sábado, 26 de dezembro de 2020

Grande Angular - Provavelmente, o pior…

Pode não ser, desde o fim da segunda guerra mundial, o mais grave. Nem, desde 1974, a pior crise política. Talvez não seja, desde há meio século, o ano da mais difícil crise económica. Nem seja, socialmente, o mais dramático. Mas é tão difícil! Sobretudo porque tudo parece convergir para agravar as dificuldades: política, economia, pobreza, saúde e justiça. Este fim de década é o pior momento de crise e dificuldades que Portugal vive desde a fundação da democracia.

Os mais novos não viveram. Os mais velhos não recordam. Só alguns não esqueceram. Já vivemos tempos muito difíceis. Com os obstáculos e as ameaças à democracia, em 1974. Os repatriados de 1975. As crises económicas e os pedidos de intervenção financeira. A crise da dívida, a assistência internacional e a austeridade. A inflação a mais de 30% e o desemprego a mais de 15%. Mesmo assim, com este tremendo passado recente, vivemos, provavelmente, o pior momento.

Também no mundo já se viveu pior, com efeitos para Portugal. O fim da guerra no Vietname e as guerras asiáticas que se seguiram. As ameaças e os perigos, assim como os violentos episódios de guerra conhecidos, nos Balcãs, no Próximo Oriente e em África. O desmembramento do império soviético e os múltiplos conflitos que se seguiram, da Jugoslávia à Chechénia, da Ucrânia à Arménia. O crescimento incessante das guerras da droga, dos minérios, dos armamentos e dos imigrantes trouxe violência para quase todos os cantos do globo. Também o mundo vive hoje um momento de extrema dificuldade.

A decadência relativa de um poder indiscutível, o americano, projecta sombras sobre a humanidade. As perdas de hegemonia têm sempre consequências temíveis. Em paralelo, a ascensão de novos poderes, de uma nova grande nação à partilha do poder mundial, a China, deixa toda a espécie de interrogações e de novas tensões de efeitos imprevisíveis. E os europeus já estão conscientes de que, sem a América, contra a Rússia e apesar da China, a Europa não resiste à subalternidade.

Note-se bem como quase tudo o que a Europa fez nos últimos anos foi reagir, retomar, equilibrar e salvar. Já não cria, já não avança e já não inova. Reage e resiste. As divisões europeias, o Brexit, a ascensão de movimentos anti-europeus, o recrudescimento do nacionalismo, as divisões entre países e partidos revelam uma Europa a perder o Norte, à deriva e a tentar recuperar o que ainda é possível. Ao que se podem acrescentar as crises de demografia, da imigração e do refúgio. Nunca como agora, nos últimos setenta anos, andaram pela Europa hordas de milhões de vagabundos, esfomeados e doentes, nómadas da sociedade industrial, sem protecção nem futuro, à procura de sobreviver.

Para além da morte e da doença em doses aflitivas, a pandemia revela confrangedora desigualdade entre países ricos e pobres, entre poderosos e destituídos, entre influentes e despojados. Sofre-se nos lares infantis e morre-se nos lares de idosos. É-se mais contagiado nos bairros suburbanos, nos locais de desempregados, nos guetos de imigrados e nas áreas subdesenvolvidas. Há meios científicos, recursos financeiros, poderes políticos e gestão capazes de contrariar a lógica letal da desigualdade e da pobreza. Mas não serão aproveitados, a tempo, tanto quanto se poderia desejar e seria legitimo esperar.

Portugal partilha os problemas da Europa e do mundo, mas acrescenta os seus próprios. Vivemos uma inédita convergência de crises e dificuldades. Sem a tragédia de uma grande guerra, sem o drama dos repatriamentos forçados e dos campos de concentração ou refugiados, mas com a acumulação de crises e ameaças. Iniciamos a terceira década do século XXI com uma enorme crise sanitária; uma ameaçadora crise económica e social; a manifestação drástica de desigualdades profundas; acrescidos fenómenos de pobreza; reduzidas capacidades de criação de emprego e de novas produções; poucos grupos económicos à altura das necessidades de desenvolvimento; sem capitais próprios privados ou públicos; e com soluções políticas de enorme fragilidade. Os grandes sistemas nacionais, saúde, segurança social, educação e justiça encontram-se à beira de uma crise sem exemplo e com difíceis soluções.

