hoje estão sob a alçada do mesmo, é apenas porque se pretende poupar em número de ministros e gabinetes.
O facto de Portugal ser o país da União Europeia em que a intervenção do Estado central na investigação científica e no seu financiamento é a maior de todos não resulta apenas da ineficiência da sociedade civil ou da incipiente investigação empresarial. Não decorre também só das deficientes capacidades científicas do sistema produtivo, industrial e tecnológico. Resulta também da acção deliberada do Estado, da sua vontade de centralizar os esforços e os recursos e do seu desejo de receber os respectivos louros.
Dir-se-á que a definição da estratégia e da política científica confiada ao ministério e a suas agências, nomeadamente a FCT, é mais eficiente. Duvido. Muito seriamente. Primeiro: a definição de prioridades pelo ministério é muito discutível. Centralização não é necessariamente razão. Se olharmos bem para a documentação oficial, quase tudo é prioritário. Não se percebe, por exemplo, por que é tão insuficiente a investigação em ciências do mar, da floresta e da vinha. Como é incompreensível que as ciências do património tenham tão poucos recursos. Segundo: os critérios de avaliação e as exigências são geralmente processuais e adjectivas e não decorrem de uma política nacional de desenvolvimento económico e social, nem de uma política científica e tecnológica nacional conhecida. Tem-se frequentemente a impressão de que as políticas europeias são aplicadas sem julgamento crítico e sem adaptação. Verdade é que internacionalização não é sempre razão. Terceiro: a estratégia está excessivamente virada para a “performance” quantitativa e pouco preocupada com o desenvolvimento institucional e a consolidação das universidades. Consolidação das instituições, talvez, mas desde que estas estejam na dependência do sistema científico, não do sistema universitário. Quarto: as agências centrais são incapazes de acompanhar certos processos, como sejam os doutoramentos e as carreiras académicas e científicas subsequentes. Ainda hoje, após largos anos de um formidável esforço de investimento em doutoramentos e pós-graduações no estrangeiro, não está feito um verdadeiro balanço desse esforço, nem sequer foi medido o eventual insucesso ou desperdício. Quinto: o encorajamento à actividade científica é feito, muitas vezes, de modo precário e errático, sem que tal contribua para um acréscimo de consistência das universidades. Sexto: não existem sinais inequívocos de que a liderança do Estado no investimento e no financiamento seja um passo intermédio para um aumento da autonomia das empresas e das universidades no domínio científico.
A minha preocupação, como se pode deduzir, é a da autonomia das universidades, da definição estratégica das orientações de política científica e da ligação entre ciência e ensino. As Universidades não podem ter uma política ou uma orientação estratégica científica, de nada lhes serviria. Limitam-se a recolher alguns benefícios das vantagens obtidas pelos seus docentes cientistas ou pelos centros e laboratórios. E nota-se que as universidades aceitam este modelo, pois, de outra maneira, nem sequer esses recursos estariam ao seu alcance.
Deveria a meu ver competir à Universidades definir as suas estratégias científicas, com impacto evidente nas prioridades, nas orientações financeiras, nas áreas de preferência para encorajamento de doutoramentos e pós-graduações e no lançamento de projectos de investigação. Deveriam as universidades ser as responsáveis pela sua política de investigação, pela coordenação indispensável entre actividades de formação, de pesquisa e de serviço à comunidade. Deveriam as universidades, graças à ciência, poder enriquecer as suas capacidades pedagógicas, actualmente relegadas para segundo plano, dado que a investigação é mais compensadora e parece ter superior estatuto social.
A minha conclusão é simples: o lugar da ciência é a Universidade. Não o único, mas o principal.
Seminário “O financiamento das Universidades” - Universidade de Lisboa
12 de Outubro de 2009
Subscrever:
Mensagens (Atom)