terça-feira, 28 de junho de 2011

domingo, 26 de junho de 2011

Luz - Rua de Argel, 1973

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Nesse ano, o número de argelinas que usavam o véu branco era muito reduzido. A Argélia era um país laicizado. Ao que me dizem, é hoje muito maior. Por mais que me falem do relativismo das culturas e dos verdadeiros costumes dos povos, nunca aceitarei esta selvajaria machista

domingo, 19 de junho de 2011

Luz - Lima, Peru, 1971

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Cena de rua, repetível em qualquer parte do mundo... Lembro-me que, incrédulo, fiquei por ali uma ou duas horas a ver se o carro andava. E não é que andou mesmo?

sábado, 11 de junho de 2011

É possível...

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NADA É NOVO. Nunca! Já lá estivemos, já o vivemos e já conhecemos. Uma crise financeira, a falência das contas públicas, a despesa pública e privada, ambas excessivas, o desequilíbrio da balança comercial, o descontrolo da actividade do Estado, o pedido de ajuda externa, a intervenção estrangeira, a crise política e a crispação estéril dos dirigentes partidários. Portugal já passou por isso tudo. E recuperou. O nosso país pode ultrapassar, mais uma vez, as dificuldades actuais. Não é seguro que o faça. Mas é possível.

Tudo é novo. Sempre! Uma crise internacional inédita, um mundo globalizado, uma moeda comum a várias nações, um assustador défice da produção nacional, um insuportável grau de endividamento e a mais elevada taxa de desemprego da história. São factos novos que, em simultâneo, tornam tudo mais difícil, mas também podem contribuir para novas soluções. Não é certo que o novo enquadramento internacional ajude a resolver as nossas insuficiências. Mas é possível.

Novo é também o facto de alguns políticos não terem dado o exemplo do sacrifício que impõem aos cidadãos. A indisponibilidade para falarem uns com os outros, para dialogar, para encontrar denominadores comuns e chegar a compromissos contrasta com a facilidade e o oportunismo com que pedem aos cidadãos esforços excepcionais e renúncias a que muitos se recusam. A crispação política é tal que se fica com a impressão de que há partidos intrusos, ideias subversivas e opiniões condenáveis. O nosso Estado democrático, tão pesado, mas ao mesmo tempo tão frágil, refém de interesses particulares, nomeadamente partidários, parece conviver mal com a liberdade. Ora, é bom recordar que, em geral, as democracias, não são derrotadas, destroem-se a si próprias!

Há momentos, na história de um país, em que se exige uma especial relação política e afectiva entre o povo e os seus dirigentes. Em que é indispensável uma particular sintonia entre os cidadãos e os seus governantes. Em que é fundamental que haja um entendimento de princípio entre trabalhadores e patrões. Sem esta comunidade de cooperação e sem esta consciência do interesse comum nada é possível, nem sequer a liberdade.

Vivemos um desses momentos. Tudo deve ser feito para que estas condições de sobrevivência, porque é disso que se trata, estejam ao nosso alcance. Sem encenação medíocre e vazia, os políticos têm de falar uns com os outros, como alguns já não o fazem há muito. Os políticos devem respeitar os empresários e os trabalhadores, o que muitos parecem ter esquecido há algum tempo. Os políticos devem exprimir-se com verdade, princípio moral fundador da liberdade, o que infelizmente tem sido pouco habitual. Os políticos devem dar provas de honestidade e de cordialidade, condições para uma sociedade decente.

Vivemos os resultados de uma grave crise internacional. Sem dúvida. O nosso povo sofre o que outros povos, quase todos, sofrem. Com a agravante de uma crise política e institucional europeia que fere mais os países mais frágeis, como o nosso. Sentimos também, indiscutivelmente, os efeitos de longos anos de vida despreocupada e ilusória. Pagamos a factura que a miragem da abundância nos legou. Amargamos as sequelas de erros antigos que tornaram a economia portuguesa pouco competitiva e escassamente inovadora. Mas também sofremos as consequências da imprevidência das autoridades. Eis por que o apuramento de responsabilidades é indispensável, a fim de evitar novos erros.

