segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Grande Angular - O Partido Socialista e o Estado

Por mérito próprio e demérito dos seus adversários, é provável que o Partido Socialista ganhe as próximas eleições. Faltam poucas semanas e não se vêem sinais vencedores de outros partidos. Também é possível, mas não provável, que ganhe as eleições com maioria absoluta. Haverá, talvez, nova solução de governo, não necessariamente a mesma que temos hoje.
O exame dos programas eleitorais já foi exercício interessante. Eram programas para serem lidos. Raras vezes para serem tomados a sério, mas eram peças de doutrina que significavam alguma coisa. Hoje, a sua leitura é cada vez mais uma perda de tempo. São enormes, mal escritos, têm de cobrir todas as áreas, prioridades, eleitores, tribos e interesses. É aliás provável que sejam elaborados para não serem lidos. Têm só de ser feitos. Mas, com mais de uma ou duas centenas de páginas, não se destinam evidentemente a ser lidos. Nem por profissionais.
Vale a pena olhar para o programa do PS, com 140 pesadas páginas. É o provável vencedor e a maior parte dos outros ainda não está disponível. O programa é interessante porque traduz o seu actual carácter. Não é programa de governo, esse virá depois das eleições. Muitos capítulos deverão ser ponderados, mas, globalmente, há algo a salientar. O PS está a viver o seu momento mais estatal, dirigista e centralizador de sempre. A sua viragem à esquerda, a fim de impedir o progresso do Bloco e do PCP, fica aqui consagrada. O reforço do Estado está bem visível neste programa.
O PS não se propõe “libertar” energias, cidadãos, empresas, autarquias ou iniciativas. O PS propõe-se enquadrar, comandar, dirigir, orientar e, numa palavra, fazer. O PS não quer deixar fazer, não deseja que outros façam, quer fazer. E o que ele não fizer, proíbe ou dificulta.
O programa erige o Estado em salvador da sociedade. O Grande Leviatã está de regresso. Depois de devaneios com o espírito liberal, a sociedade civil, o mercado e a social-democracia, o PS dá sinais de regresso a uma das suas origens, a mais estatizante e jacobina. Este programa confirma, acima de tudo, o papel do Estado, o enquadramento pelo Estado, a iniciativa do Estado e a intromissão do Estado na vida dos cidadãos.
Não, não vale a pena recear o comunismo do PS, que não está no programa. Aliás, basta o Estado português e os “Fundos” da UE para substituírem, com vantagem, o comunismo clássico. Já não são de recear os efeitos do actual governo, isto é, o PC não conseguiu converter o PS. Pelo seu lado, o Bloco comoveu os socialistas, deu-lhes inspirações para a superstrutura, os comportamentos, as virtudes, a ética, o sectarismo cultural e a correcção política, mas não parece ter convencido nas áreas mais importantes do sistema político, da democracia representativa e da economia de mercado. Pode, todavia, recear-se a deriva autoritária do PS no que toca às regras de vida colectiva, a sociedade dirigida pela virtude e o endeusamento do Estado.
Fazer, ordenar, proibir, organizar, comandar: essas são as palavras do PS, esses são os temas! Aqui, não se pensa em libertar, demolir muros, remover obstáculos, permitir… Só se pensa em fazer, mobilizar, planificar… Deixar fazer é impensável. Permitir é sinal de fraqueza.
Antigamente, governava-se por campanhas. As de África ficaram na história. Na República e no Estado Novo, prosseguiu-se e desenvolveu-se a tradição com as Campanhas de Alfabetização e de Educação de Adultos, com a Campanha do Trigo ou da Vacinação contra a Tuberculose. No início da democracia, a famigerada Campanha de Dinamização Cultural foi a mais interessante de todas: a pretexto de sensibilização democrática, lançou-se um dos empreendimentos mais totalitários da história política portuguesa.
Com o fim das Campanhas, apareceram os Planos. Mais intelectuais e aparentemente mais sérios. Surgiram assim os Planos de Fomento. Logo a seguir à revolução de 1974, passou-se a um Plano de Desenvolvimento Económico e Social, seguido das veleidades constitucionais das Grandes Opções do Plano e do Plano a longo prazo. Agora, entrámos na fase das Plataformas, dos Programas e dos Planos Nacionais, às dezenas. Planos para tudo e para todos. Para as Artes, o Regadio, a Literacia, a Energia e os Transportes.
