segunda-feira, 29 de abril de 2019

Grande Angular - Uma lei absurda

A imaginação prodigiosa da raça humana não tem limites. Nas áreas ilegais, semi-legais, quase legais e paralelas parece literatura de ficção. Infelizmente, não pertence só ao reino da fantasia. Num domínio em particular, no das ligações entre público e privado, ou entre política e negócios, os expedientes conhecidos são de uma variedade fascinante. Admita-se que há três grandes grupos de situações.
Primeiro: roubar, exigir luvas e comissões, arranjar uns primos que recebem e uns amigos que transferem, ter contas offshore e pagar por serviços jamais prestados. É um sem fim de dispositivos. Chama-se a isto corrupção e venalidade. É próprio dos gangsters.
Segundo: colocar os políticos em cargos importantes nas empresas públicas, nos órgãos reguladores, nas empresas privadas que fazem negócios com o governo e nos grupos que beneficiaram do Estado. Chama-se a isto porta giratória. É a conhecida promiscuidade.
Terceiro: colocar a família em cargos relevantes nos órgãos políticos, nas direcções da Administração Pública e nas públicas, assim como empregar familiares e dependentes ou trocar de parentes (uma espécie de “swap Job”, “eu emprego os teus, tu empregas os meus”). Chama-se a isto nepotismo. É a famosa República dos Amigos.
Para a primeira categoria, a solução é conhecida: lei geral e tribunais. Sabe-se que há depois advogados, meios dilatórios, garantias e a ineficácia da justiça, mas o método é clássico. Para a segunda, começa a haver dispositivos legais que criam períodos de nojo para refazer, não uma virgindade, mas pelo menos uma virtude. Já se tem alguma experiência em vários países. Os resultados são duvidosos, há sempre maneira de tornear as proibições. Para a terceira, não se vê facilmente a possibilidade de aprovar regimes legais. Sobram os códigos éticos e deontológicos, a censura moral e pública, a informação livre, o bom jornalismo e a declaração de interesses.
Orecente caso das famílias teve larga repercussão. O Governo e o Partido Socialista foram justamente acusados de exagero e de nepotismo flagrante na Administração Pública e até nos órgãos de soberania. O motivo pelo qual se revelaram estes factos deve ser a proximidade das campanhas eleitorais. Mas a verdade é que não se trata só de “casos”: os factos são verdadeiros e as situações aberrantes. O PS ultrapassou os limites da contenção e da razoabilidade.
O governo reagiu mal. Mostrou-se chocado. É habitual. Mas António Costa, em declaração às televisões, prestou um serviço ao país: garantiu que a direita era mais culpada, pois entregava-se à promiscuidade entre cargos políticos e empresas económicas. Ao afirmar que “outros” faziam pior, utilizando a “porta giratória”, reconheceu que o seu governo fazia aquilo de que eram acusado. Parece então estarmos entendidos: a direita e o PSD serão especialistas na porta giratória, enquanto o PS e a esquerda são peritos em nepotismo. Só falta saber quem é mais qualificado em roubo.
O governo e o PS deixaram-se apanhar. Negaram qualquer culpa, mas já se dispuseram a elaborar uma lei sobre o assunto. Alguns deputados da oposição aceitaram a ideia. Com surpresa, o Presidente da República terá dito que é a favor. Parece assim que vamos ter uma lei sobre nepotismo e graus de parentesco admitidos na Administração Pública, nos governos e respectivos gabinetes!
Que absurdo será este? Uma lei que proíba nomeações directas ou indirectas de familiares, pelos próprios e pelos correligionários? Até que grau? Quanto tempo? Em que área? No mesmo órgão colegial, no mesmo serviço? Quem é visado nessa hipotética lei? Quem nomeia, quem pede para nomear ou quem é nomeado? Basta esta incógnita para afastar qualquer hipótese de lei justa. Mas há mais. Qual a nomeação visada? Governo, Administração, órgãos de soberania, candidatos dos partidos, autarquias, empresas públicas, embaixadores, directores de hospitais e escolas, gabinetes, assessores, consultores, conselheiros, secretários e adjuntos? Qual o grau de parentesco admitido ou proibido? Maridos, pais, filhos, netos, irmãos, genros, sobrinhos, cunhados, primos, cônjuges em união de facto e namorados, em todos os géneros, masculino, feminino e outros? E os primos: até que grau?
E se estivermos perante um carrossel: A nomeia B, que nomeia a mulher de C, que designa o marido de D, que contrata a mulher de A, que recruta E, que emprega D e o marido de B, que indigitou C, que tem como secretário o marido de E?
Esta hipótese de lei viola direitos fundamentais, é discriminatória e traduz uma ideia despótica da vida em colectivo. Acredita que uma lei evita o nepotismo e a cunha. Não é prática nem realista. Submete ao poder dos partidos e do Estado o que deve depender dos cidadãos, da moral aceite, dos códigos de ética formais ou informais, da decência da sociedade, da informação pública e da clareza dos procedimentos políticos.
Esta lei é mais um destes produtos que proíbe comportamentos de tal maneira destemperada que cria os “contra venenos”, isto é, as maneiras ao alcance dos corruptos e dos “nepotes” para que possam prosseguir a sua vida sem serem incomodados e com a aparência de terem feito o que era necessário para assegurar a honestidade. O que se passou, por exemplo, com o estatuto dos advogados e deputados, é boa ilustração deste velho costume que consiste nesta verdade simples: os ratos legisladores são os que mais bem conhecem os buracos das leis que eles fizeram.
Pode parecer inocente, mas a verdade é que os melhores mecanismos para tratar do nepotismo são conhecidos. A informação, a imprensa livre, o jornalismo competente e a isenção dos meios de comunicação. O debate público permanente. A opinião pública. O voto. Finalmente, a moral e os códigos de ética comuns e aceites.
Se os cidadãos não se importam com o nepotismo, se até agradecem desde que sejam eles os beneficiados, se fazem as vistas grossas às nomeações políticas, se entendem que quem ganha eleições tem o direito de empregar quem lhe apetecer, se aceitam que certos cargos exigem pessoas de confiança e que a máxima confiança se obtém com os graus de parentesco, então muito bem, vivamos numa sociedade de nepotismo e de famílias ocultas, de consanguinidade política e de dinastias familiares partidárias. Se é isso que os Portugueses querem, é isso que devem ter. Mas tudo leva a crer que não é isso que querem. E que talvez acabem por querer o contrário.
Público, 28.4.2019

