.
COLABORO, COM HONRA e muito prazer, nesta cerimónia de lançamento ou inauguração da nova garrafa de vinho do Porto. As razões para o fazer eram muitas. A começar pelo vinho do Porto, a que me ligam respeito e amor indestrutíveis. A passar por Álvaro Siza Vieira, criador de espaço e senhor da luz. A acabar nesta interessante iniciativa de Carlos Moreira da Silva e da Barbosa e Almeida, apoiada pelo Instituto de Vinho do Porto e pelas casas exportadoras Sogrape, Taylor’s e Symmington.
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Tanto quanto sei e me permito deduzir, pretendem os promotores dar um contributo para uma relativa homogeneidade da garrafa de Vinho de Porto. Ao fazê-lo, não procuraram a via legal e compulsiva, mas preferiram o método doce, o gesto exemplar que, se o merecer, pode pegar por contágio. Também não tiveram uma ambição absoluta: entenderam, e bem, parece-me, que a garrafa de “vintage” já tinha atingido uma razoável maturidade e alguma homogeneidade, não se justificando assim equipará-la às restantes categorias de vinho. A partir de agora, se a experiência pioneira resultar e se esta nova forma tiver bom acolhimento por parte do comércio e dos consumidores, outros produtores de vinho poderão aderir e acrescentar novos esforços no sentido da homogeneidade.
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Estou convencido de que esta tendência ou esta proposta são bem-vindas. Não sendo uma regra absoluta, a verdade é que muitas categorias de vinho, nomeadamente as mais importantes e prestigiadas, assim como, também, as originárias das mais famosas regiões demarcadas, estabeleceram formatos e desenhos de garrafas comuns aos seus vinhos. A maior parte dos vinhos de Bordéus, da Borgonha e do Champanhe, por exemplo, adoptaram formas comuns de garrafa. Diante de certas garrafas de vinho, nem é preciso ler o rótulo para, imediatamente, pensarmos numa região de origem. Em Portugal, como talvez fosse de esperar, as coisas estão mais desorganizadas. Apesar de termos vivido várias décadas dominados pela fobia da diversidade e pela obsessão do regulamento legal e da imposição de regras e costumes, apesar disso, as garrafas de vinho escaparam à fúria normalizadora.
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É pena, pois há coisas que teriam a ganhar com isso e o vinho era uma delas. Em certas regiões e para certos tipos de vinho, foi-se estabelecendo uma norma, um costume facultativo, que tiveram, aqui e ali, relativos êxitos. Assim, por exemplo, a garrafa do Dão é comum a quase toda a região e a quase todos os produtores. No Doura e na Bairrada, deram-se passos nesse sentido. E no vinho do Porto também. Mau grado essas tendências, a desordem persiste. Ora, ao contrário do que me parece ser verdade de carácter geral – a diversidade é uma riqueza – uma relativa homogeneização poderia constituir um melhoramento dos atributos do Vinho do Porto, da sua imagem, do seu valor no comércio e da percepção que dele têm os consumidores e bebedores.
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Porquê?, perguntar-se-á. Não será muito melhor ter uma enorme ou infinita variedade de formas e feitios? Creio que não. A resposta está no factor de identidade. Há coisas que ganham em ter uma identidade forte. Ganham por muitas razões. Porque são mais facilmente reconhecidas. Porque ganham em personalidade e tradição. Porque transmitem a ideia de que existe uma vontade de estabelecer e controlar as regras de produção.
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O vinho vive também da confiança que, no nome e na origem, depositam os seus consumidores. As normas de cada vinho, a denominação de origem, as regras de comercialização e produção, todas estas ideias têm como objectivo o de criar uma identidade, defender uma qualidade e sublinhar uma capacidade reconhecimento. Diante de garrafas tendencialmente parecidas ou iguais, mesmo sabendo que o produto que está lá dentro pode variar, a nossa reacção é de confiança. Isto é, somos levados a pensar que o esforço de controlo e de acompanhamento da imagem é equivalente ao esforço feito na essência.
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Por outras palavras. Sabendo nós que o conteúdo é mais importante do que a forma e que esta deve obedecer àquele, também sabemos que a forma acaba por ter uma influência sobre o conteúdo. Perante a multiplicação e proliferação de formas de garrafas, de selos de garantia, de rolhas e de rótulos, é possível que se crie a sensação de que o sector está entregue à anarquia; que quem não cuida da forma, também não cuida do conteúdo; que quem não se preocupa com o acessório, também não se interessa pelo essencial. A acreditar no General De Gaulle – “Il n’y a que les grands hommes qui s’intéressent aux petites choses et au détails” – então concluo que a forma, o invólucro, a embalagem e o pormenor devem estar à altura do Vinho do Porto.
