sábado, 27 de agosto de 2022

Grande Angular - Abertura da temporada

Uns com romarias ou comícios, outros com seminários e debates: os partidos abriram a temporada. As primeiras impressões não surpreendem. Até agora, limitaram-se às habituais banalidades, à coreografia e aos compromissos inconsequentes. Tudo a pensar nas sondagens, dado que eleições não há.

Vai ser um duro Inverno. A saúde pública continua sob ameaça permanente. A pobreza manter-se-á a níveis elevados. O aumento do custo de vida já é colossal, mas nada que se compare com o que aí vem, com os preços da energia, dos alimentos, dos transportes e da habitação. As dificuldades de aprovisionamento, com rupturas de alguns bens essenciais, serão tão más como os aumentos.

Ao contrário do que se possa pensar, a altura é para grandes obras e bons planos, não apenas para acorrer ao efémero. Não há eleições tão cedo. Não se anunciam novas crises dentro dos partidos, nem nas relações entre as instituições. Nesta paz, que corre o risco de ficar podre, não seria o momento ideal para pensar a prazo, mas agir de imediato, para reformar com coragem, para solicitar apoio de independentes, para convocar gente isenta, para entusiasmar técnicos competentes e para chamar o que há de melhor em Portugal e no estrangeiro? Não seria a altura de pedir ajuda a quem sabe para tratar daquilo para que este governo, e outros antes dele, se mostraram incapazes? As necessidades e as urgências são evidentes.

Diz a mitologia política, com alguma razão, que o Serviço Nacional de Saúde é o melhor que se fez em Portugal desde há quarenta anos. Por isso, custa a perceber a razão pela qual o serviço se encontra neste estado. Há muitos médicos, mas não chegam. Há cada vez mais enfermeiros, mas não são suficientes. Persistem as filas para consulta e cirurgia. Mantém-se as longas esperas por urgências. Em muitos casos, o desconforto hospitalar, em macas, nos corredores e em anexos desadequados, é desumano. Se é verdade que nem tudo correu mal durante os dois primeiros anos de pandemia, também é certo que as enormes e crescentes deficiências perduram em todas as áreas. O pessoal contratado aumenta sempre, os orçamentos crescem de modo imparável e único. Portugal tem, na Europa, uma das maiores percentagens da despesa pública com a saúde. Grande parte da população, de todas as preferências políticas, quer o SNS, pede que seja defendido e espera que seja mais eficaz e menos desigual. Por que razões se mantém este permanente clima de crise no SNS? Como se explica a manutenção de tão elevados padrões de desigualdade? Por que motivos estamos a assistir a esta verdadeira obscenidade política, social e sanitária que é a crise das urgências de obstetrícia e ginecologia? Como é possível aceitar o argumento de algumas autoridades, segundo o qual a saúde privada é a responsável pela crise na saúde pública? 

Há, na saúde pública, uma crise de gestão terrível e surpreendente, uma falta de sabedoria notória e aflitiva. Por que insistem o governo e o Primeiro Ministro em soluções gastas e ineficazes? Como se explica o facto de não haver discernimento suficiente para substituir os dirigentes e os responsáveis políticos? Como é possível prolongar esta situação desastrada? Quanto tempo ainda teremos de suportar esta ladainha de explicações sobre as crises estruturais e as causas antigas? Quantas vezes ouviremos ainda as descrições das intenções do governo, das medidas legais a tomar e das reformas a longo prazo em preparação?

Por incompetência, cumplicidade, conivência, medo e desinteresse, os actuais governantes, e outros antes deles, desistiram de rever e reformar a justiça em todas as áreas que está a necessitar. A corrupção, o nepotismo e a irregularidade administrativa ficam fora da justiça portuguesa. Os ricos e os poderosos, assim como as luminárias partidárias, também. Segundo estudos e sondagens recentes, alguns magistrados e outros agentes da justiça e do direito colocam-se fora do alcance da justiça. Esta renúncia à acção, esta abdicação e esta desistência já não têm solução. A particular configuração da justiça assim o impõe. A independência judicial e a organização corporativa são tais que resultam em anulação de forças. A justiça dos poderosos manter-se-á em crise. Para nosso desespero. Mas há um sector que merece atenção, pelas consequências sociais, criminais e morais. Os serviços e processos de legalização de estrangeiros, de acolhimento descontrolado de refugiados e trabalhadores, de alojamento ilegal de imigrantes, de tolerância de trabalho clandestino, de concessão facilitada de vistos “dourados”, de complacência com “descendentes” sefarditas, com oligarcas russos e com milionários asiáticos e, finalmente, a abstenção perante as redes de traficantes de trabalhadores, estão a criar uma situação insuportável, de graves consequências para o futuro próximo. Não seria a altura, ainda por cima em período de guerra, de pôr um pouco de ordem e de legalidade em todo este sector? 