Os portugueses não são culpados de tudo, nem responsáveis por todos os factores de crise. Só de alguns e já não são poucos. Mas são responsáveis por grande parte das soluções, das nossas soluções, das soluções que nos dizem respeito, a começar pelas políticas, pela congregação de esforços, pela criação de confiança, pela manutenção da democracia e das liberdades e pela preservação de uma sociedade decente.

As negociações políticas frágeis não anunciam nada de bom. A destruição das grandes empresas nacionais e as vendas injustificadas e em más condições de grupos, empresas e património cortaram-nos as mãos e os meios. A incapacidade de combater a corrupção e de castigar os corruptos é uma deficiência fundamental. Os absurdos termos de “limpeza” e equiparados já surgiram na boca de pelo menos dois candidatos (André Ventura e Ana Gomes), o que apenas traduz impotência e populismo barato.

As eleições presidenciais não vão resolver nenhum destes nossos problemas. Nem sequer vão definir os moldes da acção política futura. Muito menos vão determinar as condições de governação. Em muito especiais circunstâncias, podem ajudar, mas não resolvem. Em finais de Janeiro, ultrapassada que vai estar a eleição presidencial, vamo-nos encontrar no ponto em que estamos, talvez em piores circunstâncias. Mais infectados, mais desempregados e mais pobres.

Apesar de antiga, com tradição e cultura, história e património, a sociedade portuguesa está hoje pobre institucionalmente, tanto na esfera pública como na privada. Tanto na economia, como na política ou na cultura. É, no entanto, aí, que se encontram soluções e meios. No reforço das instituições, públicas e privadas, na consolidação de organizações humanas e sociais capazes de proporcionar a reflexão, de estimular a acção e de dar uma oportunidade aos esforços de construção gradual e racional.

Este próximo ano será exigente como poucos. É possível que se encontrem soluções e remédios para o mais urgente, o que permite sobreviver. Mas de nada servirá o esforço se não preparar o médio e o longo prazo. E podemos ter a certeza: só com instituições mais fortes venceremos. Golpes de sorte e de génio, habilidades e invenções de nada servirão. Instituições e liberdade, sim.

Público, 26.12.2020

sábado, 19 de dezembro de 2020

Grande Angular - Esplendorosa ficção

O balanço global do primeiro mandato do Presidente Marcelo é evidentemente positivo. Muito. Ao contrário do que tanto se diz, os seus maiores trunfos não foram os afectos, nem os seus principais efeitos foram sentimentais. Apesar do frenesim e da agitação, o Presidente trouxe serenidade às instituições. E fez com graça o que outros fariam com solenidade ou fútil popularidade.

Um dos grandes méritos do Presidente Marcelo foi e é o exercício forte e permanente da influência, sem o fazer através das oposições. Isto é, directamente com o governo, por um lado, com a população, por outro. Nisto foi muito diferente de Soares, de Sampaio ou de Cavaco. Aproximou-se dos adversários e distanciou-se dos seus, gesto em que muitos vêm o princípio da traição, mas que é a maior dificuldade na acção de um presidente eleito: ser presidente de todos.

Não exerce a influência que tem graças ao seu poder que, à partida, não tinha. Através da sua influência, conquistou poder. Fez-se sentir útil e necessário. O governo precisou dele. O Partido socialista também. E o primeiro-ministro António Costa nem se fala.

Resolveu um problema delicado: o de articular poder com influência. Já tivemos presidentes com uma e sem o outro. Ou vice-versa. Deu geralmente desastre. Ou insignificância. No seu caso, conseguiu raro equilíbrio.

Popular, combateu o populismo. Jurista, privilegiou a política. Intelectual, exprime-se com impressionante simplicidade. 

O sistema semipresidencialista, iniciado e mal conduzido por alemães, codificado por franceses, com relevo para Maurice Duverger e seguido por devotos portugueses, tem-se revelado útil de vez em quando, inútil quase sempre e prejudicial muitas vezes. Uma revisão histórica dos mandatos presidenciais portugueses mostrará um balanço complexo. Vários parlamentos dissolvidos e governos demitidos por causa da dupla legitimidade constituem um inventário pouco favorável a este sistema. A concorrência de legitimidades provocou mais danos do que êxitos. Esta dualidade, nefasta para a resolução de problemas e de crises, é de especial afecto de muitos juristas e políticos portugueses, amigos de invenções complicadas. Com esta solução, pouco original, não só porque vinha de França, mas também porque se aproximava das primeiras décadas do Estado Novo, os constituintes tentavam evitar Afonso Costa e o seu caos jacobino, mas também as tentações de Sidónio Pais, de Álvaro Cunhal e de Vasco Gonçalves. Com um pouco mais de poderes, o Semipresidente também seria antídoto contra Salazar, adepto do sistema, mas numa variante especial com ditadura do primeiro-ministro.