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Felicito pois os promotores desta iniciativa. Têm razão em dar alguns passos no sentido de melhorar a imagem e a identidade, através de uma relativa homogeneização da garrafa de Vinho do Porto. É, aliás, estranho, que a mais antiga região demarcada de vinho da história não tenha, há mais tempo, adoptado formas comuns das suas garrafas. Esperemos que este gesto tenha continuidade e desenvolvimento; esperemos também que os vinhos do Douro, em tão grande expansão actualmente, possam adoptar modelos comuns de garrafa e embalagem. Diga-se de passagem que, recentemente, a evolução dos vinhos do Douro, que tem revelado um número muito relevante de novos e excelentes vinhos, aumentou a diversidade de formas e feitios de garrafa, o que não me parece positivo. No Douro, vivem em anárquica união de facto as garrafas bordalesa e borguinhona, as de ombros altos e as de ombros descaídos, a de gargalo alto e a atarracada, o quase cantil, a bojuda e a longilínea.
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Felicito igualmente os promotores por terem pedido a Siza Vieira o desenho da garrafa. O seu nome e a sua arte trazem qualquer coisa a mais ao vinho do Porto, como já tinha feito, há tão pouco tempo, com o novo cálice, de felizes formas e de polémica imediata, mas que, profetizo, terá um futuro radioso. E o tempo dirá, como espero e como aconteceu com a Casa de Chá da Boa Nova, que as suas obras de arte resistam à idade e à polémica. De qualquer modo, não escondo a minha surpresa. Habituei-me a vê-lo ir buscar, com as mãos, a luz e a trazê-la, delicadamente, à nossa beira, como fez no Marco de Canavezes e em Serralves: não estava à espera que também ele me trouxesse o Douro à mesa e à boca. Eis que está feito, com a sua habitual magia.
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Durante cerca de dois séculos, os vinhos em geral e o vinho do Porto em particular foram a principal exportação portuguesa. Anos houve em que estes produtos representaram, em valor, mais de 80 por cento do nosso comércio externo. Quer isto dizer que os vinhos, especialmente o do Porto, foram responsáveis por parte importante das nossas importações de produtos manufacturados e industrializados para os quais não tínhamos jeito, recursos ou competência. Também aquele comércio foi vital para as receitas do Estado: foram aqueles impostos dos mais lucrativos para financiar as actividades da Administração. Pois bem, a grande maioria, perto da totalidade, daqueles vinhos foi exportada a granel, isto é, em geral, em cascos de madeira. Em pipas. Ainda nas décadas de cinquenta e sessenta do século XX – digo bem, XX – menos de 10 por cento do Vinho do Porto era exportado engarrafado! Foi na década de setenta que algo mudou: no final desta, já o Vinho do Porto exportado em garrafa era a maioria. Hoje, é praticamente a totalidade. O que teve implicações várias. Além do vinho, exporta-se também o vidro, a rolha, o cartão, a madeira, a cápsula, o rótulo, o desenho e o valor acrescentado disso tudo. Por outro lado, o vinho engarrafado é geralmente de melhor qualidade e mais alto preço, sem falar no facto de ser a partir de vinho a granel que, as mais das vezes, importadores estrangeiros fabricavam vinho do Porto de duvidosa qualidade. No conjunto, pelo trabalho e pela embalagem, o vinho engarrafado era de qualidade e valor superiores ao granel. Demorámos décadas a aprender! E a pensar no Barão de Forrester que, em meados do século XIX, no seu principal livro sobre Portugal, dizia: “Em casa de um gentleman português, é tão raro encontrar um livro como uma garrafa de vinho!”.
