sábado, 25 de junho de 2022

Grande Angular - O pior inimigo

A Rússia ameaça a paz europeia e mundial. É um risco mortal para os seus vizinhos. É um perigo para toda a Europa. Reintroduziu a violência e a guerra nas relações internacionais. A Rússia agita o fantasma da guerra nuclear. Feriu a liberdade de comércio. Sem capacidade política ou intelectual; sem trunfos científicos e tecnológicos; sem poder de atracção cultural ou artística; sem vantagens nem trunfos comerciais, a Rússia usa o que tem, as matérias primas e a violência.

A Rússia, o ditador V. Putin, o governo, a classe dirigente e as Forças Armadas são actualmente os piores inimigos da liberdade e da democracia, da Europa e do Ocidente. O governo russo não quer que os exemplos de democracia e de liberdade contagiem o seu povo.

Na Ucrânia, deliberadamente, os Russos destroem cidades, bombardeiam edifícios residenciais e fazem explodir fábricas, escolas e hospitais. Assumidamente maltratam toda a gente, matam, violam, torturam e prendem civis e militares, homens e mulheres, adultos e crianças. Atacam quem se atravesse no seu caminho, quem procuram e quem encontram. Liquidam domésticas, profissionais, estudantes, médicos, professores, enfermeiros, trabalhadores…. Basta existir e estar vivo para ser um candidato a ser assassinado.

É verdade que a crueldade e a violência são constantes na história dos russos dos últimos séculos. Tal como a escravidão e a servidão. Sem falar na espionagem, na denúncia, na delação, no policiamento e na censura. Mesmo sabendo que se trata de uma característica permanente de um Estado, não podemos deixar de ficar impressionados com o grau de violência a que se chegou na Ucrânia.

As principais armas e os principais meios de acção dos Russos são o bombardeamento, o assassinato, o gás, o petróleo e os cereais. Não têm ciência e tecnologia bastantes, não têm engenharia e empresas suficientes, nem oferecem mercado e oportunidades. Restam-lhes as matérias primas e a violência militar.

Rússia quer destruir a NATO porque esta é uma aliança de países democráticos, liderada pelos Estados Unidos, é certo, mas na qual todos os Estados têm uma palavra e um voto, todos os que foram admitidos tiveram uma decisão democrática, ninguém foi forçado. A NATO é o exemplo de aliança política e militar que a Rússia abomina, predestinada como se sente para o poder imperial, a federação aparente e a obediência dos vizinhos. As forças armadas americanas ou as da NATO nunca tiveram de invadir países membros, o que a Rússia e a União Soviética fizeram várias vezes na Hungria, na Checoslováquia, na Alemanha, na Polónia, na Geórgia… 

A Rússia não tolera o facto de metade dos países da NATO serem antigos comunistas e terem pertencido à esfera de influência russa. A Rússia não quer apenas destruir a NATO, tenta também aniquilar a União Europeia, pela simples razão que esta é hoje um símbolo da democracia, exemplo para muitos povos.

Tal como nos últimos séculos, a Rússia, hoje, quer segurar o seu actual império, conquistar os vizinhos próximos, ameaçar os vizinhos afastados, limitar e condicionar as decisões soberanas de todos os países do continente europeu, rivalizar com a NATO, destruir a União Europeia, impedir a liderança chinesa na Ásia e no Pacífico, condicionar meio mundo, partilhar o planeta…

Há países por esse mundo fora que fazem pior do que a Rússia? Provavelmente, não. De qualquer maneira, o mal, a crueldade e a violência dos outros não justificam a de ninguém. Será que na Ucrânia, há ou havia, também, corrupção, violência e falta de liberdade? É possível. Mas nada justifica que os Russos a tenham invadido e destruído como estão a fazer.

Será que a Europa, os Estados Unidos, a NATO e a UE “têm culpas no cartório”? São russófobos, aproximaram-se excessivamente das fronteiras russas, meteram medo a Putin, não respeitaram os espaços de influência, não previram os medos dos Russos e os receios de Putin? É possível. Mas nada disso justifica a invasão, nada desculpa a violência.

Temas muito tratados são os dos erros dos europeus, das políticas da NATO e das imposições dos americanos. Sem falar no que europeus, americanos e ocidentais fizeram ou terão feito no Vietname, no Iraque, na Líbia e noutras paragens. Verdade é que nenhum erro e nenhuma violência, por mais condenáveis que sejam, desculpam a invasão da Ucrânia pelos Russos.

