sábado, 29 de junho de 2024

Grande Angular - Debate histórico

 Apesar de já ter havido outros casos inesquecíveis de discussão sobre a Justiça, talvez nunca tenha havido outro momento tão importante como agora. É um debate pertinente e urgente. À vista de todos. Factos anormais estão entre as suas causas. Mas é também provável que o “Manifesto dos 50” (que subscrevi) tenha tornado tudo mais visível. É bom que assim seja. Se ao menos soubéssemos aproveitar a ocasião para compreender, esclarecer e reformar!

 

Por diversas razões, a Justiça não teve, durante as últimas décadas, a sorte, de outros sectores que souberam, mesmo com erros e falhas, evoluir e reformar. A educação, a saúde e a segurança social são bons exemplos. Vastos sectores da economia e da ciência tiveram o mesmo itinerário. A justiça, não.

 

A justiça sofre de uma condição especial porque teve dificuldades em se adaptar a várias mudanças históricas: à democracia, ao mercado, ao crescimento económico, ao Estado social e à integração europeia. Quer isto dizer que, nas suas instituições e no seu funcionamento, acumula os defeitos das circunstâncias históricas vividas. É burocrática, morosa e distante da sociedade real. Muito procedimental, a sua prioridade não parece ser a dos direitos dos cidadãos. Trava e atrasa a vida social e económica. É um obstáculo ao desenvolvimento dos direitos dos cidadãos. É notório exemplo de má gestão de meios. Arrasta processos por tempos intermináveis. É frequentemente injusta. É muitas vezes complacente com os poderosos.

 

Tudo isso é importante, mas o essencial é o direito do cidadão. Esse deveria ser o principal critério. Justiça com mais direitos dos cidadãos. Justiça que nunca fizesse de razões processuais ou de estatuto um critério superior ao dos direitos dos cidadãos. Justiça que submeta o seu funcionamento aos direitos dos cidadãos e não o contrário. Por exemplo, que nunca deixasse para segundo lugar o direito à privacidade.

 

No seu funcionamento, falta à justiça mais intervenção da sociedade e dos cidadãos. Poderia haver certos magistrados eleitos. Ou ligados às autarquias. Ou mais julgados de paz. Como seria interessante generalizar o recurso a julgamentos de júri com jurados e sem juízes. Também deveria a justiça estar mais atenta à igualdade entre cidadãos e ao acesso fácil de todos. Designadamente através dos custos. É razoável que, com a excepção dos conflitos de entidades económicas e financeiras, a justiça seja gratuita para os cidadãos. Como a saúde. Como a educação.

 

Justiça mais pronta é necessidade absoluta. Com prazos estritos para todos os intervenientes, incluindo para os magistrados e os tribunais. E menos vulnerável às chicanas, aos recursos e aos “truques”. Com prazos rígidos para todos os magistrados, procuradores ou juízes, equivalentes aos prazos conferidos à defesa. E com cláusulas definitivas que impeçam arrastar processos infinitamente.

 

Justiça com mais democracia, deseja-se. Não se trata de instaurar um sistema democrático na justiça, mas a verdade é que a Justiça não deveria ser independente da liberdade e da democracia. Nas suas decisões, no tribunal e na mesa de redacção os juízes e os magistrados devem ser independentes! Com certeza. Só assim se defendem os direitos dos cidadãos. Repete-se: os direitos dos cidadãos, não os dos magistrados. Mas a Justiça, os tribunais e os juízes, sendo independentes, não devem estar em autogestão! Independência dos juízes e dos tribunais, em julgamento, não é sinónimo de indiferença à democracia e aos direitos dos cidadãos. A justiça portuguesa confunde facilmente independência dos juízes com roda livre. Ora, se a independência dos Juizes, no julgamento, é valor maior, já o sistema, a organização e a legislação devem depender da democracia e dos órgãos de soberania. A autonomia do Ministério Público, representante do Estado, é diferente da independência dos juízes, mas deve igualmente submeter-se a uma sólida concepção dos direitos dos cidadãos.

 

A aproximação da Justiça da democracia faz-se também através da possível audição, no Parlamento, dos mais importantes dirigentes dos tribunais superiores, do Ministério Público e de outras instâncias judiciais! Tal, aliás, como outros dirigentes da Administração Pública, presidentes de grandes instituições públicas, até embaixadores e alguns chefes militares poderiam ser ouvidos em audiências especiais do Parlamento antes da nomeação definitiva. Ouvidos, é a ideia. Aprovados ou não, é outro assunto a ver com cuidado. Obrigados a prestar contas, seguramente não.

