domingo, 30 de agosto de 2009

O novo “Atlas de Portugal”

.
É COM MUITO PRAZER e honra que me associo ao lançamento deste Atlas. Apesar de sociólogo, sempre tive um especial afecto pela geografia (e pela sua prima direita, a demografia...), de que sou infelizmente apenas um amador. Tenho nas minhas estantes dezenas de Geografias e Atlas, livros que nunca me canso de ler ou ver e que ajudam a perceber melhor as difíceis relações entre o permanente e o mutável, entre as condicionantes e a liberdade ou entre as continuidades e as rupturas.

Cumprimento e felicito o Instituto de Geográfico Português e os seus dirigentes, assim como a equipa de colaboradores coordenada pela Professora Raquel Soeiro de Brito e pelos Professores Rui Pedro Julião e José Norberto Fernandes.

Permitam-me uma palavra especial para a Professora Raquel Soeiro de Brito. Conheci-a na Universidade Nova de Lisboa há quase trinta anos. Sem que ela saiba, leio-a há décadas. Desde a monografia sobre a ilha de São Miguel, até ao seu recente “Portugal, Um perfil geográfico”, passando por uma recente introdução geográfica à História de Portugal, neste caso na obra organizada por José Mattoso e por um trabalho sobre a mudança no Alentejo. Há muito que ela faz parte da minha galeria de honra.

E gostaria também de evocar um mestre, um dos académicos portugueses que mais respeito, Orlando Ribeiro, que ficaria contente se estivesse aqui hoje. A sua obra é talvez a minha mais perene companheira de sempre: durante os meus estudos, no exílio, no regresso a Portugal, nas minhas viagens, na investigação e na docência.

E para terminar estas alusões pessoais, quero referir a presença do meu amigo e colega João Ferrão. Foi uma boa notícia sabê-lo membro do Governo. Não só por ser quem é e pelas suas qualidades, mas também por ser um Geógrafo. É uma disciplina que faz falta aos Governos. Aos nossos, faz mesmo muita falta.

Não me compete, ou antes, não tenho competência para me referir, com pormenor e rigor, aos caminhos da Geografia. Nem aos da Cartografia. São minhas companheiras, ajudam-me e até são objecto de fruição estética, o que é raro em disciplinas académicas. Mas não as conheço o suficiente para sobre elas discorrer. Sinto, todavia, que uma evolução tem marcado a disciplina nestas últimas décadas. Evolução essa que me sugere três observações. Duas gratificantes e uma dolorosa. Começo pela última.

Os actuais e recentes rumos que tem seguido a evolução do sistema de ensino português, nos níveis básico e secundário, não são muito faustosos para a Geografia. Nem a Geografia, nem, aliás, outras áreas. Há programas de certos anos e disciplinas que se propõem dissolver a Geografia em abordagens “multidisciplinares” e “transversais” (supondo que sabemos o que isto quer dizer...). Não creio que isso seja vantajoso. O desenvolvimento do conhecimento exige um razoável domínio dos sentidos do tempo e do espaço. Da História e da Geografia. A sua dissolução em estruturas aleatórias organizadas à volta de ideias ou de conceitos “globalizantes” (como se diz hoje...) é, a meu ver, negativa. O resultado está muitas vezes à vista. Os conhecimentos de geografia, portuguesa ou mundial, física ou humana, dos estudantes que chegam às Universidades, são rudimentares, imprecisos e deficientes. Para não dizer que muitos são absolutamente ignorantes.

Já se tinha perdido, nem sempre por boas razões, a “aprendizagem de cor”, a simples memorização. Os apeadeiros, os afluentes e as montanhas papagueados por ordem já desapareceram. A memorização, tantas vezes negativa, tem no entanto virtudes. Ora, este método teria sido substituído por uma abordagem que privilegiaria a compreensão. Creio sinceramente que se perderam as duas vantagens e se ganharam os dois inconvenientes. Os estudantes não sabem de cor e não compreendem a complexidade geográfica. Estou mesmo convencido de que perderam boa parte do sentido de orientação na região, no país, no continente e no planeta. Não digo, de modo algum, que os estudantes de Geografia não devam associar os seus conhecimentos aos da História, da Sociologia, da Demografia e de outras disciplinas. Devem, com certeza. É indispensável. Há muito que a Geografia, pela sua própria natureza, não cabe dentro das suas fronteiras. O que me preocupa é o efeito de dissolução, porque se perde a capacidade de aquisição de conhecimentos básicos e instrumentais. Só se pode ambicionar à dialéctica da inter e da multidisciplinaridade, quando se dominam os conceitos e os instrumentos de uma disciplina.

Os progressos da Geografia nas Universidades têm-me parecido, pelo contrário, notáveis. Desenvolveram-se os estudos, cresceu o número de doutorados e de investigadores, aumentou o ritmo de publicação de trabalhos de toda a espécie. Não foi fácil, sei-o, ficou a dever-se a muitos e extraordinários esforços, ou por vezes sacrifícios, de profissionais e cientistas. Como a Geografia não parece ser uma disciplina dita “de sucesso”, daquelas que de modo evidente servem para ganhar fortunas, para aumentar a produtividade ou para fazer crescer as receitas fiscais, a Geografia teve que fazer muito com pouco. Tal fica a mérito destes cientistas.