Entre os “erros europeus”, está a nova dependência ocidental. Os países confiaram na Rússia, aceitaram as suas imposições comerciais, albergaram os seus oligarcas, acolheram os seus mafiosos, encaminharam os investimentos dos traficantes e dos corruptos russos. Consideraram a Rússia como um parceiro normal, um cliente igual aos outros e um fornecedor em quem se pode confiar. Deixaram-se seduzir pelas facilidades do gás barato, do petróleo acessível e dos transportes fáceis, a ponto de permitir que as nações Europeias ficassem dependentes da Rússia, até quase à perda de decisão livre. Todos estes interesses falharam e têm o seu preço. Todos estes “erros” se pagam. E a Europa vai pagá-los durante anos. Tudo isso pode ser verdade, mas nada disso justifica a invasão e a violência. E nada disso serve para uma “balança moral”, isto é, os erros dos europeus teriam a mesma gravidade que a violência russa.

Temas igualmente referidos por quem procura justificar a invasão russa são os da desigualdade social, da exploração capitalista e da corrupção em tantos países ocidentais. Verdade é que a Rússia é pelo menos tão desigual, exploradora e corrupta.  E nada disso justificaria uma guerra não provocada, uma invasão violenta e uma destruição cruel. Todos os defeitos, contradições e conflitos existentes no Ocidente democrático são passiveis de serem debatidos e resolvidos através do funcionamento da democracia, com recurso aos direitos e liberdades fundamentais: liberdade de imprensa, liberdade de expressão, liberdade de associação e eleições livres. Não é, consabidamente, o caso da Rússia, onde não há liberdade de expressão, mas há censura, onde não há eleições livres, mas há prisão, onde não há liberdade de associação, mas há o assassinato político.

A Rússia pode orgulhar-se. Volta finalmente a ter peso no mundo: é o maior inimigo da liberdade, o maior perigo para a democracia e a maior ameaça contra a paz.

Público, 25.6.2022

 

sábado, 18 de junho de 2022

Grande Angular - A tempo

 Ainda estamos a tempo de salvar o SNS, de organizar os respectivos serviços e de responder às necessidades. Durante os últimos anos, acumularam-se as deficiências e os problemas. A crise instalou-se como estado natural. Por falta de dados e de estudo, não se sabe exactamente qual foi a evolução da mortalidade nas suas relações com as questões de saúde pública. Mas outros sinais são claros. As filas de espera para consulta, cirurgia e exames não cessaram, nem reduziram, antes cresceram. Os défices financeiros, regionais e hospitalares, dilataram sem que se visse o melhoramento. As saídas de médicos e de enfermeiros, para o estrangeiro ou para os serviços privados, aceleraram. Falhou o planeamento a longo prazo, da formação e do investimento pesado, mas também o de curto prazo, como as questões sazonais, as escalas de trabalho e as férias. Toda a política salarial e de carreiras, incluindo a do recrutamento precário, pura e simplesmente explodiu.

Ainda é possível reformar e melhorar, aproveitando o que há de bom e consolidado. Desde que as condições políticas o permitam. Há dinheiro, há médicos e enfermeiros, há técnicos e funcionários, há equipamentos e estruturas, há instituições e hospitais. Faltou sabedoria, vontade reformista que implica riscos e predisposição para negociar com quem sabe e não apenas com quem tem poder político. Faltou tolerância política, mas sobrou ideologia. Faltou meritocracia, mas sobrou partido.

Há graves deficiências na formação de médicos e enfermeiros, no número, na adequação às necessidades e à população, nas especialidades. Parece ser este um dos mais graves problemas. Uma vez mais: não por causa do número global de profissionais, mas pela especialidade, pelo treino e pela experiência. Pela distribuição. E também pela juventude.

O governo detesta os médicos e os enfermeiros, classes profissionais que não pode dispensar nem despedir. Não lhes paga bem. Não os respeita. Não lhes dá condições adequadas para exercerem os seus ofícios sem perder tempo com tarefas colaterais, designadamente burocráticas. Tolera e considera os que lhe obedecem ou são mudos. Pensa, como já vários o disseram, que “os médicos e os enfermeiros são profissionais como quaisquer outros, têm de ser tratados como todos os outros”. O que não é verdade: aos médicos e aos enfermeiros, e poucos mais grupos profissionais, exige-se tudo, pede-se de mais, espera-se sempre.

