sábado, 25 de novembro de 2023

Grande Angular - 25

 Hoje, 25 de Novembro, é dia de festa. Apesar de ser data controversa e detestada por alguns. Mas é natural que haja opiniões diferentes relativamente ao 25 de Novembro, sua importância e sua recordação. Ainda bem! Foi mesmo para isso, também para isso, que se fez o 25 de Novembro: para permitir que se tenham opiniões diferentes. Também há muita gente que não aprecia especialmente o 25 de Abril, mas tal não basta para que se apague a data.

 

Os que perderam, nesse dia de Novembro de 1975, choram e fazem o possível por esquecer. São, em geral, comunistas, outros de extrema-esquerda e militares revolucionários. Desses, uns estão hoje no PCP, alguns no Bloco de Esquerda e outros em sítio nenhum. 

 

Os que ganharam recordam com prazer, às vezes com orgulho. Uns estão hoje nos grandes partidos da democracia, o PS e o PSD, alguns em todo o sítio e outros em parte nenhuma.

 

Mas há grupos especiais e que merecem referência. Alguns militares moderados do MFA (Movimento das Forças Armadas) e uns tantos socialistas venceram então e têm vergonha hoje. Fazem o possível por esquecer. Não querem que se recorde, pois tal pode “abrir feridas”, dizem. É este grupo que merece ácida reflexão.

 

A polémica alimenta-se de ridícula comparação: qual é a data mais importante, o 25 de Abril ou o 25 de Novembro? É tão idiota a ideia que nem apetece perder tempo. Por todas as razões, o 25 de Abril é a principal data, a mãe de todas. Mas também há o 25 de Abril de 1975, dia das primeiras eleições livres, as constituintes, que revelaram a fraqueza dos revolucionários e afirmaram a vantagem dos democratas, assim como desviaram, para os eleitores, os poderes que se limitavam aos activistas. E ainda há o 25 de Abril de 1976, dia das eleições legislativas, alicerce do Estado democrático em vias de fundação. Entre estes 25, há o de Novembro, o motivo das polémicas, mas que entra, de pleno direito, nesta espécie de galeria. Neste último dia, derrotaram-se os revolucionários que queriam uma ditadura e que procuravam explicitamente impedir a democracia parlamentar.

 

Ao lado destas datas, ainda é possível acrescentar o 1º de Maio de 1974. É talvez o dia das maiores manifestações da história do país. Com a particularidade de não se manifestar contra ninguém, mas com a intenção de festejar a liberdade. Foi nesse dia que o “golpe de Estado” se transformou em levantamento popular. Foi nesse dia que a liberdade se socializou. Foi nesse dia que se percebeu que a democracia não seria outorgada, nem de cariz militar ou hipotecada aos movimentos revolucionários, antes seria de todos, do soberano, do povo. Ainda demorou muito. Ainda houve riscos, tentativas revanchistas e tentações totalitárias para implantar regimes de farsa, como uma “democracia avançada”, eufemismo para ditadura. Tivemos isso tudo, mas foi o 25 de Novembro que estabeleceu as fronteiras. 

 

É possível que, sem o 25 de Novembro, não houvesse necessariamente ditadura comunista ou militar. Era muito arriscado, mas teoricamente possível. O problema é que o maior risco ainda era a guerra civil e a divisão definitiva de portugueses. Nesse sentido, ao contrário do que se diz hoje em certas instâncias, o 25 de Novembro não é fracturante. Não foi na altura, nem a sua comemoração o é hoje. Pelo contrário, o 25 de Novembro impediu uma fractura radical, violenta e ameaçadora.

 

Além de tudo o mais, o 25 de Novembro contribuiu para um dos mais importantes traços da democracia portuguesa: afastou uma revolução e impediu uma restauração, sem vingança, sem novos presos, sem novas interdições, sem adiamentos eternos de eleições e sem vagas promessas de democracia. Deste ponto de vista, o 25 de Novembro e a democracia que se seguiu fizeram algo de único ou de raro na história recente: derrotaram uma revolução e não fizeram prisioneiros nem proibições. E muito menos mortos e feridos. A vaga das democracias europeias dos anos 1990 e seguintes deu exemplos notáveis de instauração pacífica do novo regime. É verdade. Mas não resultaram de processos exclusivamente internos, de revolução e derrube de ditaduras. Nem travaram uma revolução em curso. Na verdade, o apodrecimento do comunismo começou, sem revolução, na União Soviética e contagiou vizinhos e clientes.