Apesar destes progressos, demorou algum tempo até termos, acessíveis a todos, académicos, estudantes, profissionais e o grande público, as obras de base contemporâneas e vivas. Ainda há pouco tempo se usavam os manuais de Orlando Ribeiro e Lautensach, os Atlas de Amorim Girão e outros vagamente actualizados... Só recentemente começámos a ter acesso a obras de conjunto, de geografias do país actualizadas. Poderia citar numerosos. Raquel Soeiro de Brito publicou trabalhos de síntese. Agora, está em curso de publicação uma obra vasta, coordenada por Carlos Alberto Medeiros e na qual colaboram alguns dos conhecidos geógrafos, incluindo das novas gerações. Vários volumes de divulgação estão também disponíveis. Faltava o Atlas, que agora temos.

Parece, finalmente, que as saídas profissionais para os geógrafos têm registado algum aumento. Não sei se suficiente, mas a notícia, mesmo incerta, é boa. Espero que isto queira dizer que tanto a Administração Central como as Autarquias têm vindo a sentir a necessidade de se socorrerem destes especialistas. E que isto se traduza em mais cuidado com o território, mais atenção ao desenvolvimento urbano, mais preocupação com a natureza e mais cautela com o ambiente.

A Geografia é uma ciência cada vez mais indispensável. A dimensão das grandes obras humanas exige-o. Estradas, barragens, grandes conjuntos habitacionais, planos directores municipais, reorganização agrícola, regadios, aproveitamentos turísticos de grande escala e explorações económicas de toda a espécie já não se podem fazer sem o conhecimento e o cuidado próprios dos geógrafos. Tantos disparates foram cometidos nestas últimas décadas! Tantos erros, cujas facturas pagamos hoje! Tanta fealdade espalhada pelo país! Tanta desordem de que sofrem sobretudo os menos afortunados! Tanto desperdício, diante dos nossos olhos, num país pobre que deveria bem aproveitar os seus recursos! O geógrafo não é seguramente o santo milagreiro para tantos males. Mas se ele estivesse presente sempre que importa, talvez não tivéssemos hoje tanta razão de queixa.

Portugal mudou muito. Este Atlas dá-nos o retrato do momento a que chegámos. Como não é também um Atlas histórico (do que tenho pena...) e limita quase sempre a evolução à última década, nem sempre temos a visão dessa mudança. Mas ficamos agora na posse de um retrato actual, de um panorama do país que fizemos. Os que têm em mente o que éramos há vinte ou trinta anos sabem reconhecer as diferenças. Portugal mudou muito, repito. Não só as pessoas, os comportamentos e as relações sociais, mas também a paisagem.

As pessoas mudaram. São mais velhas, duram mais tempo, vivem mais sozinhas e já são em maior número do que os jovens. A natalidade diminuiu, a fecundidade também, assim como a dimensão média das famílias. Os portugueses têm menos filhos, reúnem-se em famílias mais pequenas, mas também de vários tipos. A mortalidade infantil baixou drasticamente, naquele que foi um dos desenvolvimentos mais notáveis das últimas gerações. Os portugueses deixaram o interior e dirigiram-se para o litoral e as grandes áreas metropolitanas. Abandonaram a agricultura, a silvicultura, a extracção de minério e as pescas. Trabalham sobretudo nos serviços, na construção, na administração e, também, menos, na indústria. Continuam a emigrar, mas muito menos do que no passado. E passaram a receber, na que foi uma das maiores novidades da história recente de Portugal, centenas de milhares de imigrantes estrangeiros. Com talvez mais de 6% de estrangeiros, além dos naturalizados, a população portuguesa é ou começa a ser uma população diversa e que forma uma sociedade plural. As novas gerações contemporâneas não se dão conta da mudança ocorrida a este propósito. Mas a verdade é que esta será uma das mais radicais transformações sociais e que rompeu com a tradição de pelo menos dois ou três séculos. No continente, ou na metrópole, Portugal já foi país de variedade, mas o Portugal moderno tinha sido de crescente homogeneização étnica, cultural, linguística e religiosa. Eis que está diferente. Facto que, mau grado os sérios problemas que causam sempre as grandes migrações, teve já a vantagem de rejuvenescer e “refrescar” a população residente. Sem esquecer que é provável que haja mais liberdade numa sociedade plural.

Outra alteração decisiva, que o Atlas talvez não exiba imediatamente, mas que lá se percebe, foi o encurtamento de distâncias. Apesar de pequeno, Portugal era, há três ou quatro décadas, um país de difícil comunicação. E de reduzida mobilidade entre regiões. Muitas comunidades viviam isoladas ou, pelo menos, separadas. As instituições e os serviços nacionais (como a educação, a saúde, a segurança social, os correios, a energia, a água, o saneamento...) asseguravam mal a cobertura de todo o território e de toda a sociedade. Os residentes de uma região conheciam mal ou não conheciam de todo as outras regiões. Quantos Transmontanos ou Beirões não morreram, já na segunda metade do século XX, sem nunca ter visto o mar ou visitado Lisboa? Eis que também esta separação se pode considerar terminada. O Estado de protecção social e os serviços públicos cobrem todo o país. As actividades secundárias e terciárias incentivaram a mobilidade geográfica e social. As migrações, tanto internas como externas, misturaram as populações. Até as guerras ultramarinas contribuíram para essa mistura. E, finalmente, o desenvolvimento das vias de comunicação, a começar pelo das estradas, fez um país diferente. Ou, se quiserem, um modo de viver diferente no mesmo país.