 

As audições parlamentares, vinculativas ou não, servem justamente para aproximar as instituições dos cidadãos, da soberania e do processo democrático. É mais uma maneira de fazer com que o permanente debate sobre a Justiça ultrapasse os limites das profissões jurídicas. Indivíduos, empresas, académicos e tantas outras condições interessam-se pela justiça, sobretudo se tiverem a sensação de ser ouvidos. Além de se interessarem, necessitam de justiça, todos os dias, a todo o momento. 

 

As escutas realizadas pelos tribunais, pelo Ministério Público e pelas polícias, estão também na origem dos debates actuais. As escutas e o uso que delas é feito. Curiosamente, ninguém, com argumentos e razões, defende as escutas. Quase toda a gente se limita a ver os seus perigos, a propor soluções mirabolantes para evitar abusos, mas ninguém as defende. E seria bom que alguém o fizesse. Pelo contrário, diz-se que são perigosas, mas toma-se partido por todos os métodos imagináveis de controlar, validar e garantir as escutas. Mas ainda não vimos ninguém dizer publicamente que é um bom método de investigação, de fazer justiça e de defender os direitos e as liberdades. Ora, as escutas fazem parte de uma parafernália imensa de limite e diminuição dos direitos dos cidadãos.

 

Acabar com as escutas, todas as escutas, de uma vez para sempre, sem regimes especiais e sem circunstâncias excepcionais é ou parece ser a solução mais segura para defender os direitos dos cidadãos. Evita abusos. Reduz os critérios de uso. Dispensa os esforços feitos no sentido de controlar as escutas e que são diariamente anulados pela certeza de que a há escutas a mais. Há escutas abusivas, há destruição dolosa de escutas, há utilização de escutas com fins pessoais e políticos e há exploração do negócio de escutas. São tantas as restrições e as exigências defendidas por pessoas de boa fé que acabamos por concluir que a única solução para evitar o mau uso das escutas consiste em não as fazer.

 

As escutas são mais um meio, embora legal, mas ilegítimo, de vigilância dos cidadãos. De intrusão. De violência. 

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Público, 29.6.2024

sábado, 22 de junho de 2024

Grande Angular - E não se pode proibi-las?

 Moralmente, o método das escutas policiais, judiciais e outras está condenado. Politicamente, não é apreciado, mas defendido sem prazer. Judicialmente, é aceite. Os que o praticam, em princípio os magistrados judiciais e do Ministério Público, polícias, militares e outros funcionários, aceitam e defendem a sua aplicação. Já as escutas privadas, isto é, praticadas por qualquer cidadão, empresa ou agência, são condenadas e proibidas: são ilegais e apenas defendidas por quem as pratica.

 

As pessoas que defendem o recurso às escutas de Estado têm argumentos conhecidos. Sem elas, muitos crimes teriam sido cometidos. Com elas, é possível orientar as investigações. Graças a elas, podem provar-se crimes. São maneiras de controlar o mercado de droga, o terrorismo e o crime financeiro. São os melhores instrumentos para investigar a corrupção. São indispensáveis para castigar o crime fiscal e financeiro. Finalmente, são essenciais para a segurança do Estado.

 

Nada disto está demonstrado. Nem está provado que, sem as escutas, não haveria outros meios de investigação e prevenção. Como não se conhecem os casos que só foram detectados graças às escutas. Mas sabe-se dos casos em que o sistema de escutas não preveniu. Como, por exemplo, os actos de terrorismo de Nova Iorque, Paris, Londres, Madrid, Moscovo, Israel e outros.

 

É possível que nos argumentos favoráveis às escutas haja uma qualquer verdade. Mas também podemos dizer que há milhares de crimes para os quais as escutas de nada serviram. Como seria interessante saber que crimes foram evitados e quantos criminosos foram condenados graças às escutas. Dizer que são úteis não basta. É necessário demonstrar que o foram e como eram o único meio existente.

 

É possível que haja crimes prevenidos graças às escutas. Mas não sabemos se outros meios não teriam dado os mesmos ou melhores resultados. Nem sabemos, em toda a sua extensão, os prejuízos causados à população, os atentados cometidos contra os cidadãos, os abusos praticados e os casos de ameaça, chantagem e extorsão de que muita gente pode ser vítima de quem abusa das escutas. Em poucas palavras, se há benefícios, é seguro que são obtidos a custo elevado, a expensas dos direitos dos cidadãos.