O primeiro grande mérito do Presidente Marcelo terá sido o de ter conseguido usar o sistema, cumprindo-o, mas colocando-se sempre do lado da estabilidade e do apoio aos poderes parlamentares e executivos. Ao contrário dos seus antecessores, quase todos, não se especializou em dar alento às oposições, nem contrariar o governo com intriga e boatos. Também não criou obstáculos inaceitáveis às leis do Parlamento e não vetou quantidade excessiva de diplomas do governo. Nem sequer, para surpresa de muitos, “plantou” notícias nos jornais ou “semeou” recados nas televisões.

Correu tudo de tal maneira que o sistema semipresidencialista fica quase reabilitado. Quase! Na verdade, o mandato e a legislatura resultaram porque ambos precisavam vitalmente um do outro, Marcelo e Costa, Presidente e Governo. Nunca se tinha ido tão longe no entendimento. A razão é simples: sem governo, sem partido, sem movimento, sem corpos intermediários e apenas em ligação directa através de abraços e de selfies, Marcelo precisava de um profundo entendimento com o governo. Teve o mérito de o perceber. E de o praticar.

Sem maioria, sem apoio parlamentar inocente, fugindo a uma coligação formal, as habilidades de António Costa alimentaram-se do apoio presidencial, sem o qual de nada serviriam. Sem maioria, prisioneiro da extrema-esquerda, com vontade de liderar um governo moderado no essencial e radical no acessório, o primeiro-ministro necessitava de um presidente. Este foi o seu sésamo e o seu pára-raios.

Com o Partido Socialista de António Costa, Marcelo garantiu uma espécie de bloco histórico (socialistas e sociais democratas, católicos e laicos, esquerda e direita moderadas) e permitiu uma longa duração ao mais esquerdista de todos os governos desde 1976. Num ciclo de queda da direita quase irreparável, Marcelo permitiu a sobrevivência de um estado de espírito e de uma memória da direita democrática.

Em algumas áreas importantes, Marcelo perdeu, não conseguiu ter influência, pelo que se distanciou: na Justiça, no SEF, no financiamento do Serviço Nacional de Saúde, na TAP, no Novo Banco… O que se lamenta, pois foram as nódoas negras que ainda hoje afligem o país. Mas tantos fiascos tiveram um lenitivo: foi de influência decisiva em certos casos dramáticos, como os de Tancos e dos incêndios de Pedrógão e de Castelo Branco.

Há ainda o caso da segurança, isto é, das Forças Armadas e das polícias, dos efectivos e do equipamento, assim como da legislação e dos órgãos de supervisão. O Presidente não pode evidentemente limitar-se a observar. Nem apenas ficar à espera, não se sabe de quê. No seu segundo mandato, espera-se que o sempre difícil problema da segurança mereça do Presidente a atenção que deve. Estranhamente ausente no recente caso do SEF.

As suas qualidades pessoais superam largamente os seus defeitos. É culto, talentoso e tem graça. Tem rara consciência do carácter europeu do país, ao mesmo tempo que guardou uma espécie de afeição pelas antigas amizades africanas. É certamente o presidente que melhor conseguiu conjugar as duas inspirações ou as duas ligações. 

A Presidência de República é, em Portugal, uma ficção. Vistosa e ilusória. Episodicamente, pode revelar-se muito importante. Dá a impressão que tem poder. Julga-se que tem enorme influência. Pode conter drama e paixão. Desperta mais indiferença do que inveja. Raramente satisfaz quem dela espera algo de decisivo. Pede-se-lhe tudo, mas quase nada se obtém. E se nada vem, também não faz mal. Não tem adeptos fervorosos, tem sobretudo áulicos e cortesãos. Mas tem desmedido poder de atracção. É uma verdadeira ficção. Que pode ser uma obra-prima, como se sabe.