Ao longo dos últimos meses, vivemos acontecimentos extraordinários que deixaram na população marcas de ansiedade. Uma sucessão de factos e decisões criou uma vaga de perplexidade. Há poucos dias, o povo falou. Fez a sua parte. Aos políticos cabe agora fazer a sua. Compete-lhes interpretar, não aproveitar. Exige-se-lhes que interpretem não só a expressão eleitoral do nosso povo, mas também e sobretudo os seus sentimentos e as suas aspirações. Pede-se-lhes que sejam capazes, como não o foram até agora, de dialogar e discutir entre si e de informar a população com verdade. Compete-lhes estabelecer objectivos, firmar um pacto com a sociedade, estimular o reconhecimento dos cidadãos nos seus dirigentes e orientar as energias necessárias à recuperação económica e à saúde financeira. Espera-se deles que saibam traduzir em razões públicas e conhecidas os objectivos das suas políticas. Deseja-se que percebam que vivemos um desses raros momentos históricos de aflição e de ansiedade colectiva em que é preciso estabelecer uma relação especial entre cidadãos e governantes. Os Portugueses, idosos e jovens, homens e mulheres, ricos e pobres, merecem ser tratados como cidadãos livres. Não apenas como contribuintes inesgotáveis ou eleitores resignados.

É muito difícil, ao mesmo tempo, sanear as contas públicas, investir na economia e salvaguardar o Estado de protecção social. É quase impossível. Mas é possível. É muito difícil, em momentos de penúria, acudir à prioridade nacional, a reorganização da Justiça, e fazer com que os Juízes julguem prontamente, com independência, mas em obediência ao povo soberano e no respeito pelos cidadãos. É difícil. Mas é possível.

O esforço que é hoje pedido aos Portugueses é talvez ímpar na nossa história, pelo menos no último século. Por isso são necessários meios excepcionais que permitam que os cidadãos, em liberdade, saibam para quê e para quem trabalham. Sem respeito pelos empresários e pelos trabalhadores, não há saída nem solução. E sem participação dos cidadãos, nomeadamente das gerações mais novas, o esforço da comunidade nacional será inútil.

É muito difícil atrair os jovens à participação cívica e à vida política. É quase impossível. Mas é possível. Se os mais velhos perceberem que de nada serve intoxicar a juventude com as cartilhas habituais, nem acreditar que a escola a mudará, nem ainda pensar que uma imaginária “reforma de mentalidades” se encarregará disso. Se os dirigentes nacionais perceberem que são eles que estão errados, não as jovens gerações, às quais faltam oportunidades e horizontes. Se entenderem que o seu sistema político é obsoleto, que o seu sistema eleitoral é absurdo e que os seus métodos de representação estão caducos.

Como disse um grande jurista, “cada geração tem o direito de rever a Constituição”. As jovens gerações têm esse direito. Não é verdade que tudo dependa da Constituição. Nem que a sua revisão seja solução para a maior parte das nossas dificuldades. Mas a adequação, à sociedade presente, desta Constituição anacrónica, barroca e excessivamente programática afigura-se indispensável. Se tantos a invocam, se tantos a ela se referem, se tantos dela se queixam, é porque realmente está desajustada e corre o risco de ser factor de afastamento e de divisão. Ou então é letra morta, triste consolação. Uma nova Constituição, ou uma Constituição renovada, implica um novo sistema eleitoral, com o qual se estabeleçam condições de confiança, de lealdade e de responsabilidade, hoje pouco frequentes na nossa vida política. Uma nova Constituição implica um reexame das relações entre os grandes órgãos de soberania, actualmente de muito confusa configuração. Uma Constituição renovada permitirá pôr termo à permanente ameaça de governos minoritários e de Parlamentos instáveis. Uma Constituição renovada será ainda, finalmente, o ponto de partida para uma profunda reforma da Justiça portuguesa, que é actualmente uma das fontes de perigos maiores para a democracia. A liberdade necessita de Justiça, tanto quanto de eleições.