 

Há países, de regimes autoritários, onde se vigiam os cidadãos. Todos. Na rua, no banco, na escola, em casa, no emprego, no estádio e no bar. De cada um, sabe-se o nome, a conta bancária, a família, os amores, os divertimentos, o cadastro e as dívidas. Assim como as preferências estéticas, políticas, sexuais e gastronómicas. Basta andar na rua para ser identificado. Em países democráticos, onde existem os meios para fazer as vigilâncias que se quiser, há limites na lei, mas pratica-se igualmente. Com menor intensidade. Mas, pouco a pouco, com receio do terrorismo, dos narcotraficantes, dos vendedores de sexo, dos intermediários de mão-de-obra, do crime organizado, dos manipuladores da bolsa, vão-se admitindo excepções e novos meios de vigilância. É verdade que também se aprovam leis de protecção de dados pessoais. Mas sempre com falhas e excepções.

 

Na verdade, por cada escuta “útil”, deve haver milhares “inúteis”, isto é, a pessoas inocentes, sobre assuntos indevidos. As escutas resultam sempre de “varrimentos” intensos. Parece que as que não são necessárias para os casos em questão são destruídas. Parece, não é certo nem seguro, como se tem visto nos últimos anos. Mas por que razão alguns indivíduos (funcionários, magistrados, oficiais, técnicos, polícias…) terão a cobertura da lei para escutar, apreciar, decidir, destruir e conservar o que muito bem entendem?

 

As escutas telefónicas têm características especiais. Para que resultem, são necessários milhares de escutas, dezenas ou centenas de pessoas, temas e assuntos diversos, com vida privada, comercial, política, cultural e o resto. Para uma chamada útil, com informação verdadeira, é necessário ouvir dezenas de pessoas e milhares de chamadas. Centenas de inocentes têm de ser escutados. Cria-se um ambiente permanente de suspeição.

 

Como é sabido, os grandes peritos em escutas não são só os espiões e as policias das ditaduras. São também das democracias. Pergunta-se: quem escuta os escutadores? Quem vigia os vigilantes? Não é possível deixar de lado todos os que nada têm a ver com nada. Nem os inocentes. Só depois de escutados e vigiados é que se sabe se dezenas ou centenas de pessoas estão ilibadas ou não. Além de que as escutas são um belo exemplo do paradoxo da ausência. Não estar referido numa escuta não quer dizer que seja inocente. Um silêncio ou uma ausência não são alibis. Falar sem nada dizer não quer dizer que se esteja inocente ou culpado.

 

As escutas permitem guardar dados para chantagem. Servem para ameaçar outras pessoas que nada têm a ver com o crime. As escutas deixam traços que tornam possível a sua utilização para outros fins. Que permitem a devassa pública. As escutas podem ser destruídas ou mantidas, a coberto da lei, por quem tem força e poder. As escutas permitem uma selecção dolosa de pessoas e de conversas. Por cada pessoa escutada, suspeita, são dezenas ou centenas de outras, inocentes, que são “apanhadas na rede”. Não é moralmente aceitável que, por um possível culpado, se atente contra os direitos de dezenas ou centenas de inocentes.

 

Não parece haver argumentos suficientes para justificar o recurso às escutas. Nem para demonstrar que os benefícios são superiores aos inconvenientes. Parecem inúteis os esforços para reparar o irreparável, para garantir e controlar o recurso a escutas. Há mais de trinta anos que se tenta encontrar a solução ideal: legislação mais apertada, escutas sob reserva, autorização de magistrados, licença de transcriação só para as seleccionadas entre milhares, com e sem destruição decidida por magistrado. É um sem fim de soluções para um problema que as não tem. Todo o contorcionismo jurídico para garantir a bondade das escutas e impedir o abuso tem-se revelado inútil. E nem sequer é possível demonstrar que as escutas deram vantagens à liberdade, aos direitos dos cidadãos, à vida humana e à privacidade.

 

Meias garantias não chegam. Tal como a tortura, o assassinato, a pena de morte, a prisão sem culpa formada e a prisão perpétua, também as escutas exigem uma clara definição: ou é ou não é. Se não há escutas, não há possibilidade de traficar e ameaçar com uma coisa que não existe. Sem escutas, não há mercadoria para tão vil negócio. A proibição total, pura e simples, parece ser a única solução justa e eficaz. Com garantias para os cidadãos. Não resolve todos os problemas. Mas pelo menos elimina alguns. E protege as liberdades.

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Público, 22.6.2024

sábado, 15 de junho de 2024

Grande Angular - O trivial. O fútil. E o disparate.

 Um auspicioso novo canal de televisão, NOW, especializado em informação e com muita política, inicia actividades. Será seguramente mais um contributo para a democracia. Este canal e os que já cá estavam contam agora com vários políticos, antigos e futuros Primeiros-ministros, ministros, deputados, eurodeputados, autarcas, secretários de Estado e até um cardeal. É provável que seja este um percurso especialmente português. Talvez não haja no mundo um outro país onde os trajectos políticos passam obrigatoriamente pela televisão. Já não se sabe muito bem se a TV é o ponto de partida ou de chegada de uma carreira política!

