domingo, 27 de março de 2022

sábado, 26 de março de 2022

Grande Angular - Uma pequenina luz bruxuleante…

 Brilhando incerta, mas brilhando. Luz que não ilumina, mas brilha! É um bom momento para pedir emprestado este verso a Jorge de Sena. Que luz é esta? O que seria? O princípio de humanidade? O sentido de solidariedade? A ideia de decência? A noção de civilização? Nestes tempos incertos, de gestos horrorosos e de feitos medonhos, essa pequena luz é a da liberdade, a que nos vai distinguir durante décadas, a que nos vai entusiasmar, a que nos permite sobreviver e ter esperança, a que vai brilhar…

O ano de 2022 será inesquecível. As gerações futuras saberão que este foi um ano especial. Um ano de esperança e de pavor. Foi o fim exacto de uma era, de uma época. Até então, pensava-se que o mundo caminhava lentamente para um universo de cooperação. Com enormes dificuldades e negras surpresas, mas a ideia de progresso parecia estar presente. Verificou-se que não. Foi neste ano que morreram esperanças, nasceram medos, se forjaram novas energias e se prepararam novos combates que se julgava desnecessários.

Na Europa, praticamente sem guerra há mais de setenta anos, tinha-se uma enorme esperança no entendimento continental e, para além disso, na convergência transcontinental. Não obstante a Chechénia e a Geórgia, mau grado a Sérvia, a Bósnia, o Kosovo e a Herzegovina, apesar disso tudo, procurava-se o equilíbrio e a coexistência continentais. Além disso, sem esquecer a Síria, o Iraque e o Afeganistão, a Europa tecia redes sólidas e aparentemente duráveis com a América, a África e a Ásia. A paz parecia instalar-se. A paz tinha uma oportunidade.

Libertada do comunismo, tal como uma mão cheia de países satélites, a Rússia parecia querer aprender os passos e os caminhos da liberdade. Apesar da corrupção, a níveis quase desconhecidos na história da humanidade, a Rússia dava sinais de que era possível criar laços permanentes de entendimento e colaboração. Os vínculos económicos, dupla e reciprocamente vantajosos, com os países ocidentais, criavam alicerces em que poderia confiar-se.

Longe, no Oriente, a China tinha-se transformado numa das maiores potências económicas e políticas mundiais. Apesar de firme ditadura política, a liberdade económica e a vida capitalista e empresarial prometiam liberdades, competição e tolerância. Mas ficavam desmentidos todos quantos pensavam que a liberdade económica exigia a liberdade política. A China conseguiu o milagre dos opostos, capitalismo e comunismo na mesma nação, no mesmo Estado. Na Austrália, a democracia fazia parte da génese continental. Outros países, no Oriente, sugeriam a ideia liberal.

Mesmo em África, o mais desolado e explorado de todos os continentes, surgiam indicações de que talvez fosse possível, um dia, a prazo, mas um dia certamente, o Estado de direito ter uma hipótese e a paz ter uma possibilidade. 

Na América Latina, apesar de desmandos populistas e de excentricidades ditatoriais, viviam-se décadas de relativa paz, de estabilidade e de duração inédita de regimes e governos.

O Próximo e o Médio Oriente eram as áreas mais problemáticas, com nações enredadas nos seus conflitos seculares, ricas de recursos, eternamente avessas à democracia, envolvidas em lutas com e por causa de potencias estrangeiras: eram as regiões que constituíam a zona mais frágil e a fonte de maior inquietação do mundo.

A globalização, sobretudo económica, comercial, financeira, mas também turística, levava a melhor por todos os cantos do mundo. Apesar da sua força destruidora, nem sempre bem-vinda, a globalização abria portas fechadas e criava oportunidades onde antes só havia rivalidades e fricção. Mais do que nunca antes, os adversários eram obrigados a chegar a acordo sobre comércio e economia.

O mundo progredia economicamente como nunca se tinha visto antes. Centenas de milhões de novos empregos, criados sobretudo na Ásia, eram a tradução de uma nova redistribuição económica.

As guerras religiosas ou de religião pareciam estar contidas e dominadas pela política e pela economia.