 

Sabe-se que há gente de direita que vibra mais com a correcção de Novembro do que com início de Abril. Como há muitas pessoas de esquerda que sonham com o que se perdeu em Novembro. Tudo isso é normal e previsível. O problema não é o de quererem comemorar uma data e outra não. Nem o de saber por que querem festejar ou de que modo pretendem recordar. Os gostos discutem-se, é bom que assim seja. O problema também não é o de não querer comemorar. O problema é o de quem quer que os outros não comemorem. De quem não reconhece o valor nacional de uma data libertadora (Abril ou Novembro). E de quem quer impedir que as instituições democráticas festejem o que democrático é.

 

Como é sabido, os despotismos e as vocações ditatoriais, de esquerda ou direita, são muito exigentes na semântica. O politicamente correcto, por exemplo, é em parte uma luta por uma semântica aceite e outra condenada. Também neste caso estamos perante uma destas armadilhas de vocabulário. Para os candidatos a déspotas, Novembro não rima com democracia. Por isso, estes esforços incansáveis de pessoas e partidos contra a comemoração de Novembro em sede oficial, nas instituições. Chocante, todavia, é ver tantos que a Novembro muito devem aceitar o ditame comunista contra a vitória democrática daquela data. 

 

Alguns socialistas, em especial, têm enorme jeito para acrobacia e outras artes de contorção. Um partido que cresceu, em 1975, graças à luta contra o comunismo, acabou por não ter remorsos numa aliança com aquele partido. De modo parecido, um partido que sobreviveu graças ao 25 de Novembro, não vê com bons olhos os que o querem assinalar.

 

Em Portugal, em 1975, Novembro salvou Abril. Salvou a liberdade e a democracia. Permitiu a Constituição e as eleições. Prometeu o pluralismo, que garantiu. Não vingou, não matou, não prendeu, nem proibiu os responsáveis pela deriva autoritária e revolucionária. Sem Novembro, teríamos talvez a ditadura ou uma a guerra civil. Mas não a liberdade.

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Público, 25.11.2023

sábado, 18 de novembro de 2023

Grande Angular - Corrupção e impunidade

 Por António Barreto

Nos anos a vir e nos seguintes, assim como na história futura, esta semana, estes tempos e os próximos ficarão para sempre. Inesquecíveis. De triste recordação. E de inquietação crescente. Entraram em crise elementos básicos da confiança e da esperança. A certeza das instituições, a serenidade das elites e a segurança da justiça falharam. Ou não deram garantias. O Estado de Direito foi posto explicitamente em crise.

 

Descobrem-se em abundância casos de corrupção e favoritismo. São ordenadas detenções apressadas e mal fundamentadas. Reinam as fugas de informação e as violações do segredo de justiça. Uma reunião confidencial do Conselho de Estado, um dos últimos redutos da serenidade, é desvendada. O Primeiro ministro demite-se de modo incompreensível. A dissolução do Parlamento não é cabalmente justificada. As decisões do Ministério Público e da Procuradora Geral revelam ligeireza e leviandade. Um Parlamento dissolvido, a prazo, aprova um orçamento de Estado, a correr, antes de partir para campanha eleitoral. Um governo demitido, a prazo, aprova aumentos da Função Publica e do salário mínimo. Um ministro demitido, a prazo, pretende resolver, à pressa, a crise dos médicos e da saúde.

 

O Primeiro-ministro e outros governantes sugerem que, em certos casos, a necessidade política e as exigências da vida económica podem obrigar a ponderar o sentido da aplicação da lei. Parece que basta o rigor legal na decisão, sendo que a aplicação prática das leis obedeceria a outros critérios, designadamente do interesse público definido pelos próprios políticos. É possível que nunca se tenha ido tão longe, nas últimas décadas, no desrespeito pelo Estado de Direito.

