Por que razão o tema da Reforma do Estado é
actual?
A primeira razão
parece quase circunstancial: a crise financeira dos Estados, a dívida pública e
a crise das dívidas soberanas fizeram com que seja necessário repensar e
reorganizar a despesa e a receita do Estado, numa altura em que já não se pode,
em Portugal como noutros países, continuar a simplesmente aumentar os impostos
e recorrer ao crédito. Novas soluções têm de ser encontradas. E logo vieram ao
espírito várias hipóteses: diminuir a despesa, cortar no investimento e nas
prestações sociais, diminuir a dimensão do Estado, baixar os desperdícios, etc.
Em poucas palavras, diminuir e organizar melhor o Estado. Isso é uma coisa.
Reformar o Estado é outra. Falta saber se são possíveis ao mesmo tempo.
A segunda razão
é porque se trata do principal objectivo da luta política contemporânea. Uma
nova forma de luta de classes. Não é só luta de classes, nem é toda a luta de
classes. Mas é boa parte. A traço grosso, temos, de um lado, os que querem um
Estado forte, activo, interveniente, tão vasto ou mais do que hoje, motor de
desenvolvimento, dirigente da nação e da economia; e, do outro lado, os que
querem um Estado mais pequeno ou muito mais pequeno do que hoje, parceiro da
sociedade civil, regulador, disciplinador, não interveniente, ligeiro e
eventualmente fraco. Em quase todos os Estados desenvolvidos, mas também
noutros em vias de desenvolvimento ou emergentes, encontramos o mesmo tipo de
divisão e de confronto. É verdade que, em parte, mas apenas em parte, esta
divisão recorta a antiga separação entre direita e esquerda. Mas não se trata
apenas de uma cópia ou de uma modernização. Na verdade, ao longo das últimas
décadas, é frequente encontrar forças de esquerda liberais, tal como movimentos
de direita a favor do Estado. Bastaria quase olhar só para Portugal, onde já
tivemos esquerdas dirigistas e intervencionistas, mas também esquerdas
liberais. Como já tivemos direitas dirigistas e intervencionistas, tanto quanto
as tivemos defensoras da sociedade civil. A nossa mais longa tradição é, aliás,
a de uma direita amiga do Estado.
A terceira razão
resulta do facto de pagar, gastar, distribuir e investir serem, nos tempos de
hoje, as principais tarefas do Estado e os principais argumentos políticos e
eleitorais. Os orçamentos de Estado, que não cessam de aumentar desde há várias
décadas, traduzem cada vez mais essa prioridade. O Estado investe ou despende
sempre mais na Saúde, na Educação, na Segurança social e nas obras e serviços
públicos, sem falar nas outras funções de Estado e de Soberania, além da
despesa crescente com a sua própria organização e seus funcionários. Sem poder
gastar mais e distribuir melhor, nenhum poder político resiste ou atravessa
vitoriosamente as eleições. Todos os Estados procuram, com mais ou menos relevo
e significado, diminuir o fardo financeiro, a fim de poder melhor determinar a
sua despesa. Mas a verdade é que a maior parte dos Estados desenvolvidos
modernos chegaram ao ponto crítico de não poderem mais continuar a gastar, sob
pena de abrirem crises sérias de endividamento ou mesmo de bancarrota. Alguns
Estados viram e acudiram ao fenómeno, talvez a tempo, como certos Estados
escandinavos, outros não viram ou não souberam acudir a tempo, como a Grécia,
Portugal e a Espanha, por exemplo.
Mas há outros
motivos. Actuais também, mas já com algumas décadas.
A globalização
pôs o Estado em crise. Isto é, criou novas realidades económicas e financeiras
e exigiu adaptações e mudanças. Ora, os Estados dos países desenvolvidos não
estavam preparados e especialmente os Estados europeus contemporâneos nem
sempre souberam reagir e responder. O Estado português muito menos. A economia
mundial, o livre comércio e a desregulamentação de muitas actividades
económicas e financeiras internacionais deixaram os Estados desarmados e
impotentes. Só os Estados mais poderosos (nomeadamente os Estados Unidos, a
Alemanha e a China…) conseguiram pôr a seu proveito as forças libertadas pela
globalização, enquanto a maioria sofre as suas consequências.