Finalmente, a urbanização intensa constitui uma das mais significativas mudanças destas últimas décadas. Impressiona a rapidez com que foi feita. Estudos comparativos mostram que, de facto, em Portugal, aquela se processou a um ritmo acelerado. São várias as razões para esse fenómeno. Primeiro, o seu carácter tardio. Segundo, a vaga de industrialização ocorrida desde o início dos anos sessenta, parcialmente ligada à participação portuguesa na EFTA. Terceiro, a pobreza instalada nos campos e que esteve também na origem das migrações internas. Quarto, as guerras no Ultramar retiravam homens ao sector primário, que, terminada a sua missão, já não regressavam ao campo ou à aldeia, ficavam-se pela cidade. Quinto, o regresso de algumas centenas de milhares de repatriados de África e que, em grande maioria, ficaram nas áreas metropolitanas e nas cidades. A estes factos poder-se-ão acrescentar outros de mais difícil avaliação, mas que, creio, exerceram real influência. Tanto a fundação do Estado democrático como a instabilidade política vivida durante vários anos, após a revolução de 1974, terão sido estímulos à urbanização. A criação do poder autárquico democrático exerceu influências no mesmo sentido. Finalmente, o clima de permissividade e complacência que reinava (ou reina ainda?...) a propósito da construção de habitações também pode ter funcionado como incentivo à migração interna.

A rapidez da urbanização não pode ser separada das circunstâncias históricas em que se fez. Circunstâncias essas que explicam a desordem urbanística, a falta de planeamento, a deficiente rede de transportes públicos e o desenvolvimento da construção ilegal, incluindo das barracas e dos alojamentos precários de toda a espécie. A tudo isso, acrescentem-se as consequências da emigração de portugueses para o estrangeiro. Centenas de milhares mandaram, tarde ou cedo, construir as suas casas nas aldeias e nas cidades de província e com isso contribuíram igualmente para o surto acelerado de urbanização. Depois da fundação da democracia, também o poder autárquico, por vocação e por interesse político, deu enorme estímulo à urbanização, nomeadamente através das obras de infra-estrutura (saneamento básico, água canalizada, electricidade, telefones, etc.) que já faziam falta.
Uma vez mais, este não é um Atlas histórico capaz de revelar a cartografia dessa mudança que ocorreu em cerca de vinte ou trinta anos. Mas o retrato que nos dá, “à chegada”, permite perceber as causas e as consequências desta urbanização rápida.

Em muitas áreas de Portugal, temos hoje um país feio e desorganizado. Um país desconfortável e agressivo. Não se trata apenas de uma questão estética, tão discutível, é sobretudo um problema de qualidade de vida e de bem-estar. Assim como de desperdício de recursos e de destruição de equilíbrios. As áreas metropolitanas, sobretudo os chamados arredores e subúrbios, são frequentemente localidades sujas e pouco higiénicas, desumanizadas e até violentas. A construção, legal ou ilegal, ou antes, para ser mais preciso, ilegal mas depois legalizada, dominou a urbanização. Dos proprietários aos promotores e dos construtores aos autarcas, todos se coligaram para fazer crescer na desordem as áreas metropolitanas e as cidades de média dimensão. Desordem que até do ponto de vista estatístico se faz sentir. Com efeito, não parece possível determinar com algum rigor, a população urbana portuguesa. O Atlas faz-se eco dessa dificuldade. Não se pode confiar numa estimativa real da população urbana e respectiva distribuição. Não é possível fazê-lo com os critérios oficiais reconhecidos. As cidades “oficiais” podem ter 1.000 ou 2.000 habitantes... E há vilas com dezenas de milhares que não estão classificadas como cidades. Por outro lado, os limites geográficos das populações e dos aglomerados urbanos não estão definidos. Em conclusão, não é possível cartografar ou representar a população urbana... Além de que, do ponto de vista sociológico, os critérios territoriais e demográficos não são suficientes. Com efeito, a vida urbana, hoje, invadiu a sociedade rural.

Senhoras e Senhores, basta de palavras. Um Atlas deve ser visto. Manuseado. Estudado. Consultado. E, esperemos, renovado e desenvolvido no futuro. Vejam o Atlas que já têm ou vão ter nas suas mãos. Sintam o prazer de ter, a partir de agora, uma nova e actualizada obra de referência. Clássica sob vários pontos de vista, mas inovadora também e aberta aos novos conhecimentos. Vejam, por exemplo, o espaço dedicado ao mar Atlântico, elemento formador da nacionalidade e condicionante histórica de excepcional importância. Vejam também os capítulos modernos, se assim lhes podemos chamar, sobre as políticas públicas, o desenvolvimento regional, a ecologia, a economia, as comunicações internas, a habitação e as relações externas. Sem esquecer as impressionantes imagens do país dos incêndios florestais. Partilhem com outros o orgulho de termos à mão obras de referência, de base e eruditas, daquelas que duram e não se perdem nas correntes da superficialidade.