 

O comentário na televisão já “fez” vários primeiros ministros, pelo menos um Presidente da República e muitos governantes, assim como secretários-gerais e presidentes dos partidos. É provável que a política ganhe alguma coisa com isso. Não é certo nem seguro, mas um superior grau de transparência pode ajudar à virtude. Com uma ressalva: o debate político resvala para os canais de televisão e abandona o parlamento e as assembleias. O que se ganha em visibilidade perde-se em legitimidade, dado que as escolhas televisivas dependem de outros factores (audiências, dinheiro, cunhas, talento, beleza, boas maneiras e publicidade…) que não da legitimidade democrática. Pode ser esse o destino da democracia, quem sabe! 

 

Onde se perde seguramente é na informação. A força da independência e da integridade profissional, o “ethos” jornalístico e a inspiração do serviço público desaparecem. Este percurso é bom para a transparência, é mau para a legitimidade política e é desastroso para a independência da informação. Também se pode dizer que é mau para a racionalidade. A televisão, a proximidade, o “lá em casa” e as emoções do directo são adversários sérios da razão. Mas também é verdade que a política nunca foi só razão. Muito pelo contrário.

 

O Cursus honorum e a carreira política incluem agora obrigatoriamente a televisão. Os tempos do escritório de advogados, da empresa, do sindicato, da Igreja e da Maçonaria já lá vão. A escrita também morre devagar. A televisão e o respectivo comentário já #deram” governantes e autarcas sem fim. Do debate ao monólogo e à prédica, o comentário (político, cultural ou desportivo) é o que dá oportunidade para falar de tudo. Aliás, já não se trata de comentário, mas sim de acção, de protagonismo, de acto. Quem está ali, na televisão, não comenta, age. 

 

Políticos e comentadores (são os mesmos) entretém-se com as hipóteses, os jogos florentinos, as minas e armadilhas, as cenas de ópera e os quadros de vaudeville…. Situação como a que vivemos nestes dias é ideal para a televisão, para os debates e para o teatro de revista. Infinitas são as hipóteses. Grave é o facto de cada vez mais haver dois governos em funções, o executivo propriamente dito e o de assembleia. Talvez se possa mesmo acrescentar um terceiro governo, o presidencial. O governo pretende executar, mas é cada vez mais o legislativo que se ocupa dessa função. O Parlamento pretende legislar, mas é a oposição que se ocupa dessa tarefa. Já se percebeu que vai dar asneira. Da grossa.

 

Entretanto, quase não há tempo para sentir que o ridículo mata. O logotipo da bandeira nacional e da República Portuguesa foi o mais recente exemplo! A edição PS era moderna, digital e basbaque. Inclusiva, dizem, sem sinais colonialistas. Antes das eleições, a velha edição patriótica, com quinas e esfera armilar, foi reivindicada pelo PSD. Depois, a nova edição do PSD é patriótica nas cores, mas inclusiva na ausência de símbolos. Já não são precisos os votos, foram-se as quinas. E que mais teremos? Tempos houve, bem mais divertidos, em que se propunha colocar na bandeira o boné frígio, o triangulo maçónico, a cruz de Cristo, as cavacas de Rezende e talvez o bacalhau à lagareiro. Agora, são propostas de simplicidade digital e de alusão subconsciente à pátria!

 

Já houve quem (António Alçada Baptista, pouco culpado de ser perigoso esquerdista) propusesse, bem mais ajuizadamente, que se alterasse o hino nacional, a “Portuguesa”, com as suas declarações guerreiras. “Às armas! Às armas! Sobre a terra e sobre o mar! Pela pátria, lutar! Contra os canhões, marchar, marchar” … Tinha mais razão do que estes novos “inclusivos”. Mas apanhou na cabeça do país inteiro.

 

A esquerda ridícula tentou abolir o colonialismo da bandeira. Achou que era a boa altura, à mistura com o anti-racismo. A direita ridícula achou por bem reagir, Protestou. Antes das eleições, tratavam as esquerdas de traidoras.  As esquerdas ridículas preparavam-se para se venderem no altar profano dos apátridas. As direitas ridículas logo se apresentaram ao serviço para salvar a pátria. Depois das eleições, não se sabe bem porquê, as direitas sanearam o ultraje dos socialistas, mas abdicaram do regresso à bandeira, e encontraram um meio termo, um pouco digital, um tanto moderno, conservador quanto basta, simples no que parece, destituído de significado, baço, como gostam os que não têm rosto nem cabeça. Nem coração, pelos vistos.