Ainda longe de se ter encontrado um estado satisfatório, algumas chagas indeléveis da sociedade, como a desigualdade de género, o racismo e a xenofobia, tinham conhecido décadas de melhoria e esclarecimento. Em contrapartida, a democracia parecia estar em recuo em quase todos os continentes. 

Novos problemas, de grande acuidade e urgência, tinham surgido diante de todos e eram objecto das maiores preocupações: a conservação e a renovação de recursos naturais e as alterações climáticas. Eram questões tanto ou mais graves do que as ameaças de guerra entre os Estados, mas não tinham a imediata configuração da violência e do massacre.

Neste mundo, os mais ingénuos sonhavam com certeza com a Paz perpétua e outros devaneios. Mas, com realismo, mesmo com cepticismo, era possível imaginar um mundo de aproximação, de convergência e de cooperação.

O ano de 2022 vai marcar a diferença. Ainda é cedo para conhecer o futuro imediato, muito menos os anos a seguir. Mas já sabemos que o mundo ficou diferente. Para pior. A globalização foi interrompida. A disseminação dos direitos humanos travada. A liberdade de comércio suspendida. E renasceu a ameaça nuclear, química e biológica.

A Rússia está a levar a cabo uma das mais sujas e cruéis guerras que se pode imaginar. Mesmo em situação de guerra declarada, a destruição de cidades e a agressão contra populações civis é um dos mais baixos pontos a que a humanidade chegou. Nas circunstâncias da Ucrânia, sem estado de guerra, é uma verdadeira selvajaria. A Rússia reintroduziu a força e a guerra nas relações entre Estados europeus. 

É verdade que os principais contributos da Rússia para a humanidade, nestas últimas décadas, com comunismo ou com o regime excêntrico que o substituiu, foram de guerra, de uso e abuso da força, de censura, de prisão e de liquidação dos adversários. Tanto dentro do seu território, entre os seus povos, como com os países vizinhos ou com Estados clientes em África, no Próximo Oriente e na Ásia. A Rússia acaba de alterar, por muitos anos, o clima político e económico do mundo, assim liquidando o quadro geral de paz que gradualmente se construía.

Ainda não se conhece o resultado da guerra. Mas já sabemos que a paz, a democracia e a justiça foram atacadas. Já sabemos que o progresso económico e social foi interrompido.

O cepticismo é obrigatório e de regra. Sobra-nos a “pequenina luz bruxuleante, trémula e muda, que vacila, mas brilha”! A liberdade. A ideia de liberdade. O amor pela liberdade.

Público, 26.3.2022

sábado, 19 de março de 2022

Grande Angular - Círculos do Inferno

 frase é atribuída a Dante: “Nos lugares mais quentes do Inferno, encontram-se os neutros perante uma crise”. Bela frase, bom pensamento, mas aparentemente falsa: Dante não a terá escrito. Mas a condenação moral dos neutros ficou-lhe ligada para sempre na história.

Hoje, a neutralidade toma várias formas e feitios. A da equidistância, por exemplo. A virtude estaria nessa posição rigorosamente à mesma distância de Deus e do Diabo, do Capitalismo e do Comunismo, da democracia e da ditadura. Ou então a imparcialidade, que não é bem independência, mas que é mais abstenção ou indiferença.

Apesar da voz dominante de repúdio pela invasão da Ucrânia, ouvem-se com inusitada frequência, entre analistas, jornalistas, académicos e intelectuais, afirmações de distância e afastamento. A invasão da Ucrânia é injusta? Sim, mas não se deve ignorar o que foi a invasão do Iraque. A agressão à Ucrânia é violenta? Com certeza, como o foram as do Afeganistão e da Sérvia. O massacre dos ucranianos é condenável? Talvez, mas convém não esquecer a Síria. A Rússia está a esbracejar para além das suas fronteiras? É evidente, mas é necessário recordar o cerco que a NATO vem fazendo à Rússia há mais de vinte anos. Há imagens de cidades destruídas, de hospitais arrasados e de escolas incendiadas? É visível, mas não se esqueça que há ucranianos que pegam fogo para depois atribuir as culpas à Rússia. Os Russos não brilham pela sua vocação democrática? É possível, mas há grupos de extrema-direita e de nazis que se infiltraram nas Forças Armadas ucranianas e que provocam os Russos. A Rússia tem veleidades imperialistas? É provável, mas o verdadeiro imperialismo está do lado americano, europeu e ocidental, que há décadas cerca a Rússia com a NATO.