A pandemia e respectiva gestão criaram uma ilusão. O enorme esforço feito pelos profissionais, sobretudo médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde, mascarou a desorganização, o amadorismo e o espírito burocrático. A política de relações públicas do ministério quase convenceu a população do bom cuidado que estava a ser tomado. Apesar das aparências, tudo foi difícil, por vezes contraditório, como aliás seria de esperar. O que não era de esperar é esta espécie de gloriosa vaidade que sistematicamente garante que o Ministério da Saúde se portou de modo excelente durante a pandemia. Não é verdade. Foi necessário ir buscar ajuda ao exterior, convém não esquecer. Foi necessário chamar as Forças Armadas, em especial o Almirante Gouveia de Melo e a equipa que dirigiu e se ocuparam da coordenação e da logística. Foi necessário ir buscar equipas médicas estrangeiras para dar o exemplo, não de tratamentos, mas de organização.

A actual crise, profunda, aguda, estrutural e conjuntural revela tanta coisa, tantas deficiências na política nacional e na sociedade! Por exemplo, a crónica falta de meios que os últimos governos tanto têm feito para esconder e disfarçar! Ou simplesmente a existência de outras prioridades mais vistosas e de mais imediato efeito.

Nenhuma crise será ultrapassada, de modo duradoiro e estável, sem que se toquem nos mais dolorosos problemas. Ou nas mais difíceis medidas. Como por exemplo favorecer e recompensar digna e visivelmente a exclusividade dos médicos e dos enfermeiros. Ou tratar com ousadia e sem fanatismo a relação entre o público e o privado. Pode haver várias opiniões, mas ainda está por demonstrar que a mais fértil não seja a da separação entre público e privado. Assim como arredar as parcerias, pela simples razão que os governos não merecem confiança. A história dos últimos trinta anos de parcerias públicas privadas é uma história de corrupção política. Até é possível que, aqui e ali, tenham tido resultados positivos. Seja. Mas, no conjunto, são uma história de favores, cumplicidades e benefícios ilegítimos. Sobretudo porque os responsáveis políticos não mereceram confiança. E os privados aproveitaram.

Nem vale a pena comentar, mas é anedótico o facto de a Ministra ter anunciado que não se demitia e que vai continuar a lutar. Tudo leva a crer que esteja enganada. Mas espanta que dê a entender que se mantém porque assim quer. Alguém fará o favor de lhe dizer que continua a lutar enquanto o Primeiro Ministro quiser. Ele é responsável. Ele responde por ela. E responde pela política de saúde.

Surpreendentes são as medidas que sugerem que o Primeiro Ministro e a Ministra perceberam o que está a acontecer e não querem confessar. O Primeiro Ministro é mestre na arte do apagamento ou do esquecimento. Dissocia-se das causas, da sua origem, das suas responsabilidades passadas, dos seus ministros ou dos seus altos funcionários que procura substituir logo que possível. Sabe que é responsável, mas não quer ser responsabilizado. Sabe que é o protagonista, mas só está disponível para assumir essa qualidade quando lhe convém.

O Governo e a Ministra anunciam “planos de contingência”, na esperança de que alguém acredite que há sobretudo problemas passageiros. Declaram também criar uma Comissão de Acompanhamento, mais uma, na conhecida tradição de “empatar”. Para fazer o quê? Para coordenar e conversar. E entreter. É detestável este estilo de governo feito de expedientes, de falta de confiança nas instituições, de não cumprimento das regras de avaliação e responsabilidade. É próprio de um governo auto-suficiente dominado pelo fanatismo ideológico. Vêm daí os intoleráveis conflitos de teimosia: contra os privados, contra os sindicatos, contra as farmácias e contra as Ordens.

Com quem é que o governo quer governar a saúde? Com os médicos que paga mal? Com os enfermeiros que aliena? Com as Ordens que despreza? Com os privados que ameaça de morte? Com os doentes e familiares que esperam por consulta e cirurgia? Talvez apenas com um espelho.

