sábado, 29 de abril de 2023

Grande Angular - Não basta. Nem chega.

 As últimas semanas, entre o famigerado “caso TAP” e as cenas pouco recomendáveis da Assembleia da República, passando por revelações assustadoras dos processos Sócrates e Salgado, foram ricas em acontecimentos que sublinham a provocação de uns e a tibieza de outros.

 

Entre as fraquezas da democracia está a mais citada: é o regime de todos, incluindo os não democratas e os antidemocratas. Além desta, outras fragilidades mostram bem como, mais do que imperfeita, a democracia tem vícios, alimenta vícios e premeia vícios. O regime democrático inclui corruptos, mentirosos, exploradores, ladrões e os representantes das várias cáfilas conhecidas. A democracia coexiste ainda com cunhas, droga, machismo, assédio sexual e tráfico de influências. Muitos destes vícios e defeitos têm de ser tratados com civilização. Outros, com a Justiça e o Estado de direito. Quando estes últimos falham, perde a democracia.

 

Os últimos episódios “mediáticos” revelaram o papel crescente do partido Chega e os receios, igualmente crescentes, dos que se dizem defensores da democracia. E que talvez sejam, em título, pelo menos. Mas convém olhar melhor para este confronto que parece simples, mas não é. Na verdade, os provocadores do Chega, ridículos, mas eficazes, são tão perigosos quanto os prevaricadores do PS e do PSD. Os oportunistas do Chega são tão ameaçadores quanto os que não são capazes de gerir a democracia. Sem falar naqueles que se querem aproveitar da democracia.

 

O Chega parece ter uma agenda clara. Começa por dar eco aos descontentamentos. Onde estes faltam, inventa. Onde sobram, aproveita. Depois, usa a democracia, aproveita as suas facilidades, incluindo representação e tribuna. A seguir, desacredita a democracia, põe em crise as suas falhas e cria novas. Sabe-se que entre as causas da morte das democracias encontram-se a incompetência e os abusos dos democratas. O populismo não se alimenta de druidas e sonhos, bebe nos erros e nas insuficiências da democracia. O Chega vai esforçar-se, dia após dia, por perturbar as instituições em que está presente, tanto “por dentro”, como “por fora”, na rua. A salvação e a glória do Chega residem na morte da democracia.

 

Para a democracia, há tanto perigo nas provocações do Chega, quanto nas insuficiências dos democratas. A estes, não compete tratar da educação dos populistas, convertê-los ou proibi-los. Compete-lhes, isso sim, retirar argumentos, não abusar e fazer com que, para a população, a liberdade seja superior às promessas dos justiceiros. Aos democratas, não lhes compete prender, banir ou mandar calar os populistas. Aos democratas compete-lhes fazer melhor e com mais competência do que fazem hoje. E de modo a que a população sinta e perceba.

 

São conhecidas as piores nódoas do governo e do regime na actualidade. A crise da justiça vem à cabeça. Gera desconfiança e descrédito. Estimula a corrupção. Incita ao abuso e à fraude. Destrói quaisquer fundamentos morais da vida pública. Se existe desilusão e frustração dos cidadãos relativamente à democracia, é seguramente na falta de justiça e no seu enviesamento. O rol de vícios da justiça, que inclui a impunidade, os favores, o nepotismo e a ineficiência, é enorme e está colado aos casos de corrupção, de branqueamento, de roubo e de abuso de que beneficiam os poderosos da economia, da política e da sociedade. Sem justiça, não há liberdade nem democracia. Com uma certeza que a história nos ensina: os populistas, as ditaduras de direita ou de esquerda e os “justicialistas” nunca brilharam pela liberdade e pela democracia, nem sequer pela justiça. Mas alimentam-se dos defeitos da justiça das democracias.

 

A incapacidade de conduzir ou a impossibilidade de acabar um processo judicial contra um grande corrupto ou um grande corruptor é mais grave para a democracia do que as acções propriamente ditas do grande corrupto ou do grande corruptor. Os magistrados, os oficiais, os advogados, os altos funcionários de Estado e os legisladores são mais responsáveis, pelo declínio da justiça democrática, do que o banqueiro, o político e o empresário. 

