domingo, 29 de dezembro de 2019

Grande Angular - Democracia à flor da pele

tatuagem é uma forma de alteração do corpo sem utilidade médica. Outras formas incluem as escarificações (pequenas cicatrizes que provocam relevos na pele), piercings de toda a espécie (das “orelhas furadas” até intervenções em territórios inesperados…) e brandings feitos com ferro em brasa como se faz com o gado.
Muitos pensam que a tatuagem é moda recente das equipas de futebol, dos meios artísticos e dos bares da noite. Não é bem assim: as tatuagens são antiquíssimas, mais de dois ou três milhares de anos. Também se pensa que só certos grupos recorrem à tatuagem. Não é verdade: há exemplos de todos os grupos humanos, classes, religiões e as mais variadas profissões. Em cada momento, país ou comunidade, as tatuagens podem ter sido moda. Em finais do século XIX, quando as tatuagens eram sobretudo usadas por marinheiros, estivadores e reclusos, também havia nobres que, com recato, escondiam tais sinais. Os reis de Inglaterra Jorge V e Eduardo VII tinham, tal como o Kaiser Wilhelm II, o Czar Nicolau II ou o rei Afonso XIII. Mais tarde, até Winston Churchill (uma âncora de marinheiro) e a sua mãe (uma pulseira à volta do pulso) usavam. O tema já começa a ser motivo de estudo. A canónica revista “Brotéria” publicou um interessante artigo de Filipe d’Avillez que nos esclarece sobre a tatuagem na vida religiosa.
Houve tatuagens no Egipto, na Grécia, na China e entre Índios americanos. Em todos os continentes, os escravos podiam ser obrigados a usar argolas implantadas em certas partes do corpo, para já não falar dos ferros em brasa com o sinal do proprietário. Há menos de um século, os nazis alemães gravavam números nos braços dos Judeus. Há vestígios de tatuagens em todos os tempos, tribos e cultos, países e continentes. Já foram proibidas ou toleradas, elogiadas e invejadas. Hoje estão aí, em todas as classes sociais e quase todos os países.
Nas últimas décadas, as classes médias e altas apenas admitiam, publicamente, os piercings mais inofensivos, os das orelhas furadas. A partir dos anos 1960, as tatuagens começam a fazer o seu caminho. Os soldados portugueses, por exemplo, notabilizaram-se com um famoso “Amor de mãe”. Há bem pouco tempo, os tatuados eram soldados ou assassinos de certas convicções. Hoje são todos esses mais estudantes, artistas, gente bem das classes médias, celebridades da televisão e do folhetim, serviços de “escort”, profissionais da moda e da comunicação, premiados de Óscares, futebolistas milionários e bandas de música. As tatuagens alargam o seu âmbito social. Dançarinas de varão, transgressores sexuais de todas as obediências, desportistas de rugby, todos se juntam a esta fabulosa comunidade! Consta que já pelo menos uma dúzia de deputados e um ou dois governantes aderiram…
Nas vulgarmente chamadas classes médias e altas, a tatuagem espalha-se a um ritmo impressionante. Muitos gostam de mostrar que estão aí para as curvas. Como sempre, rebeldia e originalidade transformam-se em moda e depois em conformismo. O que há de mais curioso na recente moda das tatuagens é o modo de disseminação. O contágio vai de baixo para cima! Ao contrário do habitual. O chapéu, a maquilhagem, o tabaco, as drogas, o cinema, a música, os rituais gastronómicos e tantos outros comportamentos sempre se expandiram de cima para baixo, das classes altas para as médias, as pequenas burguesias, as classes trabalhadoras e rústicas, as classes desfavorecidas. Agora, em certos casos, o contágio vai das classes baixas para as altas! O ar drogado. A roupa rota. O rosto doentio. A tatuagem. E até um certo ar ordinário. Quando Versace foi assassinado, alguém referiu, no obituário, que o seu maior contributo para a moda tinha sido o de ensinar as prostitutas a vestirem-se como senhoras e as senhoras como prostitutas.
Quais as razões do êxito da tatuagem? Por que acolhem esta moda pessoas tão diversas? Espera-se pelo contributo dos antropólogos, psiquiatras e artistas que nos ajudem a perceber como a moda se difunde tão rapidamente. Por que há gente disposta a marcar na pele, com elevados dispêndios e enorme dor física, sinais perpétuos cuja eliminação futura, a ser possível, custa fortunas e provoca sofrimento? Por que motivo as pessoas se exibem desta modo? Por que se querem individualizar e acabam por ficar iguais com o golfinho, o “amor de mãe”, o coração florido?
Exibicionismo? Evidente. De si, das suas crenças e de aceitação de que é propriedade de alguém. Identidade e pertença a uma comunidade? Sim. Os mafiosos também se querem reconhecer. Como os Cruzados antigamente. Como os Yakuza japoneses, uma das piores comunidades de assassinos orgulhosamente tatuados. Individualidade? Também. Tal como a sensação ou a crença de que o que se mostra é mais importante do que o que se pensa! A convicção de que a imagem é mais importante do que o espírito.
A revolução do consumo de massas trouxe esta dimensão: a adopção pelas classes altas e médias de padrões, géneros, tiques e ícones das classes médias e baixas. E até de marginais e doentes. As classes ricas começam a apreciar os gostos e os sinais das classes populares! Calças rasgadas, roupa amarrotada e larga de mais; maquilhagem a sugerir doença, alcoolismo e consumo de droga. Parece haver um ar de aventura! Já ouvimos uma frase memorável de uma senhora das classes ricas garantir que durante as férias iam “brincar aos pobres”, porque mal se lavavam e vestiam! Já tivemos a moda das classes ilustradas descerem ao fim de semana às discotecas beberem mau álcool, frequentarem prostitutos e prostitutas, comerem pão com chouriço, “roçarem-se pelo povo” e frequentarem bares de má reputação. Povo e tavernas são “giríssimos”… 
Durante séculos, as classes viviam separadas. E separadas tinham as culturas e os modos. As classes mais baixas adoptavam comportamentos séculos depois dos mais abastados. Ou nunca, pois não viam, não sabiam. Até aos séculos XVIII e XIX, uma grande parte do povo nunca tinha visto roupas dos aristocratas, nem como se estes se mexiam e comportavam. A democracia, as eleições, os supermercados, o cinema, a televisão, as revistas e a internet mudaram isso tudo. Como dizia um professor há muitas décadas, “o espírito do capitalismo não é o de produzir meias de vidro muito caras apenas para a Rainha de Inglaterra! O espírito do capitalismo é de vender cada vez mais meias de vidro!”. 
A tatuagem é a grande vencedora da democracia, da sociedade de consumo e da igualdade!
Público, 29.12.2019