            

Entretanto, as esquerdas tentaram não comemorar Camões, que nasceu há 500 anos. Quase iam conseguir. As direitas, agora no governo, inventaram apressadamente um programa de festividades. Mas apagam Vasco da Gama, que morreu há 500 anos e era, ao que eles julgam, mais racista e esclavagista do que Camões. Acontece que este cantou aquele, com dedicação inspirada! Camões não merecia que esquerdas e direitas lhe fizessem uma moeda com cara sem rosto!

 

A agressividade com que os nacionalistas lutam contra os republicanos é tal que parecem perder a cabeça e o tino. Nunca se lhes ouve uma palavra sobre Camões ou Gama, sobre a bandeira ou a esfera armilar. Para já não falar dos campos verdes e do sangue dos heróis! Esquecem que esta bandeira é já por si lesa pátria e mata reis, pois deveria ser azul e branca. As direitas ganham as eleições e depois têm receio do que prometeram. Já que têm o governo nas mãos, porquê ganhar mais inimigos? Assim foi que encontraram soluções mornas para Camões, frias para Gama e turvas para a bandeira! Assim é que a bandeira nacional, produto republicano, é festejada pelos nacionalistas e conservadores. O hino nacional, a “Portuguesa”, produto jacobino, com laivos anticolonialistas, é defendido por conservadores e nacionalistas! O mundo às avessas! 

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Público, 15.6.2024

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Que viva a Europa!

 Grande Europa! Bela Europa! Europa complexa e difícil! Europa forte e frágil, vulnerável e resistente! Europa quase sempre em risco diante do adversário de fora, do inimigo vizinho e das ameaças de dentro! Europa a viver um dos seus mais difíceis momentos da história recente, depois da segunda guerra, Europa com guerra ao lado da sua União, às suas portas, dentro do seu continente! Europa sempre a sofrer dos ataques dos seus tradicionais inimigos, dos impérios que a rodeiam! Europa que criou, adoptou ou desenvolveu, mais do que qualquer outro continente, o que de melhor a humanidade fez na história, das artes à ciência, da cidade ao campo, das viagens aos descobrimentos, da máquina ao espírito, da democracia aos direitos humanos, da liberdade à diversidade humana!

 

A Europa que hoje foi a votos é uma Europa ferida, amedrontada, perseguida, frágil por dentro, vulnerável por fora, invejada, atacada e ameaçada. Será que a Europa tem os meios suficientes para resolver e superar as crises que criou, as que deixou criar e as que lhe trouxeram de fora?

 

Estas eleições permitem todas as leituras, nacionais e europeias. Conforme os países, as direitas ganharam e perderam, as esquerdas perderam e ganharam. Algumas extremas-direitas subiram, outras desceram. Aumentou a fragmentação política da Europa, alargou-se a diversidade das comunidades nacionais e ficaram ainda mais marcadas as diferenças políticas entre países. Confirma-se uma vez mais que a fraqueza da Europa, a sua diversidade, as suas diferenças e os seus contrastes, é a sua riqueza, o que faz do continente uma civilização invejável.

 

Confirmou-se que as ameaças actuais são das mais graves que a Europa conheceu nas últimas décadas. As percepções europeias das migrações são perturbadoras. O receio de desordem interna aumenta. Os sentimentos nacionais sentem-se ameaçados. A agressividade nacionalista procura caminhos. A Europa está ameaçada pelo afastamento americano. A Europa está posta em perigo pelo imperialismo agressivo russo. A Europa está fragilizada pela guerra no Próximo Oriente. A Europa não tem defesa capaz, nem unidade à altura dos grandes cionflitos. A Europa perdeu grande parte da sua indústria e da sua energia. A Europa… ou se refunda ou se destrói.

 

A Europa é uma obra de arte de política, de engenho, de cultura e de civilização. Mas é frágil porque se deixou acomodar. Será a Europa capaz de resolver os problemas que criou e que deixou que a viessem perturbar? Será que a democracia é capaz de resolver os problemas que ela própria criou? Estas últimas eleições europeias nada resolveram, não definiram caminhos, não encontraram soluções. Mas avisaram! Chamaram a atenção! Os Europeus têm poucos anos, muito poucos, para encontrar o seu caminho, a sua defesa, a sua unidade e o seu programa. Têm poucos anos, muito poucos, para consolidar a sua diversidade, sem destruir a sua história. Para refundar a sua dimensão continental, sem perder de vista a sua variedade nacional. Para reforçar a sua liberdade, sem perder o seu espírito.