domingo, 21 de abril de 2019

Grande Angular - 'Check-list'

Este ano é rico em eleições. As duas principais, europeias e legislativas, oferecem-nos oportunidades de ouro para avaliar o estado da nação e verificar a evolução dos sentimentos. Há, na verdade, questões da maior importância que poderão ter uma resposta já este ano ou, sendo cépticos, um início de esclarecimento. Por isso vale a pena preparar uma lista de itens para utilizar ao longo do ano e aquando das eleições em causa. Ainda por cima, a poucos dias do 45º aniversário do 25 de Abril, esta espécie de avaliação tem valor acrescido.
Quase toda a gente pensava que o governo das esquerdas não duraria quatro anos. Ou antes, muito pouca gente pensava que poderia durar quatro anos e uma legislatura completa. Durou. É coisa feita. Foi um sucesso político. A avaliar pelo desemprego, pela desigualdade e pelos rendimentos, teve algum êxito social. Em termos internos e externos, foi um triunfo financeiro. Com a excepção das exportações, teve poucos bons resultados económicos. Fez o país perder perante a maior parte dos países do euro. Continuou a divergir da União, aumentou a distância relativamente aos mais desenvolvidos. Perdeu na competição da produtividade, das quotas de mercado, do crescimento do produto e dos rendimentos. Preparou mal o futuro, não conseguiu dinamizar o investimento privado, não soube estimular o investimento público e vendeu empresas sem criar novas. Desde Sócrates até às esquerdas unidas, passando pela aliança do PSD com o PP durante o ciclo da Troika, Portugal perdeu empresas, autonomia e progresso social. Ou antes, comparando com o resto da Europa, como deve ser: Portugal progrediu e ganhou muito, mas os outros cresceram e ganharam mais! Em poucas palavras, o grande êxito político desta legislatura só foi ultrapassado pelo grande fiasco económico do mesmo período.
As reacções do governo aos incêndios florestais revelaram incompetência e covardia. O roubo de Tancos exibiu irresponsabilidade política e fraqueza moral. A sucessão de desastres bancários pôs em evidência a fragilidade do Estado, que já vinha de governos anteriores e que este continuou. A incapacidade de apuramento da verdade e de castigo de tantos casos de corrupção sugere gritantes cumplicidades. O enredo tribal e familiar do governo e da alta Administração Pública deixou feridas de difícil cicatrização. A penúria dos serviços públicos acrescenta-se a este difícil rol. Finalmente, a crise dos combustíveis tornou patente a imprevidência e um inquietante embaraço. Serão os alegados êxitos políticos e sociais suficientes para encobrir estas tão evidentes deficiências?
Na gíria partidária, as próximas eleições são sempre decisivas. Claro. Mas às vezes umas são mesmo mais importantes do que outras. Visto de outra maneira, cada eleição tem a sua importância. O que está em causa em cada uma é sempre diferente. As próximas europeias e legislativas merecem atenção por várias razões. Mas tenhamos a certeza de que se vai votar Portugal e a política portuguesa. A crise europeia, o futuro da União e as questões teóricas da Europa vão evidentemente passar ao lado dos eleitores que se interessam e preocupam com o seu país. Por isso, na verdade, vamos ter uma longa eleição em duas fases, de Maio a Outubro.
A solução das esquerdas unidas é durável, pode desenvolver-se e crescer, é útil ao país? Poderão o PS e António Costa confirmar a ruptura com a social-democracia de Mário Soares? Está a desenhar-se uma alternativa do socialismo de esquerda à social-democracia? Confirma-se a perda do papel do PS como fiel da balança, charneira e ponto de equilíbrio da política portuguesa, substituído pela liderança de todas as esquerdas?
Confirma-se a existência de um PC obsoleto, velharia reconduzida agora no século XXI como o único vestígio do comunismo e imortal relíquia da revolução soviética? Ou afirma-se finalmente um PC renovado, aberto ao desenvolvimento e conquistado pela democracia?
Confirma-se que a burguesia radical do Bloco de Esquerda veio para durar? Haverá algum esclarecimento da questão, que anda nas cabeças de tanta gente, da eventual fusão, a prazo, do PS com o Bloco?
Fica estabelecida a incapacidade de afirmação de uma direita portuguesa, assim como o carácter híbrido do CDS e a androginia política do PSD? A direita portuguesa é absolutamente incompetente e incapaz?
Há ou não mais fragmentação partidária? Os partidos clássicos resistem e os populismos são mais uma vez derrotados?
Confirma-se a impossibilidade de termos em Portugal um partido ou uma força política liberal, de esquerda ou de direita?
A esquerda democrática portuguesa, apesar dos seus êxitos recentes, pretende continuar a navegar entre a economia dirigista, a promiscuidade privada e o negócio de última hora?
A convergência dos três partidos de esquerda tem vários destinos possíveis.
Os antidemocratas e os não democratas passam a cultivar a liberdade e a acreditar honestamente em valores democráticos: é o fim feliz desta história. Os antidemocratas e os não democratas mantém as suas crenças e os seus hábitos, mas perdem votos e importância eleitoral: é o fim feliz desta legislatura. Os democratas deixam gradualmente de acreditar nos valores essenciais da democracia liberal: é o fim infeliz da legislatura. Os três arrastam-se como estão, por mais uns anos, entre a habilidade e o arranjo efémero: é o habitual adiamento das decisões.
Os três partidos das esquerdas pensam que podem continuar a protelar os grandes problemas nacionais que zelosamente deixaram cá fora, à entrada do governo e do parlamento? Esperam pela contagem dos votos para saber o que realmente devem fazer? Será possível viver mais quatro anos na penumbra dos grandes dilemas? A defesa nacional, por exemplo, foi mais uma vez adiada e esquecida. A segurança colectiva mantida entre parêntesis. As Forças Armadas conservadas num limbo, salvas no entanto pela competência e pela dignidade com que têm desempenhado as suas missões internacionais. A política externa, tanto europeia, como atlântica ou africana, tem ficado congelada, deixada em exclusivo para o PS, dado que os seus parceiros não têm crédito nem inspiram confiança. Qualquer destes grandes temas é fatal para esta solução de governo. A benefício das primeiras impressões, podem ter ficado numa antecâmara de conveniência. Mas todos sabem que esse período de quarentena acaba com as próximas eleições.
Público, 21.4.2019