E há ainda as culpas próprias da Europa. Comprou gás e petróleo à Rússia, dela ficando dependente. Compra-lhe cereais e minério em grandes quantidades, explorando os seus recursos. Acolheu plutocratas, magnates, bilionários e mafiosos de vária estirpe. Permitiu negócios suspeitos. Não teve defesa própria.

Em resumo e poucas palavras: a equidistância serve para isso, culpar os Estados Unidos, a Europa e a NATO. São estes os verdadeiros responsáveis e os autores em última instância da agressão russa.

Na Ucrânia, não parece haver lugar para neutralidades. Não tomar partido nem ter opinião por indiferença pelo futuro daqueles povos? É possível. Escolher por simpatia pelo imperialismo russo e antipatia pelo capitalismo americano? Também é possível. Preferir a solidariedade com os Ucranianos? É imaginável. Defender a causa da paz e da liberdade, repudiando a agressão de um poder autocrático? É igualmente possível. E não deveria custar, a cada um, definir os termos de referência e tomar o seu partido. O que não é aceitável é desculpar o agressor, porque outros também agrediram. Ignorar a violência dos russos, porque os americanos também foram. Ser complacente perante os bombardeamentos russos, porque a NATO também os terá feito. Aceitar este acto de agressão porque houve a Líbia e o Iraque é atitude comprometida. São argumentos moralmente débeis e intelectualmente frágeis. Mas funcionam tantas vezes! Os russos têm razão porque os outros fizeram igual ou pior. Os Russos têm razão porque os ocidentais fizeram o colonialismo e são racistas. Tudo serve de argumento. Ora, nada desculpa a agressão russa, nada justifica o não recurso às vias diplomáticas e políticas para resolução dos diferendos e não há violência que ajude a aceitar outra violência. Não há precedentes morais para o horror!

É verdade que a guerra das armas deu lugar à guerra da informação. Como sempre. Não falta a intoxicação. Os Russos contrataram mercenários e ex-presidiários para conquistar as cidades. Os Russos fizeram vir milicianos da Síria e do Afeganistão. Também os Ucranianos contratam nazis e criminosos milicianos do ocidente. Os Russos bombardeiam deliberadamente escolas e maternidades, hospitais e teatros para aterrorizar a população civil. Os Ucranianos mandam explodir e incendiar as suas escolas, os seus hospitais, a fim de inculpar os Russos. Tudo isto é do domínio da mera manipulação. Mas de uma coisa há a certeza: o que tem mais possibilidade de ser verdade, o que é mais verosímil é o que se diz nos países onde há liberdade de imprensa.

Como não podia deixar de ser, em tempos de crise como esta, não faltam os excessos. Do lado ocidental da Europa e do Atlântico, também já começaram a ouvir-se vozes detestáveis e a ver gestos insuportáveis. Proibir Dostoiévsky, Tólstoi, Pushkin, Gogol e Turguêneiev é absolutamente estúpido. Censurar Tchaikovski, Shostakovitch e Prokofiev é ignorante. Proibir as agências de informação e os canais de televisão russos, mesmo os que dependem do governo (todos…), é evidentemente inadmissível. Sanear directores de orquestra, cantores, instrumentistas, solistas e coristas russos é abdicar dos nossos valores e colocar o ocidente no mesmo plano que o Governo russo. Proibir os russos de passear só por serem russos é tão reaccionário e tão antidemocrático quanto fazem os russos dentro do seu país e se preparam para fazer na Ucrânia.

Expulsar artistas, engenheiros, professores e trabalhadores só por serem russos, não por terem feito contrabando de droga e de capitais, não por andarem a ameaçar “dissidentes”, nem por se terem entregue a actividades criminosas, é um gesto xenófobo, persecutório e imbecil.

É sabido que muitos russos, tal como, em seu tempo, muitos italianos, colombianos, irlandeses ou chineses se encontram envolvidos em actividades criminosas com mulheres, droga, armas, minérios raros, tecnologia sofisticada, ouro, derrube de governos e crimes de toda a espécie. Daí a dizer que todos os russos são criminosos e devem ser espiados, perseguidos, eventualmente expulsos, vai um passo fatal que não deve ser dado. Proibir, interditar ou expulsar entidades oficiais russas, sejam organizações políticas, instâncias da Administração, federações desportivas, empresas do Estado e bancos trapaceiros é outra coisa. Pode até ser aceitável e necessário. Mas é por serem criminosas. Não por serem russas.

