sábado, 27 de abril de 2024

Grande Angular - A História feita crime

 Vários mestres nos advertiram: “Não devemos proclamar glórias que não são as nossas”! O tema é inspirador. Não nos devemos gabar do que outros fizeram bem. Nem arrepender do que outros fizeram mal. É verdade que podemos sentir emoção, quando pensamos nos feitos de portugueses ao longo de oito séculos. Mas os feitos são deles, não nossos. E os crimes deles a eles pertencem, não a nós. Imaginar que “nós” somos todos, Vasco da Gama, Luís de Camões, Fernando Pessoa e nós próprios, é de uma presunção estúpida que só a gabarolice nacionalista explica. Pensar que “nós” somos todos, os que queimaram aldeias e escravizaram populações, é de uma tal patologia narcisista que custa a entender.

 

Não espero fama, nem elogios, por ter descoberto o caminho para a Índia, nem conquistado territórios em África. Como não me gabo, nem me queixo, de ter escravizado e assassinado gente por todo o lado, sobretudo em África. Não me vanglorio de ter escrito “Os Lusíadas”, nem ter inventado o vinho do Porto. Não peço desculpa, nem perdão, pelo que outros fizeram de mal: pilharam, roubaram, escravizaram e assassinaram. Também não me sinto vaidoso por ter conquistado, pelo menos duas vezes, a independência de Portugal. Nem me sinto orgulhoso por ter colonizado, desenvolvido, modernizado e educado gentes e povos. Não fiz nada disso, outros fizeram. Não me queixo, por não ter tido sofrimento, outros tiveram. A dor por procuração é tão inconveniente quanto o orgulho por recordação. É mau princípio o de chorar culpas que não são as nossas. Ou devolver o que não roubámos. Não peço perdão a quem nunca fiz mal, nem pelo que não fiz. E não me gabo do bem que outros fizeram.

 

O que os portugueses de outros tempos fizeram e de que tanto se fala hoje inclui vários géneros. Uns actos eram “o que se fazia”, muitos eram “as regras do jogo” ou até glórias, outros já eram crimes na altura. E também há obras que começaram por ser glórias e são hoje crimes. Com o tempo, é fácil o bem transformar-se em mal e o mal no seu contrário. Confundir os géneros, tentar usar o mal e o bem dos outros, promover ou rebaixar hoje o que foi feito há séculos, disfarça, por regra, ambições contemporâneas, maus instintos morais e apetites políticos excessivos. Quem quer julgar, hoje, os reis e os escravos de há séculos, quer hoje qualquer coisa. E não se trata apenas de bons sentimentos: quer poder, bens e poleiro.

 

Há décadas que, de vez em quando, a questão das culpas históricas e dos erros de outrora, assim como do perdão de hoje, estremece a crónica dos dias. Por vezes, trata-se de bons sentimentos, de uma espécie de candura histórica. Outras vezes, por parte dos contemporâneos, é nem mais nem menos do que uma nova forma de extracção: as desculpas ajudam a obter um lugar na lista de compradores de minérios ou vendedores de armas. Umas vezes ainda, a questão é a da vingança útil, isto é, da oportunidade para obter recompensa e poder, invocando antepassados e compaixão, quando o que está em causa são ambições contemporâneas. Finalmente, para todos, os que querem pedir perdão e desculpar, os que exigem recompensa e indemnização, os que recordam um passado de dor e os que evocam grandeza nacional, de todos temos esta espécie de busca desavergonhada de clientela política. Pouco mais é do que o abuso dos reflexos irracionais do tribalismo, do nacionalismo e do racismo. Infelizmente, neste confronto descabelado, não há inocentes. Mas há vítimas: os cidadãos que agradecem alguma racionalidade na vida pública.

 

O mais curioso é ver que as questões práticas não têm respostas. Ou têm-nas de mau pagador e cínico cliente. Pedir perdão a quem? Aos africanos? Aos asiáticos? Aos índios? De quê? Porquê? Não conheço país que não tenha sido, pelo menos uma vez na história, conquistado ou conquistador, colónia ou metrópole. Como não conheço país, povo, Estado ou nação, que não tenha escravizado, não tenha vivido com escravos ou não tenha vendido os seus. Não conheço povo, país, Estado ou tribo que não se tenha feito graças à luta, ao domínio, à servidão ou à conquista. Será que toda a gente tem de pedir perdão a toda a gente? Se os portugueses têm de pedir perdão aos africanos, aos mouros, aos árabes, aos índios, aos indianos e outros asiáticos, quem nos pede perdão a nós? 

