sábado, 22 de junho de 2024

Grande Angular - E não se pode proibi-las?

 Moralmente, o método das escutas policiais, judiciais e outras está condenado. Politicamente, não é apreciado, mas defendido sem prazer. Judicialmente, é aceite. Os que o praticam, em princípio os magistrados judiciais e do Ministério Público, polícias, militares e outros funcionários, aceitam e defendem a sua aplicação. Já as escutas privadas, isto é, praticadas por qualquer cidadão, empresa ou agência, são condenadas e proibidas: são ilegais e apenas defendidas por quem as pratica.

 

As pessoas que defendem o recurso às escutas de Estado têm argumentos conhecidos. Sem elas, muitos crimes teriam sido cometidos. Com elas, é possível orientar as investigações. Graças a elas, podem provar-se crimes. São maneiras de controlar o mercado de droga, o terrorismo e o crime financeiro. São os melhores instrumentos para investigar a corrupção. São indispensáveis para castigar o crime fiscal e financeiro. Finalmente, são essenciais para a segurança do Estado.

 

Nada disto está demonstrado. Nem está provado que, sem as escutas, não haveria outros meios de investigação e prevenção. Como não se conhecem os casos que só foram detectados graças às escutas. Mas sabe-se dos casos em que o sistema de escutas não preveniu. Como, por exemplo, os actos de terrorismo de Nova Iorque, Paris, Londres, Madrid, Moscovo, Israel e outros.

 

É possível que nos argumentos favoráveis às escutas haja uma qualquer verdade. Mas também podemos dizer que há milhares de crimes para os quais as escutas de nada serviram. Como seria interessante saber que crimes foram evitados e quantos criminosos foram condenados graças às escutas. Dizer que são úteis não basta. É necessário demonstrar que o foram e como eram o único meio existente.

 

É possível que haja crimes prevenidos graças às escutas. Mas não sabemos se outros meios não teriam dado os mesmos ou melhores resultados. Nem sabemos, em toda a sua extensão, os prejuízos causados à população, os atentados cometidos contra os cidadãos, os abusos praticados e os casos de ameaça, chantagem e extorsão de que muita gente pode ser vítima de quem abusa das escutas. Em poucas palavras, se há benefícios, é seguro que são obtidos a custo elevado, a expensas dos direitos dos cidadãos.

 

Há países, de regimes autoritários, onde se vigiam os cidadãos. Todos. Na rua, no banco, na escola, em casa, no emprego, no estádio e no bar. De cada um, sabe-se o nome, a conta bancária, a família, os amores, os divertimentos, o cadastro e as dívidas. Assim como as preferências estéticas, políticas, sexuais e gastronómicas. Basta andar na rua para ser identificado. Em países democráticos, onde existem os meios para fazer as vigilâncias que se quiser, há limites na lei, mas pratica-se igualmente. Com menor intensidade. Mas, pouco a pouco, com receio do terrorismo, dos narcotraficantes, dos vendedores de sexo, dos intermediários de mão-de-obra, do crime organizado, dos manipuladores da bolsa, vão-se admitindo excepções e novos meios de vigilância. É verdade que também se aprovam leis de protecção de dados pessoais. Mas sempre com falhas e excepções.

 

Na verdade, por cada escuta “útil”, deve haver milhares “inúteis”, isto é, a pessoas inocentes, sobre assuntos indevidos. As escutas resultam sempre de “varrimentos” intensos. Parece que as que não são necessárias para os casos em questão são destruídas. Parece, não é certo nem seguro, como se tem visto nos últimos anos. Mas por que razão alguns indivíduos (funcionários, magistrados, oficiais, técnicos, polícias…) terão a cobertura da lei para escutar, apreciar, decidir, destruir e conservar o que muito bem entendem?

 

As escutas telefónicas têm características especiais. Para que resultem, são necessários milhares de escutas, dezenas ou centenas de pessoas, temas e assuntos diversos, com vida privada, comercial, política, cultural e o resto. Para uma chamada útil, com informação verdadeira, é necessário ouvir dezenas de pessoas e milhares de chamadas. Centenas de inocentes têm de ser escutados. Cria-se um ambiente permanente de suspeição.