Público, 18.6.2022

sábado, 11 de junho de 2022

Grande Angular - Migrações e democracia

 Os discursos do Dia de Portugal (e das Comunidades) sublinharam as questões das migrações. Seja a dos emigrantes portugueses por esse mundo fora (metade do dia de Portugal é festejado no estrangeiro, este ano em Londres); seja a dos estrangeiros a viverem em Portugal ou a naturalizarem-se portugueses. Seja finalmente a dos imigrantes de terras difíceis e momentos excepcionais, como a Ucrânia, que rumam ou chegam ao nosso país.

Mas os portugueses e os estrangeiros não estão apenas presentes em ocasiões de comemoração. Na verdade, são de todos os dias as alusões feitas aos estrangeiros de Portugal e aos portugueses do estrangeiro. Qualquer que seja o propósito, bom ou mau, não se passa dia sem que essa especial relação não seja motivo de atenção. Até porque os portugueses continuam a emigrar muito. E há cada vez mais estrangeiros em Portugal. Acontecimentos recentes envolvendo incidentes com a polícia de estrangeiros e fronteiras obrigam a atenção, cuidado e acção.

As últimas eleições legislativas, durante as quais o voto dos emigrantes foi vergonhosamente humilhado e até desperdiçado, trouxeram-nos à atenção o eterno problema da utilidade do voto dos emigrantes. E mais uma vez se verifica que, tal como está concebido, de nada serve. A representatividade dos deputados da emigração é duvidosa, em todo o caso distorcida, sem distrito nem geografia.

As informações agora disponíveis sobre a evolução e as condições de atribuição dos “vistos de ouro” revelam um infame mercado e um atropelo permanente às leis em vigor, assim como uma noção venal indigna da nacionalidade. Quem tiver muito dinheiro, tem visto Gold. Quem tiver advogados poderosos, altos funcionários complacentes, ricos grupos de protecção, poderosas comunidades de pertença ou ágeis facilitadores, tem visto Gold. Se for jogador de futebol, atleta de categoria internacional ou especulador imobiliário, tem visto Gold. Se estiver disponível para pagar ilegalmente, com dinheiro vivo, aquisições de imóveis, tem visto Gold.

São crescentes os problemas com as populações estrangeiras em Portugal, dos clandestinos e trabalhadores ilegais, aos conflitos sociais que envolvem imigrantes. São frequentes as reacções detestáveis de racismo ou de atribuição a estrangeiros das culpas pelas insuficiências de todos nós. Não se passa dia sem que portugueses e imigrantes se acusem mutuamente de racismo. É evidente a pobreza extrema de tantos bairros de imigrantes, sobretudo ilegais.

As condições de trabalho em inúmeros sectores da economia com especial propensão para acolher, procurar ou acomodar trabalhadores estrangeiros são aflitivas. Excesso de horas de trabalho, péssimas condições de habitação, alimentação confrangedora, ausência de cuidados de saúde e típica sobre-exploração de “trabalho negro” são muito frequentes nas estufas de hortofrutícolas, em muitas vinhas, nalguns montados, no olival e em certa restauração. E nas obras públicas e construção civil.

Toda a gente sabe que o trabalho ilegal e a residência clandestina são propícios aos conflitos sociais e raciais, à criminalidade e à marginalidade. Mas parece haver receio de o dizer, de verificar os factos, de controlar, prevenir e cuidar. Há temor do preconceito. Há medo de algumas populações. Há receio de acusações de racismo. Há vontade de aproveitar ao máximo as condições de exploração.

O número de estrangeiros legalmente residentes em Portugal terá atingido os 670 000, máximo histórico que não dá mostras de abrandar. O número de portugueses que anualmente emigram para o estrangeiro conhece altos e baixos, mas situa-se actualmente em patamares elevados: nos últimos dez anos, terão emigrado para o estrangeiro tantos ou mais portugueses do que na famosa década dos anos sessenta, considerada o período de maior emigração da história.

Em muitos aspectos, as migrações são o sintoma, o indicador da sociedade. Quase medem a sua temperatura. “Muitos emigrantes” é sinal de pouco emprego. Ou de opressão. E de falta de perspectivas e oportunidades. “Muitos imigrantes”, pelo contrário, é sinal de actividade económica e de possibilidades de emprego. Mas também pode ser sintoma de laxismo e falta de controlo legal. “Muitos emigrantes” e “muitos imigrantes”, ao mesmo tempo, como é o caso de Portugal, revelam situações complexas, muito negativas. Falta de boas oportunidades (emprego, trabalho produtivo, boas remunerações) e abundância de más oportunidades (ilegalidade, trabalho clandestino, emprego precário, exploração).