 

Pedir perdão a quem? Aos Estados? Às pessoas em abstracto? Às famílias de descendentes de escravos? Como distinguir entre quem foi vendido, quem transportou e quem vendeu? Sabendo que muitos escravos foram vendidos por conterrâneos, vizinhos, comunidades rivais, nobres e ricos, notáveis africanos, asiáticos ou árabes, como distinguir entre aqueles a quem se pede perdão e os que devem ser condenados? Supondo que se sabe a quem pagar, Estado, empresa, Igreja, associação, tribo ou família, falta evidentemente definir quem paga. O Estado? Os contribuintes? As empresas? Os milionários?

 

Faz algum sentido exigir, da Grã-Bretanha ou da Universidade de Oxford, a devolução imediata da biblioteca do Bispo de Silves, roubada por uns piratas e uns nobres ingleses no século XVI? Ou exigir a pronta devolução do “Cabinet de Lisbonne”, composto por milhares de espécies, roubado por soldados e cientistas franceses no início do século XIX e actualmente no Museu de História Natural de Paris? Ou os milhares de artefactos religiosos, sobretudo de ouro e prata, saqueados nas igrejas portuguesas pelas tropas e levados para França? Se as autoridades portuguesas entendem tomar iniciativas relativamente aos países que os antigos, em seu tempo, pilharam, têm de começar já por nós e obter a devolução dos bens saqueados em Portugal.

 

Em vez de indemnizar ou recompensar, não se sabe bem quem, nem quanto, o melhor que temos a fazer é receber bem os estrangeiros, os imigrantes em particular. O que é um valor em si, não uma compensação por malfeitorias passadas. Se recebo imigrantes, quero, pelos méritos próprios e não para me reabilitar, conceder-lhes direitos e reconhecer a sua dignidade igual à minha. E exigir a reciprocidade, tanto cá como nos países de origem. Se procuro a paz e a justiça, hoje, quero que os imigrantes sejam legalizados, tenham acesso aos serviços públicos, paguem impostos e beneficiem da segurança social. O que farei porque é aquilo em que acredito, não por ter vergonha pelo que outros fizeram. Porque sei que o tráfico de gente é uma das fontes de crime e violência, lutarei contra os que, nacionais ou estrangeiros, lucram com a ilegalidade, o contrabando e a clandestinidade. E recuso-me pensar que o descontrolo é uma boa política de democracia e de compaixão. Não é. É o contrário.

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Público, 27.4.2024

sábado, 20 de abril de 2024

Grande Angular - Vítimas da injustiça. E da Justiça!

 Depois de fundada a democracia, há quase cinquenta anos, muito melhorou e quase tudo mudou. Mas a Justiça talvez não. Ou antes, a Justiça não soube, não quis ou não foi capaz de se adaptar aos novos tempos, aos novos direitos e aos novos deveres. Ou os governantes e o legislador não souberam tratar da Justiça. Seria bom que, neste tempo de balanços, não se esqueça a Justiça. Ainda por cima, com tantas anomalias diante de nós!

 

Há pouco tempo, a dissolução do Parlamento, a convocação de eleições e a demissão do Primeiro ministro foram actos políticos da responsabilidade do Presidente da República, que deles tem de prestar contas. Politicamente. Foram gestos contestados por muita gente e apoiados por outros. Mas tudo começou com um gesto, que muitos consideram errado e excêntrico, da Procuradora Geral da República. É judicialmente que ela tem de esclarecer e de prestar contas, algo que não tem feito. Mas deveria fazer. Não basta anunciar a sua não renovação de mandato.

 

Todos conhecemos também as decisões contraditórias, adversárias e conflituosas de vários magistrados sobre os casos mais gritantes da actualidade, nomeadamente BES e Marquês. De todas as suas decisões, os magistrados deveriam esclarecer, argumentar e prestar contas. Mas não o fazem. Julgam ser seu direito não o fazer. Consideram que as sentenças e os acórdãos bastam. O que não é verdade.

 

Há casos escandalosos de demora, de morosidade deliberada, de lutas burocráticas e de gestos despóticos prejudicando ora arguidos, ora vítimas, ora autores.  Todos os processos famosos, que vivem connosco há anos, fazem parte do quotidiano. Já ninguém espera que se resolvam. Todos pensam que vão prescrever. De comum a estes casos mais falados, o facto de envolverem pessoas poderosas. É provável que tenhamos, na Europa, um recorde de governantes, directores, administradores, banqueiros, deputados, autarcas, magistrados e polícias às voltas com os tribunais e a trato da justiça. Por que razão é tão difícil avançar, resolver e progredir?

