sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Grande Angular - A crise e os remédios

 Ninguém duvida de que vivemos uma das mais preocupantes crises das últimas décadas. Já não bastavam os problemas internacionais que nos ultrapassam. Os nossos próprios parecem pelo menos tão difíceis de resolver. A invasão da Ucrânia pelos Russos, seguida de um dos mais nefandos massacres que se pode imaginar, é suficiente para deixar o mundo perplexo. A nova tensão internacional, perigosa como poucas, vai durar muito, de mais. Mas é perante isso, as dificuldades e os imprevistos, que a competência, a força e a inteligência são necessárias. O Governo invoca aqueles factores para desculpar as suas fraquezas, mas é exactamente o contrário de que se trata: é por causa dos perigos e das ameaças que exigimos acção do Governo.

 

Os recentes episódios das demissões de governantes, em situação de crise moral, de incompetência, de sordidez ou ambição pessoal, ilustram as carências do Governo e da autoridade democrática. A situação caótica que se vive na educação e na saúde mostram a enormidade das insuficiências. O muito actual episódio das Jornadas da Juventude, verdadeiramente indecoroso pela falta de seriedade e de competência, revela a incapacidade das instâncias de poder democrático para tomar conta do que devem e assumir as suas responsabilidades. O problema não é evidentemente o dos casos, como gosta de dizer o Primeiro Ministro. O problema já é de desnorte.

 

É verdade que parece haver algum crescimento económico. Pouco. Menos do que outros. Não tanto quanto precisaríamos. Mas é alguma coisa. Não sabemos se a política do governo teve influência ou se é simplesmente a economia e a empresa. Mas aceitemos que o Governo não é culpado de ser um obstáculo às forças económicas.

 

Também parece certo que houve melhoramento nas condições da pobreza e algum progresso nas acções de redistribuição, factos a que não será estranha a acção do Governo. Mas, também aqui, sabemos nós e o Governo sabe que tal não é suficiente e que há muito mais a fazer, designadamente investimento e emprego.

 

Se há progressos, poucos, há retrocessos, bastantes, e deficiências, muitas. O SNS desorganizado e sem médicos é revoltante! Maternidades fechadas de vez em quando é absurdo. Falta persistente de enfermeiros é incompreensível. Dezenas de milhares de alunos sem um ou mais professores é escandaloso. Uma ou duas dezenas de anos de espera para julgar um arguido poderoso é imoral. O desastre reinou nas infra-estruturas, com relevo para o aeroporto e a TAP. A desorientação relativamente à imigração ilegal e aos trabalhadores clandestinos deixa prever conflitos a breve prazo. A persistência da emigração de portugueses para o estrangeiro, com valores próximos dos da década de 1960, situação que não mereceu atenção deste governo, é talvez o mais chocante sinal de incapacidade política e económica.

 

Não é por causa da crise internacional que o momento é de alerta. É por causa das crises nacionais que começa a fazer-se tarde. Do primeiro ministro, do seu governo e do seu partido exige-se uma reflexão a que parece recusarem-se. Podem ou não continuar? São capazes de mudar o suficiente para recuperar força e energia? Estão aptos a recorrer a novas forças e novas ideias capazes de mudar o rumo desgraçado que levamos? Conseguirão abandonar o estilo palavroso e propagandístico, tão estéril e prejudicial? Deixarão de acreditar nas estratégias teóricas e sistémicas tão do seu gosto para se ocupar de questões reais, sociais, políticas e económicas, como quem trata de problemas e não como quem faz teses de mestrado? Perceberão que grande parte da crise na Justiça se deve à sua inoperância e à sua covardia? Poderão compreender que a crise da educação, tão prejudicial, se deve em grande parte à sua demagogia? Terão entendido que a enorme crise no SNS é o resultado da sua incapacidade de gestão e da sua obsessão ideológica? Terão uma vez sentido que a sua vontade de esbater algumas desigualdades, assim como de aliviar tanta gente da pobreza, são insuficientes e que, sem emprego e sem salários decentes, os seus esforços ficam-se pela compaixão?