Pobre país moreno e emigrante, poderás sair desta crise se souberes exigir dos teus dirigentes que falem verdade ao povo, não escondam os factos e a realidade, cumpram a sua palavra e não se percam em demagogia!

País europeu e antiquíssimo, serás capaz de te organizar para o futuro se trabalhares e fizeres sacrifícios, mas só se exigires que os teus dirigentes políticos, sociais e económicos façam o mesmo, trabalhem para o bem comum, falem uns com os outros, se entendam sobre o essencial e não tenham sempre à cabeça das prioridades os seus grupos e os seus adeptos.

País perene e errante, que viveste na Europa e fora dela, mas que à Europa regressaste, tens de te preparar para viver com metas difíceis de alcançar, apesar de assinadas pelo Estado e por três partidos, mas tens de evitar que a isso te obrigue um governo de fora.

País do sol e do Sul, tens de aprender a trabalhar melhor e a pensar mais nos teus filhos.

País desigual e contraditório, tens diante de ti a mais difícil das tarefas, a de conciliar a eficiência com a equidade, sem o que perderás a tua humanidade. Tarefa difícil. Mas possível.

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Discurso lido durante a sessão solene do Dia de Portugal, Castelo Branco, 10 de Junho de 2011.

domingo, 5 de junho de 2011

Notas sobre a representação política

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Apresentação


Mais do que prazer, a honra que sinto em estar presente neste colóquio.
Até porque uma das razões é a comemoração da aprovação da Constituição. Eu próprio fui constituinte, infelizmente durante poucos meses, pois transitei para o governo. Por isso não sou signatário, o que me entristece.

A Constituição, o seu texto, as suas disposições, a sua dimensão e o seu pormenor não são do meu mais profundo e sério agrado, sobretudo após a prova de vida que vem tendo ao longo das últimas décadas. Mas, naquele momento, com aquele significado, a aprovação desta Constituição foi um dos momentos políticos mais felizes da minha vida.
O tema que me foi oferecido pelo presidente Moura Ramos foi o da “representação política”. Tema difícil e actual. O meu contributo para este colóquio não será académico, mas sim uma reflexão de cidadão, de político e de observador.
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Introdução

No essencial, sublinho, no essencial e na sua acepção moderna, a representação política em Portugal não sofre de problemas sérios. Os modelos e os mecanismos adoptados foram escolhidos, por várias razões (de oportunidade, de circunstância, de tradição de costumes, de legado do anterior regime, etc.), mas não são objecto de crítica sólida e fundamentada. Foram escolhidos estes mecanismos, poderiam ter sido outros, sem necessária vantagem ou sem evidente inconveniente.

A representação nacional dos cidadãos está garantida. A representação política assegura-se exclusiva ou principalmente pela via eleitoral. As eleições são livres e em prazos conhecidos. Há lugar para a representação de várias minorias. Os partidos políticos são considerados como os principais instrumentos de formação e expressão da vontade política dos cidadãos e os principais agentes da acção política. A representação local e regional está também assegurada, segundo critérios próprios.

A representação política não sofre a concorrência constitucional de outras formas de representação não democráticas.
Em teoria, estão definidos os direitos e os deveres do representante e do representado. Os representados têm a capacidade de avaliar o desempenho dos seus representantes.

Em poucas palavras, a soberania popular encontra-se adequadamente representada na democracia moderna. A democracia é representativa na exacta medida em que não decorre de mecanismos de democracia directa nem orgânica. A representação política essencial, a que resulta do exercício dos direitos do cidadão, não se faz por nomeação nem designação, muito menos por herança. Aparentemente, não existem problemas de representação na democracia portuguesa.
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Os sinais do tempo

Quero, todavia, sublinhar que, se não existem problemas de representação política, existem, isso sim, problemas políticos com a representação, tal como existe no século XXI nas democracias, na Europa e em Portugal.

