domingo, 26 de janeiro de 2020

Grande Angular - Angola é nossa!

A onda de corrupção comprovada, alegada ou suposta é enorme, conhecida há anos e pressentida há décadas. Bancos, seguradoras, exportadoras, agências de comunicação, consultoras e escritórios de advogados instalaram-se confortavelmente na charneira entre Angola e Portugal. Estabeleceram-se ainda mais comodamente no universo das relações ilícitas entre os dois países. E navegaram na onda dos refúgios dourados: os paraísos fiscais, os infernos da droga, os campos de petróleo e as lapidadoras de diamantes. Durante anos, em Portugal e alhures, floresceram os negócios à sombra de Estados de direito associados a ditaduras de desenvolvimento e a democracias de acumulação primitiva. Os governos de Portugal e Angola organizaram a galáxia. As elites dos dois países aproveitaram.
Alguma coisa correu mal. Este universo suspeito ou, mais do que isso, ilícito, deu nas vistas e foi posto no pelourinho. Não pelo Estado de Direito, mas simplesmente porque, num os parceiros, em Angola, o poder mudou. Ainda não sabemos se mudou para melhor ou apenas porque o poder mudou. Mas já sabemos que o que vem aí não é a brincar. Preparemo-nos para as consequências.
O que esta senhora fez foi enorme. Conquistou o mais que era possível: empresas, bancos, técnicos, advogados, ministros, secretários de Estado, deputados e jornalistas. Deu trabalho. Distribuiu dividendos. Deu acções. Fez transferências. Pagou. Ficou a dever. Emprestou. Pediu emprestado. Investiu. Comprou acções, empresas, administradores, técnicos, corretores e advogados. Teve a seus pés quem quis e quem queria estar por ali.
Fez tudo sozinha? Era só ela própria? Sabia tudo? Decidiu na sua solidão sábia e visionária? Fez sozinha aquela fortuna colossal? Transferiu-a sozinha para Portugal e para toda a malha de offshore e paraísos deste mundo e do outro? Certamente não. Nem em Angola, nem em Portugal. Nem, aliás, na Rússia ou nos Emiratos. Comprou quem estava à venda, depois de verificar que havia muita oferta neste mercado. Fez uma rede e passeou-se nela. Fez presas e alimentou-se delas. Teve a indiferença de quem não queria levantar ondas e a complacência de quem não queria prejudicar as boas relações entre dois países. Teve surdos-mudos e paralíticos que assim julgavam defender a razão de Estado. Soube encontrar, em Portugal, parceiros à altura, empreendedores, advogados, ministros e banqueiros disponíveis para uma verdadeira aventura de circulação e reciclagem de fortunas.
Antes do fim das tempestades, que ainda está muito longe, já se podem ir fazendo balanços e retirar lições. Verdade ou ficção política, uma coisa é certa: Portugal precisa de Angola, mas Angola não precisa de Portugal.
Os Angolanos precisam de Portugal para descansar, investir, guardar dinheiro, transferir capitais, fazer trânsito de pessoas, bens e mercadorias. Tudo que podem fazer noutro país qualquer. Se não puderem fazer aqui, às suas condições, fazem noutro sítio. É menos confortável, mas não custa nada mudar! Essa é a sua independência.
Os Portugueses precisam de Angola para vender mercadoria, prestar serviços, abrir as portas da Avenida de Roma, vender apartamentos de luxo, fazer obra pública e ganhar empreitadas de construção. O que os Portugueses fazem em Angola, não fazem noutro sítio. Essa é a sua dependência.
A independência angolana e a dependência portuguesa podem não ser exactamente o que parece ou o que aqui se diz. Talvez não sejam. Mas é como se fossem. Isto é, governantes e gente de negócio de Angola e de Portugal comportam-se como se tudo o que acima vem fosse verdade. Os últimos anos revelaram numerosas situações em que foi sempre Angola a pôr condições e Portugal a ceder. Os calendários diplomáticos e as agendas políticas entre os dois países estiveram à mercê dos interesses de Angola e dos caprichos dos seus dirigentes, nunca ou raramente dos de Portugal. As visitas de políticos, as reuniões entre governos, a circulação de capitais e a reciprocidade das relações judiciais estiveram sempre dependentes das exigências angolanas.