domingo, 14 de abril de 2019

Grande Angular - Laços de família

A tradição é antiga e a literatura imensa. Dos Gregos aos Americanos, passando por Franceses e Russos, todos os grandes povos que se dedicaram à política, às letras e às artes, sabem que o tema dos laços familiares é infinito. Renova-se a cada ano e sempre se diz que nada há de novo, já tudo lá está, na tragédia, no romance ou na grande ópera. Os recentes episódios portugueses são interessantes e de certo modo novidade, mais pela maneira como se discute do que pelo conteúdo dos factos.
São muitas as situações em que os laços de família têm importância. Pelo que são e pelo que discriminam. E a opinião pública reage por vezes com veemência, inocente ou invejosa, mas aceita-se em geral que quem defende os seus faz muito bem. A identidade dos nomes funciona com a fortuna, tanto na empresa capitalista como na propriedade fundiária. Muito bem, do ponto de vista da família. Por vezes, muito mal, se olharmos para os resultados. Há quem diga que, salvo excepção, uma grande empresa familiar não dura mais de três gerações e que o fim anunciado se deve à incompetência dos descendentes, às partilhas e aos “rendeiros” inúteis.
Também não surpreende que haja óbvia herança no reconhecimento técnico, científico e profissional. É muito fácil encontrar, na engenharia, na advocacia e na medicina linhagens familiares directas e indirectas. Há talentos que se herdam, nem que seja pela proximidade.
Nos costumes das classes e no meio social, as ligações familiares são essenciais. Festas, casamentos e férias, sem falar nos comportamentos, devem tudo às famílias e as famílias devem muito aos códigos familiares. Pássaros da mesma plumagem voam juntos. Com a ressalva da inveja e da luta de classes (não aceitar aos outros o que se pratica em casa), as comunidades familiares são aceites e prezadas.
Na cultura, nas artes e até nos partidos políticos, encontramos gerações sucessivas, herdeiros e dinastias. Filhos de escritores, jornalistas, médicos, juristas, engenheiros e até militares são com frequência de profissão idêntica. Mesmo que não sejam do mesmo ofício, usufruem de curso superior, frequentam os mesmos locais de poder e reputação. Bichos da mesma espécie vagueiam em conjunto, caçam, amam e passeiam em grupo.
Os filhos, os netos e os sobrinhos dos médicos, dos advogados e dos artistas não são sempre médicos, advogados e artistas. Os dos escritores, jornalistas e engenheiros também não. Mas a elite é filha da elite. A reprodução social, estudada há mais de cem anos, não é assim tão directa. Mas é eficaz. Viver em casa de intelectual ou de profissional liberal, com biblioteca e música, onde se viaja e fala línguas, onde se sabe quem foi Leonardo, cria vantagens. Nos corredores da Faculdade, no auditório das academias, nas salas dos hospitais e nos clubes sociais, quem se conhece sabe. Quem não se conhece, não vai. Vejam-se as listas dos sócios, dos mestres, dos escritores e dos intelectuais. É assim há anos. É assim há séculos. E com excepção da pura inveja, parece que ninguém se surpreende com a consanguinidade nem com a herança de reputação. Filho de peixe…