 

É uma velha regra da política marialva: aguentar! Resistir! Em certas ocasiões, resulta. Passadas as tempestades, o mundo recupera as suas cores, as sondagens voltam a subir. A maior parte das vezes, não resulta. Aguenta-se até perder definitivamente. Quantos derrotados persistiram no erro, acreditaram que a sorte voltaria um dia, confiaram na inteligência dos seus colaboradores e julgaram que poderiam tudo recomeçar, sem danos nem prejuízos, sem mortos nem feridos?

 

Esta atitude de “esperar que passe” e julgar que se pode recuperar com as mesmas pessoas, as mesmas ideias e o mesmo estilo, tem que se lhe diga. Prejudica o país. Causa danos irreversíveis ao partido. Pode ser fatal ao Primeiro ministro e ao governo.

 

Se assim for, mudar de pessoas, de ideias e de estilo parece imperioso. Não deve ser muito difícil. O Partido Socialista já nos habituou a mostrar que tem lá de tudo, bom e mau, inteligente e estúpido, de esquerda e de direita, incompetente e capaz, liberal e autoritário, honesto e corrupto. Há por onde escolher. Ao Primeiro ministro que, por enquanto, tem os votos, de decidir o que guarda e o que deita fora. É a ele que compete, em primeira linha, ver se tem capacidades, estimar o que deve mudar, medir a consistência da sua maioria…. É a ele e só ele que compete manter-se, remodelar, demitir-se, formar novo governo ou pedir eleições. Não é aos chefes da oposição que cabe fazer tal. Não é ao Presidente da República que compete fazer essa avaliação e tomar essa decisão. Pode acontecer. Como já foi o caso com Soares, Sampaio e Cavaco. Não sendo ilegal, esse gesto é nefasto e fere a democracia. É um engano e, como tal, mal compreendido pelo eleitorado. Pode o Presidente da República estar cansado de tanta inoperância. Podem os chefes das oposições estar com pressa e querer aproveitar o falhanço do governo para ampliar a crise. Podem os parceiros sociais, os intelectuais e os artistas considerar que um novo governo lhes dará uma vantagem. Pode tudo isso ser verdade. Mas nada disso recomenda uma intervenção abrupta, um despedimento forçado e umas eleições fora do calendário.

 

A verdade é que, na melhor normalidade política e democrática, no bom sentido da civilização parlamentar e no quadro dos bons hábitos institucionais, é ao Governo que compete escolher a remodelação, a demissão e a eleição. E, em conformidade, solicitar ao Presidente os procedimentos constitucionais adequados. Outra qualquer via só acrescentará à crise.

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Público, 28.1.2023

sábado, 21 de janeiro de 2023

Grande Angular - A virtude e a política

 O que mais surpreende, na crise actual, é a rapidez com que se instalou o declínio. Tudo em circunstâncias tão estranhas, em contraste com as condições muitíssimo favoráveis. Apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e da inflação, havia uma maioria absoluta, uma aparente experiência de muitos governantes, dinheiro europeu, uma relativa paz social, o apoio quase cúmplice do Presidente da República e uma opinião pública não muito descontente. Até que surgiram as demissões em série, as denúncias de corrupção, as dúvidas e a desconfiança, os processos e as inquirições. De repente, o mundo português ficou toldado.

 

Como sempre, não faltam as invenções. O questionário de interesses e moralidade é a mais caricata. Em vez de amadurecer, a democracia portuguesa atravessa aguda fase de infantilismo. É chocante o modo como é tratada a questão da seriedade, dos interesses e da honestidade dos políticos. Estão a inventar-se ridículos métodos de confissão e inquirição, com o principal objectivo de desculpar os políticos, dispensar a justiça, afastar as inspecções, eliminar as políticas, ignorar os magistrados, ultrapassar o Ministério Público e enganar a opinião pública.

 

E, no entanto, há coisas tão simples na vida! Quem escolhe e nomeia é responsável. Quem não cumpre a lei é castigado. O desonesto é condenado. O incompetente é afastado. Quem rouba é julgado. Quem favorece os seus é denunciado. O que corrompe é punido e o que se deixa corromper é justiçado. Métodos simples e conhecidos que dispensam os questionários virtuosos que escondem mais do que revelam. A começar pela declaração de rendimentos e pelo registo de interesses entregues no Tribunal Constitucional, uma, na Assembleia da República, outro. E que agora, pelos vistos, não servem para nada.