 

Por vezes importa tomar um pouco de distância. Como se pode corrigir? Que se pode fazer para melhorar, punir e prevenir? Pouco. Muito pouco. Talvez nada a curto prazo. Talvez alguma coisa a longo prazo. Com outras gerações. Mais leis, não vale a pena. Já temos e a mais. Formar novo pessoal político e novos magistrados? É possível. Demora décadas e coloca sempre o problema existencial: quem forma o pessoal e quem forma os formadores? Liquidar a democracia? Não resulta, pois já sabemos que a ditadura e o populismo são, sempre e em todo o sítio, piores do que a democracia.

 

A nossa democracia não conseguiu, nas áreas da corrupção e da justiça, ser melhor do que a ditadura. Tem mil vantagens. É superior em muitos aspectos, na liberdade, nos direitos individuais, na dignidade das pessoas, na cultura, na educação, no trabalho e na saúde. Mas na justiça e na corrupção não consegue ser melhor. Até porque, com o capitalismo, a democracia e a sociedade aberta, há mais corrupção e mais interesses. Mais e mais democratizados. O nacionalismo demagógico, o justicialismo virtuoso e a ditadura puritana são sempre e serão piores do que a democracia. A história de Portugal e do mundo demonstra-o nitidamente.

 

A situação, na justiça e na política, por causa da corrupção e do favoritismo, está má. E vai ficar pior. E não tem cura tão cedo. Pessimismo? Nem por isso. Realismo, talvez. A sociedade e as instituições não são melhores do que as classes dirigentes e ilustradas. Nem melhores do que os políticos. E estes não são melhores do que a sociedade em que têm origem. E é mesmo isso que é crítico, é esse o problema: das classes dirigentes, das elites, esperava-se mais e melhor!

 

Portugal sofre, há décadas e séculos, de peste de país pobre, de povo sem liberdade e de país dependente do Governo. Sem liberdade, sem democracia, sem imprensa livre, sem empresas poderosas, sem mercado e sem sociedade aberta, cultiva-se facilmente a corrupção, o nepotismo e o favoritismo. A “cunha” e o “jeitinho” fazem parte do quotidiano. A “palavrinha” e o “empenho” são modos de vida. A nomeação de parentes e de correligionários também. Passar à frente nas filas de espera ou nas competições é usual. Abrir concursos “com fotografia”, isto é, que só podem ser ganhos por pessoa certa, é uma arte. Rechear os gabinetes com assessores, consultores e especialistas, pagos pelo erário público, mas para benefício do próprio, é aceitável.

 

As modalidades de pequena e média corrupção abundam e são bem conhecidas. Uso privado de carros de função, realização de obras domésticas à custa de dinheiros públicos, nomeação de filhos e afilhados, pagamento de refeições caras, luvas de grandes negócios, estágios e cursos superiores em instituições reputadas, percentagens depositadas “lá fora” e avenças estranhas, de tudo um pouco, os portugueses conhecem bem. Infelizmente, parece que também vivem bem com isso. O que é triste e desesperante é verificar que os raros mecanismos de combate à corrupção e ao favoritismo são a inveja e a concorrência. Quando são vários os predadores e só uns os beneficiários, é quase certo que os outros arranjarão maneira de denunciar. Em nome do bem público, alegam.

 

O problema, não sabemos bem se sobretudo nosso ou se partilhamos com outros, é o da dualidade de conceitos. Por um lado, como no futebol, o que os “nossos” fazem está bem, o que é da autoria dos “outros” é condenável. Mais inquietante é a diferença moral entre a esfera privada e a partidária. Para muitos, a verdadeira corrupção é aquela de que se aproveitam os indivíduos, as suas famílias e os seus amigos. O que é para proveito pessoal é condenado e pode ser exposto. O que é para uso do partido não tem o mesmo tratamento: a “ética republicana” e a legitimidade política garantem que é justa a distribuição de despojos e razoável o benefício partidário. Quer isto dizer que, para muitos, as eleições democráticas conferem uma legitimidade a toda a prova, que se sobrepõe a outros critérios morais ou legais. Por outras palavras, quem está no poder, usa-o.

 

É este sentido de legitimidade que explica, em parte, o facto de tantas pessoas inteligentes, sabedoras, por vezes competentes, eventualmente cultas e experientes terem comportamentos condenáveis sem recear a lei ou a opinião. É o pior de tudo: o sentido da impunidade. A certeza de que o voto dá direitos e de que a democracia oferece vantagens pessoais e partidárias. O “quero, posso e mando” do soba ou do ditador não é pior do que o “quero, posso e mando” do democrata eleito…

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Público, 18.11.2023

 

sábado, 11 de novembro de 2023

Grande Angular - Um verdadeiro desastre!