domingo, 22 de dezembro de 2019

Grande Angular - A morte da Europa

Já havia perigo nas costas do Mediterrâneo. Também, mais a Norte, na Germânia e, a Leste, nos Urais. No Atlântico, instalava-se uma inquietante distância: um estranho silêncio alternava com um ruído agoirento. Desta feita, nas praias dos mares do Norte, a Europa morreu de vez.
A má notícia chegou cem anos depois de ingleses e americanos terem salvado uma Europa exangue e setenta anos após uma segunda ressurreição da Europa, novamente às mãos de americanos e ingleses. À terceira, perante a indiferença dolosa da América, é a Grã-Bretanha que dá o golpe de misericórdia. A sua saída da Europa tem o sabor do absurdo e o ar da tragédia. E tudo isto aconteceu perante o ar aliviado de tantos europeus que estavam desejosos de ver os ingleses pelas costas.
Evidentemente, os principais responsáveis de todas as mortes foram sempre os Europeus. Os nacionalistas e os imperialistas. Os revolucionários e os bolchevistas. Os fascistas e os nazis. E outros. O que realmente muda é que, nas mortes anteriores, houve americanos e britânicos para salvar as pratas da casa. E as paredes. Desta vez, é pior. Os europeus destruíram. Os americanos ajudaram. Os britânicos confirmaram e vieram dizer a todos que é possível, que ainda pode ser pior.
A Europa perdeu a batalha das nações, sem criar um substituto que não seja a vacuidade do cosmopolitismo global. Perdeu as batalhas da tecnologia, da ciência e da cultura. É hoje raro, algures no mundo, reconhecer traços sólidos da cultura europeia, a não ser o património histórico dentro de portas. Até no continente europeu, marcas, símbolos e valores ascendentes são americanos, islâmicos, africanos e asiáticos. A Europa perdeu a batalha da defesa: se tiver de se defender, depende de outros, de americanos em particular. Desde que eles estejam dispostos, o que é cada vez menos verdade. Talvez a Europa seja ainda um farol na justiça, nos direitos humanos e na protecção social. Nem sempre. Mas talvez. Só que, para isso, é necessário ter riqueza, instituições, democracia, consensos, defesa e segurança. O que vai faltando… Os europeus sabem gastar e distribuir. Mas sabem cada vez menos criar, poupar, consolidar e desenvolver. Sem estes, aqueles não são possíveis.
É destes momentos que se faz também a história: parece que tudo conduz ao erro, os homens estão fechados num círculo de fogo e não sabem como sair. Em frente ao desastre, ninguém sabe ou quer evitá-lo! Perdeu a Europa, perdeu a Grã-Bretanha, talvez tenha perdido o mundo.
Faremos este luto durante muitos anos. A Europa perdeu o seu mais eficiente e bem equipado exército, as suas mais formidáveis universidades, os seus campos mais equilibrados e preservados, o seu mais criativo sistema financeiro e a sua cultura mais universal. O pior é que muitos europeus ficaram felizes com essas perdas!
Esta desastrada aventura apenas começou. De Norte e do Sul, do Oeste e do Leste, virão mais notícias, perturbação e fractura. Apesar de tudo, das derrotas, retiram-se lições. Desta, também.
Ficámos a saber que é possível sair pacifica e democraticamente da Europa. Que outros poderão seguir um dia. Que talvez seja possível consagrar o separatismo pacífico e democrático, na Escócia ou na Catalunha. Que talvez seja necessário rever a paz na Irlanda. Que teremos de estar preparados para os sinais de fogo da Itália, da Turquia, da Hungria e da Polónia. Temos de estar preparados para uma Europa inquieta, violenta ou vulnerável, como já quase ninguém a viu. Foram mais de setenta anos em que, sem dramas, os Europeus tiveram a impressão de que o futuro só continha boas notícias. Sete décadas de paz, em que os piores factos de violência, de Belfast a Bilbao, de Belgrado e Sarajevo, foram excepção e foram sendo resolvidos. Anos durante os quais a maior catástrofe ocorrida, a construção do Muro de Berlim, chegou a um termo pacífico. Longos anos durante os quais todos os vestígios de ditadura foram desaparecendo. Nunca a Europa tinha vivido tal! Em paz. Em liberdade, de Lisboa a Helsínquia e de Madrid a Bucareste.
Ficámos a saber que não há só nacionalistas de extrema-direita, reaccionários e fascistas. Também há nacionalistas de esquerda e comunistas. Também há nacionalistas democráticos, conservadores e liberais. Ficámos a saber que há socialistas, social-democratas e trabalhistas que não querem ou já não se interessam pela Europa. E que votar contra a Europa já não é o próprio dos extremos, dos fascistas e dos comunistas. Ficámos a saber que a virtude não está toda do lado da Europa, do cosmopolitismo e da globalização. Ficámos a saber que as liberdades têm uma geografia, que a democracia tanto pode existir no cosmopolitismo europeu como nos Estados nacionais e que o racismo e a xenofobia não são exclusivos da direita e das nações, também são crenças das esquerdas e das federações. Também ficámos a saber que o desejo de controlar as migrações e de orientar as políticas sociais não é próprio dos fascismos e da extrema-direita, é uma das mais legítimas aspirações de qualquer povo.
Poderia pensar-se que estas hipóteses, agora confirmadas, enriquecem o debate e abrem perspectivas de novas escolhas para a Europa! Mas não. O problema é que todas estas hipóteses e alternativas, democráticas ou não, são contra a Europa, apesar da Europa e fora da Europa! 
Ganhou sentido o cartaz de uma manifestação, há alguns anos, em Madrid: “Os nossos sonhos não cabem nas vossas urnas”! Ficámos a saber que a Europa estabelecida, a Europa dos Conselhos e do Parlamento, a Europa da Comissão e das Políticas comuns, já não é capaz de perceber o que querem os povos. E temos a consciência, agora, de que, sem capacidade para se auto-regenerar, a Europa abrirá as portas aos realmente anti-europeus e anti-democráticos, de esquerda e de direita. Do Oriente e do Ocidente. Nacionalistas ou não.
Gradualmente, a Europa perde os seus traços antigos: a cultura clássica helénica, o Cristianismo, o espírito do Renascimento e o iluminismo. Em troca, vai recebendo o poderio da cultura de massas americana, o irredentismo islâmico e o multiculturalismo afro-asiático. O pior é que, com tudo o que perde, a Europa também pode perder a sua diversidade nacional, a democracia e as liberdades. 
Público, 22.12.2019

domingo, 1 de dezembro de 2019

Grande Angular - O nada e o infinito

António Costa não faz a mínima ideia para onde quer levar o seu país. Sabe que quer aguentar mais quatro anos, a fim de… ganhar mais quatro! Também sabe que gostaria que Portugal conseguisse chegar a todos os lugares comuns: mais saúde, mais educação, mais pensões, mais igualdade, mais cultura e mais sossego! Belo programa! Nada se passa e tudo deve continuar. Eternamente.
Entre 1974 e 1980, os socialistas e Mário Soares souberam encontrar o ponto de encontro entre a liberdade, a democracia e a Europa. Deram um contributo valioso e inestimável. Outros ajudaram, mas o seu papel foi determinante. Depois disso, em momentos difíceis, renovaram o contributo: a integração europeia, duas crises financeiras e as revisões da Constituição que permitiram que Portugal fosse democrático. Nesta sua segunda intervenção, não esteve sozinho, estava ao lado do PSD: juntos, conseguiram o feito histórico de libertar a Constituição e de garantir a adesão à União Europeia.
A seguir, já quase sem Mário Soares, mas com Guterres, Sócrates e Costa, os socialistas despenharam papel importante, em certas circunstâncias, já sem o fulgor de outros tempos e sem o carácter decisivo do passado. Além disso, organizaram e presidiram a um dos piores ciclos da história da democracia portuguesa: os seis anos de José Sócrates detêm esse título pouco invejável. A dívida aumentou de modo catastrófico, a bancarrota instalou-se e foi necessário pedir a assistência financeira internacional. Uma grande parte das mais importantes empresas públicas foi desmantelada. A corrupção e o nepotismo atingiram graus inéditos. A liberdade de expressão esteve condicionada e os socialistas de Sócrates sonharam com a aquisição e a tutela de televisões, rádios e jornais.
É curioso que a liberdade de expressão tenha tido, ao longo das últimas décadas, uma evolução significativa. Começou por ficar refém dos revolucionários, comunistas e militares, logo a seguir ao 25 de Abril. Foi por sua causa que o PS iniciou as hostilidades contra o despotismo que se preparava e derrotou, por via de eleições, os comunistas e seus colaboradores. Durante uns anos, mau grado o excesso de Estado na comunicação social, não só havia alguma margem, mesmo reduzida, de liberdade e de pluralismo, como novos órgãos privados, jornais, rádios e televisões, iniciavam a sua vida e reforçavam a liberdade. A privatização dos órgãos estatizados completou a libertação. Novos ciclos começaram depois.
Desde então, gradualmente e por novos meios, a liberdade de expressão e o pluralismo têm vindo a conhecer o condicionamento. A publicidade privada e pública domina grande parte da liberdade. Os empregos públicos, a vontade de os ter e o receio de os perder, também. As agências de comunicação, de meios e de publicidade são hoje os verdadeiros executivos do domínio da comunicação, sendo que a última instância do poder reside nas grandes centrais: o Governo, os partidos e os grandes grupos económicos. Entre todos estes, não tenhamos dúvida, o Governo é hoje o grande timoneiro da comunicação social, isto é, o mais feroz condicionamento da liberdade de expressão.
Como nunca antes, o Governo “marca as agendas”, selecciona as notícias e os estudos, escolhe os órgãos de imprensa que fazem jeitos, paga publicidade institucional, não responde a quem procura e investiga, alimenta a maior parte das agências de comunicação que, sem o governo, pouco teriam para fazer. Os noticiários das televisões parecem feitos nos gabinetes dos ministros.
Os órgãos de informação vivem tempos difíceis, dramáticos mesmo. Não só a Internet, os telemóveis e as redes sociais os ameaçam, como a sua dependência é cada vez maior. Uns por vontade e doutrina: alguns jornalistas de esquerda silenciam quase tudo o que não convém aos seus amigos, condenam o que lhes cheira a direita ou a incomodidade. Os de direita, poucos actualmente, não se comportam de maneira muito diferente, só que argumentam quanto podem com as liberdades, dado que o governo fica à esquerda. A verdade, todavia, é que existe uma espécie de ambiente geral, de clima cultural ou de moda e espírito sempre disponíveis para agradar à esquerda, calar os defeitos, inventar conveniências e fabricar verdades, mas sobretudo condicionar e definir as agendas. Os mesmos lapsos, os mesmos erros, os mesmos defeitos, as mesmas medidas políticas, as mesmas iniciativas, as mesmas mentiras, as mesmas aldrabices e os mesmos roubos cometidos pelas direitas e pelas esquerdas têm tratamentos absolutamente diferentes. Condescendência, desculpa ou silêncio para a esquerda, crítica, intransigência e investigação para a direita. Esquecimento para a esquerda, memória para a direita. Nos tempos dos governos de Cavaco Silva não era muito diferente, só que os jornalistas se comportavam então com um pouco mais de liberdade e havia menos agências de comunicação. Os governos de Sócrates eram parecidos, só que mais brutos. Os de Costa refinam.
As ridículas campanhas anti-racistas mobilizam a imprensa e a televisão, até o Parlamento e as autarquias. As aventuras revisteiras da deputada do Livre acabam por ser viradas do avesso, como se estivessem em causa as mulheres, as negras e as deficientes, quando se trata de problemas de cismas parecidos com os dos Monty Python e dos grupelhos da “Vida de Brian”. O miserável estado em que se encontram os serviços públicos, especialmente o SNS, o Fisco, os Estrangeiros e a Segurança social, permanece quase oculto. As graves decisões sobre o novo aeroporto de Lisboa, os caminhos-de-ferro, o terminal de contentores, a nova travessia do Tejo e o terminal de Sines continuam fora do domínio público e da opinião independente.
Alguns dos protagonistas e muitos dos principais dirigentes políticos actuais, no governo, no partido e em muitas instituições públicas já o eram com José Sócrates. Não é fácil esquecer esses tempos. Não é fácil mudar de pensamento, corrigir os defeitos, olvidar ligações, omitir medidas e esconder decisões. Não é simples fazer o mesmo por outros meios ou tentar fazer legalmente o que sempre se fez na ilegalidade. A única maneira de manter a impunidade de quem serviu Sócrates e agora serve Costa, de quem se serviu e agora pretende que tal não se veja, consiste em condicionar a liberdade de expressão. Pena é que haja tanta gente disponível para esta ingrata missão. E pena é que não haja oposição. Nem de direita, nem de esquerda.
Público, 1.12.2019