O ambiente em Angola é propício a fazer a vida difícil aos portugueses. Estes são brancos e foram colonialistas, duas características em crise. Tanto lá, como cá, aliás. O ambiente em Portugal é propício a fazer a vida fácil aos angolanos. São ricos e têm dinheiro para gastar. Os portugueses precisam dos angolanos para vender os seus produtos de luxo. Sem eles, a avenida da Liberdade não seria o que é. Os angolanos têm em Portugal inúmeras vantagens, a língua, famílias, proximidade histórica e conhecimentos. Para os angolanos, estar em Lisboa é fácil. Mais fácil do que para os Portugueses estar em Angola. Quanto ao racismo, existe nos dois lados, não é por aí que temos desigualdade.
Cunhas, luvas e contrabando: é desgraçadamente o dia-a-dia contemporâneo. Locais de quarentena, instituições de reciclagem, redes de branqueamento e veículos de lavagem fazem parte do mundo de hoje, infelizmente. É todavia verdade que, para contrariar esse mundo, muito se pode fazer com a lei, as inspecções, a fiscalidade, a vigilância, a supervisão e a regulação. Em muitos países do mundo se vai fazendo. Em Portugal, muito pouco.
Os políticos, as instituições, os tribunais, as leis, as polícias e os grupos económicos portugueses não parecem estar à altura da tempestade que se prepara nem do furacão que já começou. Vai haver problemas? Sim. Com os bancos, as empresas, as dívidas, os contratos e os investimentos? Sim. Talvez não sejam muito graves. Talvez. Mas o pior é a certeza de que não temos governo, polícias, juízes e bancos à altura. Nem tivemos durante as últimas décadas.
Por cá, já não se diz “Angola é nossa!”, um atrevido slogan inventado no tempo de Salazar e da guerra. Fazia parte deste género de afirmações que se fazem quando nos queremos enganar a nós próprios. Há cinquenta anos, íamos perder a colónia? Sim. Então inventámos um hino e um slogan a dizer o contrário. Será que em Angola, hoje, alguém diz “Portugal é nosso!”?
Público, 26.1.2020

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Grande Angular - Partidos contra a democracia

É normal a agitação que reina actualmente na maior parte dos partidos. As derrotas estrondosas do PSD, do CDS e do PCP reclamam exame e avaliação, quem sabe se reformas. A estagnação do BE, com menor sentido de urgência, faz pressão no mesmo sentido. O aparecimento de novos partidos, mesmo se minúsculos, obriga a reflexão. Só o PS, vencedor, parece calmo e sem apetite aparente por reformas. Se o silêncio gélido do PCP for considerado uma variante da calma, então teremos de incluir este partido na curta lista dos que não exibem problemas.
A inquietação quase moribunda do CDS, as trapalhadas eleitorais do PSD e os patéticos sketches do Livre e do Chega são sintomas da desordem política que, depois das últimas eleições, vai por esse país fora. Assim é que temos congressos em preparação em quase todos os partidos, tanto os que estão em crise, como os que navegam mais serenamente. Todos se preparam para eleições internas (e o PCP para nomeações). Em vários, trata-se de eleições directas dos seus líderes.
Esta última é apenas mais uma solução entre outras para reformar os partidos e a democracia. “Aproximar os partidos do povo”, “abrir os partidos à sociedade” e decretar a “transparência” como virtude absoluta e maior, eis alguns dos expedientes utilizados, na esperança de trazer para os partidos e mobilizar para as eleições os cidadãos indiferentes e abstencionistas. Ao fim de dez ou vinte anos de tentativas de aproximação e de profissões de fé de transparência, não consta que esses novos métodos tenham produzido quaisquer efeitos. Pelo contrário. Proliferam os movimentos ditos inorgânicos e as manifestações sociais de insatisfeitos, aliás de esquerda e direita, como se pode ver na Europa e na América Latina.
Em certo sentido, a crise dos partidos é também a crise da democracia. Pelo menos da democracia representativa, tal como a conhecemos. Muitos são os factores que ajudaram a desenvolver esta crise. A abstenção crescente e o desinteresse dos cidadãos estão entre os principais, ainda que seja necessário perceber as respectivas razões e causas. A demagogia política crescente em eleitorados cada vez mais diversificados e erráticos criou uma nova política. A sociedade de consumo e a publicidade, com os seus mais famigerados predadores, as agências de comunicação, têm a sua quota-parte de responsabilidade.
