NÃO HÁ estatísticas. Nunca haverá. Mas estou convencido que a
“violência doméstica” se define principalmente por dois factos. Primeiro: é a
violência exercida pelos homens contra as mulheres. Segundo: é a violência praticada
pelo Pai, pela Mãe, ou pelos dois contra as crianças. Por isso prefiro falar de
“violência familiar”, predominantemente masculina. É bom evitar os efeitos
perniciosos do eufemismo.
Também não possuo
estatísticas, mas tenho a certeza que a violência familiar de carácter sexual é
quase exclusivamente da responsabilidade dos homens, sendo as vítimas as
mulheres e as filhas crianças ou adolescentes. Prefiro estes conceitos crus e realistas
a outros termos mais suaves ou neutros.
Não há evidência
empírica, muito menos números que mereçam confiança, mas o que se vê é pouco. O
que se sabe ou o que é visível é apenas uma parte muito pequena desta sórdida
história que é a da violência masculina contra as mulheres e as crianças da
família. Quem é violento não diz nem confessa. Quem é vítima tem medo de dizer.
Quem é agredido tem vergonha de revelar. Quem vê ou sabe não tem coragem para denunciar.
Quem ouve falar acha muitas vezes normal. Quem regista não presta atenção. Quem
investiga arranja quase sempre desculpas. Quem julga tem pretextos e
escapatórias. Quem estuda dissolve na sociedade as culpas individuais.
Também não há elementos
credíveis sobre as várias modalidades de violência, mas tenho para mim que os
fenómenos essenciais são, por um lado, a pancadaria física de toda a espécie e,
por outro, a agressão sexual nas variantes conhecidas. Não é de bom tom
dizê-lo, mas a combinação entre violência e violação tem o condão de atrair um
grande número de homens, tanto actuais como antigos. É uma combinação que associa
o poder ao animal, com a sofisticação da humanidade mais brutal. Creio que
mesmo as especialidades mais requintadas de violência psicológica e simbólica
têm, na agressão física e sexual, a causa, o instrumento e o fim como
explicação principal.
Apesar da falta de
dados, estou finalmente convencido que a violência sexual masculina e a
violência familiar atravessam todas as classes sociais, todos os meios
culturais, todas as regiões, todas as convicções políticas e todas as
religiões. Analfabeto ou doutorado, patrão ou trabalhador, católico ou
muçulmano, citadino ou campónio, minhoto ou transmontano, popular ou erudito:
nos anais da violência masculina e familiar há de tudo!
Por mais sólidas que
sejam as minhas convicções, não consigo perceber! Porquê? Que leva um homem a
chegar a casa, desancar a mulher que é suposto amar, violar a filha púbere e
bater no filho adolescente? Não percebo. Qual a razão? Será porque a maior
parte desta violência é invisível? Será porque o cinema, a fotografia, a
televisão e a literatura nos habituaram? Porque a maioria das vítimas se calam?
Porque a opinião pública não considera esta violência importante nem grave?
Será porque todos pensam finalmente que sempre foi assim? Porque as pessoas
acham que a violência faz parte integrante das famílias? Porque o senso comum
aceita que a violência seja um instrumento de educação e uma forma de expressão
afectiva? De tudo um pouco. Mas nada disso me basta como resposta. A verdade é
que há coisas difíceis de perceber. Porque são complexas e porque exigem muito
conhecimento. E sensibilidade. Ou então a capacidade de se colocar dentro da
pele dos agressores ou das vítimas. Ou finalmente porque são mesmo difíceis de
entender. Não consigo perceber. Perceber é uma das mais fascinantes actividades
humanas que se conheça. Perceber é meio caminho andado para compreender. Ora,
compreender é aceitar. E aceitar é quase tolerar. E tolerar é concordar. Ou
ficar indiferente. Esta também é uma armadilha da compreensão.