domingo, 24 de novembro de 2019

Grande Angular - Proximidade democrática

A ideia de que a democracia é um antídoto eficaz contra as aventuras antidemocráticas, sejam elas populistas, fascistas ou comunistas, tem-se revelado infelizmente pouco segura e até, por vezes, errada. Ou antes, a democracia é insuficiente para assegurar a democracia e pode mesmo, em processo demagógico, transformar-se em instrumento de ratificação de déspotas. Aliás, os verdadeiros ditadores deste mundo quiseram sempre, um dia, levar a cabo processos eleitorais de fantasia e nunca lhes faltou atrevimento para anunciar vitórias a 90% ou 95%. Todos os ditadores comunistas mandaram fabricar eleições. E Franco e Salazar também não resistiram às tentações eleitorais.
Mas o problema não é só esse. As farsas eleitorais para confirmar os ditadores são de tal modo grosseiras que já não enganam ninguém. A questão mais delicada é a das eleições genuínas, por vezes até honestas, de que resultam ditadores, psicopatas narcisistas e déspotas demagogos imprevisíveis. Na verdade, alguns dos mais ameaçadores dirigentes populistas e não democráticos ou mesmo anti-democráticos contemporâneos foram eleitos pelos cidadãos. Uns tantos foram confirmados e reeleitos, até em processos eleitorais vagamente supervisionados. Noriega, Chavez, Morales, Ortega e Maduro foram eleitos. Trump e Putin eleitos foram. Orbán, Erdogan, Salvini e Kascinscki devem à democracia eleitoral os seus cargos. Bolsonaro e Duterte cumpriram, para ascender à presidência dos seus países, as regras dos processos eleitorais. E não é muito difícil pensar em chefes políticos que, sem serem ditadores, se aproximaram muito de demagogos oportunistas, a quem a democracia nada deve, mas que pela democracia foram ungidos para o exercício do seu espalhafatoso poder político: Fujimori, Berlusconi, Sócrates e Lula, tão diferentes, são bons exemplos.
É verdade que há exemplos de derrotas de populismos e de ditaduras às mãos dos democratas e através de eleições. O caso português, o do 25 de Abril e da revolução que se seguiu, é o melhor exemplo. Vencidos no Estado, nas empresas e nos sindicatos, nas instituições e nas autarquias, nas forças militares e nas polícias, os democratas confiaram nas eleições e acertaram: revolucionários, civis e militares, comunistas e outros aventureiros foram derrotados nas eleições e de tal modo destroçados que nunca mais voltaram, quarenta anos depois, a constituir verdadeira ameaça às liberdades.
Mais do que nunca, vivemos tempos difíceis para as liberdades e a democracia. Habituámo-nos a recear os despotismos e as ditaduras vindos de fora da democracia, por vias da conquista ou graças ao declínio democrático, como dizia Ignazio Silone (“As democracias caem por dentro…”). Os grandes ditadores que tinham conquistado o poder fizeram-no em geral por assalto. O que nos deixava tranquilos, se assim se pode dizer. Bastava proteger a democracia dos seus inimigos externos. Agora que percebemos que as democracias também produzem os seus ditadores, déspotas, líderes irracionais, aldrabões e predadores, a democracia deixou de ser suficiente.
Também se tem pensado que a “proximidade” é uma verdadeira panaceia. Saúde, educação, polícia, segurança, justiça e política: de tudo, de todas as áreas da governação e da administração se diz que a “proximidade” é uma virtude, um trunfo democrático, uma garantia das liberdades e uma certeza da humanização. Nada mais errado. A “proximidade”, com todas as suas virtudes, é quase regra para o populismo e para os déspotas que não acreditam nas instituições. O populismo irascível, quase violento, geralmente impaciente, não acompanha a distância, mas sim a proximidade. A proximidade cria familiaridade e esta permite todas as formas de tratamento, todos os atrevimentos. Castro e Péron sabiam bem ao que andavam.
Os grandes demagogos sabem que é a proximidade que lhes traz vantagens. São excelentes a explorar a insatisfação das promessas não cumpridas pela democracia e pelos partidos clássicos. São também excelentes a fazer as suas próprias promessas, sobretudo as impossíveis de cumprir. Procuram sempre a proximidade, o contacto directo com as massas, as pessoas, o povo, porque é assim que se dá o salto por cima das instituições. Os demagogos são excelentes nas manifestações sem partido nem sindicato, nos movimentos sem estrutura nem organização. Até porque sabem que esses movimentos e essas manifestações têm origens, têm causas: o falhanço da democracia, os privilégios da democracia, o não cumprimento de promessas e a mentira das democracias.
A proximidade é uma ilusão perigosa. Em Portugal, os políticos mais próximos do povo foram Vasco Gonçalves, Sá Carneiro, Mário Soares, José Sócrates e António Costa. Pouco ou nada de comum entre eles. E não foi com certeza a proximidade que lhes trouxe êxitos e garantiu justeza aos seus governos. Não é evidente que Costa e os seus ministros são os políticos mais próximos do povo, que mais frequentemente aparecem nos comícios de sexta-feira, nas inaugurações de sábado e nas sessões de esclarecimento de domingo? Não é cristalinamente exacto que Marcelo é de longe o Presidente mais próximo do povo e dos eleitores, da televisão, dos telejornais e dos corações dos Portugueses?
A proximidade é efémera, falsa, fictícia e ilusória. A transparência é mítica, aparente e falaciosa. A política que está em crise é a política demagógica e mentirosa. A que promete e negoceia tudo. A que dá tudo até ao endividamento. A que beneficia quem chega primeiro, quem tem amigos do sindicato, na confederação ou no partido. A que privilegia quem dá mais votos, os funcionários públicos ou os pensionistas, por exemplo. A que traça bissectrizes entre os lóbis. A que se limita a ser o lugar geométrico dos interesses e das corporações. A que se desdiz com naturalidade e talento. A que mente com atrevimento e encanto. A que deixa arrastar uma justiça incapaz, mas inaugura auto-estradas. A que permite o declínio do serviço nacional de saúde, mas subsidia a Web e os jogos digitais. A que deixa aumentar a desigualdade no sistema universitário e recompensa os ricos. A que procura subsidiar os mais pobres, mas não se importa com o demérito nem a falta de esforço. A que exige frugalidade dos trabalhadores do sector privado, mas privilegia os funcionários públicos.
Salvar a democracia obriga a ser muito exigente com a democracia. Preservar a democracia obriga-nos a ser impiedosos, não com os demagogos, o que é fácil, não com os populistas, o que é simples, mas com os democratas.
Público, 24.11.2019