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Público – 9 de Junho de 2024

sábado, 8 de junho de 2024

Grande Angular - Há liberdade de expressão a mais?

 É tão curioso que, após 50 anos de liberdade, se discuta novamente e com acidez a questão da liberdade de expressão! Tudo parece ter começado com os limites à liberdade de expressão que, segundo alguns, o Parlamento deveria tolerar aos seus deputados. Mas a questão vem de trás e é velha. E talvez eterna. Nos últimos meses e anos, foram vários os momentos em que o problema se levantou. Umas vezes, por causa dos segredos de Estado. Outras, pela inconveniência das instituições. Outras ainda porque não se deve “dizer mal” de alguém. Ainda há as coisas que não se devem dizer porque “fica mal”. Ou porque envolvem preconceito. Ou porque traduzem opiniões mal vistas por certos grupos da sociedade. Sem falar nos segredos de empresas, de marcas e de contratos. A todos estes casos, a resposta adequada é não! Nada justifica a repressão da liberdade de expressão.

 

Os “limites à liberdade de expressão” não são limites à liberdade de expressão. O que alguns designam por “limites” deveriam ser castigos ou punições por calúnia, mentira, obstáculo à justiça, difamação ou erro intencional. Nada disso deveria ser punido por excesso de liberdade de expressão, mas sim pelos méritos ou deméritos próprios. Caluniar e ofender outrem, afirmar falsidades sobre alguém, errar propositadamente para prejudicar alguém, enganar outras pessoas, ludibriar a justiça e quaisquer actos semelhantes devem ser punidos pela legislação sobre direitos humanos, sobre o dever de respeito pela verdade, sobre a calúnia e a difamação e sobre os danos causados a outrem, não por uso da liberdade. Desvendar factos da vida pessoal e privada de alguém não é abuso da liberdade de expressão, é, isso sim, atentado ao bom nome e à reserva da vida pessoal. Mesmo a calúnia, um dos casos mais difíceis de avaliar, deve ser punida por prejudicar alguém, não por uso da liberdade de expressão.

 

A liberdade de expressão é um bem, uma virtude, um direito, uma qualidade que só poderá ser reprimida por um bem, uma virtude, um direito ou uma qualidade de valor superior. Não se vê o que este poderia ser. A pátria? A família? O poder? As empresas, os partidos, os clubes desportivos? Não vejo quem represente valores superiores aos da liberdade.

 

Além desse facto simples, outro elemento contribui para o estatuto especial da liberdade de expressão. Esta também é instrumental, isto é, condição das outras liberdades, meio de luta por outros direitos. Sem liberdade de expressão, não é possível obter e lutar pelos direitos e liberdades dos cidadãos. É a liberdade de expressão o mais forte instrumento de luta e de respeito pela democracia.

Recentemente, a liberdade de expressão tem vindo a ser invocada a propósito de preconceitos. Como é evidente, os preconceitos e as aleivosias ficam com os seus responsáveis. As generalizações preconceituosas são defeitos de inteligência entre os piores que se conhecem. Os Judeus isto, os Negros aquilo, os Muçulmanos aqueloutro. Ou os Brancos, já agora. Para não falar dos Turcos, dos Americanos, dos Chineses e dos Ciganos. Além destes grupos nacionais ou étnicos, há ainda os homossexuais, as mulheres, os burgueses, os comunistas, os fascistas, os alentejanos e os galegos. Não faltam grupos sobre os quais não haja regularmente generalizações estúpidas, preconceitos vis e vociferações imbecis. Temos de viver com isso, se queremos viver com a liberdade de expressão. Ninguém precisa de licença para insultar, nem sequer para defender a virtude. E ninguém tem autorização para limitar a liberdade de expressão de outros. Nem sequer para defender o bem.

 

A admitir limites, o grande problema consiste em determinar as permissões e as proibições. Quais são as generalizações admitidas e as condenadas. Brancos? Pretos? Amarelos? Ou então burgueses, fascistas, nazis ou comunistas? Em segundo lugar, ainda mais difícil, quem define os limites? Políticos? Polícias? Igrejas? Professores? Sindicatos? Juizes? Jornalistas? Terceiro, onde se estabelecem as regras? No Parlamento? No Governo? Na presidência? No partido? Nos jornais? Na loja? Na igreja?