Público, 19.12.2020

sábado, 12 de dezembro de 2020

Grande Angular - A Europa de dois gumes

O acordo a que os europeus chegaram esta semana agrada a toda a gente. Aos defensores do Estado de Direito, mas também aos que descaradamente violam alguns princípios, direitos e garantias. Aos países que formam uma maioria estável europeia, mas também aos que procuram excepções, como sejam os do Sul, os do Leste, os “Frugais” e os “Despesistas”. Aos que detêm o poder do livro sagrado dos valores europeus, mas também aos que criam regimes de excepção fundamentados em traços nacionais e na tradição. Mais um fim feliz para esta União, prodígio florentino de arranjos e rendilhados. É possível que assim consigamos viver mais um tempo, anos talvez, mas sabemos que se trata de novo adiamento.

No âmago dos problemas, estão, evidentemente, a questão nacional, a autonomia política dos Estados e a interpretação do ideal democrático que cada país ou família política defende. Nas principais crises europeias dos últimos anos, esteve sempre presente a questão nacional. Na Grã-Bretanha, a independência, como fundamento ou pretexto, está no centro do Brexit. Assim como com as Irlandas e a Escócia. Na Grécia, a nação foi factor de crise iminente. Na França e na Itália, os poderes nacionais estão no centro, real ou retórico, dos conflitos. Agora, na Hungria e na Polónia, os seus dirigentes tão pouco democratas recorrem ao argumento nacional, para contrariar as tendências dominantes da União. No Norte da Itália e na Catalunha, conhecem-se os contornos nacionais e regionais do problema.

Os mais importantes países europeus, assim como a União no seu todo, não souberam tratar deste tema convenientemente. E cada vez que julgam que está resolvido, regressa sempre. A galope! O êxito da direita e dos radicais franceses, italianos, austríacos, alemães e outros ficou sempre ligado à retórica nacional. E entre os radicais de esquerda, comunistas ou não, nunca falta o patriotismo: “cá em casa mandamos nós…”

Actualmente, esta espécie de patriotismo americano de Trump, que nos aflige há quatro anos, foi um bálsamo para as direitas europeias e os “nacionais” de qualquer bordo. Trump ajudou tudo e todos. Ajudou Boris Johnson e o Brexit. Ajuda a Irlanda se esta estiver contra a Europa. Ajudou os iliberais. Ajudou Orban e Morawiecki. Como apoiou Erdogan e Putin. Ajudou os que querem partir a União e enfraquecer a Europa.

Verdade é que a Europa e a UE andam a esticar há vários anos. O establishment europeu limita-se a condenar os patriotas e os nacionalistas, negando o problema. Foi o que fez com os italianos e os gregos. Com alguns espanhóis. Com os húngaros e os polacos. Com os franceses da Frente Nacional. O que é certo é que tudo quanto é antidemocrático na Europa aproveitou a oportunidade para fazer prova de vida.

É bem provável que já não seja possível classificar de plenamente democráticos os regimes em vigor na Hungria e na Polónia. Se admitirmos que a democracia e a liberdade podem ter graus, esses dois países estão certamente em défice. Os sistemas eleitorais, a liberdade de expressão e os sistemas judiciais, pelo menos, revelam já feridas indiscutíveis. Apesar de a União Europeia não ter uma medida nem um medidor, é razoável que os Estados membros e a União possam advertir esses países, dizer-lhes que passaram as marcas e ameaçá-los de represálias. Podem mesmo suspender os seus estatutos ou até expulsá-los. Tudo isso é grave, mas nada disso é surpreendente. A UE tem uma estrutura mais ou menos democrática, mas apoia-se ou reúne países democráticos. A democracia é a sua inspiração. Quem não a respeita vai-se embora, sai ou é expulso.

A imposição de regras de direito, de normas políticas e de procedimentos democráticos aceites pelos membros da UE, em países que têm uma versão própria da democracia, que tolhem a justiça, que condicionam a magistratura independente, que limitam as liberdades de informação e de expressão, é legítima e bem-vinda, mas totalmente absurda! A UE não pode vender nem impor democracia, a não ser por medidas de suspensão e expulsão. A Europa tem experiência suficiente para saber que a imposição de regras democráticas à força, com dinheiro ou exércitos, é uma receita desastrosa. Em África, na América Latina e na Ásia, nunca resultou.