domingo, 17 de novembro de 2019

Grande Angular - Imigrantes

Já se percebeu que a imigração (incluindo todos os tipos possíveis: trabalhadores legais e ilegais, familiares de residentes, europeus, africanos, asiáticos, permanentes e temporários, refugiados e perseguidos) é um dos mais complexos factores de instabilidade na Europa, um dos mais sérios perigos para a paz e a estabilidade europeias e uma ameaça para a cultura e o desenvolvimento. Seja pelo que a imigração, em certas condições, pode trazer consigo. Seja pelas reacções de tantos europeus contra a imigração. Nenhum país europeu tem actualmente uma política mais ou menos consensual (pelo menos clara, durável e maioritária) relativamente à imigração, nem os países europeus se conseguem entender entre si para uma política comum. A imigração é um dos grandes factores de divisão nacional e da Europa.
A imigração em Portugal tem sido objecto de debates esporádicos, mas de conclusões erráticas, geralmente dominadas pelas questões políticas e europeias. Verdade é que Portugal não se pode orgulhar de ter uma política de imigração conhecida e estável. Navega ao sabor das primeiras páginas e das emoções das fotografias publicadas. Acompanhamos à distância o que se passa no Mediterrâneo (onde a Marinha portuguesa colabora com eficiência no patrulhamento daquele mar e no resgate de náufragos), sabemos das questões políticas que aquecem a Itália, a França, a Turquia e a Hungria e pouco mais. O país vai recebendo africanos e brasileiros, indianos e nepaleses, romenos e ucranianos, em quantidades incertas, em condições ainda mais confusas e com legalidade muito relativa.
Os últimos meses têm sido férteis em notícias demográficas. Ficámos a saber que a população portuguesa está a diminuir (além de envelhecer muito depressa). Que dentro de poucos anos voltaremos a ser menos de 10 milhões. Que o saldo natural (nascimentos menos óbitos) é negativo. Que a natalidade é muito baixa. Que o saldo migratório é positivo (entram mais imigrantes do que saem emigrantes). Que aumenta o número de estrangeiros que se naturalizam. E que continua elevado o número de emigrantes portugueses para o estrangeiro.
Há hoje, como revelam o Eurostat, o INE e o El Pais, suficiente evidência dos efeitos positivos da imigração para os países de acolhimento. A renovação demográfica contribui para o rejuvenescimento da população. A variedade da mestiçagem é um elemento positivo para a abertura das sociedades. A imigração está directamente ligada ao desenvolvimento social e económico e contribui para o aumento da produção, do rendimento e do crescimento, assim como para o reforço da segurança social.
Há estatísticas suficientes em toda a Europa que mostram como os imigrantes, em geral, deram um enorme contributo para o crescimento económico. Sem eles, muitos dos países europeus teriam crescido, desde os anos 1980, menos 20% a 30% do que realmente cresceram.
Há também, para os países de acolhimento, sinais de efeitos negativos da imigração. Agrava o descontrolo dos movimentos de população. Está muito ligada ao tráfico de mão-de-obra. Permite com frequência uma excessiva exploração salarial e laboral. Provoca reacções de recusa, assim como estimula o preconceito e o racismo de ambos os lados. É fonte de conflitos étnicos e religiosos. Favorece a coexistência conflituosa de dois ordenamentos jurídicos ou de duas legalidades rivais. Permite facilmente a criação de verdadeiros guetos. Encoraja o confronto violento de costumes contraditórios.
Há ainda experiência indiscutível noutros domínios. Os imigrantes, em Portugal e em toda a Europa, têm piores empregos, mais baixos salários, são mais precários, têm piores apartamentos e habitações, têm mais desemprego, menor formação profissional, menos educação e serviços de saúde em piores condições.
Necessitamos da imigração. É bom para renovar a população. Cultiva a mestiçagem, que é o nosso futuro, tal como afirmava De Gaulle. É bom para a variedade, a cultura e a economia. É bom para os direitos humanos e para a solidariedade. Nós ganhamos com a imigração. “Nós” somos os Europeus de origem ou naturalizados, de todas as cores, de várias crenças, residentes, eleitores e contribuintes. Há dados em toda a Europa que sustentam que os imigrantes não ficam com os “nossos” apartamentos, não casam com as “nossas” mulheres, não se apropriam dos melhores empregos, não têm mais subsídios sociais, não gastam em bares da noite os subsídios de desemprego…
Tudo leva a crer que, para evitar problemas graves, seja necessário controlar, tanto quanto possível, os fluxos migratórios; estabelecer quotas indicativas de imigrantes, segundo as origens e as profissões; ser extremamente firme na repressão à imigração ilegal e só tolerar a legal; castigar severamente todas as redes de tráfico de trabalhadores; reduzir à verdade a noção de refugiado político.
Parece impor-se a recusa da política de portas abertas, receita para enormes desastres políticos, como se vê em vários países europeus. Assim como a recusa da política da fortaleza fechada, prejudicial para a demografia, a economia, a cultura e os valores da liberdade.
Tentar controlar a imigração e manter a sua legalidade são acções das autoridades. Mas importa também, evidentemente, que as sociedades consigam contrariar a importação dos valores da violência e do fanatismo religioso, que se contam entre as piores ameaças da liberdade. O que significa também não importar o machismo, a submissão da mulher, o tráfico de mulheres menores e de crianças, a venda de mulheres e de jovens, o casamento compulsivo, o poder paternal com direito a uso de violência, a pena de morte, as penas de apedrejamento e amputação, os castigos públicos, as decapitações sumárias, a excisão, a infibulação, todas as formas de mutilação ritual, a escravatura sexual, o tráfico de prostitutas… 
Será Portugal, serão os países europeus e será a Europa capazes de evitar o fanatismo dos defensores da imigração e a intolerância dos inimigos dos imigrantes? Verdade é que já há no mundo democracias ameaçadas ou suspensas nas quais a questão das migrações é central. Não faltam a violência e os muros. Não é só entre os Estados Unidos e o México, entre Israel e a Cisjordânia, entre a Hungria e a Sérvia ou entre a Macedónia e a Grécia. É também na Polónia, na França, na Itália, na Turquia, na Rússia, no Brasil ou na Colômbia. Se não nos adiantamos, chegará também, um dia, a nossa vez!
Público, 17.11.2019

domingo, 10 de novembro de 2019

Grande Angular - Um Aeroporto e suas obras

As grandes obras são o “filet mignon” de certas políticas: a dos interesses e a que se julga acima da ciência. As grandes obras e os grandes equipamentos são em geral as jóias da coroa dos poderes autocráticos. Hitler, Estaline, Mao, Mussolini e até Franco e Salazar viviam momentos de rara volúpia diante das suas barragens e dos seus estádios. Eram deles os palácios da justiça, da cultura, dos trabalhadores ou do povo! E até democratas como Roosevelt e Mitterrand não deixaram de se sentir tentados pela epopeia da “obra pública”.
Na verdade, barragens, portos, linhas de caminho-de-ferro, aeroportos e redes de telecomunicações, de energia e de água, assim como aquisições especiais de fragatas, submarinos, aviões e locomotivas, são investimentos e obras que valem milhares de votos e milhões de euros. São obras que condicionam a economia e a sociedade durante décadas. Que criam emprego em quantidades inacreditáveis. Que dão lucros em volumes impensáveis. Que oferecem oportunidades para cunhas, empenhos, luvas, comissões e corrupção em valor inimaginável. As grandes obras condicionam a sociedade e a economia por largos anos: qualquer erro paga-se muito caro e pode ter consequências negativas nas vidas das pessoas e no endividamento de um país!
Um aeroporto novo de raiz, como o de Alcochete, ou grande desenvolvimento de estrutura anterior, como o de Montijo, têm profundos efeitos a longo prazo no futuro das populações, das áreas afectadas e até do país: pontes, viadutos, auto-estradas, linhas de comboio e de metropolitano, estruturas de cargas e descargas, oficinas de reparação e manutenção, instalações de serviços de grande porte, escritórios, hotelaria, segurança, estacionamentos, abastecimento, alimentação, etc. Um nunca mais acabar, com milhares de expropriações, muitos milhões na aquisição de terrenos, licenças de construção e urbanização e autorizações para edificação. Um aeroporto é uma cidade que condiciona as outras cidades, que determina uma parte do crescimento futuro, que tem efeitos negativos e positivos para milhões de pessoas e dezenas de anos! Percebe-se que são decisões difíceis e complexas, sem perfeição absoluta e que necessitam de muito estudo e muita inteligência! Mas não são estes factos ou estas exigências que justificam que uma decisão demore mais de cinquenta anos e que mude de local escolhido quatro vezes, como é o caso do futuro aeroporto de Lisboa!
Acrescente-se que, nos tempos contemporâneos, estas decisões são ainda mais difíceis. A democracia dá voz a toda a gente e a todas as opiniões, legítimas e ilegítimas, sérias e fantasiosas. Surgem todos os dias novos problemas, sobretudo os relativos à qualidade de vida, à ecologia e às alterações climáticas. Há seguramente contradições fundamentais entre criação de emprego, adequação do investimento público, oportunidades para investimento privado, segurança dos cidadãos, poluição sonora e do ar, destruição da flora e da fauna e desenvolvimento da economia em geral e do turismo em particular. Mas sabemos que não há decisões perfeitas e que um aeroporto terá sempre amigos, inimigos e adversários. Como tudo na vida.
Em democracia, não há aeroporto sem polémicas, interesses, lutas, protestos, devaneios tecnológicos, ameaças ambientalistas e horrores ecológicos. Não é difícil encontrar quem pense que os voos e os aviões têm os dias contados, que as pessoas não deveriam viajar e que o turismo necessita de um “numerus clausus”. Todos conhecemos quem entenda que deveríamos eliminar a poluição sonora, sobretudo a que resulta do sobrevoo de cidades e de zonas de habitação. Ainda recordamos batalhas e controvérsias em Heathrow, Frankfurt, Berlim ou Paris. Nos Estados Unidos, no Japão e no Brasil.
Mas em quase todas as controvérsias houve sempre ou quase sempre um momento em que os ânimos acalmaram, que se introduziu alguma racionalidade e se fizeram correcções aos projectos iniciais. E que se tomaram decisões e se fez obra. Foi nesses momentos que se sentiu que havia centros de competência e racionalidade, grupos de pessoas qualificadas e interessadas, empresas ou associações ou universidades isentas e independentes. Foi nesses momentos que se sentiu que, além dos trafulhas habituais, mau grado os pesos pesados dos interesses e do produto, havia também gente honesta e preparada!
Lamento dizer, mas, em Portugal e para o novo aeroporto de Lisboa, temos tudo, menos isso, honestidade e competência, isenção e independência. Se existem essas qualidades, não as vemos ou foram silenciadas. Ou a essas o governo não recorre.
O Estado continua a revelar a sua falta de capacidades intelectuais, técnicas e científicas, assim como a ausência de “ethos” isento e independente. Em tudo o que cheire a grande obra, o Estado aparece sempre e cada vez mais capturado, impotente e incompetente… 
Foi este Estado que, durante décadas e alternadamente, hesitou e decidiu, eliminou e escolheu Ota, Rio Frio, Alcochete e Montijo. Mas também Alverca e Sintra. E já agora Monte Real e Beja. Foi o Estado português, sucessivamente salazarista, marcelista, gonçalvista e democrático que, desde os anos sessenta, isto é, há cinquenta anos, vem pensando em construir um aeroporto desde sempre considerado urgente! E muda de opinião com a firmeza dos ignorantes e a certeza dos interesses. A perde de capacidade científica independente do Estado é uma das mais graves falhas das últimas décadas.
É frequente encontrarmos as mesmas pessoas, as mesmas universidades, as mesmas empresas, os mesmos bancos, os mesmos promotores e os mesmos especialistas em vários projectos e várias soluções. Há ministros e secretários de Estado que estavam em funções quando foram tomadas duas ou mesmo três decisões contraditórias. Também se conhecem profissionais, engenheiros, economistas, consultores e construtores que apoiaram decisões opostas, talvez até com os mesmos argumentos!
As esquerdas, auto-suficientes, exauriram o Estado competente, técnico e inteligente, para o transformar em agente político e já agora em sua coutada. As direitas, cúpidas, esvaziaram o Estado sabedor, capaz e independente, para entregar poderes e competências aos negócios e aos privados. O Estado, hoje, é alfobre de negócios, tapada dos partidos, autoritário como os ignorantes, convencido como os déspotas! E ao serviço da política mais barata, a dos interesses. Bonito serviço!
Público, 10.11.2019

