sábado, 8 de abril de 2023

Grande Angular - Falta de respeito

 Dizem os dicionários que o respeito é um sentimento que leva alguém a tratar as pessoas com deferência. Uma atitude que implica que se preste atenção aos outros. O comportamento de alguém que traduza consideração por outras pessoas. A maneira como se tem sempre em conta a dignidade humana e social de qualquer pessoa. O modo como se acredita que os outros merecem a honra de ser bem tratados. O cumprimento das regras e dos códigos de conduta em sociedade.

 

Na vida política, o respeito pode traduzir-se de muitas maneiras. Na ideia de que os outros são iguais a nós e não menores ou incapazes. Na certeza de que os outros também têm opiniões válidas e diferentes das nossas. Na concepção de que os outros merecem a verdade. No modo como os políticos entendem que devem o que são aos cidadãos que os elegeram. Na capacidade de olhar para si próprio e perceber o que faz de certo e de errado. No comportamento que consiste em acatar as leis, ter em conta as tradições, seguir as regras da democracia e cumprir a palavra dada. E na prática de não enganar os seus eleitores e não ocultar factos úteis para a população.

 

As faltas a isto tudo, a estas regras e costumes, designam-se por uma expressão simples: falta de respeito. É o comportamento dominante de muitos representantes do povo, de actuais titulares do poder político, de muitos governantes, de vários dirigentes do Estado, de bastantes deputados, de múltiplos titulares de funções na justiça e nas forças armadas e de vários administradores de grandes empresas públicas. Nunca, na história recente do nosso país, o espaço público esteve, como hoje, tão desacreditado, a mentira tão frequente, o engano tão presente e a falsidade tão usada. Temos vivido semanas e meses de impostura, de verdade a prestações, de mentira pública e de ilusão dolosa. A ponto de se começar a pensar que mentir é normal e necessário, que enganar é um método de governo e que disfarçar é aceitável para as regras da democracia.

 

Volta a surgir a ideia de que aos “nossos” tudo é permitido, mentir, enganar e esconder, desde que em nome dos “nossos”, do nosso partido, do nosso governo e das nossas empresas. Inversamente, nada é tolerado aos “nossos” inimigos, acusados de todas as malfeitorias. Como os “nossos” têm razão, defendem o interesse nacional, são genuínos, protegem os seus amigos e amparam as nossas causas, não podem senão ter razão. E se por acaso, excepcionalmente, por acidente, algum dos “nossos” comete um erro que todos viram, rapidamente se encontra a desculpa e a complacência: são as circunstâncias atenuantes, as causas exteriores ou a culpa dos adversários. Em poucas palavras, a ética republicana, na sua versão actual, proclama que quem ganha tem razão, quem tem os votos, manda. Desde que seja um dos “nossos”, claro.

 

O que se passou e passa com a TAP e o Aeroporto de Lisboa, é revelador de tudo quanto acima se diz. Vimos o que por vezes é difícil imaginar. Negócios indevidos, traições, carreiras destruídas, mentiras sucessivas, desmentidos, negações, demissões forçadas, acusações infundadas e retiradas, compras e vendas de equipamento a preços duvidosos, destruição de capital e medidas contraditórias ruinosas (privatização, nacionalização e nova privatização), nada nos foi poupado. É um dos mais vergonhosos casos da democracia portuguesa. E não acabou. Ainda vai haver muita TAP para as notícias e muito Aeroporto para a crónica futura.

 

Os sectores sociais mais turbulentos, actualmente, parecem ser a educação, a saúde, a habitação e os transportes públicos. Em todos assistimos a comportamentos semelhantes. Mentiras públicas sistemáticas, desmentidos, negociações sindicais insuportáveis, greves que não são greves, prestação de declarações e de contas públicas falsas. Sucedem-se as greves e os atrasos, com enormes inconvenientes para todos. A falta de previsão foi erro comum aos governantes. A crise no Serviço Nacional de Saúde é um caso flagrante de erro de governo, de incapacidade de diagnóstico, de incompetência de gestão e de indiferença perante a população. Tal como nos transportes públicos, onde a imprevisão e a incompetência, aliadas à falta de investimento, liquidam, dia após dia, os já tão decadentes transportes urbanos e semiurbanos. 

 

A inflação, o aumento do custo de vida e os preços dos produtos de primeira necessidade atravessam igualmente período de grande instabilidade. Por isso se têm prestado a intervenções públicas, designadamente de governantes e deputados, em que se multiplicam as acusações e os bodes expiatórios, as mentiras e as falsas estatísticas. O cabaz alimentar, os apoios sociais e o IVA deram oportunidade às maiores tiradas de demagogia que se imagina. Ninguém consegue explicar as razões pelas quais um muito elevado número de alimentos tem, em Portugal, preços mais altos ou aumentos mais pronunciados do que em muitos países europeus com níveis de vida superiores ao português. 

 

O comportamento de grande número de governantes, de deputados e de dirigentes da Administração Pública, é essencialmente caracterizado pela falta de respeito pelos cidadãos. Estão absolutamente convencidos das suas verdades. Mostram-se, todos os dias, cada vez mais auto-suficientes e arrogantes. Têm mentido descaradamente, contradizem-se sem limites, tem-se negado a admitir os seus erros. Limitam-se a fazer propaganda e a anunciar medidas, todos os dias novas medidas, sem o menor pudor. Mentem sem se cansarem.

 

Dizem a verdade aos poucos, mas mentem de uma só vez. O ministro diz que não sabia, veio a saber-se que sabia. O secretário de Estado não esteve presente. Soube-se que afinal tinha escrito, tinha telefonado e tinha estado presente. Os administradores foram, mas dizem que não tinham sido chamados. Os deputados estavam ao corrente, mas diziam que não sabiam. Ninguém sabia. Ninguém esteve presente. Ninguém disse. Ninguém viu nem leu. Ninguém telefonou. Ninguém recebeu o telefonema. Ninguém concordou. Ninguém recebeu mensagens. Em poucas horas se foi sabendo que eram mentiras. Viram. Sabiam. Disseram. Entraram. Saíram. Telefonaram. Escreveram. Pagaram. Receberam. Leram. Concordaram.

 

Muitos políticos são surdos, não usam óculos, nem sequer têm espelho em casa. Perderam o sentido crítico. Perderam os remorsos e os escrúpulos. Não têm vergonha. Não respeitam a lei. Nem os eleitores.

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Público, 8.4.2023

1 comentário:

Jose disse...

«Na ideia de que os outros são iguais a nós e não menores ou incapazes.»

Haveria de explicar-se que para o político 'os outros' sempre devem ser tomados como um colectivo que, quando muito, se tem por mal representado pelo mensageiro que se apresenta como adversário.

Mas sobretudo haveria de dizer-se que ao político cabe representar ou projectar uma qualquer realidade, e não ser o mero articulador de palavras tomadas como instrumentos de luta.