 

A eventual aprovação deste método de inquirição, seja com o detestável estatuto de “informalidade oficial”, seja com o selo da lei, levanta mais problemas do que resolve. Por que razão a propriedade de contas bancárias, de acções e de imóveis, além de outros bens materiais, é mais gravosa e tentadora do que outras realidades? Não há outras condições de igual importância? Não há outros interesses tão ou mais nefastos para a vida política do que os bens materiais?

 

Tudo o que é monetário tem ainda um problema suplementar: o dos limites e dos montantes. Toda e qualquer fortuna é sinal de dependência e de interesse ilegítimo? Quaisquer acções, obrigações ou contas bancárias têm esse condão de limitar os direitos e a moralidade de qualquer pessoa? Ou há limites e montantes? A partir de que volume uma pessoa é suspeita de ladroagem e de defender interesses ilegítimos? Um euro? Mil euros? Um milhão de euros? Quantas acções limitam a liberdade e dão origem à desconfiança? Uma? Mil? Um por cento? Dez por cento? E o proprietário de um apartamento poderá ser autarca ou membro do governo nas pastas das finanças, da administração interna e da habitação?

 

Se vamos inquirir a situação económica, deveríamos também vigiar as qualidades intelectuais, políticas, de gestão e de liderança. A incompetência e a incapacidade de previsão, como se vê agora com a saúde e a educação, são mais graves do que um pacote de acções de um banco ou de uma empresa de telefones. Seguindo o exemplo do que se passa com a actividade económica, seria necessário elaborar um questionário destinado a revelar as qualidades intelectuais e de gestão de um candidato a ministro. Só assim evitaríamos, por exemplo, que o número de médicos e enfermeiros ficasse muito aquém das necessidades. E só desse modo teríamos professores formados e distribuídos com a devida antecedência.

 

De qualquer modo, as condições económicas estão longe de ser as únicas ou sequer as mais importantes que afectam a seriedade na política e a isenção dos políticos. Um sócio, adepto ou dirigente de um clube de futebol, sobretudo dos grandes, pode desempenhar funções nos sectores que têm relações com esses clubes, como sejam o desporto, as finanças, o imobiliário, a justiça e as polícias? Não deveremos exigir que um político se afaste publicamente de um clube desportivo antes de tomar posse?

 

Que fazer com a pertença dos políticos a sociedades públicas, a Ordens profissionais, a associações científicas, a academias, a confrarias, a sindicatos, a grémios e grupos recreativos? A pertença a qualquer associação cultural e a grupos artísticos limita também as capacidades? Deve ser eliminatória do exercício de certas funções?

 

A fé ou o ateísmo, a crença numa religião, a pertença a uma igreja ou um culto, são compatíveis com o exercício isento de um cargo político? Pelos actuais parâmetros, parece bem que não. Católico, evangelista, muçulmano, budista, hindu, protestante, anglicano e judeu deveriam ser afastados da política, ou abjurar publicamente antes de serem autarcas, secretários de estado, deputados ou ministros.

 

A pertença a associações discretas ou associações secretas, como qualquer uma das duas dúzias de obediências maçónicas ou uma das muitas associações religiosas igualmente discretas, deverá ser imediatamente interdita? Ou deverá apenas limitar o exercício de funções nas áreas que possam ter envolvimentos e interesses especiais?

 

Levada esta questão, com coerência, atá às últimas consequências, chegaríamos ao ponto, absurdo, de ter de eliminar as possibilidades de um político ou um autarca exercerem as suas funções enquanto pertencerem a um partido político. A relação com este é fonte de todas a suspeitas. Mais do que qualquer outra actividade, reduz absolutamente a isenção de um político em exercício num cargo público. A actividade partidária destina-se a conquistar o poder. O exercício do poder faz-se favorecendo o partido e os correligionários. Um político que o queira ser, nas condições que se preparam nesta tão virtuosa República em que vivemos, tem de renunciar ao seu partido e afastar-se dos seus camaradas. Só assim chegaríamos ao estádio de perfeição em que um político, no exercício das suas magnificas funções, deixaria de ter fortuna, de acreditar num Deus, de pertencer a uma associação, de ser militante de um partido, de ser adepto de um clube de futebol, de possuir acções de empresas, de ser proprietário de apartamento, de ter uma quinta, de ir às reuniões da loja, de frequentar a igreja, de visitar a sinagoga, de rezar na mesquita. Este político será perfeito, leal, virtuoso, independente e íntegro. Mas não vale um caracol. E provavelmente será um ditador.