Hoje, verdadeiramente sofisticada é a noção de Estratégia. Estratégia Nacional para isto ou para aquilo. Acompanhada de um ou vários Observatórios. Estratégia implica inteligência. Sugere esforço organizado. Exige mobilização e sensibilização. Motivação e recursos. Neste programa, entre as já existentes e as novas, agora propostas, há dezenas de Estratégias Nacionais, como, por exemplo: de Mobilidade Activa, para a Igualdade e a Não Discriminação, para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, de Combate à Pobreza, para a Integração dos Sem-Abrigo, da Indústria 2030, para a Bioeconomia Sustentável 2030, para o Mar 20/30, para a Reutilização de Águas Residuais, de Educação Ambiental, para uma Protecção Civil Preventiva, de Desenvolvimento Integrado das Regiões de Fronteira, de Empreendorismo e de Turismo 2030.
Sem esquecer, evidentemente, os Planos Nacionais. São dezenas deles: Ferrovia 2020, de Literacia Democrática, de Leitura, das Artes, Sectorial da Defesa Nacional para a Igualdade, de Gestão Integrada de Fogos Rurais, de Segurança Rodoviária 2021/2030, Energia e Clima 2030, de Promoção de Biorrefinarias 2030, de Gestão das Regiões Hidrográficas, de Gestão de Riscos de Seca, de Gestão de Riscos de Inundação, de Ordenamento das Albufeiras de Águas Públicas, Poupança Floresta, de Acção para a Economia Circular, de Acção Litoral XXI, de Situação do Ordenamento do Espaço Marinho Nacional, de Aquacultura em Águas de Transição e não ficamos por aqui. Ainda faltam os Programas Nacionais, os Fundos, as Bolsas e as Plataformas.
Para tudo isto, é necessário ter instituições, leis orgânicas, funcionários, subcontratações, ajustes directos, impostos e confiança política. Pode não ser totalitário, mas este Estado é partidário, ineficiente, burocrático e autoritário. Não desenvolve, nem deixa desenvolver. Não cria riqueza, nem deixa criar.
O Estado pode ser uma das grandes criações da Humanidade. Mas também é capaz de ser, tal como o fizeram os comunistas, os fascistas, os nazis, os corporativistas, os revolucionários do Terror e outros, um dos maiores horrores da espécie humana. No outro extremo, a ausência e a fraqueza de Estado, tal como querem os neoliberais e os anarquistas, podem ser a raiz de outras formas de totalitarismo e de selvajaria. Entre os dois modelos, o PS oscila.
Público, 25.8.2019

domingo, 18 de agosto de 2019

Grande Angular - Ameaças

Desde 1975 que não se assistia a ameaças tão contundentes à liberdade de expressão, aos direitos de informação, associação e à greve.
Ter uma opinião sobre os imigrantes, as minorias, a integração racial, o multiculturalismo, o racismo e temas afins é hoje uma actividade perigosa! Se as opiniões não forem o que está consagrado pela aliança do governo, podem ser motivo de processo-crime, hipótese que se traduz em verdadeira intimidação. Anuncia-se já uma revisão das leis que regulam “os discursos de ódio”, designação perigosíssima, próxima de outras utilizadas pelos regimes fascistas, nazis e comunistas!
Reunir em Portugal movimentos e partidos políticos de direita ou de extrema-direita, provavelmente de conotação fascista, eventualmente de crenças racistas, pode ser actividade de risco e incorrer em intimidação, agressão pura e proibição legal.
Exprimir opiniões contrárias a certas instituições sagradas, como sejam os clubes de futebol, é uma actividade perigosa, propícia a acabar nos tribunais. Também aqui, não se sabe ainda o que estes decidirão, mas a carga de intimidação está preparada. 
Desenvolver actividades sindicais que não sejam do agrado do governo e da sua aliança, pode levar a situações muito delicadas, como tem acontecido com as greves dos camionistas não conformados com os estabelecidos.
Uma greve conduziu, com rapidez inédita, a uma requisição civil atrevida, acompanhada da mobilização imediata das polícias e das Forças Armadas, em gesto muito ameaçador. O governo pôs-se a jeito para aproveitar o vento e virar a seu favor os receios de uma perturbação gigantesca da vida quotidiana. Mas a verdade é que o desvario de um sindicato não justifica nem desculpa os desmandos do governo.