De qualquer modo, entre mentiras e provocações, desculpas e complacência, covardia e desonestidade, uma coisa é certa: há um país agredido, dezenas de cidades a arder e milhões de pessoas a fugir. 

Público, 19.3.2022

sábado, 12 de março de 2022

Grande Angular - Fanatismo

 A Rússia sempre foi assim. Imperial e autocrata. E sempre será. Há para isso razões históricas, geográficas, económicas, étnicas, religiosas e outras. E os dirigentes russos nunca quiseram contrariá-las. Mais do que qualquer outro país europeu, a Rússia sempre viveu com tortura, escravidão, servidão e ditadura. Com este passado, a Rússia sempre foi brutalmente violenta. Tanto nos seus tempos de “esquerda” como nos de “direita”. Internamente opressiva e externamente opressora.

Poder-se-ia pensar que na Europa já não se bombardeavam bairros residenciais, escolas, hospitais, fábricas e teatros. E que já não se cometiam crimes de guerra. Quem assim pensava, desengane-se: esquecia-se da Rússia. O que esta faz na Ucrânia, agressão mais invasão mais destruição, foi o que sempre fez, tanto no estrangeiro como dentro das suas fronteiras.

Depois e apesar do Pacto entre a Alemanha nazi e a União Soviética, de 1939 a 1941, o heroísmo do Exército Vermelho, de 1941 a 1945, ficou para a história, mas só porque também a sua própria vida estava em causa. Mas ainda mais, para a crónica dos anos, ficou um dos seus perenes contributos para a história dos direitos humanos, o Gulag. Comparável ou igual, ao que dizem, ao Katorga czarista, uma rede de prisões e de estabelecimentos de trabalhos forçados que se estendia por toda a Rússia e que tinha os presos políticos como principais clientes.

Com a Rússia, não há entendimentos permanentes, nem cooperação, a não ser por necessidade, como aconteceu nos anos oitenta, quando perdeu influência no mundo, foi economicamente derrotada, foi cientificamente ultrapassada, atrasou-se militarmente e deixou fugir alguns dos seus aliados por esse mundo fora. No essencial, a Rússia tem de ser contida pela força, pela eficácia económica, pela superioridade da ciência, pela cultura e pela política. E pela lei internacional, com certeza, que a Rússia só respeita se a isso for forçada.

Esta é a Rússia que está em guerra e que invadiu a Ucrânia. Esta é a Rússia que suscita a complacência de muitas das esquerdas europeias, até de muitas direitas. E de intelectuais, universitários e jornalistas. Para muitas destas pessoas, a culpa, a responsabilidade e a autoria desta agressão, deste verdadeiro massacre, pertencem por inteiro à NATO, às democracias ocidentais, à União Europeia e sobretudo aos Estados Unidos. Assim como, evidentemente, ao capitalismo.

Os críticos da democracia chegam a afirmar solenemente que a Europa é culpada e não está à altura dos acontecimentos porque não está armada e não tem uma defesa própria! É verdadeiramente obsceno ver os que sempre recusaram que a Europa tivesse uma qualquer força militar proclamarem agora que a Europa deve abandonar a aliança com os americanos e forjar a sua própria força militar! Ou já o devia ter feito há muitos anos!

Culpar os americanos pela guerra da Ucrânia é infame. Sublinhar as responsabilidades europeias na agressão à Ucrânia é desonesto. Garantir que a invasão da Ucrânia pelos russos não é mais do que uma guerra entre os Estados Unidos ou a NATO e a Rússia, provocada pelos primeiros, é do domínio da fantasia fanática.

É extraordinário que haja quem tenha dificuldades em avaliar a acção russa (que é tipicamente a de uma agressão e de uma invasão), mas sinta necessidade de culpar e acusar o ocidente democrático, os países da NATO, a União Europeia e os Estados Unidos da América. É verdade que, para se defender, a Europa tem de se armar, organizar e libertar-se da dependência russa em energia. Mas não foi isso que provocou a agressão à Ucrânia. Só espíritos particularmente perturbados são capazes de formular a tese contrária.