 

A seguir, o Serviço Nacional de Saúde, que corrói a confiança e retira as últimas defesas dos mais frágeis e vulneráveis. Depois, as escolas sem professores, as avaliações sem exames e as aulas em greve que destroem a esperança.

 

A incompetência tão visível na TAP, no Aeroporto de Lisboa, nos transportes públicos e no caminho-de-ferro estão a criar um clima de incredulidade difícil de imaginar ainda há poucos anos. É difícil encontrar as causas deste estado de incapacidade, de falta de previsão e de erro. Em todos estes casos, a incompetência e a descoordenação foram evidentes. E dão a sensação de que as autoridades se julgam impunes e proprietárias do bem comum.

 

As grandes obras de Lisboa, do porto à drenagem, da habitação à circulação, dos comboios ao tráfico automóvel, sem informação suficiente, sem cuidado para com os habitantes, sem faseamento mais confortável e sem consideração pelas comunidades locais e pelas pessoas, são mais sinais de que a gestão do espaço público não está a ser feita à altura das ansiedades da população. 

 

É verdade que vivemos horas, dias, semanas e meses difíceis. Talvez até anos. Nem o sistema democrático, nem os políticos actualmente em funções, têm revelado serenidade e saber para encarar esses tempos, para resolver os problemas que daí resultam, para satisfazer aspirações e diminuir ansiedades. Realidades que todos vêem. Rapidamente surgem ideias ou reflexos sobre o futuro imediato e os remédios para as crises. Eleições e coligações estão entre as primeiras reacções. Demissões e dissoluções, também. E também há quem sonhe com novas soluções e novos regimes. É muito fácil encontrar, à esquerda e à direita, quem afirme convictamente que “a democracia está esgotada”. São estes os suspiros melancólicos que se ouvem. As soluções a encontrar para estes tempos difíceis são conhecidas e estão ao alcance das mãos. Encontram-se com os partidos que temos, com os meios que são os nossos e com algumas circunstâncias inescapáveis. Os sonhadores que tomem nota. Não há solução fora da Europa, nem fora de Portugal. Como não há soluções fora da democracia. Ou antes: há, mas são piores.

 

Não basta ser democrata para defender a democracia. Nem chega ser provocador para a derrotar.

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Público, 29.4.2023

sábado, 22 de abril de 2023

Grande Angular - Demissão, Remodelação e Dissolução

 Ao menor problema, o que se ouve em Portugal é um imediato pedido de demissão do Ministro, do Primeiro-Ministro ou do governo. Para as oposições, a demissão do ministro é quase o primeiro passo de uma luta. Este hábito, ou vício, é próprio de todas as oposições, qualquer que seja o governo em exercício. Tenha este uma maioria ou não, seja de um só partido ou de coligação.

 

Convencionou-se, há muitos anos, que fazer oposição era falar duro, o que se traduz por regras simples. Pedir a demissão do membro do governo. Exigir uma remodelação. Pedir que o Primeiro ministro e seu governo sejam substituídos. E exigir a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições.

 

Esta liturgia é quase independente da força do partido de oposição. Seja o deputado único, seja o grupo parlamentar de meia dúzia de deputados, seja finalmente o partido com 80 deputados, em todos os casos a exigência da demissão ou da dissolução é considerada a mais forte voz de oposição.

 

Os partidos que todas as semanas pedem demissões, exigem remodelações e procuram convencer o Presidente a demitir o Governo ou a dissolver o Parlamento (que não são a mesma coisa, pode haver uma sem outra) não mostram outra coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política. Aquilo que se chama na gíria política “elevar a voz”, “ser duro com o governo” e “fazer verdadeira oposição” tem, entre nós, uma versão muito especial: pede-se a demissão e a dissolução. O problema é que se percebe logo: é quem não sabe o que fazer.

 

É verdade que, em vários sectores, a acção do governo actual se tem revelado desastrosa. Alguns ministros foram ou são manifestamente incompetentes ou têm visões estranhas do interesse nacional e do bem público. Já ninguém duvida de que este governo e o seu partido têm uma estranha concepção de família política e de legitimidade partidária. Mas também é certo que alguns ministros se portam bem, desempenham com honra e eficiência as suas funções e se mostram capazes de gerir a Administração. 