Uma vez mais, parabéns aos seus autores e promotores. Parabéns e obrigado.
-
Instituto Geográfico Português - Sociedade de Geografia
Lisboa, 29 de Março de 2006

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Luz

.
Outro plano do espelho de água do rio Douro

domingo, 23 de agosto de 2009

Do livro e da leitura

.
QUANDO OS ORGANIZADORES
deste congresso (*) me convidaram a participar, a minha resposta foi rápida e afirmativa. Além da personalidade dos editores em causa, a palavra “livro” bastava. Só mais tarde, depois de os ouvir e de ver o programa de trabalhos, tive uma sensação estranha, confirmada, aliás, por artigos publicados em jornais e nos quais se fazia uma espécie de radiografia económica de um moribundo: o sector do livro. A estranha sensação resume-se em poucas palavras: será que vamos festejar um animal em vias de extinção? Será que o livro, o editor, o livreiro, para não dizer o escritor, cabem nessa designação? Não seria surpresa total, neste mundo em que as catástrofes se sucedem, da camada de ozono às pegadas de dinossauro, das espécies vegetais ameaçadas pelas auto-estradas às gravuras paleolíticas ou ao simples artesanato.

Depressa me convenci que a sensação era passageira. O livro veio, há muito, para ficar. E nada o retirará da nossa vida em comum. Vivemos, isso sim, uma transição difícil, na qual as reconversões são penosas e as mortes inevitáveis. Não só os editores e os livreiros terão de mudar, mas também os escritores e os leitores. Quer dizer, é o livro que está em mudança. E mudará tanto melhor, quanto soubermos fazer o novo e guardar o essencial.

Sei que não sou particularmente conhecido pelo meu optimismo. Por isso quase me sinto obrigado a argumentar a favor do que acabo de dizer. É muito simples: atrás de tudo, ou depois de tudo, está um livro. Antes e depois da música, do cinema, da televisão, da arquitectura, da pintura, da informação e da ciência da natureza, está um livro.

Se um espírito mau destruísse, por atacado ou sector por sector, toda a pintura, toda a arquitectura, todos os monumentos, toda a música, toda a ciência, toda a arte militar... Tudo, menos o livro. Se isso acontecesse e diante do desastre, talvez fosse possível tudo reconstruir, com o livro. Seriam cópias, é certo, nada seria exactamente como dantes, mas tudo recomeçaria. Graças ao livro. Ficaríamos mais pobres. E perderíamos uma parte da nossa humanidade. Mas nada seria irreparável. Pela simples razão de que tudo estava nos livros. Através do livro, seria possível recomeçar. Ou reproduzir.

Ora, se o mesmo espírito mau destruísse todos os livros do mundo, é bem provável que a humanidade não conseguisse recomeçar. Nem talvez sobreviver, tal como a conhecemos. Do livro, temos tudo a esperar, a novidade e a tradição. A descoberta e o património. A conservação e a inovação. Não foram os livros que transformaram o mundo, nem que o organizaram. Mas aqueles que o conseguiram, fizeram-no também por intermédio do livro. Nem sempre para melhor, mas, quando foi para o pior, livros houve que ajudaram depois a humanidade a corrigir.

O que é imperecível vem nos livros. Como nos dizia, há cerca de meio século, Alain Resnais, no seu “Tout le savoir du monde”, sobre o labirinto de cultura que era a Bibliothèque Nationale de Paris. E até o “Mapa do Genoma Humano”, um prodígio dos computadores, vai acabar em livro, talvez o mais longo e secreto livro do mundo. Nem as pedras ou a terra, muito menos os cofres, garantem este jeito imorredoiro do espírito humano. Não acredito pois que o livro esteja em vias de extinção. Enquanto houver humanidade, livros haverá. Não pelo fetiche que uns adoram, não pelo cheiro que alguns referem, não pelo manuseamento que outros citam, não pela lombada de que tantos gostam, não pela estante que muitos exibem, mas simplesmente pelo espírito que os fez e pelo espírito que os procura.

Se não está em vias de extinção, por que razão há alarme e inquietação? A resposta parece simples. Porque as modas actuais contrariam a tradição do livro. Porque as economias não se compadecem com esta estranha criatura. Porque a mercadoria se sobrepõe à obra de arte. Porque a rapidez da vida quer eliminar o tempo de leitura. Porque o efémero combate o duradoiro do livro. E até porque muitos que deveriam ser amigos do livro se revelam ser seus adversários. Daqui resultam as crises de produção, de distribuição e de consumo do livro. Mas também as de concepção e de leitura.

Tanto quanto percebo, não há, em Portugal, entendimento quanto às estatísticas do livro. Os números privados e os públicos estão longe de coincidirem. E não há estatísticas credíveis de venda e de consumo. Teremos de nos ficar pelos indicadores de produção. De qualquer modo, seguindo os meus dados, é possível detectar uma tendência de médio a longo prazo: gradual aumento do número de títulos editados (originais portugueses e traduções), mas, mau grado uns acréscimos marginais, uma relativa estagnação das tiragens totais, num contexto de permanente aumento de custos. Nos últimos anos, teríamos atingido valores da ordem dos dois a três volumes editados anualmente por habitante (eu disse volumes, não disse títulos). Dois a três! É pouco, muito pouco. É menos do que em qualquer outro país europeu. Mas, embora isso não seja uma consolação, não é apenas um problema da edição de livros. Com efeito, se olharmos para os restantes indicadores de cultura (tanto na produção como no consumo), verificaremos uma situação semelhante.