 É o maior desbaratamento da história da democracia portuguesa. O governo tinha tudo o que era preciso. Um Primeiro-ministro hábil e habilidoso. Uma maioria absoluta. Um partido de governo coeso e unido. Um Presidente da República cooperante e colaborador como nunca se tinha visto. As esquerdas destroçadas. O Chega a subir, não de mais, mas o suficiente para diminuir o PSD. Uma oposição tépida e desorientada. Um Programa de financiamento europeu de montante inimaginável. Uma situação económica e financeira melhor do que se esperava ainda há pouco tempo. O erário público com uma folga confortável. A admiração, o respeito, a necessidade e a dependência das academias, da administração, das instituições e da imprensa. A colaboração do capital internacional. A atenção dos empresários. E os autarcas em fila de peditório.

 

Por isto tudo, não se percebia bem a razão pela qual o governo não conseguia tratar da situação social que não corria muito bem. As lutas e as greves nos hospitais, nas escolas e nos tribunais persistiam e os respectivos ministros não conseguiam tratar nem dialogar. Os serviços públicos em geral davam claros sinais de que se aproximava o colapso, com enormes prejuízos para a população. Os aumentos do custo de vida e a inflação ameaçavam o bem-estar de grande parte das famílias. A crise na habitação atingia alturas de quase calamidade. Alguns ministérios ressentiam-se da mediocridade dos seus ministros, com relevo para a saúde, as infra-estruturas, a educação e a justiça. O governo sabia distribuir, mas não organizar e criar.

 

Em oito anos de governo, várias perturbações gravíssimas ameaçaram tudo. A pandemia dominou a vida pública durante dois anos. A guerra na Ucrânia destruiu a paz europeia, com efeitos nefastos para todos os países. Agora, a guerra na Palestina e em Israel revelou novas ameaças para o mundo, cujas consequências estão ainda longe de ser medidas.

 

Não foram, todavia, as dificuldades sociais internas nem as perturbações internacionais que deram cabo do governo e da estabilidade política. Foram questões morais, foi a falta de seriedade, foi o nepotismo partidário, foi a incompetência de vários ministros, foram os escandalosos abusos de poder dos ministros nas questões do aeroporto, da TAP, do lítio e de outros grandes projectos. Foi a auto-suficiência de ministros e de dirigentes partidários que se sentiam capazes de tudo, do melhor e do pior e que julgavam que podiam tratar da felicidade dos outros e da riqueza de alguns. Foi a incapacidade de servir o país e os cidadãos.

 

A causa da crise não foi social, nem económica, muito menos internacional. Foi o mau governo. O bem e o mal andam de braço dado! O que parecia um bom governo era feito de maus ministros. Em certos casos, gente vaidosa e prepotente. Noutros, medíocres fantasmas.

 

Esta crise surpreendeu toda a gente. Não só a crise, como também o modo como muitos reagiram. Alguns comportamentos das autoridades deixaram perplexos os cidadãos. O Presidente da República aceita o pedido de demissão, mas não demite, para já. Anuncia a dissolução do Parlamento, mas não dissolve, por agora. Apesar de anunciar a sua intenção de demitir o governo e dissolver o Parlamento, marca eleições! Será que estamos perante a criação de novos dispositivos constitucionais, tal como a declaração de intenções?

 

O Presidente da República afirma que é necessário aprovar o orçamento de Estado e promulgar várias leis e dispositivos legais necessários à economia. Por isso, afirma que demite e dissolve, mas só o fará daqui a umas semanas! Entretanto, o governo e o Parlamento exploram o mais possível este extraordinário período de terra de ninguém e de tempo de todos. Sem orçamento de Estado aprovado, depois de aceite o pedido de demissão do Primeiro ministro e de marcadas as eleições sem dissolução prévia, o Conselho de Ministros aprova, a correr, o maior aumento da história do salário mínimo! Antes de estar aprovado o orçamento de Estado, já depois de o pedido de demissão do Primeiro ministro ter sido aceite e depois de o Presidente da República ter declarado que dissolveria o Parlamento, o Conselho de Ministros aprova aumentos salariais para a Função Pública.