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Em nossa defesa, acrescente-se que a garrafa de vinho, tal como a conhecemos hoje, não é assim tão antiga. Se há certezas quanto à utilização do vidro em frascos e recipientes de vária espécie desde há 3.000 ou 3.500 anos (no Egipto, sobretudo), também se sabe que a garrafa de vidro para o vinho só começou a ser usada muito mais tarde, talvez a partir dos séculos XVI e XVII, tendo-se notabilizado nessa indústria os Árabes, os Venezianos, os Ingleses e os Alemães. Após uma lenta evolução na sua forma, a garrafa que hoje conhecemos data de finais do século XIX, princípios do século XX. Antes disso, as belas garrafas de vidro que conhecemos e que aparecem de vez em quando nos leilões, baixas, bojudas, arredondadas, gordas na base, cumpriam os seus deveres à mesa, mas não se adaptavam às exigências e às circunstâncias dos mercados de exportação, das viagens de barco, dos transportes deficientes de então e do repouso e envelhecimento em cave ou adega. Na verdade, o nosso atraso no comércio de vinho engarrafado não se mede em séculos. Foram talvez só setenta ou oitenta anos!
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Apraz-me ver, dia após dia, que o Vinho do Porto, repositório de tradição, é capaz de inovar e de se organizar. Sendo o mais antigo e mais valioso produto português de exportação, sendo seguramente o produto mais mundialmente identificado com Portugal e carregando consigo séculos de história, seria talvez de imaginar que as suas energias inovadoras se esgotariam. Pois bem, o contrário é a verdade. Nunca, como nos últimos anos, se consumiu tanto Vinho do Porto no mundo. Nunca se exportou tanto. Nunca se escreveu tanto como agora sobre este vinho. Nunca, como agora, se vêem “vintages” emparceirar com os melhores vinhos do século das melhores regiões do mundo. Nunca, como agora, se comercializaram e beberam tantos vinhos das mais nobres qualidades, das melhores vindimas e dos mais altos preços. Para que tudo isso tenha sido possível, um enorme esforço tem vindo a ser feito no Douro, nas vinhas e nas adegas, de renovação da produção, do plantio, do cultivo, do estudo da vinicultura e da viticultura, da aplicação da ciência e das tecnologias mais modernas a esta velha tradição. Se olharmos para a história recente, desde os anos oitenta, em que dois fenómenos abalaram as estruturas produtivas portuguesas, a integração europeia e a globalização, é-me permitido afirmar que foi o sector do vinho do Porto (talvez também, moderadamente, o do vinho em geral) o que melhor se portou, resistiu, e organizou e o que melhor encara o futuro.
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Alfândega, Porto, 10 de Dezembro de 2002
COLABORO, COM HONRA e muito prazer, nesta cerimónia de lançamento ou inauguração da nova garrafa de vinho do Porto. As razões para o fazer eram muitas. A começar pelo vinho do Porto, a que me ligam respeito e amor indestrutíveis. A passar por Álvaro Siza Vieira, criador de espaço e senhor da luz. A acabar nesta interessante iniciativa de Carlos Moreira da Silva e da Barbosa e Almeida, apoiada pelo Instituto de Vinho do Porto e pelas casas exportadoras Sogrape, Taylor’s e Symmington.
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Tanto quanto sei e me permito deduzir, pretendem os promotores dar um contributo para uma relativa homogeneidade da garrafa de Vinho de Porto. Ao fazê-lo, não procuraram a via legal e compulsiva, mas preferiram o método doce, o gesto exemplar que, se o merecer, pode pegar por contágio. Também não tiveram uma ambição absoluta: entenderam, e bem, parece-me, que a garrafa de “vintage” já tinha atingido uma razoável maturidade e alguma homogeneidade, não se justificando assim equipará-la às restantes categorias de vinho. A partir de agora, se a experiência pioneira resultar e se esta nova forma tiver bom acolhimento por parte do comércio e dos consumidores, outros produtores de vinho poderão aderir e acrescentar novos esforços no sentido da homogeneidade.
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Estou convencido de que esta tendência ou esta proposta são bem-vindas. Não sendo uma regra absoluta, a verdade é que muitas categorias de vinho, nomeadamente as mais importantes e prestigiadas, assim como, também, as originárias das mais famosas regiões demarcadas, estabeleceram formatos e desenhos de garrafas comuns aos seus vinhos. A maior parte dos vinhos de Bordéus, da Borgonha e do Champanhe, por exemplo, adoptaram formas comuns de garrafa. Diante de certas garrafas de vinho, nem é preciso ler o rótulo para, imediatamente, pensarmos numa região de origem. Em Portugal, como talvez fosse de esperar, as coisas estão mais desorganizadas. Apesar de termos vivido várias décadas dominados pela fobia da diversidade e pela obsessão do regulamento legal e da imposição de regras e costumes, apesar disso, as garrafas de vinho escaparam à fúria normalizadora.