A consolidação e
o desenvolvimento da União europeia aprofundaram a crise do Estado nacional. A
União revelou uma dificuldade surpreendente em se adaptar. Dai resultou a sua
desorientação, ficando aquém da estrutura pré federal que alguns desejam, mas transformando
os Estados nacionais numa espécie de parceiros locais de uma frágil estrutura
internacional que ultrapassa os Estados, sobretudo os de pequena e média
dimensão e de pouca força económica. Note-se bem: ultrapassa-os, sem lhes
conferir solidez ou estabilidade. A consequência deste processo é evidente: a
reforma do Estado, em conjugação com a da União, tornou-se necessária.
Chego assim à segunda parte da minha
exposição.
Por que razões a Reforma do Estado é, em
Portugal, necessária há várias décadas?
Para Portugal,
todos os motivos acima explicam a contemporaneidade e a actualidade do tema, mas
há outros motivos que nos dizem respeito. Há outras causas específicas que
explicam a evolução do Estado português, os seus problemas e a necessidade
crescente da sua reforma.
Após o 25 de
Abril, o Estado português foi reorganizado de modo improvisado. À pressa, sem
ideia nem objectivo. A democracia política instalou-se em cima de estruturas
corporativas obsoletas, próprias de outras idades e de outros modos de governo.
As estruturas democráticas combinaram com o anterior regime corporativo a que
acrescentaram as liberdades, tendo também concertado com formas de governo e de
administração forjadas precipitadamente durante a revolução de 1974/75. O
resultado foi uma obra compósita, sem coerência.
O crescimento do
Estado de protecção social foi muito acelerado depois de 1974 e fez aumentar a
dimensão, o volume, a força, a decisão e o peso do Estado e da Administração
Pública. Mesmo depois da reprivatização da economia e das empresas, iniciada nos
anos 90 e prosseguida até hoje pelos dois maiores partidos, as dimensões do
Estado administrativo não foram reduzidas. Dos menos de 200.000 funcionários
dos anos 1960, chegámos aos 600.000 a 700.000 da última década. Esta dimensão
não é necessariamente exagerada, quando comparada com os nossos parceiros
europeus. Acontece que se tratou de um crescimento orgânico e demográfico, sem
alteração consistente das formas de organização e das missões do Estado, tanto
central como local. Por outro lado, a comparação com outros países
desenvolvidos pode ser falaciosa. Na verdade, a semelhança de números esconde
diferenças radicais no produto nacional, na organização e na produtividade.
A Constituição e
as principais leis de base não criaram um Estado administrativo com novo
espírito e critério, nem estabeleceram um novo modelo de organização. Algumas
das grandes polémicas, controvérsias, ou dilemas foram sempre sendo adiados: o
“Centro versus Região” e “Estado central versus Autarquia”, por exemplo, nunca
encontraram verdadeiramente solução, nunca houve decisão claramente maioritária
ou consensual. Donde resulta que a distribuição de poderes permaneceu instável
e sujeita a evoluções de circunstância. Do mesmo modo, as responsabilidades dos
titulares dos órgãos políticos nacionais e locais permaneceram incertas. Outro
exemplo ainda de questão eternamente adiada é o do regime de acumulação de
funções públicas e privadas dos agentes da Administração, cuja indefinição é
fonte permanente de distorções. Certos aspectos fundamentais evoluíram, é
certo, mas só na medida em que tal interessou circunstancialmente. Estão nesta
situação, por exemplo: as capacidades eleitorais locais, o regime de referendo,
os direitos de propriedade e de iniciativa privada, o âmbito do sector público
empresarial, a autonomia das instituições públicas e os poderes da tutela de
Estado sobre instituições privadas.
