No século XX, desde o fim da
segunda guerra, o desenvolvimento político e social deu gradualmente vitórias
aos trabalhadores e às esquerdas. A onda já vinha de antes, mas tinha sido
interrompida por uma década de fascismo e de nazismo.
Apesar dos
governos reaccionários, os vencedores da história do século XX, até quase ao
fim, foram as democracias, as esquerdas, os socialistas, os comunistas, os
povos colonizados e outros grupos de pessoas até aí dominadas e dependentes. Podemos
enumerar os trabalhadores e seus sindicatos, as mulheres e os jovens, os
intelectuais e os artistas, os cientistas e as profissões liberais. Quase todos
ficaram a ganhar. Em muitos casos, com excepção dos países comunistas, as
liberdades individuais aumentaram também.
Partidos de
trabalhadores e de sindicalistas, de socialistas e de comunistas, de liberais e
da classe média tiveram acesso às eleições e aos parlamentos. Fizeram-se
governos de esquerda democrática. E alianças ou alternância entre esses
partidos e os de centro e de direita, as classes altas e de proprietários, as
tecnocracias e conservadores de vários tipos, incluindo liberais. Vitória
também a das esquerdas em cerca de vinte países, onde os comunistas conquistaram
o poder só para eles e comportaram-se mais ou menos como fascistas e nazis, só
que com outra ideologia aparente.
Quem não tinha, ganhou o direito
de voto, isto é: mulheres, jovens, soldados, padres, analfabetos, pobres,
desempregados, camponeses, emigrantes e até estrangeiros. As mulheres
arranjaram emprego, casa, educação, profissão, dinheiro e pílula. Os jovens
obtiveram mesadas, autonomia, direitos, viagens, cultura, roupas e bebida. Os
povos colonizados ganharam um Estado, polícia, exércitos, petróleo, direitos
internacionais e acesso aos circuitos internacionais de bem-estar, luxo, tecnologia
e saber.
As
democracias vingaram em cinquenta países desenvolvidos. Quase toda a gente
estudou, arranjou emprego, tem conta no banco e vai de férias. Criaram-se
Estados de protecção social, organizaram-se sistemas de saúde e de educação
para todos. As desigualdades sociais esbateram-se. Em poucas décadas, na
Europa, as populações viram os seus rendimentos crescer cinco e seis vezes.
Foram décadas de vitórias sucessivas, aqui e ali interrompidas, mas em última
instância retomadas. Além destes, uma centena de outros países, mesmo sem o
ser, reclamou-se da democracia. As Nações Unidas reconheceram toda a gente e a
todos concederam estatuto e direitos. Os proprietários de matérias-primas,
sobretudo petróleo, chegaram em poucas décadas aos conselhos de administração
do mundo inteiro. Árabes, asiáticos, africanos e latino-americanos, antes
considerados gente de segunda, depressa chegaram aos paraísos do poder.
Tudo isso mudou! Desde finais do
século XX, as transferências de poder e fortuna tiveram o sentido contrário. As
crises financeiras perturbaram aquela nova configuração do mundo. Se, globalmente,
as desigualdades diminuíram, dentro de cada país, recomeçaram a crescer. As
diferenças de rendimento entre os Estados Unidos e a China ou a Índia são hoje
menores. Mas, dentro de cada país da Europa, as desigualdades são maiores. O
Estado -providência começou a ter problemas de solidez. Muitos dos que, há meio
século, eram considerados como pertencendo ao mundo dos danados e dos
explorados aparecem agora, ao lado dos poderosos, com petróleo, armas e rendimentos
obscuros. As sucessivas crises de petróleo, de finanças, de guerras locais e
regionais, assim como os comportamentos dos grandes grupos económicos, têm
produzido resultados quase sempre no mesmo sentido: transferência de poderes,
rendimentos e recursos para os antigos vencidos. Essas transferências
beneficiam o capital, os proprietários, os Estados desenvolvidos, as classes
ricas, os partidos de direita e centro-direita, os gestores, as grandes
empresas e conglomerados, os grupos financeiros, a banca… É o que está a
acontecer!
As grandes transferências em
curso seguem caminhos visíveis. Dos países pobres para os ricos. Dos devedores
para os credores. Das classes trabalhadoras e médias para as classes altas. Dos
consumidores e dos produtores para a banca. Dos produtores para a distribuição.
Da economia para as finanças. Do Sul para o Norte. Até o saber e a competência
correm para os países líderes. Ao mesmo tempo, o emprego sai dos países
desenvolvidos para os países de mão-de-obra barata.
E Portugal? É do Sul. É devedor.
Está endividado. Tem pouca indústria. Não tem petróleo. Tem um sistema bancário
feito em fanicos. Uma população envelhecida. Um enorme caudal de emigração. Uma
cavada desigualdade social. Uma direita que ora pensa que é liberal, ora julga
que é social-democrata. Um partido socialista que deixou de saber o que é. Um
partido comunista que vem directamente da idade do gelo. Um sistema político de
guerra aberta entre o governo e o presidente. Uma elite económica fraca. Uma
elite política medíocre. Não se recomenda!
DN, 27 de Dezembro de
2015