O PS está a mudar. Perigosamente. Está a ceder às esquerdas radicais, antidemocráticas ou totalitárias. As mais profundas convicções democráticas e liberais que marcaram o carácter do PS estão a sofrer uma erosão manifesta, causada pelo apetite de poder e pela influência ideológica do Bloco.
Ademocracia é o regime de todos, incluindo dos antidemocratas. A democracia defende-se com o bom governo, o reconhecimento dos cidadãos, a identificação com os valores do regime e a atenção prestada pelos dirigentes às necessidades do seu povo! A democracia não se defende com propaganda, muito menos com proibições de pensamento e de opiniões. A Justiça e a democracia castigam acções, não intenções. São punidos os gestos e as obras, não as opiniões. Os crimes são actos, não discursos.
A democracia é o regime de toda a gente, incluindo racistas e xenófobos. Todas as idades, raças, géneros, opções e condições cabem dentro da democracia, nenhuma pode ser expulsa. Ninguém é criminoso ou pode ser proibido pela sua opinião. Mesmo os insultos são permitidos. Se forem calúnias, deverão ser tratados como actos, não como opiniões.
A democracia admite a diversidade e a diferença. O conflito e a polémica. A democracia não permite que se castigue quem é diferente. Mas não admite que as diferenças cheguem à violência, à eliminação dos outros, à tortura, à mutilação, à segregação violenta e a todas as formas que implicam infracção à lei, comportamentos ilícitos e violação de direitos dos outros. A democracia admite o preconceito, a estupidez e a presunção racial, desde que sejam opiniões. Traduzidos em actos, a violência sobre minorias, a segregação, a tortura sob qualquer forma, a expulsão de local público, a mutilação e o mercado de seres humanos são merecedoras de punição. A democracia admite todas as formas de ambição e de utopia, sejam a revolução social, a restauração nacionalista, o apostolado cristão, o proselitismo muçulmano e a pregação de qualquer outra forma de convencimento, desde que não se traduzam em actos violentos e atentatórios dos direitos de outros.
A democracia é um corpo simples de princípios e de convenções que pode coexistir com várias ideologias e filosofias políticas. A democracia não proíbe opiniões. Nem religiões ou crenças. Nem credos nacionais. Nem aspiração revolucionária. Mesmo sabendo que o nacionalismo pode violentar, que a revolução mata, que a religião pode torturar e que as utopias podem coagir: enquanto forem opiniões, a democracia não pode proibir.
Aliberdade de expressão parece ser actualmente o valor mais ameaçado. Estranhamente, há em Portugal quem se queira notabilizar nesse esforço de condicionamento. Os socialistas, as esquerdas e certas minorias étnicas ou religiosas revelam reflexos perigosos de intolerância, como se a intolerância dos outros e a do passado justificassem a deles. E rapidamente recorrem à tentativa de condicionar a liberdade de expressão.
Convencido de que o seu ADN é um salvo-conduto para a democracia, o PS português está a perder qualidades. Dá sinais de aceitar que existem limites severos à liberdade de expressão, de que as Forças Armadas podem intervir em conflitos laborais e de que os tribunais são bons substitutos para a arbitragem e a negociação. Em questões como a segregação racial, o racismo, a desigualdade étnica e social, o assédio sexual e a violência doméstica, os socialistas estão a considerar crime o que muitas vezes é mera afirmação ou opinião.
Por sua própria iniciativa, porque julgam que a autoridade dá frutos eleitorais, porque cedem às influências do PCP e do Bloco, os socialistas estão a mudar de pele. Estão a deixar de entender que a democracia é de todos, mesmo dos antidemocratas. Que a tolerância é de todos, mesmo dos que o são pouco. Estão a torcer o direito à greve e a comprimir a liberdade de expressão. Estão a chamar as Forças Armadas para se envolverem em lutas sociais. 
Estamos a viver tempos difíceis para a democracia e para as liberdades, designadamente a liberdade de expressão. O PS está a perder gradualmente a sua tradição liberal, a sua veia tolerante e a sua marca democrática que parecia inamovível. O PS está a deixar que as suas pulsões escondidas, jacobinas, de intervenção estatal, de condicionamento da livre expressão e de intolerância apareçam à superfície e se transformem em método de acção. A liberdade, em Portugal, não depende só dos socialistas, mas está por eles muito marcada. Se faltar o seu contributo republicano, democrático e liberal, poderemos ter de viver tempos cinzentos que julgávamos ultrapassados por muitos anos. Num país, como o nosso, em que a direita liberal é tão escassa e volúvel, a esquerda democrática é essencial. Mas, se é a primeira a não respeitar as suas boas tradições, então temos um problema!