Depois de décadas de indecisão, de decisões definitivas, de negações, de desditas, de colossais fortunas gastas em estudos, continuamos quase na estaca zero do aeroporto de Lisboa. Com todas as suas implicações, é este o maior projecto de investimentos jamais feito e não repetível. Portugal está atrasado em dez ou vinte anos. Não é possível continuar a ver as mesmas pessoas a dizer coisas diferentes, conforme os interesses e as oportunidades. Não é aceitável que um governo diga que quem decide é o partido da oposição. Não é tolerável que do mesmo partido e dos respectivos responsáveis tenha havido pelo menos cinco decisões definitivas sobre a vocação, as funções, a configuração, os prazos, a dimensão e a localização do aeroporto. É chegada a altura de tomar decisões informadas, responsáveis e competentes. Tal, aliás, como com a TAP, espinha atravessada na economia, contradição eterna, poço sem fundo de prejuízos e maus gastos. O que se poderia também dizer dos comboios, da rede ferroviária nacional, regional e local, em permanente degradação, desconfortável, insegura, ultrapassada, abandonada, resultado de um processo de negligência quase criminosa. Na confluência dos transportes aéreos, ferroviários e marítimos estão seguramente a maior urgência, o mais vasto projecto e o mais profundo investimento da história do país.

Apetece dizer: o catálogo é este.

Público, 27.8.2022 

sábado, 20 de agosto de 2022

Grande Angular - Um Verão violento

 Um dia, mais tarde, recordaremos talvez este Verão de rara violência e de perigo iminente. Estranhamente, mas talvez fosse previsível, a população de muitos países, europeus nomeadamente, parece querer gozar os dias e as férias sem preocupação excessiva. Ou porque já se entende que dois ou três anos foram de mais. Ou porque nem sempre se mede a convergência de perigos e a conjugação de ameaças. Ou, finalmente, porque se trata das melhorias antes da desgraça. Do descuido que precede o desastre.

Basta olhar para os noticiários das televisões. Durante as últimas semanas ou meses foram o exacto espelho das tragédias e dos perigos. Os alinhamentos só dependem do dia da semana ou da semana do mês. A sequência é variável.

Os bombardeamentos na Ucrânia não diminuem, antes pelo contrário, com cidades destruídas, bairros e prédios civis derrubados. Entre cinco a dez milhões de ucranianos já fugiram para o exílio em outros países.

Os fogos florestais, apesar de previsíveis e previstos, não cessam enquanto houver calor e não chegue chuva. São dezenas de milhares de hectares perdidos, juntamente com animais, casas, fazenda e equipamentos. Pela Europa fora (e pelos Estados Unidos), são centenas de milhares ou milhões de hectares perdidos. O clima não explica tudo. Responsabilidades humanas e incompetência das autoridades ajudam.

Continua a pandemia, lentamente, em decréscimo aparente, mas ainda com dois ou três milhares de casos por dia. No total, foram valores altíssimos: só em Portugal, quase 5,5 milhões de casos e perto de 25 mil mortos. Na Europa, 200 milhões de casos e dois milhões de mortos. E no mundo, mais de 500 milhões de casos e seis milhões de mortos. Apesar dos progressos da ciência, da medicina e da protecção civil. Não há memória de nada de parecido, em tão pouco tempo, no último século. E ainda não acabou.

O Serviço Nacional de Saúde, resistente até onde foi possível, entrou em colapso. Em muitos hospitais e maternidades as urgências de obstetrícia e ginecologia fecham uns tantos dias por semana. Esses dias já são anunciados previamente. Um dos mais seguros pilares do Estado Social está em crise, treme e oscila. É um dos sinais mais desoladores da má gestão e da incapacidade das autoridades. 