Noutras palavras, problemas políticos que as formas de representação actual não conseguem resolver ou prevenir.

Começando pelo princípio. É relativamente consensual admitir a existência de vários problemas políticos e sociopolíticos. Muitos desses problemas não são empiricamente demonstrados, sendo por isso mesmo polémicos na sua detecção e interpretação. Mas há também sinais empíricos de que existe um mal-estar ou alguns problemas.

Em primeiro lugar, a abstenção. Podemos ter várias ideias sobre a origem, a causa e a natureza do fenómeno. Mas uma coisa parece certa: a abstenção traduz um desapego ou uma indiferença perante o funcionamento do sistema democrático. Ou, melhor ainda, pelas escolhas que este regime e este sistema político e eleitoral oferece aos cidadãos. Não é seguro afirmar que é a forma de representação que gera a abstenção. Mas o contrário também não. O que quer dizer que vale a pena estarmos atentos.

Em segundo lugar, um caso particular: o da abstenção jovem, bem superior às taxas médias. É um aspecto particular do primeiro problema. Há gerações mais novas que não se reconhecem no funcionamento concreto da democracia e das escolhas que esta proporciona. Mas é verdade que as rupturas geracionais podem significar uma crise profunda na organização da sociedade.

Terceiro, o voto em branco e o voto nulo, ainda de reduzida expressão, mas nitidamente crescentes desde há alguns anos. Tanto um como outro traduzem uma forma específica de protesto ou de não identificação com as escolhas propostas aos cidadãos.

Quarto, a opinião pública. Estamos em terreno mais movediço, pois os sinais podem ser mais discutíveis. Mas, na generalidade ou em maioria, as consultas de opinião traduzem uma decrescente confiança nas instituições democráticas, seja em instituições de carácter electivo (como os parlamentos ou as autarquias), seja em instituições indispensáveis ao sistema democrático, como por exemplo os Tribunais.

Quinto, é corrente a opinião de que a representação de interesses ou simplesmente a acção de grupos de interesses conseguem com maior eficácia influenciar os órgãos de poder e de administração da vida pública.

Sexto, a opinião publicada por muitos académicos e muitos políticos sublinha vários fenómenos detectáveis na vida quotidiana e na manifestação de vontades: indiferença, falta de participação, não reconhecimento e desconfiança por parte de muitas pessoas relativamente ao cuidado e à gestão da vida pública e política em particular.

Sétimo, a indiferença e a falta de participação dos cidadãos traduz-se, entre outros fenómenos, por reduzidas taxas de inscrição ou de filiação em associações de carácter político (partidos), cívico ou social (como os sindicatos por exemplo, mesmo se é necessária alguma ginástica para incluir os sindicatos entre as associações com acção política).

Oitavo, as regras práticas da representação política nacional, acompanhadas das circunstâncias históricas, tornam difícil a formação de governos maioritários e de sólida base de apoio parlamentar. Com a cultura política e partidária que temos, as ameaças de instabilidade e de ineficácia são elevadas. Os dispositivos legais e constitucionais em vigor não só não obrigam como não facilitam a formação de governos maioritários e estáveis, nem sequer a aprovação positiva de programas de governo e de orçamentos.

Com este elenco, pretendi argumentar a favor do meu ponto de vista inicial. Não existe um problema essencial de representação política, mas existem problemas políticos e sociais próprios do funcionamento do sistema eleitoral, partidário e representativo em vigor.