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É pena, pois há coisas que teriam a ganhar com isso e o vinho era uma delas. Em certas regiões e para certos tipos de vinho, foi-se estabelecendo uma norma, um costume facultativo, que tiveram, aqui e ali, relativos êxitos. Assim, por exemplo, a garrafa do Dão é comum a quase toda a região e a quase todos os produtores. No Doura e na Bairrada, deram-se passos nesse sentido. E no vinho do Porto também. Mau grado essas tendências, a desordem persiste. Ora, ao contrário do que me parece ser verdade de carácter geral – a diversidade é uma riqueza – uma relativa homogeneização poderia constituir um melhoramento dos atributos do Vinho do Porto, da sua imagem, do seu valor no comércio e da percepção que dele têm os consumidores e bebedores.
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Porquê?, perguntar-se-á. Não será muito melhor ter uma enorme ou infinita variedade de formas e feitios? Creio que não. A resposta está no factor de identidade. Há coisas que ganham em ter uma identidade forte. Ganham por muitas razões. Porque são mais facilmente reconhecidas. Porque ganham em personalidade e tradição. Porque transmitem a ideia de que existe uma vontade de estabelecer e controlar as regras de produção.
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O vinho vive também da confiança que, no nome e na origem, depositam os seus consumidores. As normas de cada vinho, a denominação de origem, as regras de comercialização e produção, todas estas ideias têm como objectivo o de criar uma identidade, defender uma qualidade e sublinhar uma capacidade reconhecimento. Diante de garrafas tendencialmente parecidas ou iguais, mesmo sabendo que o produto que está lá dentro pode variar, a nossa reacção é de confiança. Isto é, somos levados a pensar que o esforço de controlo e de acompanhamento da imagem é equivalente ao esforço feito na essência.
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Por outras palavras. Sabendo nós que o conteúdo é mais importante do que a forma e que esta deve obedecer àquele, também sabemos que a forma acaba por ter uma influência sobre o conteúdo. Perante a multiplicação e proliferação de formas de garrafas, de selos de garantia, de rolhas e de rótulos, é possível que se crie a sensação de que o sector está entregue à anarquia; que quem não cuida da forma, também não cuida do conteúdo; que quem não se preocupa com o acessório, também não se interessa pelo essencial. A acreditar no General De Gaulle – “Il n’y a que les grands hommes qui s’intéressent aux petites choses et au détails” – então concluo que a forma, o invólucro, a embalagem e o pormenor devem estar à altura do Vinho do Porto.
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Felicito pois os promotores desta iniciativa. Têm razão em dar alguns passos no sentido de melhorar a imagem e a identidade, através de uma relativa homogeneização da garrafa de Vinho do Porto. É, aliás, estranho, que a mais antiga região demarcada de vinho da história não tenha, há mais tempo, adoptado formas comuns das suas garrafas. Esperemos que este gesto tenha continuidade e desenvolvimento; esperemos também que os vinhos do Douro, em tão grande expansão actualmente, possam adoptar modelos comuns de garrafa e embalagem. Diga-se de passagem que, recentemente, a evolução dos vinhos do Douro, que tem revelado um número muito relevante de novos e excelentes vinhos, aumentou a diversidade de formas e feitios de garrafa, o que não me parece positivo. No Douro, vivem em anárquica união de facto as garrafas bordalesa e borguinhona, as de ombros altos e as de ombros descaídos, a de gargalo alto e a atarracada, o quase cantil, a bojuda e a longilínea.
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Felicito igualmente os promotores por terem pedido a Siza Vieira o desenho da garrafa. O seu nome e a sua arte trazem qualquer coisa a mais ao vinho do Porto, como já tinha feito, há tão pouco tempo, com o novo cálice, de felizes formas e de polémica imediata, mas que, profetizo, terá um futuro radioso. E o tempo dirá, como espero e como aconteceu com a Casa de Chá da Boa Nova, que as suas obras de arte resistam à idade e à polémica. De qualquer modo, não escondo a minha surpresa. Habituei-me a vê-lo ir buscar, com as mãos, a luz e a trazê-la, delicadamente, à nossa beira, como fez no Marco de Canavezes e em Serralves: não estava à espera que também ele me trouxesse o Douro à mesa e à boca. Eis que está feito, com a sua habitual magia.