O primeiro paralelo a estabelecer é, evidentemente, com a imprensa, os jornais e restantes periódicos. Estamos, em relação à Europa, atrasados várias décadas, muitas décadas. Pior ainda: não creio que estejamos apenas atrasados, dado que essa ideia poderia implicar que fosse possível, com tempo, cobrir a distância, recuperar o atraso, como tal se tenta fazer nos rendimentos ou na escolaridade. Na verdade, por várias razões, algumas delas controversas, fazemos parte de uma classificação diferente. Os portugueses lêem menos jornais e periódicos do que qualquer país da União. Cinco a dez vezes menos, conforme os países. E tenhamos consciência de que as chamadas taxas de leitura desses países já eram o que são hoje há várias décadas. Tal como as portuguesas. Quer isto dizer que se pode quase admitir que existe um patamar de leitura de imprensa e de livros que o crescimento económico não parece conseguir elevar. Em muitos sectores, os portugueses recuperam atrasos ou, melhor dizendo, encurtam a distância que os separa de outros povos. Mas tal não é o caso quando olhamos para a leitura e a circulação de livros e periódicos.

Como sabem, diversas são as razões evocadas para este fenómeno. O analfabetismo crónico é uma explicação. O elevado preço dos livros e dos jornais será outra. O catolicismo oral e mediado pelo sacerdote, em oposição ao protestantismo sem sacerdote e de leitura bíblica, é também recordado. A tão precoce unidade nacional, a homogeneidade étnica e cultural e a unicidade linguística são ainda citadas como responsáveis pelo analfabetismo, ou antes, pela não necessidade de alfabetização. A pobreza geral, a industrialização tardia e a urbanização lenta poderão também ser referidos. A falta de esclarecimento das autoridades políticas e dos dirigentes nacionais poderá ter contribuído para esta situação, bastando recordar que, há menos de cinquenta anos, se discutia ainda, na então Assembleia Nacional, os méritos da alfabetização em oposição às virtudes da ignorância e aos perigos e ameaças que espreitavam ao virar da esquina de um tímido esforço de escolarização.

Os estudos e as investigações que conheço não concordam com a influência predominante de um destes factores. Historiadores há que têm demonstrado que o factor A ou B não é responsável pelo analfabetismo, dado ser fácil encontrar, em regiões portuguesas ou estrangeiras, demonstrações contrárias. Mas é possível que todos aqueles factores tenham desempenhado uma função. O mais estranho é que, com a escolarização universal, com o crescimento económico (pujante nos anos sessenta, sólido a partir de então), com a abolição de todas as censuras, com a fundação do Estado democrático e com a competição partidária por políticas activas de promoção da cultura (do livro e do jornal), não tenhamos assistido a uma evolução nitidamente ascendente dos indicadores de leitura.

A todas aquelas razões enunciados, quero acrescentar uma hipótese que observações superficiais confirmam, mas de cuja veracidade podemos sempre desconfiar. A leitura de livros e de jornais é um hábito, uma necessidade cultural e uma exigência profissional, relativamente independente dos níveis de desenvolvimento económico. Por outras palavras, a leitura de livros e de jornais, durante os séculos XIX e XX, não aumenta necessariamente com o Produto Nacional Bruto. Nem nas mesmas proporções que a alfabetização e a escolarização. As comparações entre Portugal, a Espanha, a Grécia e o Sul da Itália sugerem uma evolução muito diferenciada, não proporcional ou não ligada às taxas de crescimento económico e de escolarização. Quer isto dizer que há factores explicativos, designadamente históricos, que podem influenciar de modo determinante os níveis de leitura.

No caso português, para retomar a minha hipótese de trabalho, quando foram atingidos níveis razoáveis de escolaridade e quando as taxas de analfabetismo começaram a descer abaixo dos 40 a 50 por cento, já existiam a rádio e sobretudo a televisão. Para a maioria dos portugueses, a palavra escrita nunca foi a principal fonte de informação cultural, profissional, quotidiana, familiar ou política. A televisão instalou-se em Portugal e cobriu o território antes de a escola o ter conseguido. A partir dos finais dos anos cinquenta, a televisão passou a ser um factor de unificação cultural dos portugueses mais poderoso e eficiente do que a escola. Até porque esta não compreendia os adultos ou os idosos e apenas acolhia as crianças e os adolescentes, nem sequer todos, durante um muito curto período de tempo. Desde então, consolidou-se o lugar da televisão como fonte primordial de informação (e de entretenimento e de consumo cultural), sem que nunca antes a leitura de livros e de periódicos se tivesse generalizado ao país, às regiões e às classes sociais. A leitura de jornais e de livros nunca foi, em Portugal, uma actividade de massas, nem sequer das classes médias.