 

Esta crise ainda revela fenómenos estranhos. Um Primeiro ministro, cuja pedido de demissão foi aceite, propõe ele próprio o seu sucessor! O Parlamento é ignorado em todo este processo. O partido maioritário é marginalizado. O grupo parlamentar do partido maioritário é ignorado pelo chefe do partido, pelo Primeiro-ministro e pelo Presidente da República. O presidente não se sente obrigado a pedir ao partido maioritário (e não apenas ao Primeiro ministro demitido…) que indique, se for capaz, um novo Primeiro-ministro, como se faz em países com experiência democrática. Todos concordam, estranhamente, com a ideia de que o governo da nação não é do Parlamento, nem do partido maioritário, mas sim do chefe do partido.

 

Outros factos surpreendentes são visíveis para todos. Circulam nos jornais, nas televisões e nas redes centenas de transcrições de interrogatórios, de declarações, de despachos confidenciais e de escutas telefónicas. A Procuradora geral da República utiliza formas sibilinas e estranhas à clareza do Direito e ao respeito pela dignidade das pessoas, com o que desencadeia uma crise política sem precedentes. Se não tiver razão, deve ser banida e afastada. Se tiver razão, tem de mudar o seu estilo, dado que o actual não é próprio da democracia e da justiça.

 

Mais ainda do que noutros tempos, vamos ter meses sem governo pleno, sem Parlamento completo, sem orçamento a sério, sem novo programa… O próximo governo vai querer mudar e alterar. Não há costumes nem tradição suficientes para poder viver uns tempos sem governo ou com pouco governo. Tudo depende do Estado e do governo. Vão ser precisos meses para demitir, dissolver, convocar, realizar congressos, estabelecer listas de candidatos, sanear uns, promover outros, fazer campanha, eleger, apurar, formar governo e ir ao Parlamento. Sem orçamento, sem autonomia financeira e sem autoridade de serviço público. Há países onde é possível viver meses e meses sem novo governo e sem novo parlamento em plenas funções. Aqui, não. Os prazos legais são absurdos. Os costumes obsoletos. As regras fantasmagóricas.

 

É assim que os portugueses vivem.

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Público, 11.11.2023

 

sábado, 4 de novembro de 2023

Grande Angular - Uma reforma de papel

 O novo sistema de controlo de estrangeiros e de imigração entrou em vigor há dias. É provável que a causa desta reforma das instituições ligadas às migrações seja o homicídio de um candidato ucraniano ao refúgio (ou imigração). O caso teve lugar nas instalações do SEF, no aeroporto, há cerca de três anos. Se assim é, a boa notícia é a de saber que as autoridades reagem com preocupação a esta lamentável ocorrência. A má notícia é a de ver que se aproveita a situação para fazer reformas aparentemente fundamentais. Este género de resposta, em cima do acontecimento, é raramente equilibrado e eficaz, mostra inquietação, mas na verdade revela má consciência.

 

Aprovada a respectiva lei há mais de dois anos, só agora o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a que pertenciam os culpados pelo homicídio, está extinto. Foi substituído por vários organismos. O AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) surge à cabeça. Mas funções muito importantes são delegadas ou transferidas para a PSP, a GNR e a PJ, assim como para o IRN (Instituto dos Registos e Notariado). Além destes, são definidas competências para as autarquias, o SSI (Sistema de Segurança Interna) e a nova UCFE (Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros).

 

Ainda é cedo para avaliar estas reformas. Também é cedo para ter uma ideia sobre este novo sistema. Mas já é possível exprimir dúvidas. Uma é evidente: uma autoridade que necessita de centralidade de planeamento, eficácia e capacidade de resposta acaba por ser pulverizada. As diversas funções são distribuídas por várias instituições. A ponto de se ter também criado um gabinete de coordenação entre todos, isto é, o Gabinete de Coordenação e Gestão Integrada de Fronteiras!