Creio compreender a
violência política e social; a militar e a policial; a terrorista e a racial; a
religiosa e a económica. Isto é, creio ser capaz de enumerar razões e causas
verosímeis de fenómenos de violência nas variedades descritas acima. Mas não consigo
perceber a violência familiar. Não consigo perceber como se troca o amor pela
pancadaria. Por que se substitui o sexo pela agressão. Por que se prefere a
violação à carícia. Por que se procura e obtém prazer na violação e na agressão
da filha.
Os dicionários e as
enciclopédias não ajudam muito a compreender. A não ser que se fizesse um dicionário
de preconceitos e ideias imbecis ou um vocabulário de termos sórdidos do
machismo. Com contributos qualificados. “Uma boa bofetada nunca fez mal a
ninguém”, diz o popular com ar convencido. “Quando chegares a casa, bate-lhe!
Se não souberes porquê, ela sabe!”, conta, com um sorriso cúmplice, o
conhecedor das tradições árabes.” No fundo, bem lá no fundo, as mulheres querem
é ser dominadas”, garante o fino psicólogo. “É conhecido: quando uma mulher diz
‘não’, quer dizer ‘sim’”, afirma o especialista em linguística analítica. Mais
truculento, mas não menos generalizado, o perito em ideias gerais assegura
que “no fundo, são todas umas putas”. O
perito em provérbios não esquece de atribuir às mulheres o famoso “quanto mais
me bates, mais eu gosto de ti”, uma espécie de santo e senha para todas as
selvajarias. E mesmo a música tradicional e a cultura popular contribuem para
tão importante auxiliar da língua portuguesa. Uma das mais famosas cantilenas
da história de Portugal reza assim:
Sebastião come tudo, tudo, tudo,
Sebastião come tudo sem colher,
Sebastião fica todo barrigudo
E depois dá pancada na mulher.
Tentei, para meu
benefício, enumerar as possíveis causas da violência familiar e machista. São
numerosas. O poder, com certeza. A frustração dos maridos. O ciúme, justificado
ou não. O desejo de outras, concretizado ou contrariado. O medo de outros, de
terceiros que possam olhar para as suas mulheres. Os falhanços e as negas. Os
males da vida profissional. As maçadas do emprego. As dificuldades económicas.
As vicissitudes do futebol. As perdas ao jogo. O álcool, sendo que este nunca
vale por si, vem sempre com alguma coisa atrás. Resumindo e concluindo: nem uma
atenuante, nem uma desculpa, nem um motivo que sirvam para fundamentar a eterna
complacência da justiça, isto é, do Direito e dos magistrados, perante a
violência contra as mulheres.
Pior que tudo e também
difícil de perceber é o que se passa na cabeça e na alma das mulheres e das crianças
agredidas e violadas. A começar pela culpa, sentimento horrível quando são as
próprias vítimas a afligir-se! A dependência financeira é também um velho tema.
O argumento dos cuidados com os filhos também. A fraqueza física é factor
indiscutível. A concepção predominante dos deveres da mulher (cozinha e cama)
ainda vigora. O medo de falar, de denunciar, de levar mais pancada, de ser
violada, de ficar aleijada, de perder os filhos e de ficar sem emprego, este
medo fundo que rói os ossos, mói a alma e paralisa as energias. É deste medo e
do papel extraordinário que pode desempenhar a ajuda de outrem que fala este
livro e de que se ocupam estes cinco contos que se lêem seguramente com
proveito, mas que se deveriam ler como se de uma penitência se tratasse. De uma
penitência positiva. De uma penitência que nos ajudasse a nunca ser cúmplices,
nem sequer pela indiferença.
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Prefácio ao livro Isto não é um conto – Histórias de
violência baseadas na vida de seis mulheres, edição da Link e do Montepio, com
textos de Afonso Cruz, Alice Vieira, António Figueira, Karla Suárez, Maria
Teresa Horta e Patrícia Reis.