 

As respostas a estas perguntas são, em geral, as mais vagas que se pode imaginar. Diz-se que a definição pertence ao bom senso e à sensatez. Aos costumes e à moral. À opinião pública e outras vacuidades. A verdade parece ser mais simples e mais difícil. Não há limites para a liberdade de expressão. Quem usa da liberdade de expressão para fazer mal, mentir, caluniar e prejudicar, deve ser julgado, contrariado e condenado por isso mesmo, pelo mal que faz, pela mentira, pela calúnia e pelo prejuízo, não pelo “abuso” da liberdade de expressão. Se eu der voz a preconceitos e generalizações, devo ficar com as consequências, mas não se vê quem possa definir as generalizações aceitáveis e as condenáveis. Se alguém disser “não gosto de ciganos”, “não gosto de capitalistas”, “os monopolistas devem ser banidos”, “os trabalhadores são preguiçosos” … que fazer? Mandar prender? Processar em tribunal? Quem se queixa? E se alguém se referir negativamente aos Israelitas ou aos Palestinos? Além de se proibir dizer “mal”, também se deve proibir dizer “bem”? Há limites? Fronteiras? Quem as define? Quem traça os critérios?

 

Quando se fala em liberdade de expressão, termos e conceitos muito em voga são os que consistem em generalização social, biológica, racial e étnica. Como definir os limites e as fronteiras? O que é ou não é aceitável? “Os americanos (ou chineses, ou russos…) querem mandar no mundo”! Permitido? Os “alemães ocuparam a Europa”, ou “os russos invadiram a Ucrânia”. Pode dizer-se? Os “israelitas massacraram palestinos” ou os “palestinos assassinaram judeus”?  Pode afirmar-se? Os “vietnamitas derrotaram os americanos”. Pode dizer-se? Os “americanos (ou russos, ou chineses…) são imperialistas”. Pode declarar-se?

 

Quem contesta expressões do género: as tradições imperialistas dos ingleses, colonialistas dos portugueses, despóticas dos russos, autoritárias dos chineses, conquistadoras dos árabes, fanáticas dos islamistas e opressoras dos católicos, entre tantas outras? É tão ridículo condenar estas expressões, como considerá-las verdadeiras. Os portugueses conquistaram, colonizaram, escravizaram, dominaram e exploraram milhões de indígenas de África, das Américas e da Ásia. Pode dizer-se? Mas também o fizeram, com a mesma ou maior intensidade, entre outros, os ingleses, os chineses, os árabes e os russos. O que se pode ou deve dizer?

 

Há muita gente que gostaria de estabelecer, para os outros, cânones e códigos de conduta. Há demasiada gente que tem uma concepção parcial da liberdade de expressão. Quem sabe se também de outras liberdades e outros direitos.

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Público, 8.6.2024

sábado, 1 de junho de 2024

Grande Angular - Europa: O pior dos mundos, o melhor dos mundos

 Dentro de uma semana, as eleições europeias serão apenas um teste. Nada ou quase nada que seja importante se resolverá. Por arranjo, o poder político na Europa não depende das eleições europeias, depende eventualmente das eleições nacionais. A construção europeia foi de tal modo feita que o que é democrático não é eficaz nem tem poder; e o que é eficaz e tem poder não é democrático. Assim é que a eleição para o Parlamento Europeu pertence à primeira variedade. Democrático, mas praticamente inútil. A opção, feita há décadas, de eleger directamente, sem contar com os deputados nacionais já eleitos, revelou-se um desastre. Funda uma nomenclatura, que é indispensável à democracia. Estabelece plataformas de contactos, o que é essencial. Cria uma ilusão, o que é muito importante. Mas não tem real poder. Não é eficaz. Não decide as grandes questões europeias. Não traduz a diversidade de comunidades e de culturas. Vive a miragem de uma cidadania que não existe.

 

Com medonhas guerras na Europa e às suas portas, isto é, na Ucrânia e no Mediterrâneo, estas eleições não terão qualquer efeito no desenrolar dos conflitos nem na paz. Nas vésperas de um afastamento suave americano, com Biden, ou de um abandono brutal, com Trump, estas eleições passam ao lado daquele que é um dos mais graves problemas actuais, a segurança. Com a Grã-Bretanha fora, com a França e a Alemanha em séria crise, sob a ameaça russa e diante da ascensão chinesa e da vitalidade indiana, as eleições europeias mostrarão sobretudo a inutilidade das suas instituições e o folclore de uma democracia de cenário, sem poder nem potência. Não se sabe se vivemos o fim da Europa. É possível que esta renasça ou se transforme. Mas esta fase da metamorfose é dolorosa e arriscada.

 

É ridículo ver que o que está em causa com estas eleições, num continente com centenas de milhões de habitantes, é um teste à configuração partidária dentro de cada país. Nestas eleições, ditas europeias, o que interessa aos portugueses é saber se o PS ganha ou perde, se o PSD perde ou ganha, se o Chega empata, se o PCP e o Bloco ainda conseguem e se a Iniciativa já lá está. Mas não nos sintamos diminuídos. Este enredo é igual ao de todos os outros. Em cada país, as eleições europeias servem para “aferir” os resultados nacionais pretéritos.