Público, 18.8.2019

domingo, 11 de agosto de 2019

Grande Angular - Corrupção, ditadura e democracia

Nunca se saberá com certeza indiscutível. Há mais corrupção com a ditadura ou com a democracia? E, no caso da ditadura, há mais corrupção com o fascismo, com o nazismo ou com o comunismo? As respostas podem ser traiçoeiras. Muitos autores contemporâneos, com algumas razões para isso, sugerem frequentemente que a democracia é mais corrupta. Por outras palavras, um regime político democrático implica também a democratização da corrupção. E do crime em geral. Como é imaginável, há evidência para confirmar isso. E o seu contrário. Tudo depende das definições de democracia, de corrupção e de ditadura.
Uma coisa é segura: os regimes ditatoriais e ainda mais os totalitários não podem permitir a iniciativa individual e a ambição pessoal, a não ser que se exprimam através do Estado e do partido, com as regras estabelecidas por ambos. E correndo evidentemente os respectivos riscos. Ora, a corrupção é quase sempre uma forma especial de ambição e de iniciativa. É certamente um método de enriquecimento, outro fenómeno mal amado pelos partidos ditatoriais, a não ser, evidentemente, que se trate dos senhores dos respectivos partidos, governos e Estados. Por isso, as ditaduras e os partidos autoritários dão sinais de que não admitem a corrupção.
Não é difícil imaginar que, na Alemanha nazi, na Itália fascista, na União Soviética comunista e na China maoista havia pouca corrupção, tal como a entendemos. Na verdade, as matilhas políticas que tinham capturado o Estado definiram regras simples: o que é nosso ou o que nós fazemos é a lei; o que os outros fazem é ilegal e subversivo. Em ditaduras menos ferozes como, em seu tempo, a portuguesa, a espanhola, a brasileira ou a argentina, a corrupção independente tinha um pouco mais de liberdade, em paralelo com a legalizada pelos governos. Mas, por exemplo, fenómenos do género “porta giratória” entre a política e a economia eram frequentes em ditadura e nem sequer muito condenados. Ora, são hoje, em democracia, condenados, apesar de não eficazmente combatidos. Há mesmo, infelizmente, um relativo grau de tolerância, equivalente ao que se verifica com a permissividade do emprego familiar dos políticos, vulgo nepotismo democrático.
Na democracia contemporânea, fértil em corrupção e nepotismo, tem-se assistido, e bem, ao crescimento dos sentimentos críticos desses venenos das liberdades. A imprensa mais séria, os partidos da oposição a qualquer governo, os sindicatos mais austeros, as empresas mais honestas, os críticos da desigualdade social, algumas igrejas e bastantes pessoas têm vindo a revelar justo furor a propósito da corrupção e da ineficácia dos alegados combates contra essa peste. Mas há também uma grande onda contra a corrupção que parece não estabelecer diferenças nítidas entre democracia e venalidade política.
É uma espécie de “Catch 22”. Nesse famoso livro de J. Heller, os pilotos americanos que faziam a guerra no Sul da Europa entravam muitas vezes em stress, verdadeiro ou fingido. Longos dias de guerra e bombardeamento, assim como elevado número de feridos e mortos, poderiam ter efeitos psicológicos nocivos. Como em todas as guerras, muitos estavam com vontade que aquilo acabasse depressa. Nos regulamentos, havia uma cláusula que permitia que um piloto que, por motivos de stress ou desequilíbrio moral, mostrasse incapacidade psicológica para prosseguir a guerra, podia requerer a dispensa e o regresso a casa ou a afectação a outros serviços mais “brandos”. Em poucas palavras: quem, por efeito da violência da guerra, se sentisse traumatizado, poderia requerer a dispensa. Todavia, se a Junta Médica detectasse que o soldado estava sob stress, concluía que ele se encontrava em boa saúde e por conseguinte tinha de prosseguir a guerra. Noutras palavras, só os afectados gravemente é que estavam em boas condições psicológicas, preparados para matar e bombardear. Quem fazia a guerra e não se sentia tocado psicologicamente não deveria estar com toda a sua saúde. Quem ficasse afectado pelas circunstâncias estava em boa saúde e reagia previsivelmente, com normalidade, o que quer dizer que estava apto para o serviço!