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Público, 21.1.2023

sábado, 14 de janeiro de 2023

Grande Angular - Operação de encenação e coreografia

 Pelos vistos, foi criado um “mecanismo de escrutínio dos governantes” e foi elaborado um “questionário de verificação prévio dos candidatos”. Pasme-se! O que se tem passado com as nomeações e demissões do governo, e agora com a criação deste “mecanismo”, deixa toda a gente assustada. Sejam os políticos culpados, com receios, ou os inocentes, com inquietação. Mas também cidadãos comuns. Entre estes, os que não acreditam nestes expedientes para desresponsabilizar quem escolhe. Os que imaginam que se trata de mais uma praxe para tornar a política uma actividade esotérica e reservada a uma elite partidária. Os que pensam que esta coreografia serve para restaurar uma virgindade perdida. Os que imaginam que estas regras servem para delimitar o que se pode fazer para escapar.

 

Verdade é que nada nem ninguém parece inocente. A começar pelo facto tão simples de que este procedimento desautoriza as instituições. O que se inventou é um prodígio de encenação. O Governo aprova um questionário que pretende aplicar sem que tenha força de lei. Enumeram-se dúzias de perguntas, deixando de fora dezenas. Preparam-se para fazer as perguntas por escrito, pedindo uma resposta de igual teor, mas cujo conteúdo fica privado, sem que se aceite o princípio de que os documentos deste género são necessariamente públicos. Nada justifica o secretismo. Se são invocadas a intimidade e a privacidade, os documentos não deveriam existir. Se o argumento é o interesse do Estado, então é mentira.

 

Tanto a linguagem oficial como os comentários jornalísticos mencionam, em maioria, os “candidatos” a lugares do governo. Eis mal-entendido típico de falsos beatos. As pessoas convidadas para o governo não são “candidatos” a coisa nenhuma. A decisão não é deles. O processo não é aberto. Não há vários candidatos ao mesmo lugar. As posições em causa não estão a concurso. As pessoas são seleccionadas, escolhidas e nomeadas por quem de direito. Caso aceitem, as pessoas seleccionadas deveriam submeter-se a procedimentos institucionais definidos pela lei e não serem obrigados a responder a questionários arbitrários e intrusivos.

 

Percebe-se o entendimento dos autores deste questionário. O que está em causa é dinheiro. Dinheiro público nacional e europeu. Dinheiro e subsídios a obter. Facilidades para vender. Deveres para comprar. Lucros para amealhar. Maneira de receber dinheiro através de isenções, favores e procedimentos de legalidade duvidosa e aparência legal. Uma só palavra: dinheiro.

 

Quer isto dizer que os autores deste mecanismo, assim como os que com ele concordam, não consideram mais nenhum gesto condenável ou acto que diminua as capacidades do seleccionado, aqui tratado por candidato. Ganhar dinheiro abusivamente parece ser o primeiro e último pecado. Nada é mais grave. Noutras palavras, é a principal razão pela qual se é castigado e se perde a capacidade para exercer cargos públicos. Parece pouco. Para além de crimes, há muito mais, não declarado e não em processo de justiça, que deveria ser considerado.

 

A violência doméstica deveria contar: bater na mulher, nos pais ou nos filhos. O abuso de menores também. O uso de violência junto de amigos deveria figurar na lista. O insulto e a calúnia também. Acidentes de viação não ficariam fora. Atentados contra a liberdade de outrem também não. Atitudes racistas. Pensamentos fascistas. Simpatias terroristas. Afinidades comunistas. Tudo deveria ser analisado pelo Primeiro Ministro. 

 

Com o andar dos tempos e com as novas ortodoxias, devemos ainda estar preparados para novas exclusões, isto é, para mais motivos de exclusão da vida política. A frequência de touradas, o consumo de álcool e tabaco, o uso de haxixe e outras substâncias, algumas preferências sexuais, assim como o abuso de alteradores de consciência deverão ser devidamente declarados ou sobre eles devem ser recolhidas informações adequadas. 