 

Nada do que precede justifica uma dissolução. Por vezes, nem sequer uma remodelação. Estamos muitas vezes diante de políticas, de doutrinas e de visões particulares do interesse público. Tudo isto faz parte do que deve ser avaliado em eleições a realizar a seu tempo. Nestas, confirmam-se os vitoriosos e despedem-se os que erram. Chamam-se novos, substituem-se velhos e castigam-se incompetentes. 

 

Entre os que reclamam demissões e dissolução, um argumento frequente é o de que já não se pode garantir o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Quem o invoca, não necessita argumentar: o peso da acusação basta-se a si própria. Ora, tal não é verdade. O regular funcionamento das instituições democráticas está sobretudo ligado à demissão do governo, isto é, à competência do Presidente da República para demitir o governo. No caso da dissolução da Assembleia da República, esta ressalva do “regular funcionamento” não está explícita na Constituição. Isto é, a dissolução é um “acto livre” do Presidente, apenas limitado pela necessidade de, previamente, ouvir o Conselho de Estado e os partidos, sem que tenha de obedecer ou seguir o que dizem as pessoas ouvidas. Mas é um “acto livre” de gravidade extrema para uma situação muito grave.

 

Mesmo não sendo rigoroso, o argumento do “regular funcionamento” tem efeitos e assusta. Mas é totalmente desadequado. Na verdade, o que mais está em causa, hoje, são as políticas, não as instituições. O Serviço Nacional de Saúde, a funcionar tão mal, não é uma instituição democrática. As escolas, em crise evidente, também não. A TAP, a CP e os transportes públicos, em situação caótica, não são instituições democráticas. São empresas, entidades e serviços públicos essenciais para a felicidade dos povos, para o bem-estar e para a economia. Mas não são instituições democráticas. Fernando Medina e Pedro Nuno Santos cometeram erros e são responsáveis por uma gestão muito controversa da política pública e da sua carreira. Mas não são instituições democráticas. Tiago Brandão Rodrigues e Marta Temido tiveram uma gestão desastrada dos seus ministérios, mas não são instituições democráticas. O Aeroporto de Lisboa, a COVID e a guerra na Ucrânia são assuntos graves, temas em que o governo se pode portar bem ou mal, mas não se trata de instituições democráticas.

 

Estas são as que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, as que fazem funcionar o sistema político, as que asseguram as grandes funções do Estado como a Justiça, a Administração Pública, a moeda, as forças armadas e a ordem pública. Quando o seu funcionamento deixa de ser regular, quando a ilegalidade invade estas instituições, quando estas ameaças não são devidamente contrariadas pelos poderes políticos, pelo Parlamento e pelo Governo, então aí sim, impõe-se uma dissolução do Parlamento ou a substituição do governo. Mas mesmo nesses casos, o que realmente se impõe não é a opinião do Presidente da República. O que se impõe é um veredicto popular e uma renovação da vontade dos cidadãos.

 

Entre os dispositivos que mais contribuíram para o prestígio da democracia conta-se a realização de eleições livres, com datas conhecidas e regras definidas. Assim como a ideia de mandato. Isto é, uma pessoa e um partido são eleitos com base nas identidades, na história e no programa, assim como no cumprimento do mandato conferido. Este não se mede semanalmente, nos jornais e nas televisões, com sondagens. O cumprimento dos mandatos mede-se periodicamente, em eleições, ao fim de um certo tempo conhecido. E os mandatos são para cumprir até ao fim. Salvo casos absolutamente graves e excepcionais. Ou então em situação de total impasse das instituições. Por exemplo, na impossibilidade de um governo passar no Parlamento e ter orçamento e confiança.

 

O Presidente da República, qualquer que seja o seu estilo, pode perfeitamente dar recados, tentar influenciar, fazer sugestões, chamar à atenção e até criticar. Tudo em recato. Por vezes até com algum grau, moderado, de publicidade. Mas não tem nem deve envolver-se na política e nas políticas, fazer opções, destinar, impedir e fomentar. A reserva presidencial é um dos mais valiosos dispositivos constitucionais que importa valorizar e proteger. São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente da República deve calcular as hipóteses de haver alternativas, deve seguir as sondagens da semana e deve saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.