A verdade é que
não é possível encetar com êxito um processo de reforma do Estado sem começar
ou passar pela revisão da Constituição. O que torna tudo mais difícil. A
Constituição e as leis de bases traçaram minuciosamente um sistema de defesas contra
o autoritarismo, o caciquismo, o cesarismo, os vulgarmente chamados regimes
fascistas e comunistas, o populismo de cariz militar e outros… A natureza
equivoca e ambígua do sistema semi-presidencial é o melhor retrato desse
sofisticado sistema de defesa, brilhante na construção, uma verdadeira
obra-prima, mas que é fraco de carácter e defensivo na energia. Algumas das
querelas antigas e que hoje são de novo virulentas, como entre os órgãos de
soberania (entre o Parlamento, o Presidente da República e o Governo), ou entre
os órgãos de soberania e os tribunais (com relevo para o Tribunal
Constitucional), são o resultado directo e permanente da natureza híbrida do
regime, do sistema constitucional e da natureza do Estado.
Toda a
construção ou todo o desenvolvimento do Estado, desde os anos 1970, foram feitos
nas circunstâncias acima descritas, com especial relevo para uma instituição:
os partidos políticos. O fio condutor, os obreiros e os protagonistas do
desenvolvimento do Estado e da Administração Pública, desde 1974, foram os
partidos políticos. Foram subalternizadas outras instituições e entidades, como
sejam o Parlamento, o Presidente da República, o Governo, as Regiões, as
Autarquias, os Tribunais, as Forças Armadas, as empresas privadas, as universidades
e outras.
A sociedade e a
economia mudaram profundamente durante as últimas quatro a cinco décadas. A
demografia alterou-se e o panorama populacional do país modificou-se
drasticamente. A administração autárquica, local e regional, foi concebida para
um país e uma sociedade que já não existem. As grandes metrópoles urbanas estão
cada vez mais complexas e quase ingovernáveis, enquanto o interior despovoado
continua a ser regido por sistemas desadequados. Mudaram as actividades, modificaram-se
as empresas, deslocaram-se as pessoas, transformaram-se os recursos,
alteraram-se drasticamente as vias de comunicação… mas as estruturas
administrativas mantiveram-se quase inalteradas.
Recentemente, a
crise financeira do Estado (e da sociedade) e o endividamento externo fizeram
com que o Estado português ficasse refém dos seus credores, dos parceiros
europeus mais poderosos e dos grandes interesses… Não é a melhor altura para
proceder à Reforma do Estado. Aliás, a correcção conjuntural das finanças do
Estado, apesar de indispensável, não pode ser confundida com a reforma
estrutural do Estado. Esta pode e deve ser preparada, debatida e reflectida,
mas qualquer urgência é sinal de fraqueza e de dependência! Em momentos de
expansão económica e de estabilidade social e política, as querelas
constitucionais esbatem-se e as deformações do Estado são aparentemente
ultrapassadas pela euforia económica e social. Mas, em momentos de crise, as
deficiências constitucionais avultam com carácter de urgência. Quando a crise é
de endividamento internacional, de ameaça de bancarrota e de perda de autonomia
de decisão, o “verniz estala” mais facilmente. Ora, é nesses momentos, quando
são mais precisas, que a revisão da Constituição e a reforma do Estado são mais
difíceis. Não só pela insuficiência de meios, mas também pela crispação entre
partidos políticos. Os regimes de resgate financeiro e os deveres que lhes
estão associados fizeram com que os “cortes” e as “supressões”, assim como as
mudanças nos regimes laborais, se transformassem em substitutos para a reforma
do Estado. Tal não deveria acontecer. As questões laborais não se devem
sobrepor aos objectivos fundamentais da reforma de Estado.