É minha convicção que a não resolução desses problemas ou a impossibilidade de encontrar soluções para deles cuidar ou os melhorar podem vir a criar dificuldades sérias à democracia portuguesa ou podem estar na origem da falta de eficácia do sistema político. A crise actual, de cariz aparentemente financeiro e económico, mas também, já quase ninguém duvida, social e político, põe em evidência a ineficácia do sistema política e a sua falta de flexibilidade.
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Os problemas políticos

À cabeça desses problemas está, a meu ver, o monopólio partidário da representação política. Os fundadores do sistema político, receando todas as formas que poderiam desvirtuar um sistema democrático puro e invulnerável, criaram certos mecanismos de autodefesa que, passadas algumas décadas, se revelaram negativos. Ou revelaram aspectos cada vez mais negativos.

• O método eleitoral, por exemplo, reforça o monopólio partidário. Noutras palavras mais azedas, o sistema político e o método eleitoral reforçam a partidocracia vigente. A Constituição estipula que os partidos concorrem para a formação da vontade política. Na verdade, são os únicos instrumentos e as únicas entidades que podem contribuir para a expressão, a organização e a formação da vontade política e do poder político. Não creio que o termo partidocracia seja excessivo. Partidocracia plural, sim, mas partidocracia à mesma.

• A impossibilidade de eleger independentes, representantes de movimentos cívicos ou até de partidos locais e regionais, criou uma espécie de fortaleza à qual a maioria dos cidadãos não tem acesso livre.

• O direito de eleger não coincide entre nós com o direito de ser eleito. Os eleitores não são todos elegíveis, a não ser que se inscrevam em partidos ou em listas partidárias. A Constituição confere a todos os cidadãos, por igual, a liberdade de votar e de ser eleito, mas, na verdade, a liberdade de ser eleito é condicionada pelo intermediário partidário.

• O sistema eleitoral dito de listas partidárias reforça o poder dos partidos e limita as capacidades de escolha dos cidadãos. Não é possível votar em pessoas. Não é possível alterar a ordem dos candidatos. Não é possível eliminar candidatos. Não é seguro que os candidatos eleitos sejam os que virão exercer os seus mandatos. Os candidatos eleitos podem ser substituídos, com enorme latitude, por candidatos não eleitos. Existe, com cada vez mais evidência, um défice de reconhecimento e de identidade do representante.

• A adopção do método de Hondt e do sistema de pura proporcionalidade reforçou o poder das direcções partidárias (ou até do líder partidário), com a eventual consequência de criar e aumentar a distância entre os partidos políticos e a população.

• A aprovação de mecanismos que conduziram à ocupação directamente ou indirectamente partidária de instituições do Estado que poderiam ou deveriam ter outra origem e outra natureza ou que poderiam compensar o excesso partidário. Estou a pensar, por exemplo, no Conselho de Estado, nos Conselhos Superiores das magistraturas, no Tribunal Constitucional, no Procurador-geral da República e em outras entidades reguladoras. Nalguns casos, os partidos concorrem com os sindicatos na tentativa de captura de órgãos que lhes deveriam escapar em boa medida.

• O estabelecimento legal do princípio da “confiança política” para a nomeação dos altos cargos dirigentes da Administração Pública veio reforçar o carácter partidocrático da vida pública e política. Note-se que, segundo a lei, os mandatos dos Directores gerais e equiparados cessam com o fim de uma legislatura e a tomada de posse de um novo governo. A Constituição confere toda a liberdade e direitos iguais a todos os cidadãos de aceso aos cargos públicos, mas, na verdade, essa liberdade está fortemente condicionada pela simpatia partidária.

• Instituída unanimemente pelos partidos na Assembleia da República, a disciplina partidária, ao reduzir e comprimir a liberdade e a independência dos eleitos, aumenta o afastamento dos eleitos relativamente aos seus eleitores. Além de reforçar o carácter oligárquico que os partidos assumem cada vez mais, atenta ainda contra o princípio da representação. Aliás, o papel dos grupos parlamentares no nosso sistema político é cada vez mais automático, menor e de quase mera cerimónia.
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Ambiente geral e enquadramento

A estes problemas, acrescentaria outros, directamente relacionados com a representação política ou não, mas que interferem com o desenho e a configuração do sistema político, assim como com o seu funcionamento.