Tudo parece pois consensual. Quem afirma que se deve combater o tropismo familiar e os sentimentos de protecção dos seus? Sabemos que há quem queira ser independente e recuse ajudas familiares. Como há quem dedique a parentes os seus ódios. Mas, na esquerda e na direita, nos ricos e nos pobres, há qualquer coisa de indelével nestes gestos de família! Quem sai aos seus não degenera. E são odiosas as sociedades que tentam destruir os laços de família livremente aceites ou escolhidos.
No entanto, a discriminação pela fortuna parece mais detestável do que todas as outras. O ódio aos ricos sempre foi uma qualidade por estas bandas. Mas temos de considerar que a discriminação pelo nome, pela profissão e pelo grau académico não é menos detestável. Apesar de mais bem aceite. Por que razão o meio familiar é pior na fortuna? Por preconceito e inveja. E na política? Porque aí o meio é sempre ilegítimo.
Dinastias e gerações profissionais são tradições no mundo inteiro e em Portugal também. No Direito, na Diplomacia, na Medicina, no Jornalismo, na Televisão… Nunca se chega ao fim desta lista. Quer isto dizer que não há problema? Não. Há. E muito sério. Nepotismo. Favores em prejuízo de outros. Meios ilícitos. Chicanas burocráticas à margem da lei. Trocas de cunhas e favores. A tudo temos de dizer sim ou não. E agir pela lei. Mas também há problemas de pudor e decência. Por mais meritório que pareça, ter casais ou famílias a exercer funções ao mesmo tempo dá mau sinal, levanta todos os problemas imagináveis, torna moral e politicamente vulneráveis os seus beneficiários, fomenta estratégias e fidelidades que nada têm a ver com o essencial, o serviço público ou a função de Estado.
As famílias (de sacramento, de contrato, de facto ou de amor) são dos mais poderosos factores de coesão, de solidariedade, de equilíbrio psicológico e de tranquilidade emocional. Também são dos mais potentes instrumentos de opressão, sufoco e conflito. São ainda dos mais importantes factores de desigualdade, discriminação, injustiça e corrupção. E podem ser finalmente veículos de liberdade e segurança pessoal. É com estas famílias que temos de lidar.
Parece haver consenso quanto às famílias como instrumento de equilíbrio e coesão. Só há mesmo dois problemas. O primeiro é o dos meios de promoção e protecção. Podem ser ilícitos, ilegais e imorais; e prejudicar outros. O segundo é o que diz respeito à política. Por que razão na política, no Estado, nas instituições e na Administração Pública (áreas em que as famílias e as cunhas são frequentes…) são condenáveis os laços familiares e não merecem a benevolência das outras áreas? Porque é coisa pública. Porque é coisa de todos, com os recursos de todos. Porque o voto não deveria ser um gesto de fidelidade, mas um contrato de confiança. Porque o país é de todos que não devem ser prejudicados por uns. Porque o Estado, o governo e a política não devem ser preenchidos apenas por advogados, brancos, homens, católicos, gente do mesmo partido e muito menos gente das mesmas famílias. 
E temos de ter paciência. Marido, mulher ou filha de ministro não têm os mesmos direitos. Filho e tio de secretária de Estado não têm os mesmos direitos. E é errada a ideia de que “lá por ser filho ou mulher de ministro, não pode ser prejudicado”. Se “prejudicado” quer dizer não nomeado ou não ter subsídio, pode. E deve!
 Público, 14.4.2019