 

Talvez um dia os historiadores saibam responder a esta pergunta tão simples: o que correu mal com a Justiça portuguesa? Na verdade, nada, actualmente, parece satisfatório. Sabemos que a justiça se adaptou mal às grandes mudanças das últimas décadas. À democracia, à economia de mercado, à integração europeia e ao novo regime constitucional de direitos dos cidadãos: a todas estas “novidades”, magistrados e instituições tiveram dificuldade em se adaptar. Porquê? Como foi possível?

 

Os profissionais da justiça, ajudados pelos políticos, souberam reforçar os seus poderes, aumentar a sua independência e consolidar os seus privilégios. Organizaram a sua autogestão. E não fizeram esforços para melhorar a sua eficácia, para serem mais justos, para prestar contas, para assumir novas responsabilidades e para melhor cumprir os seus deveres. Voltando à interrogação inicial: porquê? Como foi possível? Resistiram à mudança social e política? Tinham assim tanto poder? São conservadores? Foram os políticos que lhes concederam estatutos e privilégios? Os políticos têm medo dos magistrados?

 

São muitos os casos actuais, do BES ao Marquês, do BNP à PT, que ilustram as dificuldades da Justiça portuguesa. Mas de que se trata verdadeiramente? Da legislação? Dos magistrados? Das regras processuais? Na verdade, um dos pontos mais sensíveis é de recente identificação. A justiça portuguesa faz cada vez mais o caminho da luta de classes e de corpos profissionais, dos diferendos ideológicos e dos conflitos de interesses. Dos seus próprios e dos que partilham na sociedade. Só esta nova luta de classes, muito negativa para a sociedade, explica disfunções e atrasos, conflitos e ineficiências, todos os dias referidos na imprensa. Com uma nota negativa: os magistrados sentem-se no direito de não explicar razões nem argumentar decisões.

 

As generalizações são inimigas da razão e da verdade. Todos os juízes não são iguais. Como o não são todos os procuradores, todos os políticos, todos os tribunais e todos os polícias. São só alguns. O suficiente para deixar o sector em crise, a opinião pública desconfiada e os cidadãos incrédulos.

 

Pode parecer cândido. Mas a verdade é que quase todos sonhamos com a hipótese de independência de uma instituição. Excepto alguns “realistas” ou cínicos, muitos pensam que seria ideal haver instituições que não fossem necessariamente a tradução de interesses, de classes ou de negócios. Sabemos há muito que tudo tem envolvimento social. Não há sector de interesse ou actividade que não tenha conotações sociais. Direito, economia, literatura, filosofia, religião, arte… Regras e pensamentos seguem interesses ou tradições, pontos de vista e visões do mundo.

 

Mas o direito é um caso especial. Na verdade, é o grande instrumento de regulação das sociedades e dos comportamentos. E garante da liberdade. Sabemos como o direito já defendeu os traficantes de escravos ou os proprietários de lenha. Ninguém ignora que a legislação sobre a greve, o direito de voto ou o poder paternal traduz interesses, regras e privilégios. Nada disto é ignorado. Mas também é sabido que o progresso da humanidade se faz pela distância crescente relativamente aos interesses e às visões do mundo parcelares.

 

Ora, a Justiça atravessada pelas lutas políticas e de classes, ou incubadora das suas próprias lutas internas, é a pior notícia que a democracia pode dar ou receber. Nas sociedades democráticas, o progresso faz-se através de formas cada vez mais apuradas e universais. O direito e a justiça não se limitam a defender a ordem estabelecida e as escalas de poderes de facto, antes procuram afastar-se sempre dos interesses parcelares. O direito universal e o respectivo sistema de justiça procuram servir os interesses superiores de um país e de uma sociedade, o bem comum, assim como os direitos de todos os cidadãos, não apenas de uns grupos contra os outros.

 

Há uma procura muito complexa: a de encontrar um justo equilíbrio entre autonomia e independência, por um lado, e democraticidade e representatividade, por outro. Os magistrados sabem que a sua última responsabilidade é perante o soberano, o cidadão. Todos eles defendem, e muito bem, a sua independência, mas todos devem também admitir a responsabilidade. E prestar contas.

 

Não cuidemos apenas das desigualdades sociais e económicas. Nem só das vítimas das injustiças. Pensemos também nas vítimas da Justiça!

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Público, 20.4.2024