Ficarmo-nos por aqui seria fonte de equívocos. Os indicadores de leitura e de produção de texto escrito não são uma mácula única na sociedade portuguesa. Com efeito, têm como paralelo imediato todas as outras actividades culturais, tanto do lado do consumo, como no da produção. A frequência de museus, de teatros e de cinemas, a circulação de jornais e periódicos, o consumo de discos e de vídeos, a encenação de peças de teatro, a realização de concertos de música clássica, a produção de espectáculos de ópera e a consulta de livros em bibliotecas públicas: em todos estes indicadores, Portugal tem um seguro último lugar. Sendo todavia certo que a evolução de cada indicador tem o seu significado próprio. O cinema, por exemplo, depois de um longo decréscimo de décadas, conhece recentemente uma recuperação curiosa. A ópera mantém-se a níveis muito reduzidos, com um público que parece ser constante, para não dizer o mesmo, ao longo dos tempos. O teatro está em decréscimo geral. A música clássica em ligeiro aumento. E a frequência de bibliotecas encontra-se quase sem alteração, enquanto as visitas aos museus aumentaram consideravelmente nas últimas décadas. Assim é que a leitura, em Portugal, sempre em crise séria de reduzida produção, de mercado estreito e de público muito seleccionado, tem paralelos. Uma vez mais, não se trata de consolação, mas apenas de um esforço para ter uma visão mais larga.

Retomemos a relação entre o desenvolvimento económico, a alfabetização e a escolarização, por um lado, a leitura de livros e de jornais, por outro. O que acima disse parece traduzir-se na afirmação de que não existe qualquer relação entre os fenómenos citados. Nada menos verdade. Com efeito, sem correlações sofisticadas, é possível estabelecer o paralelismo: os países mais desenvolvidos economicamente são os que exibem níveis superiores de escolarização. Também são aqueles em que se lêem mais livros e se imprimem e lêem mais jornais. Basta recordar, por exemplo, que, em Portugal, a população dos 20 aos 60 anos que completou pelo menos a escola secundária (22%) é cerca de metade do que se verifica em Espanha e na Itália; menos de metade da Grécia e da Irlanda; e um terço ou um quarto dos restantes países europeus! E a população portuguesa que tenha completado um curso superior (9%) é de um terço da maioria dos países europeus e cerca de metade da Grécia e da Espanha. Ora, em qualquer destes países se lê mais do que em Portugal. Parece pois possível admitir-se que existe alguma correlação entre o grau de escolaridade e a apetência pela leitura.

Nesta altura da minha exposição, parece haver séria contradição. Ainda há pouco vos convidava a acreditar que talvez não houvesse uma relação clara e automática entre desenvolvimento económico, escola e leitura. Agora, acabo de afirmar o contrário. Eis que necessita de esclarecimento. Numa perspectiva geral, histórica e comparativa, não duvido que exista esta correlação. Sendo que, por acréscimo, não nos devemos limitar ao rendimento por habitante e aos anos de escolaridade. Muitos outros factores intervêm, como a religião, os regimes políticos, a composição étnica das populações, assim como as suas tradições culturais e linguísticas. E até as necessidades industriais e militares tiveram uma influência nos graus de literacia.

Esta perspectiva, todavia, pode não encontrar tradução automática em situações particulares, designadamente em curtos períodos de poucas décadas e muito especialmente quando se olha para um só país, comparando-o consigo próprio. Como é o caso de Portugal. O progresso da educação começou a tornar-se evidente, quanto mais não seja do ponto de vista quantitativo, a partir do fim dos anos cinquenta, princípio dos sessenta. Esta última década será a da expansão acelerada do sistema educativo. Não ainda suficiente, não universal, mas a ritmo bem superior aos anos anteriores. Algumas mudanças políticas ajudaram. Mas também a pressão da indústria e dos serviços a fazer-se sentir. A guerra colonial e as necessidades militares também contribuíram para o fomento da instrução. E o que permitiu este processo foi o crescimento económico desse período, inédito na história do país, aliás também não repetido depois. A partir daí, todas as forças impeliram a educação e a escolaridade: a indústria e os serviços, os investimentos externos, a pressão das novas classes médias em crescimento e uma nova consciência política emergente. A revolução de 1974, o sistema democrático, a competição eleitoral, a abertura cultural e a consciência dos novos direitos sociais fizeram o resto. Até finais da década de oitenta, tinha-se atingido a escolarização universal e a frequência do ensino superior conhecia um fenómeno muito parecido com a explosão.

Ora bem, se prestarmos atenção aos números e aos indicadores, a circulação da imprensa escrita, a produção livreira e a leitura em geral não tiveram uma evolução comparável ou proporcional. Registam-se alguns acréscimos, mas insignificantes. E aqui teríamos, em linhas gerais, não a excepção portuguesa, mas a maneira particular como, em espaço limitado e em tempo reduzido, um processo pode contrariar a que será a tendência geral. Já sugeri uma explicação, uma entre outras, para este fenómeno. O tempo histórico em que se realizaram a alfabetização e a escolarização da população marcou a sua especificidade. Na concorrência com outros meios de comunicação e informação de massas, para os quais a literacia não era necessária, o texto escrito ficou a perder. Se a alfabetização dos portugueses tivesse sido levada a cabo duas ou três décadas antes, talvez os hábitos de leitura fossem hoje diferentes. Eis uma conjectura para a qual não tenho qualquer demonstração.

Avancemos um pouco mais. A explicação da televisão e dos meios de comunicação de massa pode ser verdadeira. Mas não será certamente a única. Creio que haverá outros factores. Um deles será o método pedagógico em vigor ao longo destas últimas décadas, justamente aquelas em que se processou o crescimento quantitativo fenomenal do sistema educativo. Método pedagógico, por um lado; mas também a natureza ou o carácter da escola que se pretende construir desde então. É minha convicção que a escola, tal como se tem desenvolvido nos tempos recentes, contraria explícita e deliberadamente o hábito e a necessidade da leitura.