Esta crise tem inúmeras versões. E múltiplas interpretações. Digamos, para simplificar com alguns lugares-comuns, que “a distância entre a política e os cidadãos” é uma das suas características. Tal como a demagogia crescente, com partidos a prometerem, a não cumprirem ou a mudarem de política logo a seguir à eleição. Convém ainda não esquecer a corrupção, o nepotismo e a porta giratória, fenómenos pelos quais os políticos ficam ricos, os seus familiares têm empregos, os seus amigos conquistam posições na economia e nas instituições, além de serem também os mecanismos com os quais se obtêm licenças, encomendas, contratos e autorizações. Há ainda causas mais sérias, isto é, menos moralmente condenáveis. Por exemplo, o facto de as decisões políticas estarem condicionadas pelo poder económico, pelas grandes potências e pela União Europeia, contribui para a desilusão com a democracia.
Finalmente, demagogia política e sociedade de consumo estão na origem da criação de um fenómeno verdadeiramente revolucionário: as aspirações ilimitadas e as ambições desmesuradas. Toda a gente quer tudo, já. Nada de mal nisso, com certeza, só que é impossível. Por isso, há cada vez menos estabilidade política e eleitoral. Por isso, as sondagens instantâneas e os estudos de mercado quotidianos substituíram os mandatos eleitorais. Mais do que nunca, faz-se política com horizontes de dias ou semanas.
Neste universo crítico, nasceram ou desenvolveram-se duas ideias nefastas: a da proximidade da política e a da transparência. Os partidos e os políticos, com receio de serem eliminados pela força centrífuga da crise, deram a estes dois conceitos um valor de receita. Com transparência, o povo fica a saber tudo e a perceber quão honestos são os políticos do dia. Os eleitores passam a conhecer os modos como se tomam decisões. Toda a gente vê quem faz pressão, quem luta pelos seus interesses e quem tem ligações com a economia. Com a transparência, todos sabemos tudo!
A proximidade é o outro conceito chave. Reza a doutrina, se doutrina se trata, que a política, o governo, as instituições e os partidos devem estar próximos dos cidadãos, perceber os seus anseios e conhecer as suas dificuldades. As decisões devem ser tomadas no campanário, na cidade ou na região. Quem toma decisões deve ir ver e falar com as pessoas, conhecer os eleitores e tratar com os interessados. Contra o Terreiro do Paço, a democracia ou é de proximidade ou não é!
Interessante e preocupante é a fé que muitos depositam na eleição directa do líder. Este método, a arrepio do congresso e das estruturas representativas, é a importação de tecnologia populista para dentro dos partidos, onde também se fazem eleições primárias para candidatos a eleições nacionais. Além disso, já se nota um movimento favorável a que se dê o direito de voto a meros simpatizantes. E também já é possível, em certos casos, um não militante ou não sócio apresentar a sua candidatura. São estas fórmulas demagógicas que os partidos adoptam para tentar agarrar os cidadãos e os eleitores que lhes escapavam.
Com estes mecanismos, os partidos estão a destruir alguns pilares da democracia representativa e a retirar ao partido político o seu carácter orgânico. Assim se estabeleceu o primado do carisma individual, por cima da função doutrinária do partido e do seu papel de racionalidade no sistema político.
Separou-se a eleição do chefe da eleição dos órgãos partidários e da aprovação de um programa. É possível eleger um líder e uma direcção e aprovar programas contraditórios. É possível, como já aconteceu tantas vezes, que os chefes dos partidos não sejam sequer deputados e tenham sérios problemas com os seus grupos parlamentares. As eleições directas dos chefes partidários são contrárias à democracia representativa e constituem uma das mais perigosas ameaças à democracia parlamentar. Apetece dizer que “com a democracia se destrói a democracia”.