Os aumentos dos preços dos produtos alimentares e de bens essenciais registam todos os dias valores desconhecidos há várias décadas. Já não são apenas queixumes e impressões. Agora há a certeza de que a inflação e a subida de preços, sem o correspondente aumento de rendimentos, estão a degradar a vida das populações, sobretudo, como sempre, os pobres, os remediados, as classes de trabalho e até as classes médias. Em menos de um ano, os melhoramentos de vários anos desapareceram e não é seguro que seja possível repor a breve trecho.

De fora, longe, chegam só noticias de alarme. Não vale a pena fingir que não é verdade. Nem pensar que há uns pessimistas que exageram. Não! Desta vez, o mal é universal, os perigos são enormes, as ameaças fatais e o medo colossal. Todos os grandes mercados e comércios estão parcialmente desmantelados. Os da energia, da electricidade, dos petróleos, do gás e do carvão. Mas também os dos produtos alimentares, sobretudo dos cereais.

Mundialmente, a crise económica, energética e alimentar está a provocar vítimas em números quase inimagináveis. Na África oriental, vários milhões de pessoas vão morrer de fome e doença no mais curto prazo. No mundo inteiro, cerca de 400 milhões de pessoas necessitam urgentemente de ajuda humanitária. Para o que não há, aparentemente, meios, clima, infra-estruturas, transportes, vontade, cooperação internacional e decisão eficaz.

Ricos e poderosos não querem abrir as mãos. Pelo contrário, parecem estar convencidos de que o momento é propício a aumentar os poderes e a multiplicar bens e fortunas. Há crescentemente histórias de miséria e de multidões esfomeadas. E é cada vez mais difícil organizar a filantropia, gerir a protecção e acudir a quem necessita. Em ambiente de crise e guerra, a ajuda humanitária é difícil.

A Rússia de Putin destruiu a configuração mundial existente. O ditador quer substitui-la por outra, na qual a sua Rússia tenha papel determinante. É o que está a fazer, sem escrúpulos e com toda a violência de que é capaz. O que sobrar, depois do que ele fizer, não voltará a ser o que era, nem sabemos o que será. Mas vai demorar anos, muitos, a encontrar um novo equilíbrio mundial de cooperação. Não sabemos, hoje, a que preço e com que custos de vidas humanas, de países, de instituições, de liberdade e de paz. O especial talento de Putin é o que se vê no exercício ou na utilização da mais bárbara violência sem remorsos nem moderação. E no desrespeito da lei internacional. Para Putin, a violência, a imposição e a força bruta são os primeiros argumentos, não os de defesa, de último recurso ou de derradeira necessidade. O mundo vai ter de viver com esta realidade durante muito tempo. As alianças que Putin procura, na China, na Índia, no Irão e algures na Ásia e na África, dispensam todas as liberdades e a democracia. Não é por acaso que, para lutar contra o Ocidente, Putin procura entre ditadores e autoritários os possíveis companheiros de jornada. Resta-nos uma sombra de esperança ou de optimismo: nunca a Rússia, a Índia e a China se entenderam por períodos duráveis e interesses comuns. Para já, querem ter um lugar à mesa. Mas, neste trio, há sempre dois a mais.

São tempos de pagar por erros passados. Os democratas do mundo inteiro confiaram excessivamente em si próprios, não trataram dos que sofrem, deixaram crescer a desigualdade social e não cuidaram das migrações. Não se importaram com a corrupção dos seus sistemas de governo e deixaram que a política democrática se transformasse numa actividade suspeita e duvidosa. Ajudaram às deslocações de empregos e indústrias, fizeram negócios com o diabo e foram complacentes com o terrorismo. Não recearam os totalitários, desde que fizessem negócios com eles. Entregaram-se nas mãos dos produtores de petróleo e gás e dos fornecedores de força de trabalho barata.

Além de recuperar a vida e a tranquilidade. Além de voltar a encontrar algum bem-estar económico. Além de procurar equilíbrio social no espaço público, além disso tudo, que não é pouco, importa recuperar a paz política, o clima de diálogo e um esforço de cooperação. Mas, sobretudo, procurar com democracia e liberdade. Ora, de todo o mundo, chegam apelos e movimentos de extrema-esquerda e extrema-direita que procuram aproveitar os erros das democracias. Fazem parte da crise, não a resolvem.

