Apesar de já ter havido outros casos inesquecíveis de discussão sobre a Justiça, talvez nunca tenha havido outro momento tão importante como agora. É um debate pertinente e urgente. À vista de todos. Factos anormais estão entre as suas causas. Mas é também provável que o “Manifesto dos 50” (que subscrevi) tenha tornado tudo mais visível. É bom que assim seja. Se ao menos soubéssemos aproveitar a ocasião para compreender, esclarecer e reformar!
Por diversas razões, a Justiça não teve, durante as últimas décadas, a sorte, de outros sectores que souberam, mesmo com erros e falhas, evoluir e reformar. A educação, a saúde e a segurança social são bons exemplos. Vastos sectores da economia e da ciência tiveram o mesmo itinerário. A justiça, não.
A justiça sofre de uma condição especial porque teve dificuldades em se adaptar a várias mudanças históricas: à democracia, ao mercado, ao crescimento económico, ao Estado social e à integração europeia. Quer isto dizer que, nas suas instituições e no seu funcionamento, acumula os defeitos das circunstâncias históricas vividas. É burocrática, morosa e distante da sociedade real. Muito procedimental, a sua prioridade não parece ser a dos direitos dos cidadãos. Trava e atrasa a vida social e económica. É um obstáculo ao desenvolvimento dos direitos dos cidadãos. É notório exemplo de má gestão de meios. Arrasta processos por tempos intermináveis. É frequentemente injusta. É muitas vezes complacente com os poderosos.
Tudo isso é importante, mas o essencial é o direito do cidadão. Esse deveria ser o principal critério. Justiça com mais direitos dos cidadãos. Justiça que nunca fizesse de razões processuais ou de estatuto um critério superior ao dos direitos dos cidadãos. Justiça que submeta o seu funcionamento aos direitos dos cidadãos e não o contrário. Por exemplo, que nunca deixasse para segundo lugar o direito à privacidade.
No seu funcionamento, falta à justiça mais intervenção da sociedade e dos cidadãos. Poderia haver certos magistrados eleitos. Ou ligados às autarquias. Ou mais julgados de paz. Como seria interessante generalizar o recurso a julgamentos de júri com jurados e sem juízes. Também deveria a justiça estar mais atenta à igualdade entre cidadãos e ao acesso fácil de todos. Designadamente através dos custos. É razoável que, com a excepção dos conflitos de entidades económicas e financeiras, a justiça seja gratuita para os cidadãos. Como a saúde. Como a educação.
Justiça mais pronta é necessidade absoluta. Com prazos estritos para todos os intervenientes, incluindo para os magistrados e os tribunais. E menos vulnerável às chicanas, aos recursos e aos “truques”. Com prazos rígidos para todos os magistrados, procuradores ou juízes, equivalentes aos prazos conferidos à defesa. E com cláusulas definitivas que impeçam arrastar processos infinitamente.
Justiça com mais democracia, deseja-se. Não se trata de instaurar um sistema democrático na justiça, mas a verdade é que a Justiça não deveria ser independente da liberdade e da democracia. Nas suas decisões, no tribunal e na mesa de redacção os juízes e os magistrados devem ser independentes! Com certeza. Só assim se defendem os direitos dos cidadãos. Repete-se: os direitos dos cidadãos, não os dos magistrados. Mas a Justiça, os tribunais e os juízes, sendo independentes, não devem estar em autogestão! Independência dos juízes e dos tribunais, em julgamento, não é sinónimo de indiferença à democracia e aos direitos dos cidadãos. A justiça portuguesa confunde facilmente independência dos juízes com roda livre. Ora, se a independência dos Juizes, no julgamento, é valor maior, já o sistema, a organização e a legislação devem depender da democracia e dos órgãos de soberania. A autonomia do Ministério Público, representante do Estado, é diferente da independência dos juízes, mas deve igualmente submeter-se a uma sólida concepção dos direitos dos cidadãos.
A aproximação da Justiça da democracia faz-se também através da possível audição, no Parlamento, dos mais importantes dirigentes dos tribunais superiores, do Ministério Público e de outras instâncias judiciais! Tal, aliás, como outros dirigentes da Administração Pública, presidentes de grandes instituições públicas, até embaixadores e alguns chefes militares poderiam ser ouvidos em audiências especiais do Parlamento antes da nomeação definitiva. Ouvidos, é a ideia. Aprovados ou não, é outro assunto a ver com cuidado. Obrigados a prestar contas, seguramente não.
As audições parlamentares, vinculativas ou não, servem justamente para aproximar as instituições dos cidadãos, da soberania e do processo democrático. É mais uma maneira de fazer com que o permanente debate sobre a Justiça ultrapasse os limites das profissões jurídicas. Indivíduos, empresas, académicos e tantas outras condições interessam-se pela justiça, sobretudo se tiverem a sensação de ser ouvidos. Além de se interessarem, necessitam de justiça, todos os dias, a todo o momento.
As escutas realizadas pelos tribunais, pelo Ministério Público e pelas polícias, estão também na origem dos debates actuais. As escutas e o uso que delas é feito. Curiosamente, ninguém, com argumentos e razões, defende as escutas. Quase toda a gente se limita a ver os seus perigos, a propor soluções mirabolantes para evitar abusos, mas ninguém as defende. E seria bom que alguém o fizesse. Pelo contrário, diz-se que são perigosas, mas toma-se partido por todos os métodos imagináveis de controlar, validar e garantir as escutas. Mas ainda não vimos ninguém dizer publicamente que é um bom método de investigação, de fazer justiça e de defender os direitos e as liberdades. Ora, as escutas fazem parte de uma parafernália imensa de limite e diminuição dos direitos dos cidadãos.
Acabar com as escutas, todas as escutas, de uma vez para sempre, sem regimes especiais e sem circunstâncias excepcionais é ou parece ser a solução mais segura para defender os direitos dos cidadãos. Evita abusos. Reduz os critérios de uso. Dispensa os esforços feitos no sentido de controlar as escutas e que são diariamente anulados pela certeza de que a há escutas a mais. Há escutas abusivas, há destruição dolosa de escutas, há utilização de escutas com fins pessoais e políticos e há exploração do negócio de escutas. São tantas as restrições e as exigências defendidas por pessoas de boa fé que acabamos por concluir que a única solução para evitar o mau uso das escutas consiste em não as fazer.
As escutas são mais um meio, embora legal, mas ilegítimo, de vigilância dos cidadãos. De intrusão. De violência.
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Público, 29.6.2024