Rosnar contra a corrupção é bem. Denunciar a corrupção dos adversários é bem. Acusar de corrupção os inimigos, os ricos, os altos funcionários ou outros, é bem. Também é bem denunciar os partidos que admitem e cultivam a corrupção. Mas, lutar contra a corrupção é também justicialismo, populismo e espírito antidemocrático! Hitler, Salazar, Péron, Mussolini, Estaline, Mao, Chavez, Maduro e outros também lutaram contra a corrupção e deu o que deu! Trump, Orban, Salvini, Le Pen e Bolsonaro também já anunciaram que iam lutar contra a corrupção…
A luta contra a corrupção é defendida por muita gente. Sobretudo por quem está fora da política e quer entrar por essa via: o primeiro objectivo consiste em varrer quem lá está, ideia que tem grandes potencialidades de demagogia. A corrupção parece logo ser a mais popular das bandeiras! Quem se quer ver livre dos políticos, dos partidos e dos sistemas democráticos, arvora-se em defensor da democracia pela luta contra a corrupção. Uma das grandes armas do justicialismo latino-americano era (e é…) a sua veia anti-corrupção. Conquistado o poder, deu no que deu. É este o “catch 22”: a corrupção liquida a democracia, a luta contra a corrupção também!
Em Portugal, os últimos anos assistiram a um aparente ou real aumento da corrupção e do nepotismo. Real, se corresponde à verdade dos factos. Aparente, se resulta de superior visibilidade. Mais graves ainda são os fenómenos de assalto ao Estado e de puro banditismo financeiro que se instalaram e de que a justiça portuguesa não parece capaz de tratar a tempo. Porque não sabe, porque não pode ou porque não quer. Por outro lado, o legislador, ao traduzir os interesses partidários, também não parece muito interessado em se ocupar do assunto com eficácia.
Verdade é que prefiro uma democracia corrupta a uma ditadura virtuosa! Sei que, nesta última, não há qualquer esperança. É verdade que, no primeiro caso, a corrupção pode destruir as liberdades. Mas sei que há esperança de evitar que tal aconteça. E sei que as liberdades e a democracia poderão, sublinho e repito, poderão encontrar formas de combate à corrupção que não sejam apenas novas formas de nepotismo e favoritismo de partido.
Certo e seguro é que a corrupção é mal vista por toda a gente. Menos pelos corruptos. E pelos invejosos. Que são muitos.
Público, 11.8.2019

domingo, 4 de agosto de 2019

Grande Angular - As quotas

Em 1960, o corpo docente do Ensino Superior era essencialmente composto por homens. As mulheres eram 11% do total. Actualmente, as mulheres representam 45%. Dentro de pouco tempo, serão maioritárias.
Em 1960, as mulheres eram 29% do total de estudantes no Ensino Superior. Hoje são 54%.
Em 1960, as mulheres eram 24% do total de licenciaturas obtidas nas universidades portuguesas. Em 2018, as mulheres representaram cerca de 59% dos diplomados do ensino superior. 
Em 1970, os doutoramentos defendidos por mulheres representaram cerca de 7% do total. São hoje mais de 55%.
Actualmente, as mulheres obtém os seus diplomas de ensino superior em menos tempo do que os homens.
Tudo isto se obteve sem quotas nem qualquer outra forma de discriminação positiva.
Uns dirão que foi o capitalismo, a fim de melhor explorar os trabalhadores. Há quem garanta que o patronato foi obrigado a recorrer às mulheres, por causa da falta de homens. Outros dizem que foram os homens que, assim, exploram as mulheres duas vezes, em casa e no trabalho. Não falta quem diga que tudo isto se ficou a dever aos homens e à democracia, unidos na promoção das mulheres. E podemos ainda contar com os defensores das políticas educativas que conduziram a esta situação. Também há quem assegure que tudo se deve aos movimentos feministas. São todas excelentes explicações. Certo e seguro é que aqueles resultados se devem, não a quotas, mas simplesmente ao trabalho das mulheres.
Quotas, preferências e regimes ou concursos especiais para chegar ao Ensino Superior já existem abundantemente. Residentes nos Açores e na Madeira, emigrantes portugueses no estrangeiro, contratados e permanentes das Forças Armadas, diplomatas no estrangeiro, bolseiros e funcionários a servir no estrangeiro, cidadãos dos países africanos no quadro de acordos de cooperação, bolseiros dos PALOP, funcionários estrangeiros de missões diplomáticas em Portugal, atletas de alta competição, deficientes e naturais ou filhos de naturais de Timor beneficiam de estatutos que lhes conferem facilidades, dispensa de notas mínimas ou isenção de provas para ingressar nas Universidades. No total, cerca de 30% dos candidatos são assim admitidos. 