domingo, 7 de abril de 2019

Grande Angular - A Imperfeição Democrática

A ideia da democracia virtuosa é ridícula, infantil e comovedora. E sobretudo errada. Como é ainda uma espécie de perversão totalitária, na medida em que postula modos de ser, virtuosos sejam eles. A democracia é uma forma de escolha dos governos que reside em poucas ideias e princípios. Os cidadãos são iguais em condição e estatuto, o que implica o postulado simples “uma pessoa um voto”. Há eleições regulares e livres, com liberdade de associação e de expressão. Os vencedores governam, os que perdem são oposição e as maiorias respeitam as minorias.
Pouco mais. Honestidade e bondade não fazem parte da democracia. Podem fazer, mas não necessariamente. Eficiência e dedicação ao público também não. Podem, mas não necessariamente. Solidariedade e inteligência também não, tal como respeito pelos outros ou fraternidade. Todos estes atributos de humanidade podem ou não coexistir com a democracia. Ou antes, em todas as democracias existem esses predicados e o seu contrário. Por isso, se queremos uma democracia decente, é necessário lutar, criar instituições, desenvolver direitos e liberdades e estimular a decência.
Vem isto a propósito deste difícil período que é o dos anos eleitorais. Vive-se em campanha durante meses atrás de meses. A demagogia surge por vários lados. Mentira e propaganda sucedem-se. Oportunismo e infâmia não conhecem limites. Feliz ou infelizmente, tudo isso convive com a democracia. Pode assim criar-se um regime ou um sistema político de inferior qualidade, vulgar e desigual. Mas não é a democracia que está em causa, são os partidos, os dirigentes, os sindicatos, os empresários e os intelectuais.
Um ano eleitoral é cruel. É mesmo o mais cruel de todos os anos. Mal para nós todos, mal para a inteligência, mal para a sensibilidade e mal para a humanidade. Ainda bem para a democracia! É cruel porque concentra quase tudo o que não presta na política democrática: populismo, propaganda, insulto, denúncia, delação, caça ao voto, oportunismo e demagogia. É bom para a democracia porque torna visíveis os defeitos que, com jeito e sorte, podem ser corrigidos.
É cruel porque revela os oportunistas e os aldrabões, assim como os que os denunciam, no que tantas vezes revelam também maus fígados. Mas é bem para a democracia porque exibe maleitas e permite correcções. Permite, não as faz necessariamente. Este ano eleitoral já nos trouxe várias coisas boas. O governo ofereceu benefícios para ajudar quem precisa, designadamente com os passes sociais para os transportes, assim como o descongelamento de alguns vencimentos. Foi também uma excelente oportunidade para a oposição denunciar a demagogia eleitoral. E foi um estímulo eficaz para desvendar as histórias do nepotismo e das famílias nos cargos políticos. São histórias frequentes entre nós, desde há trinta ou quarenta anos, mas presentes sobretudo no actual governo socialista.
De tudo isto, não é a democracia a culpada. É o sistema político, a cultura, os partidos e os dirigentes. Democracia, como tal, não implica seriedade, honestidade e isenção. Se estas existirem, a democracia revela. Se não existirem, a democracia também pode revelar.
A democracia não evita nem proíbe eleitoralismo ou propaganda demagógica. Mas permite que os queiram combater. A democracia não implica privilégios aos advogados, nem recompensas para quem faz tráfico de influências. Mas permite que vivam e trabalhem os que querem contrariar estas pragas.