Público, 20.8.2022

sábado, 13 de agosto de 2022

Grande Angular - Escola, Cidadania e Democracia

É um velho lugar comum: “A educação é muito importante”. Ou um nariz de cera: “A escola tem um papel decisivo”. Escolha da profissão? Tem de ser na escola. Criar uma família? Aprende-se na escola. Ter boas maneiras e boa formação? Depende da escola. Ter um comportamento cívico decente, respeitar os outros e cumprir as leis? É na escola que se começa. Luta contra a droga? Começa na educação.  Saber exprimir os seus sentimentos e a sua sexualidade, escolher o seu género? Tudo se constrói na escola.

Diz-se que é na escola que se toma consciência da família e da pátria, da classe e da etnia. É ali que se percebe a desigualdade social, que se aprende a prestar atenção aos pobres e que se tem experiências de solidariedade. É ainda na escola que se tem as primeiras noções de cultura e das artes e que se dá largas à criatividade.

O que muitos entendem por civismo deveria, dizem, aprender-se na escola: pagar impostos, cumprir os seus deveres, assumir responsabilidades perante a comunidade, circular pela direita, deixar passar quem tem pressa, dar o lugar aos mais velhos e ser cortês nas ruas e nos centros comerciais.

É ainda na escola onde se começa a zelar pelo ambiente, a olhar para a ecologia, a respeitar a natureza, a cuidar dos animais e a contribuir para a limpeza das cidades e dos campos.

Em poucas palavras, a escola seria o berço da sabedoria e da consciência, o ninho do civismo e do bom comportamento, o alfobre de virtudes e da rectidão.

Nada disto é verdade, ou antes, tudo isto é verdade e também o seu contrário. E por isso há quem pense que a escola é um antro de pecado e crime, local onde se faz sexo e droga, onde se alimentam ideias perigosas, onde se forja uma personalidade insubmissa, onde se ignora Deus e odeia a família.

Mas o mais poderoso argumento a favor de uma escola de valores e de ideologia, que traduza uma ideia do mundo e da sociedade, que seja o viveiro de cidadãos e que fomente o desenvolvimento do civismo e da virtude, consiste na cidadania democrática. À escola compete formar cidadãos. O que quer dizer: educar para a democracia, alimentar a tolerância, fomentar as virtudes cívicas. Dito assim, parece inelutável e consensual. Na verdade, se procurarmos um pouco, rapidamente se verifica que estamos perante uma banalidade perigosa.

Arecente polémica que envolve uma família de Vila Nova de Famalicão foi um bom exemplo da dificuldade deste tema. Na verdade, os pais têm o dever de enviar os filhos à escola. Mas não têm o direito de ajudar os filhos a faltar, sem o que toda a gente poderia fazer objecção de consciência a qualquer disciplina. O problema não reside aí, mas sim no programa, naquele programa, que deveria ser banido pelas vias legais, políticas e institucionais. As autoridades educativas deveriam rever e reformar os conteúdos programáticos da escolaridade obrigatória, a fim de os depurar destas formas aberrantes de autoritarismo dogmático e de despotismo cultural. Assim como proteger a escola destas intervenções minoritárias prepotentes.

Mas então, pergunta-se, a escola não deve ser democrática, formar democratas, desenvolver a democracia? Sim e não. A escola deve ser democrática. Mas não deve ensinar a democracia. Nem formar consciências políticas.

A escola deve ser democrática, estar acessível a todos os cidadãos, sem criar barreiras de qualquer espécie à sua frequência pelos jovens da área de residência. A escola deve ser democrática porque deve dar as informações factuais necessárias à vida em comum, como sejam as regras inscritas na Constituição e fixadas nas leis. A escola será democrática se evitar, tanto quanto possível, todas as formas de doutrinação de ideias políticas, de crenças religiosas ou de quaisquer outros credos ou crenças.

A escola não deve ensinar ideologias de qualquer espécie, democráticas sejam elas, até porque não pode, nem tem de escolher entre democracia avançada, democracia política, democracia cultural, democracia popular, democracia directa, democracia cristã, social democracia ou centralismo democrático.

Da democracia, a escola deve limitar-se às regras e dispositivos constitucionais relativos ao sistema e aos órgãos do poder, aos direitos e deveres dos cidadãos, às garantias das liberdades, à participação eleitoral, ao equilíbrio dos poderes entre instituições, ao acesso à justiça e à defesa dos cidadãos perante ameaças de outros ou do Estado.

