Nunca se saberá com certeza indiscutível. Há mais corrupção com a ditadura ou com a democracia? E, no caso da ditadura, há mais corrupção com o fascismo, com o nazismo ou com o comunismo? As respostas podem ser traiçoeiras. Muitos autores contemporâneos, com algumas razões para isso, sugerem frequentemente que a democracia é mais corrupta. Por outras palavras, um regime político democrático implica também a democratização da corrupção. E do crime em geral. Como é imaginável, há evidência para confirmar isso. E o seu contrário. Tudo depende das definições de democracia, de corrupção e de ditadura.
Uma coisa é segura: os regimes ditatoriais e ainda mais os totalitários não podem permitir a iniciativa individual e a ambição pessoal, a não ser que se exprimam através do Estado e do partido, com as regras estabelecidas por ambos. E correndo evidentemente os respectivos riscos. Ora, a corrupção é quase sempre uma forma especial de ambição e de iniciativa. É certamente um método de enriquecimento, outro fenómeno mal amado pelos partidos ditatoriais, a não ser, evidentemente, que se trate dos senhores dos respectivos partidos, governos e Estados. Por isso, as ditaduras e os partidos autoritários dão sinais de que não admitem a corrupção.
Não é difícil imaginar que, na Alemanha nazi, na Itália fascista, na União Soviética comunista e na China maoista havia pouca corrupção, tal como a entendemos. Na verdade, as matilhas políticas que tinham capturado o Estado definiram regras simples: o que é nosso ou o que nós fazemos é a lei; o que os outros fazem é ilegal e subversivo. Em ditaduras menos ferozes como, em seu tempo, a portuguesa, a espanhola, a brasileira ou a argentina, a corrupção independente tinha um pouco mais de liberdade, em paralelo com a legalizada pelos governos. Mas, por exemplo, fenómenos do género “porta giratória” entre a política e a economia eram frequentes em ditadura e nem sequer muito condenados. Ora, são hoje, em democracia, condenados, apesar de não eficazmente combatidos. Há mesmo, infelizmente, um relativo grau de tolerância, equivalente ao que se verifica com a permissividade do emprego familiar dos políticos, vulgo nepotismo democrático.
Na democracia contemporânea, fértil em corrupção e nepotismo, tem-se assistido, e bem, ao crescimento dos sentimentos críticos desses venenos das liberdades. A imprensa mais séria, os partidos da oposição a qualquer governo, os sindicatos mais austeros, as empresas mais honestas, os críticos da desigualdade social, algumas igrejas e bastantes pessoas têm vindo a revelar justo furor a propósito da corrupção e da ineficácia dos alegados combates contra essa peste. Mas há também uma grande onda contra a corrupção que parece não estabelecer diferenças nítidas entre democracia e venalidade política.
É uma espécie de “Catch 22”. Nesse famoso livro de J. Heller, os pilotos americanos que faziam a guerra no Sul da Europa entravam muitas vezes em stress, verdadeiro ou fingido. Longos dias de guerra e bombardeamento, assim como elevado número de feridos e mortos, poderiam ter efeitos psicológicos nocivos. Como em todas as guerras, muitos estavam com vontade que aquilo acabasse depressa. Nos regulamentos, havia uma cláusula que permitia que um piloto que, por motivos de stress ou desequilíbrio moral, mostrasse incapacidade psicológica para prosseguir a guerra, podia requerer a dispensa e o regresso a casa ou a afectação a outros serviços mais “brandos”. Em poucas palavras: quem, por efeito da violência da guerra, se sentisse traumatizado, poderia requerer a dispensa. Todavia, se a Junta Médica detectasse que o soldado estava sob stress, concluía que ele se encontrava em boa saúde e por conseguinte tinha de prosseguir a guerra. Noutras palavras, só os afectados gravemente é que estavam em boas condições psicológicas, preparados para matar e bombardear. Quem fazia a guerra e não se sentia tocado psicologicamente não deveria estar com toda a sua saúde. Quem ficasse afectado pelas circunstâncias estava em boa saúde e reagia previsivelmente, com normalidade, o que quer dizer que estava apto para o serviço!
Rosnar contra a corrupção é bem. Denunciar a corrupção dos adversários é bem. Acusar de corrupção os inimigos, os ricos, os altos funcionários ou outros, é bem. Também é bem denunciar os partidos que admitem e cultivam a corrupção. Mas, lutar contra a corrupção é também justicialismo, populismo e espírito antidemocrático! Hitler, Salazar, Péron, Mussolini, Estaline, Mao, Chavez, Maduro e outros também lutaram contra a corrupção e deu o que deu! Trump, Orban, Salvini, Le Pen e Bolsonaro também já anunciaram que iam lutar contra a corrupção…
A luta contra a corrupção é defendida por muita gente. Sobretudo por quem está fora da política e quer entrar por essa via: o primeiro objectivo consiste em varrer quem lá está, ideia que tem grandes potencialidades de demagogia. A corrupção parece logo ser a mais popular das bandeiras! Quem se quer ver livre dos políticos, dos partidos e dos sistemas democráticos, arvora-se em defensor da democracia pela luta contra a corrupção. Uma das grandes armas do justicialismo latino-americano era (e é…) a sua veia anti-corrupção. Conquistado o poder, deu no que deu. É este o “catch 22”: a corrupção liquida a democracia, a luta contra a corrupção também!
Em Portugal, os últimos anos assistiram a um aparente ou real aumento da corrupção e do nepotismo. Real, se corresponde à verdade dos factos. Aparente, se resulta de superior visibilidade. Mais graves ainda são os fenómenos de assalto ao Estado e de puro banditismo financeiro que se instalaram e de que a justiça portuguesa não parece capaz de tratar a tempo. Porque não sabe, porque não pode ou porque não quer. Por outro lado, o legislador, ao traduzir os interesses partidários, também não parece muito interessado em se ocupar do assunto com eficácia.
Verdade é que prefiro uma democracia corrupta a uma ditadura virtuosa! Sei que, nesta última, não há qualquer esperança. É verdade que, no primeiro caso, a corrupção pode destruir as liberdades. Mas sei que há esperança de evitar que tal aconteça. E sei que as liberdades e a democracia poderão, sublinho e repito, poderão encontrar formas de combate à corrupção que não sejam apenas novas formas de nepotismo e favoritismo de partido.
Certo e seguro é que a corrupção é mal vista por toda a gente. Menos pelos corruptos. E pelos invejosos. Que são muitos.
Público, 11.8.2019
1 comentário:
verdade é que uma ditadura virtuosa apela mais que uma democracia corrupta até à raiz, daí a virem ditadores virtuosos ou o que passa por isso em itália e no mundo é um passo
Enviar um comentário