Público, 1.1.2020

domingo, 12 de janeiro de 2020

Grande Angular - Todos os anos, pelo Inverno…

De farpelas negras, esvoaçam por esta altura. Falam, aplaudem e sorriem… São os Magistrados judiciais e do ministério público. Os membros dos Conselhos Superiores. Os advogados, sua Ordem e seu Bastonário. Os presidentes dos Supremos e outros tribunais superiores. A Procuradora geral da República. Os representantes das Relações. Os magistrados do Tribunal Constitucional, especial entre todos. Os dirigentes dos sindicatos e das associações de magistrados, estes tão estranhos corpos no meio de órgãos de soberania. É a abertura do ano judicial, cerimónia muito peculiar. Tem Presidente da República e Presidente do Parlamento. Tem Ministra da Justiça. Ao contrário de outros anos, não teve Primeiro-ministro, ausência incompreensível, pesada de significado, não se percebe bem porquê, mas deve haver caso. Tem Cardeal, Generais, comandantes das Polícias, Inspectores e Directores. É a fina-flor da Justiça, da Segurança, da paz nas ruas e da ordem no espaço público. Normalmente, a cerimónia decorre nos salões do Supremo, no Terreiro do Paço, mas este ano, por motivos de obras, foi deslocada para o Palácio da Ajuda.
Os assistentes, muitos enfarpelados também, reúnem-se com antecedência. O ambiente é solene e cerimonioso. Chega o cortejo. Começa a sessão. A liturgia da abertura do ano judicial é o local por excelência para a “culpa circular”: todos apontam para os outros e se isentam de responsabilidades. A culpa B, que denuncia C, que responsabiliza C, que acusa D… Por vezes fazem-no com elegância, outras com truculentos desabafos. Este ano, a cortesia foi a regra. Quando assim é, culpa-se o sistema, o maior responsável por tudo o que não funciona.
Todos querem reformas, reclamam melhores leis, pedem mais meios, exigem mais recursos humanos e reivindicam mais celeridade, recato, respeito e confiança. Mas, este aparente consenso não resiste à análise. Na verdade, os recursos e os meios de que cada um fala são diferentes. Mais juízes, mais procuradores, mais oficiais de justiça… Mas também vencimentos, promoções, pessoal técnico, despesas de deslocação, equipamento de informação, bases de dados e contratação de serviços especializados … E ainda subsídios de compensação, descontos para a Caixa Geral de Aposentações e isenção de IRS. Uns olham para os meios materiais, outros para os meios técnicos, outros ainda para os meios humanos. Não faltam os que querem os gabinetes de apoio aos juízes. Finalmente, muitos preferem referir-se aos meios materiais e humanos das estruturas de investigação e das polícias em especial. Não! Não há consenso. Cada um pede o que quer e lhe falta, o que é natural. A verdade é que temos ali, durante uma longa e transpirada cerimónia, a maior assembleia de reivindicações de toda a sociedade portuguesa. Só que a cortesia ritual e os bons modos fazem com que em nada se pareça com uma assembleia da CGTP, uma reunião de camionistas ou um piquete de estivadores. Não se parecem com eles, mas exigem mais do que eles.
Não há razões para não acreditarmos em pessoas tão qualificadas e responsáveis. Está ali a nata da sociedade, a elite do Estado e o que de mais prestigiado tem a Administração Pública. Quer isto dizer que não se pode sequer imaginar que um dos representantes esteja a mentir ou a enganar. Só dizem verdades. Mesmo se verdades parciais e interessadas. Mas sempre verdades. É verdade que faltam pessoas e meios. Que as leis são em geral mal feitas. Que existe interferência política onde não deve haver. Que a rivalidade entre os grandes corpos da Justiça (magistrados, procuradores, advogados, oficiais e polícias) é responsável por uma boa parte da sua má reputação. Que um número excessivo de “mega processos” atrasa a justiça, dá mau nome aos magistrados e cria má reputação. Que a produtividade dos tribunais é reduzida, mesmo se os últimos vinte anos têm mostrado uma melhoria. Que a justiça é socialmente injusta. Que os códigos processuais estão desactualizados. Que existe a “justiça dos mais fortes”, o que se revela no facto de aquela ser bondosa para os que mais são ou mais têm. Que os prazos e os processos favorecem escandalosamente o governo, os políticos e os poderosos. Que são deficientes as condições físicas de funcionamento dos tribunais e ineficientes as redes de comunicação. Que continua a vigorar o desprezo pelos mecanismos de segredo de justiça. Que há uma enorme passividade parlamentar relativamente à justiça.