Paradoxalmente,
em resultado de toda esta evolução brevemente descrita, a reforma do Estado,
aos olhos de muitas pessoas, tornou-se urgente. O Estado está fraco de mais,
pesado de mais, vagaroso de mais, ineficiente de mais, capturado de mais por
interesses particulares e dependente de mais de poderes estrangeiros e
internacionais. Mas urgente não quer dizer de emergência. Urgente implica uma
necessidade inadiável, mas a sua satisfação pode ser feita gradualmente, ao
longo do tempo, com uma definição clara de objectivos, com uma estratégia
política e com um calendário razoável. A pressa seria desaconselhada, sobretudo
porque o Estado se encontra débil e dependente.
Esta debilidade
ou esta crise do Estado português é agravada por outros fenómenos. O primado
dos partidos políticos permitiu que a captura do Estado pelos interesses
privados fosse facilitada. É através dos partidos políticos que grupos
económicos, empresas, sindicatos, associações privadas, profissões e outros
interesses retêm e possuem a capacidade política de regulação e legislação,
assim como os favores económicos. É usual pensar que o “poder político”, em
democracia, deve primar sobre o “poder económico”. Esta quase verdade
consensual serve para justificar a acção livre dos agentes políticos e, por
essa via, o privilégio acordado aos partidos políticos e a consequente
submissão dos outros interesses sociais. Acontece que é em parte esse primado
da política que serve a captura do Estado por interesses privados. Repito: é
por intermédio dos partidos que os interesses privados detêm privilégios e poderes.
Daqui não concluo que é necessário ou sequer aconselhável afastar os partidos.
Não. Necessário é moderá-los. O que só pode ser feito com instituições
democráticas sólidas. Evidentemente, não há democracia sem partidos políticos.
Mas também não há democracia só com partidos como únicos agentes políticos.
A massificação
da política, da economia e da cultura criou novos fenómenos sociais, culturais
e políticos aos quais é necessário prestar atenção com olhar crítico. São os
casos, por exemplo, das sondagens de opinião permanentes e da comunicação
imediata em tempo real, que destruíram a noção de mandato democrático. Ou da
fabricação de realidades virtuais que leva o debate público para fora das
instituições políticas. Ou ainda da mercantilização do voto e dos processos
eleitorais que transformou esses processos políticos em espectáculo encenado.
Todos estes fenómenos destruíram uma boa parte do prestígio da profissão, da
carreira e da função política, geralmente coincidente e adequada às estruturas
do Estado nacional. A actividade política perdeu dignidade e reputação. O
Estado hipotecado aos partidos e por eles detido é fonte de desprestígio da
actividade política.
Quase quatro
décadas de democracia, acrescentadas a quase cinco de autoritarismo, criaram um
universo de contacto entre a vida privada e a pública e entre os interesses
económicos e a função política. Por várias razões, não se procedeu a um desenho
de fronteiras nítidas, nem se criaram mecanismos eficientes de avaliação e
julgamento. Mau grado a aparência de força e autonomia, o Estado português é
presa de interesses e forças sociais. Tanto partidos políticos, como grandes
corpos profissionais ou grupos económicos. Mais do que a ilegalidade e a
promiscuidade sua companheira, são a confusão legal e a acumulação legítima de
funções e de interesses privados e públicos que distorcem e dominam a vida
pública portuguesa.
Assim
chego à terceira parte da minha exposição. Não tenho a veleidade de propor um
programa completo, um roteiro ou um plano. Apenas me limito a uns pontos que desejo
sublinhar.
Alguns contributos para a discussão pública
sobre a Reforma do Estado em Portugal.
Convém nunca
esquecer que se trata de um longo processo aberto à sociedade. Pode demorar
anos e não se confunde com um calendário eleitoral. Nem com pagamento de
dívidas ou resgate financeiro.
Reformar o
Estado em democracia exige um plano, uma estratégia, um condutor e um consenso
alargado. Como se pode imaginar, a dificuldade reside na necessidade de um
consenso alargado (a não confundir com unanimidade) e na indispensabilidade de
um condutor, de um dirigente ou de um piloto (pessoa, partido ou instituição).