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Público, 22.4.2023

sábado, 8 de abril de 2023

Grande Angular - Falta de respeito

 Dizem os dicionários que o respeito é um sentimento que leva alguém a tratar as pessoas com deferência. Uma atitude que implica que se preste atenção aos outros. O comportamento de alguém que traduza consideração por outras pessoas. A maneira como se tem sempre em conta a dignidade humana e social de qualquer pessoa. O modo como se acredita que os outros merecem a honra de ser bem tratados. O cumprimento das regras e dos códigos de conduta em sociedade.

 

Na vida política, o respeito pode traduzir-se de muitas maneiras. Na ideia de que os outros são iguais a nós e não menores ou incapazes. Na certeza de que os outros também têm opiniões válidas e diferentes das nossas. Na concepção de que os outros merecem a verdade. No modo como os políticos entendem que devem o que são aos cidadãos que os elegeram. Na capacidade de olhar para si próprio e perceber o que faz de certo e de errado. No comportamento que consiste em acatar as leis, ter em conta as tradições, seguir as regras da democracia e cumprir a palavra dada. E na prática de não enganar os seus eleitores e não ocultar factos úteis para a população.

 

As faltas a isto tudo, a estas regras e costumes, designam-se por uma expressão simples: falta de respeito. É o comportamento dominante de muitos representantes do povo, de actuais titulares do poder político, de muitos governantes, de vários dirigentes do Estado, de bastantes deputados, de múltiplos titulares de funções na justiça e nas forças armadas e de vários administradores de grandes empresas públicas. Nunca, na história recente do nosso país, o espaço público esteve, como hoje, tão desacreditado, a mentira tão frequente, o engano tão presente e a falsidade tão usada. Temos vivido semanas e meses de impostura, de verdade a prestações, de mentira pública e de ilusão dolosa. A ponto de se começar a pensar que mentir é normal e necessário, que enganar é um método de governo e que disfarçar é aceitável para as regras da democracia.

 

Volta a surgir a ideia de que aos “nossos” tudo é permitido, mentir, enganar e esconder, desde que em nome dos “nossos”, do nosso partido, do nosso governo e das nossas empresas. Inversamente, nada é tolerado aos “nossos” inimigos, acusados de todas as malfeitorias. Como os “nossos” têm razão, defendem o interesse nacional, são genuínos, protegem os seus amigos e amparam as nossas causas, não podem senão ter razão. E se por acaso, excepcionalmente, por acidente, algum dos “nossos” comete um erro que todos viram, rapidamente se encontra a desculpa e a complacência: são as circunstâncias atenuantes, as causas exteriores ou a culpa dos adversários. Em poucas palavras, a ética republicana, na sua versão actual, proclama que quem ganha tem razão, quem tem os votos, manda. Desde que seja um dos “nossos”, claro.

 

O que se passou e passa com a TAP e o Aeroporto de Lisboa, é revelador de tudo quanto acima se diz. Vimos o que por vezes é difícil imaginar. Negócios indevidos, traições, carreiras destruídas, mentiras sucessivas, desmentidos, negações, demissões forçadas, acusações infundadas e retiradas, compras e vendas de equipamento a preços duvidosos, destruição de capital e medidas contraditórias ruinosas (privatização, nacionalização e nova privatização), nada nos foi poupado. É um dos mais vergonhosos casos da democracia portuguesa. E não acabou. Ainda vai haver muita TAP para as notícias e muito Aeroporto para a crónica futura.

 

Os sectores sociais mais turbulentos, actualmente, parecem ser a educação, a saúde, a habitação e os transportes públicos. Em todos assistimos a comportamentos semelhantes. Mentiras públicas sistemáticas, desmentidos, negociações sindicais insuportáveis, greves que não são greves, prestação de declarações e de contas públicas falsas. Sucedem-se as greves e os atrasos, com enormes inconvenientes para todos. A falta de previsão foi erro comum aos governantes. A crise no Serviço Nacional de Saúde é um caso flagrante de erro de governo, de incapacidade de diagnóstico, de incompetência de gestão e de indiferença perante a população. Tal como nos transportes públicos, onde a imprevisão e a incompetência, aliadas à falta de investimento, liquidam, dia após dia, os já tão decadentes transportes urbanos e semiurbanos. 