É possível que Portugal venha a ser pressionado, tal como muitos outros países, por vagas de imigrantes, por fluxos de esfomeados, por cortejos de desempregados e por movimentos de refugiados como há muito se não via. A crise económica e alimentar já é visível. A crise de refugiados provocada pela invasão da Ucrânia (muitos milhões, como já não se via desde a Grande Guerra) está aí. As reviravoltas que se preparam nas relações económicas entre, por um lado a China e a Rússia, e, por outro, a Europa e a América, anunciam-se. Estes e outros factores deixam prever uma crise de migrações e de refúgio como raramente se viu.

As autoridades e a sociedade, portuguesas e europeias, têm a obrigação de reflectir e debater com antecedência, de se prepararem para mudanças importantes, de se ajustar a novas situações, de prevenir graves crises e de fazerem as reformas necessárias. É intolerável uma política de portas abertas, com a qual a ilegalidade, a exploração, o conflito social e as fricções raciais não cessam. É inaceitável uma política de portas fechadas, ao arrepio das necessidades do país e em violação de valores humanistas de acolhimento. É insuportável uma política de descontrolo da imigração que deixa vulnerável toda a gente, residentes e imigrantes, nacionais e estrangeiros. É perigoso permitir que se criem verdadeiros guetos de minorias.

Todas as áreas necessitam de revisão legal e de políticas. As condições de autorização e fixação de residência, assim como a concessão de nacionalidade, exigem mudança. O acesso aos serviços de educação e saúde deve ser analisado. A legalização dos regimes de trabalho deve ser obrigatória. As condições de vida nos bairros mais desfavorecidos têm de ser acudidas. Para já não falar no clima das relações raciais em ambientes mais sensíveis. Não tenhamos dúvidas: se não nos ocuparmos, com tempo e serenidade, das questões das migrações, a Europa e Portugal conhecerão tempestades. Está em causa o bem-estar do continente. E a democracia.

Público de 11 de Junho de 2022

sábado, 4 de junho de 2022

Grande Angular - Faça-se luz!

 É possível que as simplificações sejam injustas. Mas, às vezes, para melhor compreender, são necessárias. A maior debilidade da nossa vida colectiva reside na justiça. A maior ameaça contra a democracia é a fragilidade da justiça. O maior perigo contra as nossas liberdades está na justiça deficiente. Com excepção da invasão inimiga, todos os grandes perigos conhecidos para a democracia e a liberdade têm de ser combatidos pela justiça. O crime, a corrupção, a captura do Estado, a marginalidade, o terrorismo, a revolução e o golpismo: ou são combatidos pela justiça ou destroem a democracia. Uma justiça débil é uma democracia frágil.

O panorama da justiça em Portugal é, há muitos anos, de enorme deficiência. Os processos dos poderosos atrasam-se para além de todos os limites. O sentimento da existência de duas justiças instala-se na vida quotidiana. As deficiências processuais, incluindo as fugas de informação, as quebras do sigilo, os atrasos, os excessos de recursos, o enorme poder dos prazos discricionários e as elevadas custas judiciais são apenas alguns exemplos. Os notáveis nunca arguidos, os arguidos nunca julgados, os condenados nunca punidos e as prescrições programadas preenchem a crónica. Olhe-se em volta: ricos e poderosos, sejam políticos, milionários, empresários ou simplesmente notáveis, a contas com a justiça, enchem páginas de jornal e fazem muitos descrer na justiça. O persistente mal-estar provém daí. É assim que se cria o sentimento, não sabemos se totalmente justo, de que a justiça tem em Portugal duas caras, a dos ricos e a do povo.

Há uma justiça invisível e discreta que, por todo o país, vai cumprindo os seus deveres, julga e arbitra, concilia e condena, sem que se saiba ou faça constar. É possível que esta justiça seja lenta, mas não demasiado, pelo que se vê nas estatísticas. É provável que se trate de justiça burocrática. Como é plausível que se trate de uma justiça desigual que trate melhor quem tem nome e fazenda. Mas, no essencial, é uma justiça que cumpre a sua função. O pior é a justiça dos grandes casos, dos poderosos. Pode ser uma parte menor da justiça, mas é maior na má reputação que lhe confere.