A direcção permite a eficácia, a unidade de orientação e a consistência. O
consenso alargado permite, além das liberdades e da pluralidade, a persistência
e a duração no tempo. De outro modo, teremos reformas aparentes e efémeras,
logo seguidas de novas reformas levadas a cabo por outros protagonistas
políticos, nomeadamente os partidos.
Por outro lado,
como já disse, em tempos de crise financeira, não é aconselhável esperar
demasiado de um esforço de reforma do Estado. Criar ou reformar um Estado sob
ameaça de bancarrota e sob a pressão dos credores internacionais é tão errado e
tão perigoso quanto criar ou reformar um Estado à custa de dívida e com base em
benesses demagógicas. São necessários meios, que faltam. É precisa
tranquilidade política, inexistente. É indispensável independência, ausente. É
imprescindível a sinceridade política, em falha absoluta. Nenhum partido da
oposição está disponível para se associar aos partidos da maioria, arcando
também com as responsabilidades da situação actual. Nenhum partido do governo
está preparado para ceder a sua posição, partilhando-a com outros. Nas actuais
condições de excepcional crispação e de degradação das relações políticas e
pessoais entre dirigentes partidários, nada parece favorecer a preparação dos
consensos alargados necessários. Reformar em profundidade não parece possível
actualmente. Preparar, estudar, debater, negociar… sim! Ora, todos podem e
devem tomar iniciativas de reflexão e discussão: Parlamento, Governo,
Presidente da República, Forças Armadas, partidos políticos, instituições,
magistratura, universidades, profissões, associações e sindicatos.
Importa, por
outro lado, considerar que a revisão profunda da Constituição é parte central
da reforma. Não é possível imaginar que a reforma do Estado possa dispensar a
revisão da Constituição. Os poderes dos órgãos de soberania, o sistema
eleitoral, a relação entre Estado central e autarquia, a concepção da
Administração Pública, o conceito de funcionário público, o desenho dos grandes
serviços públicos de Saúde, Educação e Segurança social, a organização da
Justiça e os direitos e os deveres das instituições e das empresas privadas são
aspectos essenciais da reforma do Estado, mas a sua definição actual, que
importa rever e alterar, reside na Constituição.
O Parlamento, o
Governo e o Presidente da República, assim como inúmeras instituições privadas,
poderiam criar grupos de reflexão e debate. Desde que alguém, Presidente da
República, Presidente da Assembleia da República ou Primeiro-ministro, diga que
vale a pena, que não é inútil. É a única maneira de evitar que a revisão da Constituição
e a reforma do Estado se transformem em armadilhas. Que é o que está a
acontecer!
Quanto aos
conteúdos das reformas e da revisão, gostaria de distinguir alguns.
Considero útil a
revisão profunda do sistema eleitoral, de modo a que as eleições não sejam
utilizadas exclusivamente pelos partidos políticos e que os eleitos,
partidários ou não, sejam pessoalmente responsáveis. Não se trata de pretender
que um Parlamento feito de independentes seja mais eficiente e mais responsável
que um Parlamento feito de grupos partidários. O mais importante é que haja
mecanismos de moderação do poder inquestionável dos partidos e das suas
direcções. A possibilidade de candidaturas independentes, locais ou de outra
natureza, é sobretudo fértil, não porque se substitui aos partidos, mas porque
os ameaça e os obriga a superiores critérios de honestidade e responsabilidade,
assim como é a melhor maneira de abrir um partido à sociedade.