 

A inflação, o aumento do custo de vida e os preços dos produtos de primeira necessidade atravessam igualmente período de grande instabilidade. Por isso se têm prestado a intervenções públicas, designadamente de governantes e deputados, em que se multiplicam as acusações e os bodes expiatórios, as mentiras e as falsas estatísticas. O cabaz alimentar, os apoios sociais e o IVA deram oportunidade às maiores tiradas de demagogia que se imagina. Ninguém consegue explicar as razões pelas quais um muito elevado número de alimentos tem, em Portugal, preços mais altos ou aumentos mais pronunciados do que em muitos países europeus com níveis de vida superiores ao português. 

 

O comportamento de grande número de governantes, de deputados e de dirigentes da Administração Pública, é essencialmente caracterizado pela falta de respeito pelos cidadãos. Estão absolutamente convencidos das suas verdades. Mostram-se, todos os dias, cada vez mais auto-suficientes e arrogantes. Têm mentido descaradamente, contradizem-se sem limites, tem-se negado a admitir os seus erros. Limitam-se a fazer propaganda e a anunciar medidas, todos os dias novas medidas, sem o menor pudor. Mentem sem se cansarem.

 

Dizem a verdade aos poucos, mas mentem de uma só vez. O ministro diz que não sabia, veio a saber-se que sabia. O secretário de Estado não esteve presente. Soube-se que afinal tinha escrito, tinha telefonado e tinha estado presente. Os administradores foram, mas dizem que não tinham sido chamados. Os deputados estavam ao corrente, mas diziam que não sabiam. Ninguém sabia. Ninguém esteve presente. Ninguém disse. Ninguém viu nem leu. Ninguém telefonou. Ninguém recebeu o telefonema. Ninguém concordou. Ninguém recebeu mensagens. Em poucas horas se foi sabendo que eram mentiras. Viram. Sabiam. Disseram. Entraram. Saíram. Telefonaram. Escreveram. Pagaram. Receberam. Leram. Concordaram.

 

Muitos políticos são surdos, não usam óculos, nem sequer têm espelho em casa. Perderam o sentido crítico. Perderam os remorsos e os escrúpulos. Não têm vergonha. Não respeitam a lei. Nem os eleitores.

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Público, 8.4.2023

sábado, 1 de abril de 2023

Grande Angular - Justiça, sempre. Justiça, nunca.

 É um dos mais misteriosos problemas da vida nacional: a permanente degradação da justiça. Quais são as verdadeiras causas deste estado de coisas? A política? As leis? As magistraturas? Os orçamentos? A sociedade? Os interesses? As faculdades de direito? Nenhum diagnóstico parece completo. Mas não há dúvidas de que a evolução, ao longo das últimas décadas, tem sido negativa. A justiça portuguesa teve dificuldades em adaptar-se a tudo o que de importante aconteceu. À democracia. Aos direitos dos cidadãos. À economia de mercado. À União Europeia. À globalização. Ao digital. E à liberdade de informação. Na verdade, ficou para trás e foi-se atrasando.

 

Só num aspecto os diagnósticos são convergentes: a situação é difícil ou grave. Uns acentuam os interesses das magistraturas. Outros sublinham as pressões dos poderosos da política, da economia, dos sindicatos e das instituições. Alguns garantem que as responsabilidades são dos partidos políticos, do legislador e do Ministério. Enquanto outros apontam para a venalidade dos magistrados e a tibieza perante as solicitações dos bandidos. Mas há ainda, finalmente, quem garanta que o essencial se deve ao espírito jurídico nacional, ao formalismo das tradições portuguesas e ao conservadorismo do ensino do Direito. Quais são as verdadeiras causas? Mistério.

 

Não se conhecendo as causas, é difícil encontrar os remédios. Talvez seja esse o sentido de outro dos mais enigmáticos problemas da sociedade contemporânea: por que razão nenhum partido político, nenhum governo, nenhum Presidente da República, nenhum Conselho Superior da Magistratura Judicial ou do Ministério Público, nenhum Supremo Tribunal, nenhum Procurador-Geral e nenhum Sindicato tentou ou protagonizou um processo de reforma?