domingo, 3 de novembro de 2019

Grande Angular - Famílias há muitas!

Durante a campanha eleitoral, um termo foi frequentemente utilizado, sempre em bom-tom e recolhendo os favores dos candidatos: família! Toda a gente se revê nela e reclama uma “política”. O problema curioso é que, conforme as pessoas e os partidos, se fala de coisas diferentes e de conceitos diversos. Dado que o assunto é delicado, todos preferem não qualificar. E assim se deixa correr o conceito mais vulgar, o de família nuclear clássica, cristã, legal, com coabitação de pais e filhos, por vezes uma terceira geração.
A popularidade do divórcio, a partir dos anos setenta, assim como o desenvolvimento de todas as formas de união, registadas ou não, com e sem coabitação, criaram situações que nos obrigam a ter cuidado quando falamos de famílias. Sobretudo na política, pois isso implica logo direitos e deveres, estatutos e impostos.
Um retrato muito rápido dá o seguinte. A população portuguesa está a diminuir. O crescimento natural cessou, depois estagnou e agora está em recuo. Os óbitos são mais do que os nascimentos. O saldo migratório é também negativo, isto é, mais emigrantes portugueses do que imigrantes estrangeiros. Vivemos, na década presente, um período complexo com os dois saldos negativos, o natural e o migratório.
A sociedade portuguesa envelhece. Por cada 100 jovens, já há 150 idosos! Em si, o envelhecimento é boa notícia, dado que significa saúde, água potável e melhor alimentação. Ao contrário do que se diz, envelhecer não é um problema, problema é a baixa natalidade! Ou morrer cedo! A má notícia é que o envelhecimento foi rápido de mais e Portugal tem uma das populações mais idosas do mundo. Ora, a sociedade parece não estar preparada para esse envelhecimento rápido: a idade de reforma, as pensões, os serviços de apoio, o envelhecimento activo, o acolhimento hospitalar e muitas outras realidades não estão preparadas.
Nesta situação demográfica, as famílias evoluíram. A dimensão diminuiu: 2,5 pessoas por família reduzida a duas gerações. A média do número de filhos é de menos de um por família! Aumentaram as famílias de uma só pessoa (perto de 1 milhão). Os casamentos católicos são hoje a minoria, foram superados pelos casamentos civis. E as uniões de facto ultrapassaram os casamentos. Os divórcios explodiram: quase 7 por cada 10 casamentos. Os filhos dentro do casamento foram superados pelos fora do casamento. Estes são 60% do total, dos quais um terço de mãe sozinha. A fecundidade fica-se por pouco mais de um filho por mulher em idade fértil, abaixo do patamar mínimo para que uma população se reproduza. Das 87 000 crianças nascidas num ano, apenas 37 000 nasceram de pai e mãe casados.
Em Portugal, haverá pouco mais de 4 milhões de famílias. Um milhão tem uma só pessoa. Um milhão de casais não tem filhos. Um milhão e meio são casais com filhos. E 500 000 são famílias monoparentais, isto é, quase sempre uma mãe com filhos. A dimensão média de uma família é de 2,5 pessoas. Com 6 pessoas ou mais, apenas existem 2%.
Por ano, efectuam-se cerca de 35 000 casamentos, dos quais quase mil entre pessoas do mesmo sexo. De todos os casamentos, apenas 11 000 são católicos. Mais de dois terços dos casamentos efectuados são apenas civis. Um quarto do total é de segundos casamentos. Cerca de um milhão de pessoas vive em “união de facto”, com ou sem coabitação. Ao mesmo tempo, realizam-se por ano 23 000 divórcios, o que faz com que haja 70 divórcios por 100 casamentos. Deste total, mais de metade é de pessoas que se tinham previamente casado pela Igreja.
Convém sublinhar vários factos. A mulher emancipa-se. O pai e a mãe estão ambos activos com emprego e em geral fora de casa. A escolaridade universal de 12 anos retira as crianças e os adolescentes de casa e do trabalho. Os pais têm cada vez menos interesse e tempo para a educação dos filhos, deixando às escolas esse papel de socialização. As famílias abandonaram as actividades agrícolas e industriais de proximidade e de comunidade, dedicam-se aos serviços, quase por definição dispersos. As famílias têm como concorrentes fortíssimos dispositivos: a escola, os professores, a televisão (cada vez menos), os computadores (cada vez mais), as máquinas de comunicação, as redes sociais e os grupos informais de jovens.
Muitas famílias refizeram-se de acordo com as migrações. Chegaram 150 000 famílias de origem estrangeira. Desenvolveu-se o pluralismo étnico, religioso e de costumes. A sociedade portuguesa ficou plural, a miscigenação desenvolveu-se pouco, mas a coexistência e a variedade sim. Dentro das famílias, as estruturas de poder e comportamento alteraram-se profundamente e, para o melhor e o pior, a “cultura jovem” condiciona o comportamento de toda a família.
As chamadas “novas famílias” abrangem realidades muito diferentes. Com e sem casamento. Com e sem filhos de um, dois ou mais casamentos. Uniões de facto com e sem coabitação. Monoparentais. Segundos e terceiros casamentos. Filhos de pais e mães diferentes. Sem coabitação necessária. Comunidades de residência com ou sem família. Do mesmo género masculino ou feminino, com ou sem casamento. Famílias de escolha e género de escolha. De várias religiões. Com e sem vínculo religioso. Famílias que se formam com novas formas e regras: pessoas do mesmo género, adopção como regra e várias formas de fecundação. Famílias de escolha e famílias sem relações de consanguinidade.
Toda esta variedade gera conceitos diversificados de chefe de família, de poder paternal, de cabeça de casal, de autoridade sobre os filhos, de papel na religião e na educação e de lugar dos anciãos. Também surgem conceitos diversos de ordem moral e jurídica, tais como os poderes de representar, de assumir a responsabilidade civil, de legar, de definir as profissões e de contratar os casamentos dos filhos. Sem falar nos hábitos e nos direitos de monogamia e poligamia.
Como sempre na história, a família está crise de mudança e transformação. Mas o mais interessante é a multiplicação de modelos de família, com implicações morais, religiosas, culturais, sociais e jurídicas. A variedade e o pluralismo podem ser sinais de progresso. Mas até onde pode ir a diversificação? Até à coexistência de várias religiões? Parece que sim. Vários costumes? Não há muitas dúvidas. Várias morais? Começa a ser complexo. Várias leis ou vários ordenamentos jurídicos? Aí já parece difícil. E, creio, impossível.
Público, 3.11.2019

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Grande Angular - O perdão e o remorso