Cada vez que os nossos aliados americanos, alemães ou ingleses têm uma qualquer reticência relativamente à política portuguesa e à nossa concepção de justiça, logo se ouvem reclamações de dignidade nacional e de independência. Protestamos contra a imposição de qualquer regra vinda do exterior, mesmo da União, mas, se nos faz jeito impor regras a outros, nomeadamente para receber fundos, não nos importamos com a ideia de exportar ou impor a democracia.

A UE e os seus países mais fortes não podem pretender trocar liberdades por dinheiro, democracia por fundos. As violações à liberdade ou à democracia pagam-se politicamente, não financeiramente. Acertem-se os sistemas de votação e revejam-se as condições de permanência, mas não se tente impor o direito e a democracia à força, com dinheiro.

É bom que os portugueses percebam que, se e quando chegar a nossa vez, teremos perdido a legitimidade para invocar a “dignidade nacional”. Se os países da Europa do Norte ou os países ricos da União ou qualquer outro grupo de países entende pôr em causa o valor do Estado de Direito em Portugal a tarefa é fácil. Os atrasos da justiça, especialmente em casos de corrupção; a prática impune de violação do segredo de justiça; a desigualdade de tratamento, pelo sistema judicial, dos pobres e das mulheres; o primado do Estado em qualquer processo entre os cidadãos e a Administração Pública; o mais desbragado machismo em casos de violência doméstica; a distorção, sempre desfavorável ao cidadão, do processo judicial fiscal; a existência de cláusulas secretas em alguns contratos de parceria público privada; as regalias e os privilégios de que gozam os arguidos muito ricos; estes factos chegam para pôr em causa o Estado de direito em Portugal e seriam suficientes para interromper os fluxos de fundos da União!

Ao mesmo tempo que a União deu prova de resposta concertada, no caso da pandemia, esta crise veio mostrar a fragilidade da construção europeia. Ora, mais uma vez se comprova que a Europa foi longe de mais. A União foi longe de mais. Recuar é difícil, mas vai ser necessário. Como é evidente, compete aos povos polaco e húngaro, assim como aos vizinhos do grupo dito de Visegrado e aos bálticos, guardar e enriquecer a democracia local. Como fizeram os americanos com o seu ameaçador presidente.

Público, 12.12.2020

domingo, 6 de dezembro de 2020

Grande Angular - O caso da Justiça

 A actuação do competente, intolerante e autoritário ministro Eduardo Cabrita, assim como dos seus dirigentes, designadamente da Directora do SEF, é reveladora e inadmissível. Sem explicações, sem vigor nem rigor, sem desculpas nem escrúpulos, consideram-se imunes e ao abrigo de qualquer crítica. Os seus erros são virtude e as suas falhas inexistentes.

 O caso do cidadão ucraniano detido, batido, torturado e assassinado por agentes da polícia de estrangeiros nos corredores esconsos do aeroporto já deveria ter suscitado, pelo menos, uma atitude de arrependimento, de correcção ou de julgamento. Conforme está, fica-se pelos piores terrenos, os da indiferença, do despotismo e da insuportável arrogância dos virtuosos no poder.

 

Sabemos que os tempos não são bons e não correm de feição. Toda a realidade está dominada pela pandemia. Toda a vida social e económica está hipotecada pela doença e pelas tentativas de a combater. Mal ou bem, as autoridades fazem o que podem e o que sabem. O problema é que parecem poder pouco e saber menos. Felizmente que as soluções estão a ser encontradas no quadro da União Europeia, o que permite que os países menos apetrechados, como o nosso, tenham respaldo.

 

Não sabemos como as autoridades se vão sair desta tragédia, nem sabemos como vão dirigir a campanha de vacinas para a qual não há evidentemente treino, meios e equipamentos. Por enquanto, imagina-se que haja algumas competências institucionais, boas vontades profissionais e dedicação individual, mas, como se sabe, nada disso chega para resolver o essencial: vacinar uns milhões de pessoas em pouco meses. Já se preparara o mercado negro de vacinas. Já há planos para as cunhas, os favores, as falsas prioridades, a ruptura de stocks e os atrasos injustificados. É neste terreno da organização que as causas se ganham ou perdem. E que em Portugal tantas vezes se perdem, como com os incêndios, os temporais e respectivas reparações.