 

Entre os diagnósticos, há uns mais certeiros do que outros. Por exemplo, a falta de preparação das leis, dos magistrados, dos tribunais e das polícias para tratar do crime organizado e da alta criminalidade ligada à corrupção política e económica. Ou então, a tradição burocrática nacional a que se juntou o excesso de garantias de todo o sistema. Ou ainda, finalmente, o livre trânsito dos magistrados entre os tribunais, as empresas, os partidos e os cargos políticos. Tudo isso é possível. Mas não se trata realmente de respostas. São novas perguntas às quais é necessário responder.

 

Uma das grandes dificuldades reside no facto de que reformar a justiça pode matar a liberdade e a democracia. Como pode destruir a independência dos magistrados e dos tribunais, valores insubstituíveis. Reformar eficazmente a justiça, em democracia e garantindo a independência dos magistrados é a grande dificuldade, o dilema da política de reformas. A justiça tem um paralelo possível com as Forças Armadas. São ambas essenciais à liberdade. Mas o seu funcionamento não é ou é pouco democrático. As decisões não dependem do voto dos cidadãos e dos utentes. O princípio da eleição não é geralmente aceite nestas organizações. Nem poderia ser. Mas ambas estão submetidas a uma génese democrática que lhes dá legitimidade. Em poucas palavras, a justiça não é democrática, mas a democracia depende dela.

 

O Tribunal Constitucional revela-se incapaz de substituir os seus membros, o que fere a sua própria legitimidade. Com suspeitas fundadas, a distribuição de processos continua inquinada. Sucedem-se as avarias dos sistemas, com quebras de comunicação que podem durar horas ou dias. Aumentam, com ou sem greve, os atrasos de julgamentos e outros actos. Seria interessante que alguns políticos, jornalistas e académicos visitassem os tribunais, reparassem nas testemunhas que esperam horas, nos adiamentos dos processos e nos julgamentos que não se realizam sem que as testemunhas sejam informadas. Quem pensa nas centenas ou milhares de pessoas, arguidos, assistentes, testemunhas e advogados que perdem horas e dias à espera, a “meter” baixas nos seus empregos, a ter de voltar uma, duas e três vezes?

 

A duração, os incidentes, as perturbações e as decisões contraditórias e incompreensíveis dos grandes processos de políticos e poderosos, as famosas causas célebres, já não se explicam nem justificam, mas deixam a sensação e a certeza de que a justiça portuguesa está cativa, é desigual e foi capturada por interesses ilegítimos.

 

Será que os magistrados, os membros dos Conselhos Superiores, as associações judiciais e a Ordem dos Advogados não se dão conta do mal que se está a fazer aos portugueses, à democracia e à justiça? Será que não percebem que o que fazem agora garantirá, por décadas, a má reputação da justiça? E os governantes que se ocupam directamente da justiça, os deputados que têm o exclusivo de competências em matéria judicial e os altos funcionários judiciais não se dão conta dos danos que estão a ser infligidos à Justiça e à democracia? E os magistrados que não são cúmplices, que cumprem os seus deveres, que respeitam as declarações dos direitos humanos, esses magistrados não se dão conta que, sem culpa nem proveito, sofrem da má fama que o sistema e as autoridades lhes infligem e provocam?

 

Os magistrados têm evidentemente culpas e responsabilidades no estado em que a justiça se encontra. Mas não tenhamos dúvida de que há outros responsáveis com o mesmo grau de culpa ou maior ainda: o legislador e o poder executivo. E os órgãos superiores do sistema judicial que se entendem bem com este estado de coisas. A entrada e a saída da profissão, a porta giratória com a política e a economia pública e privada, assim como a vizinhança com entidades políticas e partidárias, ajudam a explicar a inércia e a atitude conservadora da magistratura, do legislador e do governo. 

 

Quem poderá tomar a iniciativa de um movimento de reforma? Quem poderá iniciar um debate com sentido das realidades e eficiência? Que órgão de soberania, Presidente, Governo ou Parlamento poderia tomar a iniciativa de mandar elaborar um Livro Branco e um roteiro de reformas para a justiça? Que fundação privada, universidade ou academia poderia dar o sinal de partida para uma análise, um apuramento e um programa de reformas? Uma coisa é certa: aquilo com que sonham os antidemocratas e radicais de vária penugem, a “vassourada” ou a “barrela”, não é aconselhável. Além de que seria contraproducente: transformaria o caos democrático num caos autoritário, com sacrifício da liberdade e da democracia.

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Público, 1.4.2023