Esta última deficiência é das mais gritantes e, ao mesmo tempo, das menos referidas. Na verdade, muito depende do Parlamento, a começar pelas leis e pelos códigos. O Parlamento tem vastíssimas competências, muitas delas exclusivas, desde a definição de crimes e de penas, à nomeação de magistrados para os órgãos superiores, passando pelos estatutos dos tribunais. O Parlamento esconde-se atrás da independência dos juízes e da autonomia dos tribunais, assim como da iniciativa do governo, para justificar a sua indolência e a sua passividade.
Alguns discursos, na cerimónia de abertura, sublinharam os melhoramentos do sistema de justiça. Em certos casos, têm razão. Os números de processos entrados, findos e transitados mostram uma evolução positiva. Isto é, nos tribunais comuns, parece que a tendência é de progresso: o número de resoluções é superior ao de entradas. Isto apesar de o número de magistrados judiciais estar estagnado há dez anos e o de procuradores em diminuição durante o mesmo período. Numa breve observação europeia, o número de magistrados por habitante é razoável, a meio da tabela.
O problema é evidentemente o dos crimes e processos de corrupção, de criminalidade financeira e económica ou que envolvem nomes pesados da sociedade, da economia e da política.
Como se pode ver com o estado actual do “caso de Tancos”. O Primeiro-ministro e o governo não perceberam que a sua reacção e a sua posição relativamente a este caso só os prejudicam a si próprios. O comportamento do Primeiro-ministro foi culposo e envergonhado. Mostrou desconforto e mácula, além de receio de escrutínio público.
Por sua vez, o Presidente da Assembleia da República percebeu que lhe era difícil isentar os parlamentares de culpas e sobretudo sentiu-se pouco à vontade para criticar os juízes, numa altura em que os processos que visam os políticos são mais do que muitos. Numa intervenção excêntrica e de rara imaginação, denunciou “as presunções de regeneração justicialista”, acusou “um certo clima anti-parlamentar” e defendeu a Assembleia da República que, aliás, ninguém acusou!
Público, 12.1.2020

domingo, 5 de janeiro de 2020

Grande Angular - Mais Governo, mais Estado

Orçamento! É a discussão dos dias presentes e das próximas semanas. É natural que assim seja. Trata-se do documento mais importante que a nossa assembleia legislativa aprova anualmente. Explícitas ou implícitas, estão ali as escolhas do governo, do Parlamento, dos partidos e, em certa medida, da população. As prioridades e as estratégias estão ali desenhadas, assim como as verdadeiras opções. Mesmo se os deputados e os jornalistas vão perder muito tempo com debates inúteis. Quem tiver tempo para ler, perceberá quem fica a ganhar e a perder. Poderá detectar os castigos e os favores. Conseguirá sentir a justiça e a injustiça das políticas públicas. Tudo está ali, para o melhor e o pior. O problema é que se vê mal. E nem sempre se percebe. Com tudo cortado às fatias e às rubricas, é difícil compreender o principal.
Pena é que a intriga seja o tema essencial. Há aliança ou não? À esquerda ou à direita? Cede-se um pouco aos pobres, para agradar ao Bloco, ou aos funcionários públicos, para contentar o PCP? Vamos ter estridência bloquista quanto baste, acidez comunista com fartura. Assim como a presunção dos pequenos partidos que vão falar como se tivessem 30% dos votos! Muito vai ser dito a propósito da desinteligência entre Costa e Centeno, tema relevante, mas não decisivo.
Apesar das contas certas e do possível excedente público, a verdade é que a principal característica deste orçamento é o do aumento do Estado e do Governo. Como há muitos anos acontece. Aliás, as negociações entre partidos têm apenas esse objectivo: gastar mais! Tanto a esquerda como a direita querem gastar mais. Na educação, na saúde, na função pública, nos vencimentos, nas pensões e na justiça: aumentar a despesa e o número de funcionários é a reivindicação.
