Chegámos a um cume nunca antes atingido! E ainda não vimos tudo.
Um primeiro-ministro, um punhado de ministros, diversos secretários de Estado, vários directores gerais, numerosos membros de gabinetes, múltiplos gestores, muitos banqueiros, directores bancários sem fim, juízes, procuradores, presidentes da Relação, desembargadores, advogados, professores de Direito, deputados, presidentes de Câmara, vereadores, dirigentes de partidos nacionais e locais, chefes da polícia e oficiais das forças armadas: há de tudo entre notoriamente suspeitos, investigados, sob inquérito, em curso de instrução, arguidos, à espera de julgamento, condenados, à espera de recurso, a cumprir pena, presos e em detenção domiciliária! O elenco dos suspeitos de corrupção é uma lista de celebridades.
Não há paralelo na história do país. E parece haver poucos casos semelhantes, se é que existe algum, na história recente da Europa…
Que pensa quem olha para este inventário? Ou antes: que pensam as autoridades competentes? Os Presidentes da República e da Assembleia, o Primeiro-ministro, os ministros, os secretários de Estado, os directores gerais, os deputados, os presidentes de câmara, os dirigentes partidários, os juízes, os procuradores e os magistrados dos Tribunais de Contas, Constitucional, Supremo de Justiça e Supremo Administrativo? Que está tudo bem? Que está tudo mal, mas não se pode fazer nada? Que é o que deve ser, que a democracia e a humanidade não são perfeitas? Ninguém sabe a resposta exacta. Só se conhece o silêncio incomodado. Mas há uma certeza: os principais responsáveis pela política e pela justiça querem que as coisas fiquem como estão, pois é o que lhes interessa e dá vantagens. Se assim não fosse, já teríamos tido notícia de mais acção, mais julgamentos, mais medidas práticas, mais condenações, mais legislação punitiva e mais legislação eficaz anti-corrupção.
Em vez disso, parece termos um Parlamento que receia a justiça e se abstém. Deputados que têm medo dos juízes. Um governo que administra e trata das contas. Uns Conselhos Superiores que zelam para que não haja ondas. Uns poderosos das empresas que navegam e aproveitam. Uns vigorosos escritórios de advogados influentes que estão organizados para este sistema e preferem o que conhecem. Uns sindicatos que se limitam à sua esfera corporativa. E polícias sem meios nem peritos.
Excepção deverá ser feita para a Ministra da Justiça que coordena ou orienta uma “Estratégia Nacional de Combate à Corrupção – 2020-2024”. É seguramente a mais consequente acção das autoridades neste domínio. O seu principal documento é com certeza o mais sério trabalho sobre o assunto, com relevo para as questões jurídicas e de prevenção. Mas sofre evidentemente do facto de não se tratar de entidade independente, de se ficar excessivamente pela abstracção e de passar obrigatoriamente ao lado da questão crítica: a ligação entre a corrupção, por uma lado, e a política, o dinheiro e a justiça, por outro. Também as principais linhas vermelhas actuais não estão explicitamente mencionadas: a ligação entre o governo, os partidos, os fundos europeus, as obras públicas e o futebol. Finalmente, a questão da “confiança política” e das consequentes nomeações: disfarçada de legal e legítima, é a mais traiçoeira arma da corrupção.
Não tenhamos ilusões: só temos esta justiça complicada, conflituosa e ineficaz porque a maior parte das pessoas o quer. Se os processos são eternos, os prazos loucos, as sentenças disparatadas e se o sistema favorece os ricos e os políticos, é porque a maioria se resigna e assim querem os que podem. Este sistema de fugas de informação e de violação sistemática do segredo de justiça sobrevive porque há juízes, procuradores e advogados que o querem e desejam. Se os magistrados continuam a mudar de emprego, a usar a porta giratória de ida e volta, a passar da justiça aos negócios ou à política, é porque se aceita ou cala e porque muitos querem. É necessário um acordo fundamental entre órgãos de soberania, partidos políticos, instituições judiciárias, magistraturas, sindicatos e associações de profissionais para que este estado de coisas se mantenha.
O que se vê e o que se passa é simplesmente desesperante. E não se pense que “eles” não vêem ou não percebem. Vêem e percebem muito bem. Bem de mais.
Na imaginação e na tradição, a Justiça sempre foi a última fronteira, a primeira esperança e o melhor dissuasor. Agora, a Justiça é também a primeira culpada, um dos protagonistas e um dos principais culpados.
Há juízes honestos, não tenho dúvidas. Há procuradores honrados, não esqueço. Também há governantes e deputados inocentes, acredito. Tenho a certeza de que existem altos funcionários sérios e competentes. Creio que existem banqueiros austeros e bancários cumpridores. Sei que existem polícias íntegros e eficientes. Mas, enquanto não se virem livres dos prevaricadores, todos estes corpos de responsáveis, de autoridades e de profissões estão hoje também do lado dos culpados e dos adversários da justiça e da liberdade.
Não se pode dizer que a corrupção tenha chegado finalmente à justiça. Há já muito que por lá andava. Só que não se sabia muito bem. Nem se acusava. Nem se detectava. E muitos se defendiam com unhas e ameaças. Com estes casos recentes, ao mais alto nível, ficámos a saber que os demónios também residem no céu. Começa a ganhar sentido a suspeita de ligações especiais entre magistrados, procuradores e políticos. Começa a perceber-se melhor o significado do linguajar judiciário, obra-prima do hermetismo medieval.
A maneira de falar e de escrever de um jurista, sobretudo de um juiz e de um procurador, é fonte de pessimismo e de descrença! Quem fala assim, quem escreve assim, quem assina sentenças de dezenas ou centenas de páginas não merece ser ouvido nem lido, não merece sequer exercer uma nobre profissão para a qual se exige clareza, simplicidade, força de carácter e verticalidade. As sentenças formais e obscuras são a tradução exacta de falta de capacidade de julgar e de liberdade de espírito no respeito pela lei. Mas também de indiferença perante os cidadãos, aqueles a quem as suas sentenças se deveriam dirigir. Esta justiça incompreensível é garantia de opacidade. Ou um estímulo à injustiça.
Sabemos que, nos melhores dias, é a gratidão pela justiça feita que nos inspira. E nos piores, é o pedido de socorro à justiça a fazer que nos move. Era bom que os nossos representantes o soubessem. E que os nossos concidadãos o sentissem.
Público, 27.9.2020