A escola actual resulta em grande parte da crítica severa que foi feita à educação do “antigo regime”, à portuguesa, e, noutra acepção, do “ancien régime”. A severidade, as punições físicas, o culto da erudição, a repressão, o primado da memória sobre a compreensão e a inteligência, o elitismo e o carácter classista da instituição, dos programas e dos métodos foram sistematicamente escalpelizados. Fez-se, durante anos, a crítica da “educação livresca” (reparem bem, “livresca”...). Assim como se fez a apologia da “escola para a vida”, da “escola para a vida prática”. As escolas que temos hoje resultam em boa parte dessa crítica, por vezes justa. Mas a alternativa, hoje reinante, não está isenta de defeitos graves. O princípio do “prazer de aprender” substituiu o do esforço e do trabalho. A “vida prática” e os utensílios imediatos para a sobrevivência afastaram a ideia de que existe um património cultural da humanidade que importa conhecer. A “cultura popular” e a “sabedoria do povo” denegriram e combateram a erudição. A chamada “alta cultura” foi considerada um malefício da história. Instaurou-se uma espécie de “hedonismo educativo” tendente a demonstrar que o divertimento e as actividades lúdicas eram melhores instrumentos de aprendizagem do que o sacrifício, o treino e a concentração. Apesar do poder intimidante que esta ortodoxia, como todas as outras, exerce sobre as consciências, os resultados destas novas modas são hoje visíveis e têm já sido objecto de observação. Os progressos da educação nem sempre são progressos de literacia. O crescimento das escolas e da escolarização não tem dado resultados proporcionais para a cultura e o conhecimento. O desperdício de recursos e de energias que tem representado esta nova orientação pedagógica e educativa é incalculável. Com a água do banho, deitou-se fora a banheira e o bebé.

O livro foi uma das principais vítimas desta nova escola. Todo o sistema educativo parece hoje concebido para reduzir ao mínimo a consulta do livro. Pela profusão de imagens e de fórmulas coloridas, os próprios manuais escolares fazem um esforço para se parecer cada vez menos com livros; e, pela arte das citações simplificadas e simplistas, para os substituir. Elogiam-se os métodos de ensino que dispensam o livro, das brincadeiras aos passeios, dos trabalhos de grupo aos projectos, sem falar nos resumos fotocopiados. Apresenta-se o computador como um sucedâneo do livro. Isenta-se qualquer aluno da leitura morosa e concentrada. Chega a lançar-se o anátema contra os trabalhos de casa, de que a leitura de livros faz parte essencial. Depois de se ter considerado, justamente, que a posse de livros e a existência de bibliotecas em casa da família eram traços de desigualdade, quase se concluiu que um ensino sem livros era a melhor maneira de combater essa desigualdade! Fez-se do livro um objecto arqueológico de atávicas reminiscências, a fazer pensar no pior de uma organização opressiva e repressiva.

É nesse sentido que digo que a escola moderna é o pior inimigo do livro. Porque é esta escola que dá legitimidade a uma educação que dispensa o livro. Porque é esta escola que transformou o livro num objecto de cultura de elite. E porque é esta escola que afirma que a educação democrática se pode fazer sem livros e sem esforço. Poderão dizer-me que confio excessivamente nas virtudes da escola e da educação. Tal como fazem milhões de compatriotas nossos que, diante de problemas difíceis, das filas de espera na saúde aos acidentes de automóvel, da limpeza das ruas ao consumo da droga, da evasão fiscal ao serviço militar obrigatório, não se coíbem de nos garantir que a solução está na escola e na reforma de mentalidades! Não! Não penso isso, nem gosto de confiar excessivamente na educação. E sei que a mentalidade é a última coisa a mudar. Não tenho a certeza que uma escola como a entendo seja um factor de expansão fenomenal da leitura. Mas creio firmemente que não seria, como é actualmente, um factor de aversão à leitura.

Acontece que uma escola sem livros, que admito perfeitamente poder existir, é uma escola desumana e de desprezo pelo património cultural e científico da humanidade. É uma escola que, a pretexto de igualdade social, provoca mais desigualdade, pois que faz do livro um bem de casta e um hábito de elite. E é sobretudo uma escola que, a pretexto do combate contra a “cultura livresca”, legitima esta detestável forma de ignorância. Será preciso recordar que um ministro da educação, convidado a participar numa iniciativa organizada por editores, perguntou, perplexo: “Mas que tem o ministério da educação a ver com isso?”. Ou será preciso recordar uma visita que fiz, há meia dúzia de anos, a uma das mais modernas e exemplares escolas portuguesas, que figura aliás na lista das melhores que se exibem aos organismos internacionais? Durante a visita da escola inaugurada há pouco mais de um ano, vi salas de recreio fantásticas, dezenas de computadores, auditório de cinema, excelente cantina, salas de estudo e gabinetes de professores. E uma quase luxuosa biblioteca, sem um único livro! A directora, interrogada, respondeu sem inquietação: “O dinheiro não chegou para os livros!”. Mais do que a fotocópia ou o computador, mais do que a televisão ou a discoteca, a escola é, para mim, o principal inimigo do livro.