Sem que se perceba, neste orçamento continua indigitado o caminho para a regionalização. Com as invenções de Costa e Cabrita, não se chama regionalização, chamar-se-á outra coisa qualquer. Talvez descentralização. Não se criarão regiões, mas entidades. Não se farão eleições, mas serão eleitos uns representantes para fazer companhia a uns nomeados: não serão uma coisa nem outra. Tudo será feito para evitar o veto do Presidente da República e para afastar a hipótese de referendo. Mas é este o mais intenso programa com o qual o PS pretende criar um Estado à sua imagem.
Com um palavreado onírico sobre a democracia de proximidade e a sustentabilidade autárquica, o que o governo e o PS propõem é simples. Aumentar o Estado. Aumentar os orçamentos públicos. Criar novas competências para a Administração. Duplicar competências e confundir funções entre o local, o autárquico, o regional e o nacional. Aumentar a despesa. Aumentar a dependência dos concelhos, das freguesias e das comunidades locais. Aumentar a dependência da sociedade civil e dos cidadãos. Na verdade, trata-se de dar mais um passo no alargamento da Administração Pública e do Estado e no enfraquecimento da sociedade civil.
A associação entre representantes com legitimidades diferentes, nomeados pelo governo, designados pela Administração, representantes de instituições públicas e privadas e finalmente eleitos, cria uma espécie de câmara corporativa na qual os cidadãos, as instituições livres, as organizações privadas e as associações ficam tuteladas. As autarquias, a meio caminho entre o Estado e a comunidade, ficam ainda mais amarradas à Administração Pública. Este processo de reforma alarga a malha do Estado. Trata-se de uma regionalização disfarçada que traz para dentro do Estado central as regiões e os municípios. É uma democracia de proximidade que submete os cidadãos ao Estado. Não se trata obviamente de aproximar a administração dos cidadãos, mas sim de incluir os cidadãos na administração. É a isto que se chama uma Administração Pública inclusa!
A leitura combinada dos projectos de regionalização, do programa de governo e do orçamento é luminosa porque permite ver as penumbras. Aonde está a ideia de libertar os cidadãos? Nem uma referência! Aonde estão antigos desejos dos libertários, dos social-democratas e da esquerdas democráticas? Ausentes! Ideias nobres que fizeram décadas de esperança desapareceram. Não se pensa em remover obstáculos à criatividade e à iniciativa dos cidadãos. Morreram os sonhos que alimentaram muita política, quando ser de esquerda era sobretudo ser livre e permitir a liberdade. Nunca substituir a liberdade.
As esquerdas trouxeram solidariedade. Eis uma ambição que prometia grandeza. Mas depressa se transformou em medonha: dar a liberdade, a igualdade e a criatividade! Organizar, orientar, conduzir e mobilizar os cidadãos! Dar-lhes um propósito e garantir a sua absoluta igualdade!
O Governo e seus grandes, médios e pequenos funcionários procuram obsessivamente definir estratégias nacionais, elaborar planos nacionais e construir programas nacionais para organizar a vida de todos. O Governo pretende até elaborar planos para promover Portugal como destino turístico LGBTIQ! O ideal deixou de ser a liberdade, para ser a integração. Tudo é Estado, nada é civil. Tudo é Administração, nada é cidadão.
Os casos aberrantes da Educação e da Saúde são excelentes exemplos. Ambos os sectores estão em crise, sobretudo a saúde. Há cada vez mais médicos e enfermeiros, há cada vez mais professores por aluno, há cada vez menos alunos, nada disso tem importância: o que os partidos do governo e acessórios querem são mais professores, mais médicos e mais enfermeiros, quando é evidente que o essencial é um problema de organização. Portugal é um dos países da Europa com mais médicos por habitante, mas continua a procurar-se mais médicos. Se o Serviço Nacional de Saúde tem um gravíssimo problema de organização, a resposta é vociferar contra a saúde privada! Apesar de haver funcionários a mais, o atendimento dos serviços públicos na segurança social, nos papéis de identidade, no registo de estrangeiros e nas autorizações e licenças é ineficiente, moroso e desigual. Graças às delícias da Internet e da administração digital, há cidadãos pobres, nacionais ou estrangeiros, que são enviados de Lisboa para os Açores ou do Porto para Faro, “a fim de serem recebidos mais depressa”.
O Leviatã, grande monstro marinho, dragão, serpente, demónio e devorador de cidadãos é o Estado forte que se constrói diante de nós. Dia após dia.
Público, 5.1.2020