A moção aprovada há dias pelo Parlamento Europeu e apenas contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo, condena um e outro, quase os equipara, de ambos diz que massacraram milhões, o que é verdade, mas cuja equiparação é absolutamente inútil e patética. Sabe-se hoje que, sem contar as vítimas da guerra, o Nazismo alemão causou a morte de dez milhões de pessoas e o comunismo russo perto de vinte. Fazer um “ranking” destas mortandades é ridículo. Estabelecer qual deles é pior é obtuso. Ambos são hediondos, ponto final. Equipará-los é inculto. São muito diferentes nos seus propósitos, mas são ambos medonhos nos meios e nos resultados. Declarar que o capitalismo é muito pior, pois desde há trezentos anos já morreram, nas fábricas e na guerra, com a indústria e a escravatura, muitas centenas de milhões de pessoas, é ignorante. E também não nos ajuda a compreender o mundo, mas tão só a odiá-lo e a descrer da humanidade. Anunciar que são iguais é tão idiota quanto afirmar que são radicalmente diferentes.
Julgar e condenar ou absolver a história parece inútil. Mas não é. Há sempre uma “agenda oculta” e um propósito implícito. Aqueles que, hoje, em Portugal e no mundo, lutam para culpar os homens, os brancos, os adultos, os ocidentais, os cristãos, os ricos, os heterossexuais, os democratas, os capitalistas e os militares estão evidentemente a tentar criar uma ortodoxia, uma cultura predominante e, sobretudo, a construir um “credo” que permita condenar e proibir, assim como limitar a liberdade de expressão. Fazem-no com a mesma intolerância e o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam.
Julgar a história, condenar o passado e condicionar o pensamento: eis três objectivos dos virtuosos do presente. A discussão sobre o alegado Museu Salazar foi, à nossa escala, um tema que permitiu exibir os mesmos reflexos condicionados. As polémicas à volta do Museu dos Descobrimentos tiveram o mesmo sentido. Curiosamente, nestes dois casos, tal como no resto do mundo e para outras matérias, os intolerantes estão a levar a melhor.
Decretar que não houve massacre de Arménios perpetrado por Turcos, proibir que se diga que o Holocausto não foi assim tão mau como dizem, culpar os Judeus pela morte de Jesus Cristo, garantir que não houve na Polónia massacres de comunistas e de Judeus e negar que tenha existido o Gulag na União Soviética são gestos prepotentes, mas muito em voga. Proibir o estudo de Darwin revela estupidez, mas é o que se faz em várias latitudes. Substituir o estudo, o debate público e a liberdade de expressão pelo decreto-lei é atitude hoje louvada por muitos, sempre com intuito oportunista de estabelecimento de um poder autoritário.
Ao mesmo tempo que os decretos que definem o que foi e não foi na história, surgiu também, nas últimas décadas, o imperativo do pedido de perdão. Pessoas, povos, Estados, políticos e Igrejas pedem perdão. Pedem perdão por todos os males e por factos de há dez, cem ou mil anos. Reinterpretam a história, inventam culpados, identificam os maus e as vítimas e pedem perdão a quem lhes convém.
Papas já pediram perdão aos Judeus. Alemães também, mas por outras razões. Muitos europeus pediram perdão aos árabes, aos muçulmanos e aos negros pelo colonialismo e pela escravatura. Americanos pediram perdão aos Índios. Espanhóis pediram perdão aos Incas, aos Azetecas e aos Maias. Portugueses ainda não pediram perdão aos Africanos, aos Indianos e aos Índios, mas vai acontecer em breve. Já houve Portugueses que pediram perdão aos Judeus. Franceses pedem perdão aos africanos, aos árabes e aos vietnamitas. Há Ingleses que se preparam para pedir perdão ao mundo inteiro, dos Índios aos Indianos, dos Negros aos Muçulmanos.
Já se pede perdão aos negros pela escravatura, aos índios pela conquista, aos indianos pelas descobertas, aos chineses pelas guerras, aos mouros pelas expulsões e aos árabes pelos massacres. E também está nas cartas que se vai pedir perdão aos republicanos pela monarquia e aos socialistas e comunistas pelo Estado Novo.
Por que diabo hei-de pedir perdão aos escravos, aos Índios, aos Indianos, aos Egípcios, aos Judeus e aos Mouros? É que se as culpas não forem minhas, são objectivas e históricas. Se não foste tu, foram os teus avós. Ou tetravós. Se não foste tu, foram os cristãos. Ou os brancos. Ou os Portugueses. Ou os europeus. Ou quem quer que seja. Mas de uma coisa podes estar seguro: és culpado, deves ter remorsos, tens de pedir perdão e, eventualmente, pagar reparações, conceder privilégios, bater no peito, deixar passar à frente e recolher-te à tua insignificância dado que alguém, algures e em qualquer tempo, maltratou, roubou, oprimiu e torturou. Evidentemente, as culpas têm momentos históricos e objectos precisos. Hoje, por exemplo, pedir-se-á perdão aos negros africanos e aos muçulmanos (desde que não sejam ricos…), mas não aos retornados, aos repatriados, aos frades, aos monges, aos aristocratas e aos proprietários.
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda. Vai ser difícil afastar esta praga: estabelecida uma ortodoxia do pensamento, dura sempre anos. Pena é que o pluralismo e a liberdade fiquem a perder. Mas ganha a moda que é a de pedir perdão pelo que outros fizeram. Pedir perdão pelo que antepassados, não importa quão remotos, fizeram ou beneficiaram com o mal e o sofrimento de outros. Pedir perdão a escravos que serviram mestres, a negros usados pelos brancos, a soldados que obedeceram a oficiais, a trabalhadores explorados por patrões, a mulheres batidas pelos homens, a jovens frustrados por adultos, a judeus queimados por arianos, a árabes humilhados pelos cristãos, a alunos dominados por professores…
Aos espíritos intolerantes não interessa saber que a culpa, o castigo e o perdão se dirigem aos indivíduos, por vezes associações ou grupos, nunca povos ou etnias.
Fernão Lopes garante que Álvaro Pais disse ao Mestre de Avis que uma das receitas para se ser rei e exercer o poder consistia em “perdoar a quem nunca te fez mal”! Esta agora é uma nova versão: “peço perdão a quem nunca fiz mal”! 
Público, 27.10.2019

domingo, 20 de outubro de 2019

Grande Angular - Bom dia, Governo novo!

Por António Barreto
novo governo merece votos de boa sorte. Se as coisas correrem bem para ele, é provável que também corram bem para nós. Nem sempre é assim, já vimos governos fazer o que deve ser feito e ninguém lhes agradecer. E também já vimos os que não fizeram o que deviam ter feito e, mesmo assim, foram recompensados com votos ou benevolência. Os povos são ingratos e os governos também.
O governo velho, o que agora acaba, orientou-se, com sorte e habilidade, por princípios simples: a capacidade de negociação, a estabilidade e a duração. Conseguiu. Também adoptou ideias e valores de enorme simplicidade: ter as contas certas, manter uma firme política de contenção financeira, devolver e distribuir rendimentos. Deu resultados. Achou por bem seguir a onda e os ventos europeus, sem invenções nem projectos esquisitos. Teve êxito.
Para o governo novo, quase igual ao velho, não se sabe ainda o que António Costa nos reserva. Não é possível continuar a tratar só da duração e da estabilidade, pois nada será como dantes. É pena, aliás, que o Primeiro-ministro não tenha querido estabelecer uma qualquer base sólida (acordo, contrato, aliança ou coligação…) para o governo e a legislatura. Teria assim podido ocupar-se mais do conteúdo e dos objectivos e menos das habilidades e dos adjectivos. É possível que, no discurso de posse, na primeira ida ao Parlamento e noutra qualquer oportunidade, ele nos revele finalmente o sentido principal que pretende dar ao seu governo e ao seu mandato. Talvez tenhamos, como é costume, uma enumeração de prioridades, às dúzias, incapazes de definir uma ideia ou um destino. Mas não parece provável que apenas deseje repetir o primeiro acto, devolver, ceder e negociar, com um único objectivo, o de durar. Na verdade, os seus adversários e os seus amigos aprenderam, à sua custa, que esse estilo lhes é desfavorável.
Com a Catalunha à vista e o Reino Unido fora dela, com as ameaças nacionalistas conhecidas, com a crise da imigração sem sinais de abrandamento e com a altíssima tensão no Próximo Oriente, era excelente que o governo novo, mesmo com Primeiro-ministro velho, consiga ou queira redefinir um caminho. Não se trata de metafísica romântica, mas tão só de uma exigência clássica para a melhor política: dar um sentido ao governo. 
Todos sabem que as necessidades comandam boa parte da política. Assim é e assim será. A dívida continua grande, melhora muito devagar. O investimento está baixo, mas conheceu algum progresso. O crescimento está a melhorar. O défice parece estar em boa situação. Seria bom que o governo novo reforce estas políticas, mas mantê-las já seria avisado. O governo sabe que tem de tratar do poder excessivo das potências e dos interesses que adquiriram grande parte da economia portuguesa. Como não é novidade ser inevitável alterar as leis laborais a fim de facilitar o crescimento. O governo sabe isso, mas gostaria de adiar. Ou esperar que a simpatia internacional pela estabilidade e pelas contas certas fosse suficiente e não exigisse reformas dolorosas. Mas o governo sabe que a tal não escapará.
Ainda no domínio das evidências, está a necessidade de olhar para os serviços públicos essenciais, mais ainda, de encontrar recursos enormes para acudir a uma situação de quase ruptura. O atendimento público e as relações entre cidadãos e Administração estão no ponto mais baixo de há muitos anos. O Serviço Nacional de Saúde, que o PS acusa de ter sido destruído pela direita e pela troika, mas que na verdade foi também miseravelmente mal gerido pela esquerda, está a precisar de cuidado intensivo.
Nada disto faz o essencial. Nada disto é muito mais difícil do que a gestão normal da nossa vida colectiva, que nunca é fácil e que tem sempre dificuldades. Acima de tudo, em cada momento, está o que faz a decência na vida e nas instituições de um país. Nas nossas condições de vida e nas actuais circunstâncias, a confiança nas instituições, o respeito da Administração pelos cidadãos e a protecção essencial dos nossos direitos e liberdades, constituem o sentido principal da acção pública das autoridades. E para que isso seja possível, uma palavra: Justiça!
governo tem agora o dever de olhar com redobrada atenção, com vontade superior e com energia renovada, para a justiça, com especial relevo para os aspectos que mais se evidenciaram negativamente nos últimos tempos. As regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e ministério público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.
É imperdoável que António Costa continue a afirmar, com evidente cinismo, que “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Quando algo está errado ou desempenha mal a suas funções, o tema transforma-se em política. De que se deve ocupar a política se não é justamente disso mesmo, do que está errado? Do que sofrem pessoas e cidadãos sem esperança nas instituições e no seu funcionamento normal? António Costa tem diante de si o imperativo moral e político de fazer, pela política e com o respeito pelas leis essenciais do seu país, o que a justiça não sabe, não quer fazer ou não consegue ser: justa, pronta e eficiente. Não se trata de fazer com que a política se substitua à justiça, erro absoluto. Mas trata-se com certeza de criar condições legais, institucionais, processuais e materiais para que a justiça funcione e cumpra os seus deveres. Apesar de muitas outras carências (sociais, económicas, culturais…) o que mais falta faz à democracia portuguesa é uma justiça eficiente, pronta e justa. Uma justiça que não dê razão aos que pensam que existe uma justiça especial para os poderosos, os afortunados, os amigos e os políticos. Uma justiça que seja o antídoto essencial contra a corrupção, em todas as suas formas, das famílias aos partidos, das empresas aos serviços públicos, à volta do núcleo central, o do poder político venal e cúpido. Este tema é eminentemente político, legal e constitucional. E o governo é, com o Parlamento, protagonista privilegiado e responsável maior.
Público, 20 de Outubro de 2019