Em primeiro lugar, o alegado equilíbrio de poderes entre os três principais representantes, o Parlamento, o Governo e o Presidente da República. Os arranjos progressivos que foram feitos desnaturaram o carácter semipresidencialista, tendo nós obtido hoje um regime que não se coaduna com nenhum dos modelos imagináveis: parlamentar, presidencialista ou semipresidencialista. Não há entrosamento entre os principais representantes do soberano popular. As tensões existentes ao longo dos tempos, com mais ou menos acutilância conforme a época, são a tradução de uma espécie de curto-circuito de legitimidades e de critérios de representação. O princípio do conflito e da competição sobrepôs-se ao de cooperação.

Segundo, o monopólio partidário acompanha a falta de representação de interesses como complemento da representação política. Assim, a insuficiente e deficiente representação de interesses, de modo institucional e visível, faz com que estes optem por métodos pouco transparentes e que podem pôr em crise as formas visíveis de representação política. Muitos países têm outros métodos e mecanismos, desde segundas câmaras a poderosos conselhos, passando pela organização às claras dos grupos de pressão e de influência. Em Portugal, não temos quase nenhuma forma efectiva e conhecida com capacidade e hábito de desempenhar funções reais. Eis por que existe a aparência, quem sabe se a realidade, de captura do Estado por certos interesses.

O desaparecimento da ideia de mandato afecta a estabilidade do regime. Esta é uma realidade tanto portuguesa como europeia ou internacional. A democracia “mediática”, a democracia em tempo real, a prática da consulta imediata e a avaliação pela sondagem em vez de eleição corroeram a noção de mandato. Pode parecer natural, no espírito do tempo, talvez o seja, mas a verdade é que a ideia de representação, com mandato temporal, foi posta em crise.

O enfraquecimento dos órgãos representativos em favor dos órgãos executivos é outro fenómeno que torna frágeis os clássicos métodos e critérios de representação política. O fortalecimento, para além do razoável, dos Primeiros-ministros e dos líderes dos partidos, minimiza e reduz o papel da representação política dos cidadãos. Em conformidade com esta evolução, os próprios partidos, em maioria, criaram mecanismos de eleição directa dos seus dirigentes máximos, em desfavor evidente da representação.

Finalmente, a fraqueza dos órgãos nacionais, a favor dos órgãos internacionais e comunitários, alterou profundamente as noções clássicas de representação política. Este fenómeno, tão sério, está ainda longe de ser estudado em todas as suas implicações. As transferências de soberania que se vão processando quase imperceptivelmente criaram uma verdadeira desorientação dos eleitorados e dos cidadãos. Para estes, deixou em grande parte de haver uma tradução clara e reconhecida do seu voto, do voto das suas comunidades, no sentido e na fonte das decisões europeias.
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Em conclusão

Enumerei problemas e pontos de vista. Não estou convencido da verdade. Mas creio que a democracia portuguesa, o seu sistema político em particular, necessita de um período de reflexão e debate, sem fronteiras nem tabus, que lhe permitam avaliar o caminho percorrido (tão curto em comparação com outros...) e ponderar em soluções para as próximas décadas. A sociedade portuguesa, com tão pouca experiência de democracia, mas já com trinta e cinco anos de continuidade constitucional, parece não estar preparada para um futuro cada vez mais incerto. Os principais eixos do seu sistema democrático constitucional e do seu modo de organização da representação nacional resultam de estranhos reflexos circunstanciais de autodefesa perante ameaças antigas e parecem pertencer a outras eras. A correcção destas insuficiências e destas distorções, assim como a adaptação aos novos tempos, exigem debate longo e sério, não são compatíveis com vontades imperiais e oportunistas de alteração ou manutenção da Constituição por motivos menores e causas de interesse imediato. Atrevo-me a esperar que, nos próximos anos, essa reflexão seja possível.
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Tribunal Constitucional
Colóquio comemorativo dos 35 anos da Constituição
Lisboa, 28 de Abril de 2011