Diz-se que a justiça portuguesa falhou as actualizações que, nestas últimas décadas, se impunham. Falhou adaptar-se à democracia e à sociedade dos direitos civis e políticos. Não conseguiu actualizar-se e preparar-se para uma economia de mercado. Não foi capaz de interiorizar a integração europeia e adequar-se a esta nova ordem jurídica. Não esteve à altura do crescimento da litigância e da complexidade jurídica da nova sociedade. A porta giratória de magistrados entre a justiça e a política não cessou de funcionar. Finalmente, não teve meios nem sabedoria para adoptar com proveito os formidáveis novos meios de comunicação, investigação e conhecimento permitidos pela informática. É bem provável que todas estas afirmações sejam verdadeiras ou sobretudo verdadeiras. O certo é que não foi feito até hoje balanço nem elaborada avaliação que permita realmente saber o que não está certo. Nem por que não está certo.

Sabemos, todavia, que certas forças, presentes noutros países ou noutras épocas, estão talvez ausentes na justiça actual. Não é real que as Forças Armadas, a Igreja e a Maçonaria tenham influência sobre a justiça. Também não é crível que entidades criminosas, como as mafias ou o narcotráfico, aqui tenham relevo. A comunicação social é frágil e pobre, incapaz de dominar a justiça em seu favor. As universidades também não, tão pouco interessadas como estão. As polícias não têm força e, no limite, são sobretudo vítimas da justiça deficiente.

Na ausência destas influências, é plausível imaginar alguns grupos com interesses e poderes na justiça. A política e os políticos. O legislador. O governo e a administração pública. Os grandes corpos profissionais, as magistraturas e a advocacia.

O que está então errado na Justiça portuguesa? O que faz com que a opinião pública tenha tão má impressão deste sector vital para a nossa vida colectiva? Muito se diz, mas a verdade é que não existe uma visão aceite por muitos.

Os diagnósticos simples e simplistas são conhecidos. Interesses corporativos. Privilégios dos juízes. Má legislação. Interferências dos políticos. Falta de juízes. Equipamento miserável e instalações obsoletas. Requisições políticas de magistrados. Comissões de serviço político de juízes. Má preparação nas universidades. Poder excessivo das Ordens e dos sindicatos. Corrupção. Ideologia retrógrada. Caprichos modernos. Correcção política. Natureza de classe. Excesso de burocracia. Garantias a mais. Exagero de recursos. Rivalidade entre corpos e profissões. São tantos os epítetos e tantas as acusações que o mais provável é que nunca se chegue a conclusões pelo menos razoáveis.

A cultura jurídica e judiciária portuguesa é pouco democrática ou tem poucas tradições democráticas. Também não tem especial apreço pela eficiência e pela prontidão: prefere o formalismo e o pesado procedimento. Quer isto dizer que, para poder reformar a justiça, são essenciais intervenções exteriores. As únicas legítimas são as que decorrem da democracia (presidente, parlamento e governo). Estas devem evidentemente recorrer a quem sabe, às grandes instituições nacionais, aos corpos profissionais, aos representantes da sociedade civil, aos académicos e aos técnicos, sem deles ficarem prisioneiros. Mas este movimento de reforma necessita, primeiro, de sabedoria e conhecimento. Um Livro Branco seria o início deste processo tão complexo e tão necessário. Depois, necessita de um motor, um inspirador capaz ou uma autoridade legítima. Só pode ser o Presidente da República, o Parlamento ou o Governo. Sem o que nunca teremos reforma e nunca teremos justiça como deve ser. 

Não haverá um órgão de soberania interessado, empenhado ou disponível para patrocinar ou tomar a iniciativa de mandar elaborar um Livro Branco sobre a justiça em Portugal? Não haverá uma Universidade, uma Faculdade, uma Academia, uma Fundação ou uma associação privada prestigiada com vontade e sentido de responsabilidade para ajudar, estimular ou incitar a que se faça um Livro Branco sobre a justiça em Portugal? Não há associações profissionais privadas, ordens ligadas às profissões judiciais e outras organizações que ajudem à elaboração desse Livro Branco? Enquanto não houver luz, não há reforma. Nem Justiça.

Público, 4.6.2022