 

Como é sabido, os grandes peritos em escutas não são só os espiões e as policias das ditaduras. São também das democracias. Pergunta-se: quem escuta os escutadores? Quem vigia os vigilantes? Não é possível deixar de lado todos os que nada têm a ver com nada. Nem os inocentes. Só depois de escutados e vigiados é que se sabe se dezenas ou centenas de pessoas estão ilibadas ou não. Além de que as escutas são um belo exemplo do paradoxo da ausência. Não estar referido numa escuta não quer dizer que seja inocente. Um silêncio ou uma ausência não são alibis. Falar sem nada dizer não quer dizer que se esteja inocente ou culpado.

 

As escutas permitem guardar dados para chantagem. Servem para ameaçar outras pessoas que nada têm a ver com o crime. As escutas deixam traços que tornam possível a sua utilização para outros fins. Que permitem a devassa pública. As escutas podem ser destruídas ou mantidas, a coberto da lei, por quem tem força e poder. As escutas permitem uma selecção dolosa de pessoas e de conversas. Por cada pessoa escutada, suspeita, são dezenas ou centenas de outras, inocentes, que são “apanhadas na rede”. Não é moralmente aceitável que, por um possível culpado, se atente contra os direitos de dezenas ou centenas de inocentes.

 

Não parece haver argumentos suficientes para justificar o recurso às escutas. Nem para demonstrar que os benefícios são superiores aos inconvenientes. Parecem inúteis os esforços para reparar o irreparável, para garantir e controlar o recurso a escutas. Há mais de trinta anos que se tenta encontrar a solução ideal: legislação mais apertada, escutas sob reserva, autorização de magistrados, licença de transcriação só para as seleccionadas entre milhares, com e sem destruição decidida por magistrado. É um sem fim de soluções para um problema que as não tem. Todo o contorcionismo jurídico para garantir a bondade das escutas e impedir o abuso tem-se revelado inútil. E nem sequer é possível demonstrar que as escutas deram vantagens à liberdade, aos direitos dos cidadãos, à vida humana e à privacidade.

 

Meias garantias não chegam. Tal como a tortura, o assassinato, a pena de morte, a prisão sem culpa formada e a prisão perpétua, também as escutas exigem uma clara definição: ou é ou não é. Se não há escutas, não há possibilidade de traficar e ameaçar com uma coisa que não existe. Sem escutas, não há mercadoria para tão vil negócio. A proibição total, pura e simples, parece ser a única solução justa e eficaz. Com garantias para os cidadãos. Não resolve todos os problemas. Mas pelo menos elimina alguns. E protege as liberdades.

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Público, 22.6.2024

2 comentários:

Carneiro disse...

Coarctar instrumentos à actividade judiciária nunca foi e jamais será uma solução para proteger liberdades e garantias aos cidadãos num estado de direito minimamente decente. Isso será apenas o caminho para impunidade, desordem e desassossego.

“ A proibição total, pura e simples, parece ser a única solução justa e eficaz. Com garantias para os cidadãos” - isso gostava eu que fosse verdade ou um propósito genuíno.

António Cluny :”Não há mais dúvidas, o modelo de Ministério Público (MP) tal como foi concebido na Constituição (CRP), na sua primeira Lei Orgânica e no mais recente Estatuto (EMP) não é mais aceite pelas elites políticas e forenses que, alternadamente, atuam no poder e se empenham profissionalmente na jurisdição criminal”

Portanto está fácil de ver que proibir as escutas é curto, muito curto. É necessário ir além. Tornar, à imagem da Espanha, o Ministério público um executante de agenda política e/ou colocar o juiz de instrução certo a tomar conta da ocorrência é que era.

Mas está bem. Já que se fazem negócios com o PCC, acolhe actividade do Comando Vermelho, passa-se dados pessoais à Rússia e mercadeja o cargo político, seria mais acertado o encroChat … para proteger as liberdades do povo!

Jose disse...

Criminalizar a cunha é criar um enredo de espionagem.
Criminalizar a falta de transparência parece-me simples e eficaz:
1) É direito de qualquer pessoa, singular ou colectiva, diligenciar no sentido de fazer alterar leis, regulamentos, ou interpretações e procedimentos associados.
2) Nenhum político ou funcionário público está imune a que se lhe dirijam e com ele interajam no exercício desse direito.
3) Abram a porra de um portal onde se crie uma referência que assinale todas essas diligências, e em vez de lhe chamarem o piroso 'lobbying' ponham-lhe um nome que venha no dicionário como a óbvia 'Declaração de interesse nº....

Toda a interacção que não invoque a declaração de interesse associada, é diligência e acção ilegítima e susceptível de criminalização.
É óbvio que interesses legítimos não requerem serem ocultos