E no entanto a evidência parece simples: a Europa deve ter a sua própria defesa, apoiada em forças comuns e forças nacionais, assim como deve prosseguir e reforçar a sua aliança com os americanos, mas se possível em posição de menor dependência e mais paridade. Isso custa muito caro. Seria bom que os Europeus estivessem dispostos a isso. Talvez a destruição da Ucrânia e talvez os crimes russos cometidos nestes quinze dias sejam bons argumentos para os Europeus finalmente gastarem mais com a sua defesa e a sua segurança. Sempre com uma certeza: por mais forte que seja, a Europa necessitará da sua aliança com a América. Podem rever-se os termos, os custos, os prazos e as orientações. Mas tem de haver aliança.

É estranho que tantas pessoas, que não cessaram de combater no passado qualquer ideia de defesa europeia, surjam agora a culpar a Europa (a UE e a NATO) pela invasão da Ucrânia e pelos massacres de populações civis. Mas também a considerar que uma das culpas da guerra na Ucrânia reside no facto de a Europa não ter defesa própria! Não há maior cinismo! Não há mais grosseiro oportunismo! Impressionada com a solidariedade mundial, essa gente menor procura um bode expiatório para os actos de guerra e a agressão russa. Estava mesmo a ver-se: eram os Estados Unidos e a inexistente defesa militar da Europa.

Imaginemos as várias ideias de defesa europeia. Primeira, a de exércitos europeus internacionais e transnacionais. Segunda, a coexistência de vários exércitos nacionais devidamente articulados. Terceira, uma combinação das duas anteriores. Imaginemos também que qualquer destas hipóteses pode ou não incluir os Estados Unidos. E que a aliança com os Estados Unidos, como actualmente na NATO, pode ou não coexistir com uma defesa mais europeia ou mais autónoma. De toda a maneira, estas hipóteses podem sempre entender-se com mais ou menos dependência dos Estados Unidos. Uma coisa é certa: quanto menos a Europa fizer, maior será a sua dependência americana. E a sua vulnerabilidade perante a Rússia.

Qualquer destas hipóteses, com os seus méritos e defeitos, custa muito dinheiro, exige esforços, implica constância e persistência. Qualquer destas soluções deve ser compatível com a democracia e as liberdades. Ora muito bem: os críticos da defesa militar europeia sempre condenaram estas hipóteses, sobretudo as que implicam alianças com os Estados Unidos. Já se viu o essencial: estas opiniões só parecem absurdas a quem não percebe que o que está em causa é a democracia liberal, o Estado social europeu, a União Europeia, os Estados Unidos da América, o capitalismo e a economia de mercado.

A agressão à Ucrânia é violenta e destruidora. Mas também está a refundar uma nação e a acordar um continente solidário. E a exibir os charlatães do pensamento.

Público, 12.3.2022

 

sábado, 5 de março de 2022

Grande Angular - Se…


H
á males
 que vêm por bem… Há quem diga. Mas não é verdade. Ou quase nunca é verdade. Os males vêm por mal. E mesmo que haja remédios ulteriores, mesmo que possa haver reparação e recuperações, os males feitos são males feitos. Os mortos e a destruição continuam a ser mortos e destruição. Os medos e a insegurança persistem. A dor e o sofrimento são irreversíveis. O ódio e a desconfiança dificilmente desaparecem. Das guerras de agressão e das guerras civis, para só falar das mais recentes, em Angola, Jugoslávia, Síria, Afeganistão, Chechénia, Ruanda e Serra Leoa nada veio de bom. Desta guerra na Ucrânia, deste ataque premeditado e intencional, nada virá de bom para a Europa. Mesmo se deste autêntico assalto resultaram uma impressionante manifestação de solidariedade e um sentido acrescido da necessidade de um esforço colectivo, mesmo assim, as consequências imediatas são nefastas e trágicas.