A escola deverá, em disciplinas de organização política ou de História, referir a natureza e a forma dos diversos regimes políticos, suas implicações, seus exemplos históricos, mas não deve tomar partido. A escola poderá, nas suas disciplinas de História, aprofundar a evolução dos sistemas políticos, a natureza dos regimes, a história da liberdade e da tirania, mas não deve impor ou condenar ideias.

Aescola não deve doutrinar, nem ensinar nenhuma matéria relativa à vida privada dos cidadãos, às suas escolhas pessoais, às suas preferências religiosas, à expressão dos seus sentimentos, à sua sexualidade ou ao desenvolvimento afectivo da sua personalidade. Os sentimentos não fazem parte da cidadania, não constituem capítulos dos direitos, deveres e garantias dos cidadãos, não fazem parte do elenco de dispositivos constitucionais. Há disciplinas onde essas matérias podem ser tratadas: em Biologia e ciência naturais; em História; em Psicologia e Sociologia. Mas não devem constituir matéria à parte nem disciplinas próprias, de modo a evitar vários perigos. Por exemplo, a doutrinação ideológica ou religiosa. O condicionamento da vida privada e da escolha individual. O contrabando ideológico e cultural ao sabor das modas e do oportunismo dos professores. E finalmente a confusão entre vida privada e vida pública, cuja distinção é crucial para a liberdade individual e a vida em comunidade democrática.

Todos os ditadores e todos os regimes autoritários defenderam sempre uma educação de valores, de princípios, com conteúdos morais e com normas de comportamento, quando não com regras religiosas.

A escola não é nem deve ser uma República clerical, nem um claustro de virtudes, muito menos uma ditadura religiosa ou laica. Tudo o que se queira fazer na escola, artes, letras, jogos, natureza, solidariedade, filantropia, expedições, limpeza de ruas, ecologia e afectos pode ser feito fora das horas de aulas, até nas instalações e com os professores, mas sem leis, sem programas impostos, sem obrigatoriedade e sem avaliação.

A escola deve ser democrática, mas não impingir a democracia.

Público, 13.8.2022 

domingo, 7 de agosto de 2022

Grande Angular - Sinistras equivalências

Está na moda. Já não é a primeira vez, mas agora a ideia regressa ao mundo dos vivos. Em poucas palavras: todos os regimes e sistemas têm defeitos, todos se valem, mas os capitalistas são os piores. A democracia é muito bonita, dizem, mas consagra a desigualdade, o poder dos mais ricos, a corrupção, a pobreza e a exploração do homem pelo homem. O comunismo, concedem, não respeita a liberdade de imprensa e de associação, nem o direito de voto, mas promove a igualdade, garante o emprego e não beneficia os capitalistas. Populismos de esquerda ou de direita, nacionalismos diversos, ditaduras militares ou clericais africanas, asiáticas e islâmicas têm as suas deficiências, mas também as suas vantagens: são geralmente patrióticos e conferem dignidade aos seus cidadãos que defendem da ganância de estrangeiros. Nesta sinistra amálgama, apenas se exclui o fascismo, diabo por excelência, inferno por definição e capitalista por obrigação.

Os argumentos dos defensores das equivalências são antigos, mas recentemente actualizados. A China e a Rússia têm dado novos alimentos a tão obtuso discurso. A ascensão da China nos mercados internacionais e nos inventários das forças militares marca uma nova realidade. A capacidade produtiva, industrial, financeira e comercial da China foi uma bênção ou um perdão para uma das mais fortes ditaduras actuais. A invasão da Ucrânia pela Rússia contribuiu fortemente para mostrar, aos autores de tão estranhos argumentos, como dois sistemas tão diferentes podem ser tão parecidos. A descoberta de fascistas e nazis na Ucrânia confirma o perigo dos regimes democráticos. Como é sabido, os fascistas e os nazis ucranianos são muito piores do que os fascistas e os nazis russos. Segundo os mesmos, a aproximação da NATO por vários países da Europa central e de leste, antigamente comunistas, sublinha e revela a permanente atitude agressiva americana e europeia, assim como mostra o verdadeiro cerco que o Ocidente pretende fazer à Rússia. Cada qual no seu género e na sua circunstância, Tramp, Bolsonaro, Chavez e Maduro vieram dar novo alento a formas imaginativas de populismo barato e de nacionalismo antidemocrático.