 

Apesar da fúria regulamentadora, ficam de fora múltiplos rendimentos que não se percebe se estarão abrangidos. Que dizer de direitos de autor relativos a obras de arte, peças de música, livros, artigos de jornal, ensaios, conferências e sermões? Podem ser trazidos à colação? De que modo comprometem o futuro ou o pretérito governante? Que dizer de prémios de concursos e lotarias? E as bolsas de estudo obtidas pelo próprio ou por seus familiares: que vínculos criam com a actividade do seleccionado?

 

O mais complicado parece ser o que fazer com a cunha. O empenho. O favor. O jeitinho. Como se pode castigar quem mete cunhas, quem aceita, quem beneficia e quem favorece outros através de cunhas? E que consequências pode ter para um político, hoje, uma cunha que meteu ou de que beneficiou há dois anos? Ou dentro de dois anos uma cunha que um político meteu quando ainda o era?

 

Como olhar para as nomeações? Do próprio ou de outros. Dos amigos, correligionários e familiares? As nomeações, da conveniência de serviço à confiança política, são a forma mais corrupta e mais corruptora do exercício do poder político. É possível que sejam mais danosas para a sociedade e para a democracia do que muitos gestos que envolvem directamente rendimentos pecuniários. Como agir, nestes casos? Como elaborar questionários? Que perguntas devem ser feitas aos seleccionados aqui designados por candidatos?

 

Sobram ainda as perguntas inevitáveis. Para que serve o Primeiro Ministro? Não é para escolher, inquirir e designar? E para tomar a responsabilidade das suas escolhas? Para que serve o Tribunal Constitucional? E os tribunais? E o Ministério Público? E o Tribunal de Contas? E a Autoridade Tributária? E as polícias? E sobretudo, acima de tudo, para que serve a Assembleia da República? Não é justamente para fiscalizar e escrutinar?

 

Uma coisa é certa: todos estes procedimentos dependem ou devem depender das instituições. O recurso a entidades aberrantes, do género do “mecanismo” agora criado, não resolve o problema, tem consequências nefastas e não reforça a democracia nem o Estado de direito. Uma e outro, pelo contrário, ficam dependentes do arbítrio político e da força de quem exerce o poder.

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Público, 14.1.2023

sábado, 7 de janeiro de 2023

Grande Angular - O caldo entornado

 semipresidencialismo é uma forma de regime arriscada. Muitas vezes inútil, geralmente ambígua, quase sempre equívoca! Foi uma invenção de académicos, com uma aparência de sofisticação e inteligência. Por isso, era atraente. Na verdade, olhando bem para os factos, veio a revelar-se uma ilusão. Ou antes: os seus méritos académicos são certos, as suas vantagens políticas reduzidas.

 

Consta que o regime francês, a partir do presidente De Gaulle, seria o mais importante caso de semipresidencialismo. A República de Weimar seria um exemplo, além de dois ou três outros que confirmavam a teoria. Entres estes, Portugal evidentemente. Hoje, os manuais insistem em garantir que há várias dezenas de países, incluindo africanos e asiáticos, com regime semipresidencialista. Pode-se admitir a ideia, mas em geral não correspondem à realidade. Em grande parte trata-se de regimes presidencialistas com uns adornos. Ou parlamentares com um vago correctivo, a começar pela eleição directa do Presidente e pela faculdade de dissolução do Parlamento.

 

A história portuguesa do semipresidencialismo é feita de sarilhos e conflitos. Já quase esquecemos os tempos passados, mas o choque entre Presidente e Governo esteve presente. Por vezes, com acrimónia política e desgaste institucional. Quase sempre com perda de tempo e de oportunidades. A competição e o conflito foram a regra. 

 

Durante quarenta anos, com quatro Presidentes e vinte Governos, com várias maiorias ou coligações, sempre houve querelas pouco úteis para o país e para a democracia. É tipicamente nacional: entre dois modelos fortes ou claros, presidencialista ou parlamentar, escolhemos o que é assim-assim. Nem uma coisa nem outra, com os defeitos de ambos. Juntámos as duas fraquezas. Tal como a predilecção pelos governos minoritários e o horror aos governos maioritários.

 

Dito isto, é forçoso reconhecer que houve, nos últimos anos, uma novidade importante: a ausência de quezílias institucionais! O Presidente Marcelo já exerceu o seu cargo com um governo de quase coligação, um governo minoritário e um governo de maioria absoluta. Em qualquer dos casos, o veredicto eleitoral legislativo e parlamentar impôs-se e o Presidente respeitou-o. Apesar de todos os partidos que governaram serem de doutrina e política diferentes das suas, o Presidente ajudou. Assim vivemos uma paz institucional rara, talvez inédita.