A democracia não é um regime de beatos, virtuosos e honestos. A democracia não impede que se designem primos e maridos, nem que se faça demagogia eleitoral. Nem evita que brigadas de contrabandistas de regras jurídicas venham, pela calada da madrugada, rever leis e favorecer os tratantes. Mas permite que quem defende regras de decência e honestidade possa lutar com eficácia e possa construir instituições livres e isentas.
Prometer mundos e fundos, assim como distribuir “cabrito com batatas” e “bacalhau a pataco”, são inerentes à democracia portuguesa, são atributos folclóricos da política nacional há muito tempo. Não fazem parte necessariamente, mas acompanham-na há décadas e tem sido difícil reduzir os seus efeitos. Pelo contrário, parecem em progressão. Os passes sociais de transportes são um belo exemplo. São evidentemente cabrito e bacalhau. Acontece que são socialmente úteis e os beneficiários agradecem. Por isso, são criticados pelas oposições. Com ciúmes, pois claro. Que queriam ser elas a fazer exactamente o mesmo.
Acusar os governos de eleitoralismo é vício de invejosos. Tal como praticar o eleitoralismo é hábito de oportunistas. Fazer propaganda da obra feita, gastar recursos com excursões e inaugurações, cortejos e beija-mãos faz parte da democracia. Denunciar isso tudo também.
Nomear amigos, designar familiares directos ou indirectos, recrutar para os seus serviços ou para os do amigo e colega, favorecer membros do partido e do clube, ajudar a maçonaria ou a igreja, proteger a região ou a profissão, fazem infelizmente parte da democracia mal servida de instituições, de hábitos de cidadãos livres e de informação livre.
Melhor do que qualquer outro regime, a democracia dá ou permite mais liberdade a toda a gente. Incluindo bandidos, ladrões e corruptos. Déspotas e mentirosos. Eis por que, em democracia, tem de se tomar medidas especiais para que isso não aconteça e para evitar que uns destruam a democracia. Os hábitos e a cultura servem. Mais ainda, as instituições e a justiça.
São muitas as perversões democráticas. Submeter as instituições “porque não são eleitas”. Designar camaradas, colegas, correligionários e companheiros para cargos e funções. Nomear familiares e parentes, ocupar instituições e empresas, na crença de que a “legitimidade democrática” serve para tudo, incluindo a corrupção e o nepotismo. Fazer o capitalismo “à mão”, com nome de destinatário. Nomear e designar capitalistas, com cartas de conforto e favores de créditos. Fabricar gestores públicos. Fazer e tratar da economia “caso a caso”. Subsidiar com retrato e fotografia. Nomear por fidelidade e amizade. Entender que a democracia eleitoral e partidária preenche a vida e que concede autoridade para que os vencedores possam dispor das instituições, das organizações, das leis e das regras de vida em comum.
A democracia é um regime político de pessoas imperfeitas, de cidadãos com tentações e de gente humanamente vulnerável. Mas isso não é desculpa. Os governantes de hoje, que se portaram mal com as nomeações familiares, não podem ser ilibados porque os “outros fizeram o mesmo”. A maior virtude da democracia, além da igualdade de condição, consiste na possibilidade de corrigir e melhorar. De lutar contra a imperfeição. E de castigar quem se aproveita ou destrói a democracia. 

Público, 7.4.2019