Há evidentemente quem acredite que as ditaduras chinesa e russa, além de outras, são mais aceitáveis do que as democracias ocidentais. Aliás, para tais pensadores, os regimes russo e chinês não são ditaduras, nem os regimes ocidentais são democracias. Esses são os mais fanáticos. Depois, temos os sofisticados pensadores de Boulevard e Universidade, mais orientados para sublinhar as equivalências. Com esta especialidade, estes autores desenvolvem a narrativa de última culpa e da primeira responsabilidade. Assim é que a origem das agressões russas está sempre na América, por vezes na Europa, indiscutivelmente na NATO. Estão dispostos a aceitar alguns “excessos” russos, como por exemplo a destruição de um país, na certeza de que os últimos responsáveis são os Estados Unidos e a NATO. Não fossem eles e a Ucrânia poderia viver em paz! São estes funcionários da narrativa antidemocrática que mais se entretêm a demonstrar as equivalências. E estão já prontos a garantir que as responsabilidades da recente agressividade chinesa são… americanas!

Ora, os regimes democráticos não são iguais aos outros. É aliás por isso que tantos países, há quase cem anos, sem razão, se proclamam democráticos e populares. Repúblicas e democracias populares são democracias de cenário, com liberdades de associação e de expressão limitadas ou inexistentes. A regularidade da eleição e o sufrágio secreto são ficções. O domínio do Estado, das Forças Armadas e do partido do governo é total. A liberdade económica é limitada. A criação cultural é controlada. O direito de associação é condicionado. O direito à greve é crime. A liberdade religiosa é inexistente. Nunca um partido, que não seja o do governo, ganhou uma eleição. A vigilância policial é uma arte elevada à perfeição. 

Nas democracias, geralmente ocidentais, há enormes problemas e defeitos. Será necessário dizê-lo? Há desigualdade social, opressão económica, exploração e outras formas de desigualdade (étnica, racial, de género, de geração, de religião). Em quase todas as democracias, há pobreza, desemprego, marginalidade, criminalidade e tráfego de droga. Podem existir formas opressivas de convívio social, incluindo o machismo, o racismo, a intolerância religiosa, a exploração sexual e a violência de costumes. Há democracias com excessos de burocracia, de militarismo e de fanatismo religioso. Como há, em quase todas as democracias, corrupção a mais. Em certas democracias, há fabricantes e comerciantes de armas com grande capacidade para influenciar as autoridades políticas.

Tudo isso existe nos países mais ou menos comunistas e nos países de ditadura militar ou burocrática em quantidades bem superiores às dos países democráticos, onde o Estado de direito, a liberdade sindical e a luta política permitem controlos, moderação, melhoramento e castigo. Até há pouco, o que faltava nos regimes socialistas e comunistas eram capitalistas e fortunas colossais. Mas agora, tanto em ditaduras marcadamente comunistas, como a chinesa, ou burocráticas e imperiais, como a russa, há capitalistas e oligarcas em abundantes quantidades, com fenomenal poder e capazes de influenciar toda a vida política e social, assim como as relações externas e as forças militares.

Os defensores das equivalências, ou mesmo os que toleram as ditaduras chinesa ou russa, têm outra série de argumentos para justificar a sua preferência pela autocracia comunista ou aparentada daqueles países. São as citações de malfeitorias ocidentais, de preferência americanas, no Iraque, na Líbia ou no Afeganistão. Também aqui o cinismo intolerante não passa despercebido. Primeiro, os defeitos de uns não justificam os dos outros. Segundo, as agressões ou violências ocidentais fora de portas são abertamente criticadas, corrigidas, alteradas e terminadas pelas vias habituais da democracia, da alternância de poderes, da liberdade de pensamento e de imprensa. Na verdade, as acções americanas ou ocidentais no Chile, no Iraque ou no Vietname não têm desculpa e são condenáveis, tanto quanto as de qualquer outro país em qualquer outra latitude. A grande diferença consiste na capacidade, ao alcance dos povos e dos partidos das democracias e do Ocidente, de debater, criticar, corrigir, melhorar e derrotar aquelas iniciativas e seus autores. A liberdade e o Estado de direito fazem a diferença. Mas há quem não perceba.

Público, 6.8.2022