 

Mais ainda, desde sempre Marcelo Rebelo de Sousa decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o governo e o Parlamento. Por esse feito, merece felicitações. Fê-lo sem reservas mentais, nem armadilhas. A ponto de ser corrente dizer que o Presidente apoia demais o Governo, em vez de o vigiar ou compensar! Os socialistas, beneficiados, agradecem e reconhecem. Mas todos os outros partidos e muitos comentadores insistem em ter saudades dos tempos em que havia conflitos. E todos parecem querer absolutamente que o PR seja um fiscal, um polícia ou um contrapoder.

 

Ora, não é para isso que se elege o PR. Este é eleito para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar. Nesse aspecto, este PR foi o que fez a melhor escolha e que melhor compreendeu o seu papel.

 

Não sabemos o que se segue, mas o caldo parece estar entornado. As boas relações entre Marcelo e Costa estão toldadas. Entre o PR e o Governo estão crispadas. Não se sabe bem de quem é a culpa, se de um ou se do outro. Ou até dos dois, como no Tango. Mas é seriamente de lamentar que este bom exemplo de colaboração não tenha seguido até ao fim.

 

Não elegemos o PR para vigiar ou fiscalizar. Para isso há o Parlamento, o Tribunal Constitucional, a Justiça em geral, o Provedor de Justiça, o Ministério Público, o Tribunal de Contas, até as polícias. Sem falar na oposição. E sem esquecer um dos mais importantes, a imprensa livre. A concepção do Presidente como contrapeso é doentia! E perversa! Boa receita para telenovela, mas má solução para a democracia e para o governo do país.

 

Os mecanismos existentes e que poderiam fortalecer o sistema de peso e contrapeso ou de controlo e fiscalização estão à disposição de todos. Mas é verdade, no entanto, que os nossos constituintes nunca quiseram optar por métodos mais claros e mais eficientes, como, por exemplo, a segunda câmara, os direitos da oposição parlamentar, o sistema eleitoral uninominal e o recurso a iniciativas populares e a referendos. Prefere-se sempre uma solução híbrida e esquisita, como este nosso sistema proporcional, a moção de censura construtiva (que está na forja há décadas…), os governos de minoria e coligação e a tentativa de recusa ou impedimento dos governos de maioria. Além disso, sempre se preferiu uma vantagem leonina e desleal da maioria relativamente aos restantes grupos parlamentares.

 

É bem possível que Marcelo seja o presidente que melhor compreendeu o papel de apoiante e de colaboração. Louvado seja! Mas esse clima acabou, vá lá saber-se exactamente porquê. O Presidente poderia ter incomodado o Governo e o PS, para ajudar o seu antigo partido, para simpatizar com a direita (sua origem política) e para favorecer novos agentes políticos. Não o fez. Por bondade ou circunstância, por necessidade ou dever. A verdade é que não o fez. O Governo, enquanto lhe convinha, agradeceu. Agora, com as crises dos últimos dias, tudo pode acontecer. Mas o clima de colaboração acabou. Para mal de todos nós. E para bem dos que procuram a felicidade deles na instabilidade dos outros.

 

A crise política e governamental das últimas semanas está directamente ligada a esta questão das relações entre órgãos de soberania. A tal ponto que o Primeiro-Ministro sugeriu que as futuras nomeações de membros do governo sejam precedidas de um escrutínio especial. Esta proposta fica a constar definitivamente do anedotário inesquecível da política portuguesa. O Primeiro-ministro quer criar um sistema de controlo da moralidade, das biografias, dos currículos, do registo criminal e do cadastro dos membros do governo que propõe e que o PR poderá ou não aceitar, ficando assim definitivamente co-responsável. O assunto não merece sequer ser analisado.

 

Os acontecimentos na origem da crise de governo não são episódicos e triviais. São coisa séria, para dizer o menos. Não são fortuitos e excepcionais. Fazem parte de hábitos e de costumes. São as regras vigentes. Servem redes criadas e alimentadas. Constituem sério veneno contra a democracia. Não se tratam com truques e armadilhas.

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Público, 7.1.2023