domingo, 13 de outubro de 2019

Grande Angular - Bom dia, Democracia!

Um novo Parlamento merece ser saudado! Deve receber votos de uma longa vida, mais ou menos quatro anos. Mas também se lhe pode recordar as suas responsabilidades. E exprimir a esperança que este Parlamento dê passos para aumentar a sua autonomia. Até hoje, esta instituição vive sobretudo dependente dos partidos e do governo e muito pouco da sua identidade, que já poderia ter construído nestas quatro décadas. O “Parlamento arena” sempre levou a melhor sobre a instituição com carácter próprio. A disciplina de voto, o papel das comissões de inquérito e a falta de tradição de actividade de cooperação interpartidária são factores que atenuam a dignidade parlamentar. Até o papel individual do deputado traduz essa diminuição: um deputado é um membro de um grupo parlamentar, não é em primeiro lugar um membro da instituição. A sua liberdade individual e a sua dignidade dependem mais do partido do que do Parlamento. Será que vamos conhecer alguns progressos nos próximos tempos? O grande aumento do número de partidos representados pode criar condições para o reforço da instituição.
Os deputados eleitos já deviam estar sentados nas suas cadeiras. Uma semana depois da eleição, o Parlamento já devia estar a funcionar. Se faltassem uns deputados, os da emigração, por exemplo, a Assembleia poderia reunir e organizar-se. Os deputados da emigração já deviam estar eleitos logo no dia da eleição. É este um dos mistérios da vida democrática portuguesa: o Parlamento não reúne por direito próprio, fica à espera das mesas, das comissões, dos tribunais, do Ministério da Administração Interna, da Comissão Nacional de Eleições, de recursos e Deus sabe de que mais!
Compreende-se que a formação de um governo, especialmente quando se trata de coligações, acordos e alianças, demore dias ou semanas. Tem-se visto como o processo negocial pode durar meses. Na Espanha, na Itália ou na Bélgica são conhecidos casos extraordinários, até mais de um ano. Mas as negociações são uma coisa, os procedimentos burocráticos são outra. Em Portugal, nada justifica os prazos e as chicanas existentes, a não ser a submissão da democracia a regras que lhe são exteriores. 
Fez muito bem o Presidente da República em acelerar tudo, fazer mais depressa o que dele depende (além do Primeiro-ministro e de Rosa Mota, dez partidos recebidos num só dia, é obra!) e tentar estimular os outros a fazer o mesmo. Fez muito bem o Primeiro-ministro em despachar as primeiras reuniões entre partidos. É bem possível que as negociações demorem tempo, mas o ritmo de urgência está criado. Pode até ser necessário que o Parlamento assuma muitas das suas funções antes de o novo governo estar em exercício. Daí não vem mal ao mundo, desde que o mais importante esteja a funcionar. Um Parlamento não pode estar condicionado pelos outros órgãos de soberania, muito menos pela minúcia jurídica processual obsessiva.
O novo Parlamento bem pode organizar uma sessão de homenagem à obra de Diogo Freitas do Amaral. Liderou, com Amaro da Costa, o trânsito da direita portuguesa para a democracia. O seu contributo para a Constituição, mesmo votando contra, foi valioso. Também o foi para a elaboração de outras leis que marcam o nascimento da democracia, como a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Esta lei, aprovada em 1982, juntou-se à revisão da Constituição do mesmo ano. A natureza democrática do Estado português foi consolidada nessa altura. Se quiserem designar Freitas do Amaral como um dos quatro “pais da democracia”, com Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Ramalho Eanes, há razões para o fazer.
Outra obra que poderia ocupar o Parlamento, desde já, seria a de acabar com a vedação do Palácio de São Bento. Na verdade, o Parlamento está cercado por um estendal de barreiras à sua volta! Umas móveis e outras amarradas. Para proteger o Parlamento de manifestantes, alguém entendeu ser ideia brilhante proteger a instituição da liberdade e da democracia! Vai daí, cercou-a! É esteticamente horroroso. Politicamente desprezível. Presta-se a todos os sarcasmos, incluindo o de que o Parlamento receia o povo!
Até hoje, as ameaças físicas contra o Parlamento não foram muitas. Umas fotografias dos anos 1920 mostram as polícias a fechar as portas de São Bento! Também se conhecem imagens de Abril de 1974, quando militares do MFA tomam posição à volta do Palácio, o que aliás nem sequer era necessário, dado que ali não se passava nada. Depois existem fotografias do famoso cerco à Assembleia Constituinte de 1975: camionistas pesados, sindicalistas da CGTP igualmente pesados, comunistas, esquerdistas e alguns militares mais ou menos à civil mantiveram o cerco de muitas horas.
Durante as décadas de democracia que vivemos depois desse cerco, várias vezes se viram manifestações diante do Parlamento, umas mais atrevidas do que outras, umas com polícias a proteger, outras nem sequer. Mas em geral o ambiente era pesado, sem ser ameaçador. Até que um dia, uma manifestação de polícias ultrapassou os limites. Vários agentes, treinados para o efeito, fizeram um simulacro de invasão, para mostrar à população e ao poder político que eles entrariam se quisessem. E pararam à porta, depois de terem derrubado as vedações e afastado os piquetes de polícia destacados. Desde então, o Parlamento ficou protegido de modo permanente. Haja ou não manifestação, comício ou concerto de protesto, as vedações metálicas estão ali para ficar. Presas umas às outras, disfarçam um ar provisório, mas a verdade é simples: o Parlamento está protegido dos manifestantes. A coisa é esteticamente desastrada. Do ponto de vista da qualidade do urbano, um pavor. Mas pior do que tudo, do ponto de vista político, moral e cultural está ali um horror! O Parlamento exibe fragilidade e medo!
Nestes dias excepcionais de comemoração da democracia, uma alusão vem a propósito. O Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais várias cláusulas de uma lei que conferia aos serviços de informações excepcionais poderes de vigilância e escuta dos cidadãos, nas redes de telecomunicação e na Internet. Uma declaração de voto de um juiz, aliás vice-presidente, João Pedro Caupers, devolve-nos algum orgulho! Diz o Juiz, exprimindo-se como toda a gente, em bom português simples e claro: “E não me venham dizer que a intromissão dos serviços de informações (…) é indispensável para que o Estado possa defender a minha segurança. Já ouvi isso, noutros tempos e em outros contextos. Se tivesse de escolher entre defender a minha segurança ou proteger a minha liberdade (…) optaria, sem hesitar, pela liberdade. Não me encerrem numa masmorra – ou numa torre de vidro – para me proteger. Como alguém disse, viver é sempre perigoso”.
Público, 13 de Outubro de 2019