Outra mudança
que se me afigura necessária é a liquidação dos restos do sistema de “confiança
política” na Administração Pública, um dos graves factores do mau governo e de captura
partidária. Com as devidas excepções, fundamentadas e em número reduzido, os
cargos da Administração, particularmente os dirigentes da alta administração,
deveriam todos ser exclusivamente preenchidos segundo critérios técnicos,
científicos, profissionais, de carreira, de mérito pessoal, de dedicação e
merecimento, em detrimento dos resquícios da “confiança política” ainda em
vigor. O anterior sistema, aprovado pela unanimidade dos partidos, estabelecia
que os mandatos dos Directores gerias e equiparadas cessava com as eleições e a
tomada de posse do novo governo. Quer isto dizer, politizava e partidarizava
legalmente a Administração Pública. Esta prática, absolutamente legal, foi um
autêntico veneno durante décadas. O actual governo mudou o sistema, e bem,
dando por terminada a “confiança política” plena e criando concursos, mas
infelizmente admitindo ainda a escolha, pelo ministro, entre vários
seleccionados através de concurso. Foi um progresso, mas evitou-se o melhor.
A este
propósito, outra mudança se revela importante: é a velha questão da acumulação
das funções privadas e públicas por parte dos agentes do Estado, nomeadamente
na Saúde, na Educação, na Consultoria, nas Obras públicas, na peritagem
financeira, no contencioso e no apoio jurídico… Apesar das regras existentes,
mais complacentes do que severas, a acumulação é muito frequente e quase sempre
legal, por via de regimes de excepção que se tornam gerais. Também por isso se
torna imprescindível proceder a uma revisão profunda das funções de justiça,
fiscalização, avaliação, regulação e prestação de contas, as mais frágeis e as
mais críticas de todo o sistema político português.
Entre outras
consequências dos novos métodos e dos novos princípios de organização da
Administração Pública, avulta a da possibilidade de criar e desenvolver a
capacidade científica e técnica do Estado que lhe permita estudar, avaliar,
escolher e decidir com mais competência, mais isenção e menor intervenção dos interesses
externos ou ocultos, sejam eles partidários ou de qualquer outro tipo. O
recurso crescente do Estado a entidades exteriores à Administração (técnicas,
cientificas, de consulta económica, de assessoria jurídica, etc.) parece ter
tido mais inconvenientes (dependência, interesses particulares, submissão
política…) do que vantagens. A verdade é que, hoje, parece termos diante de nós
um Estado decapitado, ao qual foi retirada grande parte da competência técnica
e científica. O recurso sistemático a empresas nacionais ou multinacionais de
estudos, consultoria, aconselhamento, gestão, apoio jurídico, engenharia
financeira e tantas outras empobrece o Estado, diminui a isenção das
autoridades públicas, oculta os procedimentos e não assegura a independência e
o rigor. É cada vez mais evidente que todas essas instituições demonstram e
provam o que se lhes pede. A tal ponto que as mesmas entidades conseguem fazer
estudos contraditórios.
Última
observação: evidentemente que a reforma do Estado não dispensa, antes exige, a
definição das novas fronteiras dos direitos e deveres dos cidadãos, das
empresas, das instituições, das associações, das autarquias e do Estado, assim
como o estabelecimento da nova organização administrativa e territorial do
Estado, com a consequente revisão profunda dos sistemas ditos de
subsidiariedade na Administração pública. Mas este objectivo parece poder ser
aceite por todos, embora cada um tenha ideias diferentes sobre o seu conteúdo.
Para terminar. A
reforma do Estado é obra de uma geração. Deveria ser gradual, reflectida e
comum a uma parte importante das forças políticas, sociais e culturais. Não
deveria ser arma de arremesso, nem emboscada, hoje eventualidades prováveis.
Tudo milita, actualmente, para que essa obra não seja cumprida. A começar pela
pressa de uns e a acabar na recusa de outros. Se ao menos os titulares dos
órgãos de soberania soubessem reflectir e preparar o futuro! Se ao menos os
dirigentes políticos quisessem levar a cabo tal empreendimento sem pensar
apenas no orgulho narcisista! Se ao menos os partidos fossem capazes de fazer
tantos sacrifícios quanto exigem deste nosso pobre povo!
(*) Instituto de Defesa Nacional
Lisboa, 6 de Novembro de 2013