Ainda só lá vai pouco mais de uma semana, mas o inventário já é aterrador. Uma agressão não provocada e um massacre indiscriminado. Uma catástrofe económica com terríveis efeitos imediatos nos preços, no abastecimento, no emprego, na despesa social e na quebra de produção. Um pesadelo humano e social, num continente que ainda não tinha conseguido superar as consequências sociais da pandemia e que se depara agora com a mais aterradora crise económica. A destruição de um possível clima de segurança construído pacientemente, há décadas, depois dos efeitos devastadores dos fascismos, da segunda guerra e do comunismo, assim como depois de enormes e perigosos esforços de reconstrução de um mapa europeu herdeiro do fim da “cortina de ferro”, da “guerra fria” e do “muro de Berlim”. A aniquilação, por muitos anos, da esperança de paz arduamente alimentada durante décadas. Qualquer que seja a evolução próxima, uma coisa é já certa: está marcada a próxima geração de Europeus.

O pessimismo ou o cepticismo impõem-se como as atitudes mais razoáveis e mais racionais. Mas é também lícito ter alguma esperança. Ou fazer votos para que seja possível superar os efeitos desta maldita guerra. É possível sonhar com uma nova Europa. Mas só em condições de um esforço sobre-humano, de uma formidável e constante determinação.

São muitas as condições que permitirão, talvez, salvar os Europeus. Se a Europa souber tratar da sua autonomia e dos preços que há a pagar por tal, sem a crença ilusória de que, confiando noutros que cuidam de nós, nos mantemos independentes e livres.

Se a Europa e os Europeus souberem defender-se com eficácia e tratar finalmente, como raramente fizeram no passado, da sua defesa militar.

Se a Europa souber recuperar um dos seus mais valiosos trunfos, a Grã-Bretanha e se esta souber retomar o lugar que é seu, na Europa.

Se os Europeus souberem repensar as suas instituições e as suas políticas federais, combinando-as com as suas tradições nacionais, poderão talvez contrariar grande parte dos impulsos e das erupções nacionalistas que cada vez mais ameaçam uma Europa descarnada, burocrática, uniformizada e centralizada, sem valor humano e de reduzida cultura.

Se a Europa souber repensar e refazer as suas estruturas produtivas, nomeadamente industriais, investindo na ciência, na tecnologia e na produtividade e libertando-se da miragem da deslocalização do trabalho e da utilização intensiva da “fábrica China”.

Se os Europeus souberem libertar-se, embora respeitando plenamente os seus direitos à existência e à expressão, dos complexos de culpa e dos remorsos perante os comunistas de Gulag e os marxistas de boulevard.

Se a Europa e os Europeus souberem e conseguirem forjar novas politicas de imigração e demografia e novas atitudes perante os fluxos populacionais incontrolados, designadamente através do controlo dos movimentos, deslocações e de estabelecimento.

Se a Europa souber lutar eficazmente contra a corrupção, contra os políticos predadores e contra os bandidos bilionários, indígenas ou estrangeiros, que têm estado na vanguarda da pior Europa que se imagina, a que facilmente troca a moral e a lei pelo ouro.

Se a Europa e os Europeus conseguirem por uma vez libertar-se dos seus sentimentos de culpa, submissão, tentação e sedução perante o dinheiro e os poderosos.

Se a Europa e os Europeus souberem organizar-se mental e politicamente para se defender dos grandes poderes que os cercam e se podem transformar em ameaças, o poder americano, os exércitos russos, o terrorismo islâmico, a indústria chinesa e a imigração africana.

Se a Europa e os Europeus conseguirem, mau grado a renovação e a fundação da sua nova autonomia, conjugar e articular o futuro com o seu mais conhecido, mais cioso de liberdade e melhor aliado, os Estados Unidos da América.

Se os Europeus conseguirem dar corpo e solidez, realidade e instituições, às suas tradições de liberdade e de cultura assim contrariando os populismos nacionalistas de pacotilha que vivem, com oportunismo, a parasitar as debilidades da democracia.

Se os Europeus conseguirem dar novo sentido às suas tradições de cosmopolitismo, mas que não dispensa o orgulho da afirmação da sua cultura própria.

Se a Europa souber tratar de uma sua chaga indelével e crescente, a desigualdade social, que impede e enfraquece a coesão social.

Se a Europa souber respeitar o melhor da sua história, a sua cultura, e a sua melhor história, a da liberdade.

Se os Europeus souberem e quiserem, farão uma Europa. Livre e em paz.

Público, 5.3.2022