Discute-se agora mais uma hipótese: a de criar quotas para as minorias africana e cigana. O debate corre os seus trâmites, tendo já dado origem a polémica acesa no espaço público. É uma infeliz via esta, a de aumentar o número de quotas e de regimes especiais, de favor e de privilégio. Obrigar à admissão de minorias étnicas ou de grupos raciais é uma das más invenções das fragmentadas sociedades contemporâneas. Os avanços da cidadania democrática e da igualdade estão constantemente a ser combatidos pelas tendências corporativas e cartelizadas dos grupos políticos e de interesses que não hesitam em recorrer às vias do despotismo legal para impor novas formas de apartheid multicultural. Verdade é que a fragmentação racial sob qualquer forma é racista.
O caso da “minoria africana” é particularmente sensível. Sobretudo porque dá origem aos maiores mal entendidos. Árabe, Beduíno, Berbere, Mouro, Bóer, Branco e Indiano de vários países de África são africanos ou quê? E por que razão se deveria criar quotas para Africanos, de uma só ou de várias cores, e não para os Chineses, Brasileiros, Nepaleses, Paquistaneses, Ucranianos e outras minorias presentes em Portugal?
É verdade que há numerosos grupos de pessoas, com ou sem estigma racial, com desfavor familiar ou social, sem meios económicos ou culturais, com muitas outras insuficiências ou deficiências e que têm dificuldades em aceder aos bens imateriais, à cultura, à educação, à formação profissional e a outras formas de promoção pessoal. Conceder-lhes sistemas de favor, consagrados pela lei e traduzidos em quotas de privilégio, é sempre um gesto de paternalismo indigno que desnatura o essencial das instituições de ensino e formação. É enorme a injustiça que reside na eliminação de umas centenas ou milhares de candidatos que reuniriam as condições de admissão à universidade mas que são eliminados para poderem entrar os dos regimes de favor em nome da bondade. Eliminar candidatos médios a benefício de maus candidatos favorecidos pela etnia, pela profissão dos pais ou pela região de origem é profundamente injusto, despótico, corporativo e oportunista. Os fanáticos da engenharia social e política não se dão conta de quanto são racistas.
Os grupos desfavorecidos podem e devem ser apoiados por todos os meios existentes que não ferem princípios fundamentais de justiça, de igualdade e de mérito. Mais úteis do que as famigeradas quotas e do que a traiçoeira discriminação positiva são os apoios, bolsas de estudo, incentivos, explicações, ajudas para alimentação e alojamento oferecidos por fundações, misericórdias, cultos, associações, autarquias e empresas. Assim se podem concretizar todos os apoios justos e devidos a indivíduos e a comunidades regionais, religiosas, étnicas ou nacionais!
A universidade não é um direito de todos, é um mérito alcançado com trabalho e esforço. É algo que se obtém com merecimento. É um bem raro e caro que deve ser valorizado por quem o merece, por quem dele faz um instrumento de desenvolvimento pessoal, da arte e do saber. A correcção das injustiças sociais que resultam da desigualdade económica não deve ser feita através da destruição do que mais importa numa instituição de ensino superior: o mérito que resulta do esforço. A correcção da injustiça faz-se através do fornecimento de meios aos que querem esforçar-se e lutar pelo saber e pela formação. A correcção da injustiça não se faz com a criação de uma nova injustiça, nem com a destruição de um valor, o da ciência e da cultura.
Odebate sobre as quotas no acesso ao Ensino Superior foi recentemente enriquecido por uma proposta do CDS: os candidatos que, por falta de mérito e de nota, fossem eliminados, poderiam comprar o seu lugar. Isto é, seriam equiparados a estrangeiros que pagam elevadas propinas. O absurdo desta proposta é tal que quase impede que seja discutida serenamente. Como é possível imaginar que seja permitido comprar um lugar na universidade? É tão ou mais chocante do que as políticas racistas que promovem ou dificultam o acesso de grupos étnicos e raciais. Portugal necessita de políticas que promovam os melhores e os mais capazes de todas as classes e de todas as etnias, não as que tentam criar e preservar privilégios. Brancos ou negros. Ou assim-assim.
Público, 4.8.2019