 

Obcecado com a política, as sondagens e as futuras eleições, o governo entregou-se à infinita habilidade de António Costa e a uma poderosa máquina de comunicação que de tudo faz propaganda. Até da doença. O principal plano do governo parece resumir-se a uns pontos claros. Não precisar da oposição. Governar sozinho. Obter os dinheiros da União Europeia. Aguentar as sequelas do desastre económico. É pouco.

 

Da oposição, não vem mais nem melhor. Uma oposição de esquerda vendida e calculista. Uma oposição de direita desorientada e oportunista. Oposições unidas num desígnio maior: o de vigiar de perto a impotência do governo e espreitar os seus erros para aproveitar eleitoralmente. Nunca, na história recente, se viu tamanha sarna à espera que o governo falhe e que a população sofra uma tragédia. Uns esperam que a pandemia destrua o governo, outros gostariam que a impotência das autoridades se pague com uma derrota. Conhecemos a frase feita: quanto pior, melhor! É o santo e a senha das oposições contemporâneas.

 

A aprovação do orçamento foi um caso aberrante. Berros e negociações inadmissíveis, chantagens e oportunismo por excesso, perda de vista de tudo o que é essencial, com visível favor a tudo o que possa ser resolvido com as habilidades do costume. Um governo de um país em séria crise que depende, para os seus orçamentos, de duas deputadas independentes caprichosas e rebeldes, de abstenções tácticas e com reserva mental e de dádivas de medidas que se prestam à demagogia barata… Não é boa receita. Não é auspicioso. Nem bom sinal. O governo que faz estas coisas, que assim se porta, que perde de vista o que é essencial, não merece confiança nem nos dá esperança.

 

Bastavam a dívida pública, a TAP, o Aeroporto de Lisboa e o Novo Banco para exigir um governo com autoridade, maioria e estabilidade. Com a pandemia e as consequências desastrosas para a economia e a sociedade, um governo com autoridade é ainda mais necessário. Até porque não se trata apenas de resolver os problemas visíveis e urgentes, a começar pela saúde, pelas falências e pelo desemprego. Trata-se também de não perder de vista que há um país adiado, atrasado, impune, que não sabe resistir à intriga, ao roubo e à corrupção.

 

É bem possível que, um dia, vacinada a população, consolidada a imunidade e depois de feito o luto necessário multiplicado por milhares, regressemos aos nossos problemas, à economia e à sociedade, com relevo para a justiça, que não deveria ficar mais uma vez adiada ou, pior, suspensa até mais ver, sem dia marcado.

 

As intenções legislativas, excelentes mas pouco práticas, da Ministra da Justiça, no combate à corrupção, parece ficarem em terra de ninguém. Algumas novas directivas da Procuradoria-geral da República levantam as mais sérias dúvidas em quase toda a comunidade judicial. As negações de justiça de que são vítimas tantas mulheres são arrepiantes. Valerá a pena recordar os casos de Justiça? Isto é, a lista estonteante de casos não resolvidos, de casos eternos, de casos à espera, de casos sempre adiados, de casos de que não se vê fim nem solução?

 

Será que temos de esperar com indiferença pela prescrição, pelo mistério e pela decisão inconclusiva, relativamente aos casos do nosso subdesenvolvimento político e moral? Será que estamos condenados a deixar passar os processos que mais prejudicaram o país e que mais honra destruíram? Será que a falta de maioria política, a ausência de uma clara legitimidade democrática e a obsessão com a habilidade nos vão condenar a deixar passar os arguidos da Operação Marquês, os responsáveis visados pela Operação Monte Branco, os trafulhas dos Vistos Gold e os culpados citados pelas operações do BES, do GES, do Banif, do BPN, do BPP, da PT e da EDP?

 

Será que estamos mesmo condenados a ter os mais ilustres corruptos e bandidos da Europa, em cujo elenco se incluem Primeiro ministro, ministros, secretários de Estado, deputados, presidentes de câmara e vereadores, directores-gerais, secretário-geral de ministério, presidente de Instituto, chefe de polícia, magistrados de primeira instância e da Relação, alguns dos mais importantes banqueiros, gestores e administradores de algumas das mais importantes empresas privadas e públicas, oficiais das Forças Armadas e dirigentes de polícia militar?

 

A pandemia não pode ser desculpa para a injustiça. Nem para a falta de Justiça.

Público, 6.12.2020