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A benefício de inventário

Quem? O Partido Socialista, com certeza. Em certa medida, merece. Depois de tantas derrotas (Tancos, incêndios, Sócrates, declínio dos serviços públicos, corrupção, famílias no Estado, investimento insuficiente e endividamento crescente), é uma grande vitória os Socialistas terem resistido. Os eleitores não consideraram negativamente aquelas derrotas. Também é verdade que, depois de um êxito tão grande na estabilidade do governo, na paz social, na queda do desemprego e no aumento de rendimentos, é evidentemente uma derrota política não ter vencido com maioria absoluta.
Porquê? Porque o PS teve jeito e sorte, porque a economia ajudou e o turismo também. Porque a economia europeia soprou a favor. Porque o governo soube aproveitar alguns ventos. Porque as oposições tiveram um comportamento desastrado. Porque a direita portuguesa, no seu conjunto, atinge fasquias da sobrevivência, na linha de vida. E porque, com ou sem razão, os eleitores preferem as esquerdas, que, parece, lhes dão mais benefícios.
Com quem? Na legislatura anterior, o PS não tinha escolha: precisava de todas as esquerdas. Agora, tem. Pode governar sozinho, à bolina, com terra à vista, de lei em lei, saltitando entre as esquerdas ou entre a esquerda e a direita, o que será mau para o país. Ou pode governar com um, dois ou três. Já não basta ser hábil, é necessário ter uma política, um carácter e um objectivo. Já não é suficiente ficar com quem mais convém, mais promete facilidades ou mais se prepara para cedências. Com uma legislatura nacionalmente difícil e internacionalmente muito complexa e perigosa, será melhor ter uma solução consistente, de compromisso e de responsabilidade.
O quê? Todos têm centenas de promessas. Como todos, o PS também tem dezenas de prioridades e outros tantos “planos nacionais” e “estratégias nacionais”. Escolher para governar vai ser difícil. Sobretudo porque se trata da segunda legislatura. Mas é difícil contestar a ideia de que as grandes prioridades são mesmo a Justiça e a corrupção. E logo a seguir o investimento.
Para quê? Esta é a questão mais difícil. O PS partilhou, com quase todos os candidatos, a atitude ignorante que consiste em ignorar o mundo e a Europa, em não ter uma qualquer ideia clara sobre um e outra. Portugal não pode, evidentemente, ter uma voz mais forte do que os outros, não deve julgar que está sozinho no mundo, nem se lhe permite imaginar que a Europa e o mundo devem a Portugal o que quer que seja. Mas não se admite que os dirigentes políticos portugueses se limitem a negociar as margens e os restos, ou a deixar os europeus tratar de nós.
E depois? Esta foi a mais elevada taxa de abstenção da história da democracia portuguesa. Quase metade da população não votou nem se interessa pela política. É bom pensar nisso.
Público 7 de Out 19

domingo, 29 de setembro de 2019

Grande Angular - Os inimigos da democracia

Os clássicos inimigos da democracia são conhecidos: comunistas, fascistas e populistas de esquerda ou de direita, estes últimos com pretextos comuns, o nacionalismo e a virtude. Podem vir do capitalismo, do sindicato, do regimento e do púlpito, com ajudas várias, da cátedra à imprensa, das polícias às redes sociais. Há muito que se sabe isto.
Os inimigos da democracia percorrem as vias abertas pelos democratas. Aproveitam em seu benefício os erros dos democratas, as suas desatenções, as suas querelas inúteis, a sua volúpia e a sua cobiça. Procuram as falhas dos democratas, o seu egoísmo, o seu narcisismo e a sua ambição desmedida. Estão à espera da incompetência e da covardia dos democratas.
Os inimigos da democracia espreitam atentamente para os corredores da justiça, local onde a democracia se perde tantas vezes. Olham para as contas bancárias dos políticos e dos seus amigos, à procura de movimentos e de sinais. Observam a corrupção, a que faz circular dinheiro, a que branqueia receitas, a que organiza concursos, a que favorece promoções, a que emprega os amigos e a que cobra luvas e comissões pelos negócios de Estado.
Os inimigos da democracia sabem que a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras. Estão cientes de que os seus caminhos estão numa justiça que falha, numa polícia que não cumpre e numa administração incompetente. Por isso, espreitam e esperam. Se for possível aproveitar os interstícios da democracia, aproveitam. Mas as suas reais intenções são as de varrer as instituições e tomar conta.
Uma longa observação dos tempos de antena da maior parte dos “pequenos” partidos, os que não têm representação parlamentar, os partidos da fragmentação e do populismo, é utilíssima! Na verdade, uma boa parte desses pequenos partidos são evidentemente inimigos da democracia, usam todos os tiques e clichés, “estamos fartos”, “é preciso acabar com isto”, “é necessária uma vassourada”, “saiam daí para nos deixar governar”, “são todos uma cambada de corruptos”, “são todos iguais”… É com estes desabafos analfabetos que esses senhores julgam comover o eleitorado. Dentro de uma semana, vão desaparecer. Talvez voltem, com o mesmo nome ou outro, não se sabe. Mas deles nada virá. É donde menos se espera que não vem mesmo nada. Os outros, os verdadeiros inimigos da democracia, estão mais calados, por enquanto. Nas arcadas do poder e nos corredores das instituições, esperam e espreitam.
Segundo Ignazio Silone, o americano senhor W ou Duplo-Vê veio à Europa, há umas décadas, com o seu conselheiro político e para os assuntos ideológicos, o Professor Pickup. O senhor W queria tomar o poder nos Estados Unidos, mas não sabia muito bem como. Fez uma tournée na Europa, instalou-se confortavelmente num hotel de Zurique, onde recebia o senhor Thomas, especialista europeu em política e mais conhecido pela alcunha de “O Cínico”. As suas conversas duraram longas horas e muitos dias. São verdadeiras lições que convém recordar. A mensagem essencial que Thomas dá ao Senhor W é simples: ao contrário do que se pensa frequentemente, as democracias não são derrubadas. Ninguém as conquista do exterior. Não morrem por causas alheias. Não são tomadas de assalto. Caem por si próprias. São derrotadas pelos seus próprios responsáveis. “A morte de uma democracia é, o mais das vezes, um suicídio camuflado!”
Não é possível observar ou pensar no episódio de Tancos sem ter em mente este aviso. O assunto merece especial atenção. O caso incomoda a democracia há dois anos. Quase ninguém se portou convenientemente. Um episódio de mera delinquência transformou-se numa das mais graves e sérias provações da democracia portuguesa, pondo em xeque as instituições e a honra de muita gente. Sem poupar as Forças Armadas e os Tribunais. Pior era impossível! São episódios como este que revelam a fragilidade do regime e a fraqueza dos seus dirigentes. Todos passam culpas para os senhores do lado, para os adversários e para quem está abaixo.
Será que as instituições políticas e judiciárias não têm capacidade para resolver a questão de Tancos? Para elucidar a população? Sanear e castigar os responsáveis? Punir a mentira e a irresponsabilidade? Já se percebeu que Tancos conspurcou tudo e todos. Por culpas ou responsabilidades. Por intervenção ou omissão. Por ocultação ou mentira. Dos trafulhas aos bandidos, até ao Governo e à Presidência da República, passando pela Administração Pública, os Magistrados e as Forças Armadas, desconfia-se de toda a gente, parece que ninguém fica de fora. Seria bom que, de facto, todos percebessem que têm alguma responsabilidade, por actos, cumplicidade, encobrimento, omissão, ignorância, ocultação ou indiferença. Como é evidente, o grau de responsabilidade varia muito, conforme o gesto ou a falta dele.
Não quero dizer que Tancos seja o cenotáfio da democracia. Seria exagerado. Mas, se houver um dia uma tragédia, poder-se-á dizer que alguma coisa começou ali, naquela charneca. Tancos acrescenta-se ao BNP, ao BES e ao BCP. À PT, à EDP e aos cimentos. À Face Oculta e à Operação Marquês. Aos incêndios e à Protecção Civil. Aos políticos arguidos e nunca julgados. Aos despachos de arquivamento inexplicáveis.
Diminuem os tempos dos comícios, os berros nas arruadas e os insultos na praça pública. Ainda há berraria inútil e histriónica no Parlamento e nas instituições representativas, por causa da televisão. Mas, nestes domínios, as nossas eleições estão a melhorar, a ficar mais bem-educadas. E os nossos políticos a comportarem-se como pessoas civilizadas ou quase. É bom que assim seja. Só que não chega. No comportamento político e financeiro e nas regras de conduta, há muito que não satisfaz, talvez até cada vez mais.
Em tempos de politica de massas, de redes sociais e de lugares comuns, os regimes autoritários, fascistas, comunistas ou populistas são, como no passado recente, golpes em democracias falhadas, em países onde as revoluções não vingaram e onde a democracia foi capturada.
Não serão brigadas fascistas, regimentos europeus ou destacamentos comunistas que ameaçarão a democracia portuguesa. Nem sequer o capitalismo chinês ou as multinacionais americanas. Quem o fizer, será graças aos políticos portugueses e aos tribunais portugueses. E será por causa da corrupção, do nepotismo e da porta giratória. E da falta de justiça.
Público, 29.9.2019