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Durante cerca de dois séculos, os vinhos em geral e o vinho do Porto em particular foram a principal exportação portuguesa. Anos houve em que estes produtos representaram, em valor, mais de 80 por cento do nosso comércio externo. Quer isto dizer que os vinhos, especialmente o do Porto, foram responsáveis por parte importante das nossas importações de produtos manufacturados e industrializados para os quais não tínhamos jeito, recursos ou competência. Também aquele comércio foi vital para as receitas do Estado: foram aqueles impostos dos mais lucrativos para financiar as actividades da Administração. Pois bem, a grande maioria, perto da totalidade, daqueles vinhos foi exportada a granel, isto é, em geral, em cascos de madeira. Em pipas. Ainda nas décadas de cinquenta e sessenta do século XX – digo bem, XX – menos de 10 por cento do Vinho do Porto era exportado engarrafado! Foi na década de setenta que algo mudou: no final desta, já o Vinho do Porto exportado em garrafa era a maioria. Hoje, é praticamente a totalidade. O que teve implicações várias. Além do vinho, exporta-se também o vidro, a rolha, o cartão, a madeira, a cápsula, o rótulo, o desenho e o valor acrescentado disso tudo. Por outro lado, o vinho engarrafado é geralmente de melhor qualidade e mais alto preço, sem falar no facto de ser a partir de vinho a granel que, as mais das vezes, importadores estrangeiros fabricavam vinho do Porto de duvidosa qualidade. No conjunto, pelo trabalho e pela embalagem, o vinho engarrafado era de qualidade e valor superiores ao granel. Demorámos décadas a aprender! E a pensar no Barão de Forrester que, em meados do século XIX, no seu principal livro sobre Portugal, dizia: “Em casa de um gentleman português, é tão raro encontrar um livro como uma garrafa de vinho!”.
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Em nossa defesa, acrescente-se que a garrafa de vinho, tal como a conhecemos hoje, não é assim tão antiga. Se há certezas quanto à utilização do vidro em frascos e recipientes de vária espécie desde há 3.000 ou 3.500 anos (no Egipto, sobretudo), também se sabe que a garrafa de vidro para o vinho só começou a ser usada muito mais tarde, talvez a partir dos séculos XVI e XVII, tendo-se notabilizado nessa indústria os Árabes, os Venezianos, os Ingleses e os Alemães. Após uma lenta evolução na sua forma, a garrafa que hoje conhecemos data de finais do século XIX, princípios do século XX. Antes disso, as belas garrafas de vidro que conhecemos e que aparecem de vez em quando nos leilões, baixas, bojudas, arredondadas, gordas na base, cumpriam os seus deveres à mesa, mas não se adaptavam às exigências e às circunstâncias dos mercados de exportação, das viagens de barco, dos transportes deficientes de então e do repouso e envelhecimento em cave ou adega. Na verdade, o nosso atraso no comércio de vinho engarrafado não se mede em séculos. Foram talvez só setenta ou oitenta anos!
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Apraz-me ver, dia após dia, que o Vinho do Porto, repositório de tradição, é capaz de inovar e de se organizar. Sendo o mais antigo e mais valioso produto português de exportação, sendo seguramente o produto mais mundialmente identificado com Portugal e carregando consigo séculos de história, seria talvez de imaginar que as suas energias inovadoras se esgotariam. Pois bem, o contrário é a verdade. Nunca, como nos últimos anos, se consumiu tanto Vinho do Porto no mundo. Nunca se exportou tanto. Nunca se escreveu tanto como agora sobre este vinho. Nunca, como agora, se vêem “vintages” emparceirar com os melhores vinhos do século das melhores regiões do mundo. Nunca, como agora, se comercializaram e beberam tantos vinhos das mais nobres qualidades, das melhores vindimas e dos mais altos preços. Para que tudo isso tenha sido possível, um enorme esforço tem vindo a ser feito no Douro, nas vinhas e nas adegas, de renovação da produção, do plantio, do cultivo, do estudo da vinicultura e da viticultura, da aplicação da ciência e das tecnologias mais modernas a esta velha tradição. Se olharmos para a história recente, desde os anos oitenta, em que dois fenómenos abalaram as estruturas produtivas portuguesas, a integração europeia e a globalização, é-me permitido afirmar que foi o sector do vinho do Porto (talvez também, moderadamente, o do vinho em geral) o que melhor se portou, resistiu, e organizou e o que melhor encara o futuro.
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Alfândega, Porto, 10 de Dezembro de 2002