 

A nova legislação e o novo sistema foram apresentados a público, há dias, com aparato. A Ministra anunciou pomposamente “um novo paradigma” e referiu-se aos méritos de Portugal na recepção de estrangeiros e subsequente hospitalidade, uma verdadeira “referência de humanismo e respeito pela dignidade humana”. O facto de Portugal ter adoptado um sistema único na União Europeia, diferente de todos os outros países, parece não ter suscitado dúvidas. É sempre assim, quando se diz que somos diferentes dos outros! Mas a verdade é que, numa área como esta, que inclui circulação entre países, aceitação de refúgio, regras de Schengen, valor dos passaportes, travessia de fronteiras e títulos de residência, seria bom que, em vez de brilhar pela diferença, nos ilustrássemos pela adopção de sistemas experimentados e consagrados. Mas as autoridades preferem a vaidade, talvez injustificada, de termos “um modelo único na Europa”! 

 

De qualquer maneira, convém estar atento. A concepção de reformas dos governantes nacionais, talvez especialmente dos socialistas, envolve sempre reformas globais, abordagens “sistémicas” e teorias grandiloquentes. As promessas imediatas referem a necessidade de legalizar, renovar e autorizar mais de 600.000 candidatos até Março de 2024! Como se fosse possível! Destes, mais de 350.000 são “pendências”, isto é, atrasados e ilegais à espera. Como é possível acreditar na boa fé e na eficácia de governantes que, em oito anos de governo, deixaram apodrecer a situação deste modo, com centenas de milhares de ilegais e atrasados? Pretende o governo esconder o facto de que é ele o principal responsável por esta situação?

 

Esta reforma, burocrática e de fachada, evita tudo o que é essencial. Na verdade, as políticas portuguesas para as migrações limitam-se a banalidades abstractas. Acolhimento generoso, regresso dos portugueses à pátria, direitos dos imigrantes, vantagens do multiculturalismo, tolerância, etc. As questões difíceis e que deveriam estar no topo das definições estão em geral afastadas.

 

Portugal opta pela porta aberta a todos? Quantos imigrantes podem entrar em Portugal? Há limites? Se sim, quais? E quem os define? Interessam-nos imigrantes de todos os continentes? Ou preferimos de países com os quais temos relações estreitas? Podemos fixar montantes ou fasquias para certas nacionalidades? Temos uma política igual para todos ou preferimos os originários de países de língua portuguesa? Há prioridade para trabalhadores desqualificados e indiferenciados ou para técnicos e pessoal qualificado? Portugal deve exigir contrato de trabalho prévio e residência assegurada antes de dar acolhimento? Podemos expulsar os ilegais ou devemos legalizar todos os que entrarem no país? Se os portugueses preferem emigrar para certos países, é justo que também possam preferir certos nacionais em detrimento de outros? Aceitamos que vivam em Portugal dezenas de milhares de ilegais?

 

Convém notar que, na história dos movimentos migratórios, há constantes bem interessantes. Os emigrantes vão dos países pobres para os ricos. De países sem emprego para onde há trabalho. De países onde há trabalhadores, mas não trabalho, para os que têm trabalho, mas não trabalhadores. De países em guerra para locais de paz. De países sem liberdade para democracias. De países atrasados para mais avançados. Portugal, tal como outros, tem a particularidade de estar em duas posições, a de atrasado e a de desenvolvido. Dezenas de milhares de portugueses partem todos os anos para a Europa e as Américas, enquanto dezenas de milhares de estrangeiros chegam de África, da América Latina e da Ásia.

 

Tentar controlar ao pormenor estes movimentos de população é do domínio da fantasia ou do impossível. As sociedades e o mundo têm uma margem de liberdade e de imprevisto que não se pode dominar ou extinguir. Mas é possível medir e avaliar, tentar orientar e adequar acontecimentos às necessidades. Fixar quantitativos, preferir nacionalidades de origem, valorizar as qualificações, exigir a legalização e o contrato de trabalho, punir a ilegalidade e o tráfico de força de trabalho e recusar a entrada aos criminosos são atitudes e opções aceitáveis e convenientes.

 

Nos tempos actuais, as migrações estão no centro das preocupações europeias. E talvez mundiais. O pior que pode acontecer, a Portugal, à Europa e a outros países, é deixar correr. A pretexto da “porta aberta” e do “acolhimento generoso”, cometem-se verdadeiros crimes políticos e deixa-se desenvolver o conflito, o crime e o tráfico. As velhas e doces ideias da liberdade de circulação e da escolha de local de vida e de residência, ligadas à cultura e ao trabalho, são postas em causa por esta negligência irresponsável.

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Público, 4.11.2023