 

Esta perda de importância e de significado das eleições europeias é tanto mais chocante quanto coincide com as guerras actuais e a enorme crise que se anuncia para a Europa. Quando deveria estar mais forte do que nunca, por causa das ameaças externas, está a União talvez no seu mais débil momento.

 

Nós, Europeus, cometemos, nestas últimas décadas, erros quase fatais. Entregámos a defesa aos Estados Unidos. Confiámos na energia da Rússia, de quem ficámos dependentes. Exportámos a indústria para a China, que agora nos despreza. Explorámos a mão de obra da Índia, que hoje não nos enxerga. Abrimos as portas aos imigrantes, que agora nos preocupam. Deixámos de dar valor ao trabalho. Pensámos que a independência e a autonomia eram velharias de fidalgo. Ficámos seduzidos pelo exibicionismo dos ricos, dos frequentadores de casino e dos permanentes de capas de revista. Apostámos em trazer cá para dentro os piores dos mais ricos do mundo. Recebemos, com honras de aristocratas ou heróis, oligarcas de todos os continentes, de todos os mercados negros, de todas as mafias do planeta. Acreditámos na abertura desbragada de fronteiras, sem perceber que estávamos a estimular a clandestinidade, a ilegalidade e a marginalidade. Recorremos desenfreadamente ao trabalho imigrante que permite aos europeus descansar e dar-lhes tempo de divertimento.

 

Todos estes erros foram cometidos em quadro desfavorável à força europeia: o da globalização. Esta, apesar de indiscutíveis vantagens, significou uma efectiva perda do sentido cultural e do valor cívico da comunidade nacional. Todo o trabalho, colectivo e estratégico, feito no sentido de uma Europa mais homogénea, foi empreendimento suicidário: a Europa ou é plural e heterogénea ou não é. 

 

Nós, Europeus, temos o privilégio de viver no melhor dos mundos. Que também é o pior dos mundos. A sua história, a sua cultura, a sua política e o seu contributo para a humanidade fazem da Europa uma das mais prodigiosas construções humanas, com heroísmo e êxitos inigualáveis. Mas também com horrores indesculpáveis. O melhor do mundo foi aqui inventado ou desenvolvido. Soubemos criar, mas também importar e aperfeiçoar. Aqui foram concebidas as mais sofisticadas e complexas artes e letras, incluindo a filosofia, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e o teatro. Aqui se desenvolveram as melhores ciências do mundo, sejam as importadas e melhoradas, sejam as cá inventadas. É europeia, orgulhosamente europeia, uma das mais poderosas contribuições, talvez mesmo a mais relevante, para a descoberta de civilizações e o cruzamento de povos e culturas.

 

Mas também estão os Europeus entre os que aproveitaram ou desenvolveram a escravatura pelo menos tanto quanto os países e continentes que mais o fizeram. Estão na origem de algumas das perseguições, conversões à força, pogroms e inquisições mais ferozes da história. Mas também foi na Europa que se concretizaram, melhoraram ou inventaram os direitos humanos, a Liberdade, a igualdade entre as pessoas, a cidadania, o Estado social e a democracia. 

 

Foram Europeus os que ajudaram a fundar, desenvolveram e deram o principal contributo ao Cristianismo, uma das religiões que mais pugnou pela igualdade de todos e que mais baseou as suas doutrinas na dignidade individual da pessoa humana.

É europeia a religião mais capaz de separar o Livro Santo da Constituição, os Códigos Civil e Penal dos catecismos e das Sharias.

 

Os Europeus fundaram e desenvolveram uma das obras-primas da história da humanidade, o Estado-nação. Este é capaz das maiores obras, mas também se transformou numa das mais odiosas criações, o nacionalismo, com os seus devaneios de pobres de espírito, ricos de arrogância e despotismo. Aqui nasceram e se desenvolveram, ao longo de mais de dois mil anos, quase todos os importantes impérios da história, com as suas páginas de glória e de agressividade, de grandeza e de violência.

 

É talvez o continente com mais séculos de guerra entre os seus povos, com algumas das guerras mais mortíferas da história da humanidade, com mais conquistas longínquas de outros povos e com mais massacres de civilizações alheias. Mas a Europa também é o continente com a mais importante, longa, pacífica e durável aliança política entre os seus Estados. Cuidar da Europa é cuidar de nós. E da nossa liberdade.

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Público, 1.6.2024