E, no entanto, o livro está por trás de toda a cultura da humanidade. De toda a ciência. De todo o inconformismo. De toda a criação. Poderá o artista, o cientista ou o político exprimir-se de outro modo que não seja o da escrita. Poderão aprender com mestres e com viagens. Poderão tirar da observação e da experiência o essencial da matéria-prima e dos fundamentos do seu trabalho. E poderão recorrer incessantemente às novas tecnologias de informação. Mas não duvido um segundo de que uma parte essencial da sua inspiração, da sua formação e da sua humanidade vem dos livros; nem de que para lá irá uma parte não menos essencial da sua criação.

Apesar de ser uma espécie de escritor compulsivo e de quase todos os dias ter de escrever qualquer coisa, linhas ou parágrafos, apesar disso, permitam-me terminar citando alguém, o autor de “Uma história da leitura”, Alberto Manguel: não me é difícil imaginar que poderia viver sem escrever, mas não creio que poderia viver sem ler.
-
(*) I.º Congresso dos Editores Portugueses
Lisboa, Abril de 2001

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Luz - Jardineiro nos claustros do mosteiro de Alcobaça

.
É para mim o mais belo monumento português. As suas formas depuradas e o despojamento decorativo conferem-lhe uma beleza inesquecível. Até o contraste entre a fachada barroca e a igreja gótica são atraentes. Visito com frequência o mosteiro. Tenho visto progredir, muito lentamente, as obras de manutenção e restauro. Tudo poderia ser feito com mais meios e atenção. Ainda há enormes áreas a necessitar de trabalhos em profundidade. E uma grande parte do mosteiro propriamente dito, depois de ter tido vários usos (incluindo um lar de idosos...), não tem afectação. Infelizmente, as obras de conservação do património sempre foram secundárias nas prioridades. Além de que se distribuem os meios por todos e por tudo, sem concentrar no mais importante.

É em Alcobaça que se encontra uma das mais belas imagens da estatuária sacra (não sei se é portuguesa ou não, o que é indiferente). Trata-se de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição (ou será simplesmente de Santa Maria de Alcobaça?), de grandes dimensões, colocada no Cruzeiro, na nave central, perto do altar principal. Não conheço a sua história. Mas é sublime!”. (2002)

domingo, 16 de agosto de 2009

CITAC, meio centenário

CHEGUEI A COIMBRA em 1960. Ia estudar direito na qualidade de estudante voluntário. Isto é, trabalhava durante o dia na Fábrica Triunfo e estudava à noite ou quando podia. A dispensa de aulas era compensada com a obrigatoriedade de ir às “frequências”, espécie de exercícios ou de exames a meio do ano.

Rapidamente me aproximei do CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra). Por três razões simples. Gostava de teatro. Constava que aquele grupo era o mais “progressista”. E o meu amigo António Caeiro, da Régua, mais velho do que eu, levou-me pela mão. Com um argumento decisivo: nesse ano, começava a trabalhar com o nosso Círculo o Luís de Lima. Iria dar um Curso de Teatro aberto a todos os estudantes e encenar peças para o CITAC.

Passei a frequentar o CITAC ao fim da tarde e à noite, naquelas vetustas instalações nas caves da velha Universidade. Era um teatrinho pequeno, fantástico, talvez com 50 lugares. Ali passei o melhor do meu primeiro ano de Coimbra, com muito más consequências, pois claro, para os estudos.

Declamavam-se poemas, diziam-se partes de peças, o Luís de Lima ensinava um pouco de tudo: colocação de voz, presença em cena, movimentos, encenação, “acting” e mímica. Além disso, discutia-se tudo, teatro, política, cultura em geral e a vida associativa.

Logo no primeiro ano fui escolhido para representar uma peça, “A Rabeca”, de Prista Monteiro. Com outros três nos restantes papéis: o Pedro Sá Carneiro, o Virgolino Borges e o Lobo Fernandes. Nesse ano, o CITAC apresentava mais duas peças em um acto: “O Professor Taranne”, do A. Adamov (na qual desempenhou um grande papel o Francisco Delgado) e a “Conversação Sinfonieta”, do J. Tardieu. Foi nesse ano que fizemos uma primeira deslocação a Lisboa, ao Teatro Trindade, num espectáculo muito bem recebido pela crítica.

Nunca mais deixei o CITAC, a não ser em 1963, quando tive de me exilar no estrangeiro. Numerosos foram os dias em que, literalmente, vivia lá, de manhã à noite. No ano seguinte, tivemos novamente o Luís de Lima, que fez uma prodigiosa encenação do “Tartufo”, de Molière, (novamente Francisco Delgado no protagonista), com cenografia e guarda-roupa de um grande artista francês, André Acquart.

Em 1962/63, a PIDE, a Reitoria e o Governo proibiram que Luís de Lima voltasse. Foi um duro golpe. Tínhamos conseguido, com ele, dois anos fabulosos de aprendizagem e de encenação quase profissional. Era um ano muito difícil, a direcção da Associação Académica tinha sido suspensa, em Coimbra vivia-se um verdadeiro ano de ansiedade. Muitos tinham sido suspensos ou expulsos da Universidade. À última hora, conseguimos que um outro grande homem de teatro, António Pedro, viesse encenar uma peça durante o ano. Ele escolheu a “Fábrica universal de Robots”, do checoslovaco Karel Capek. Também participei. Foi o fim da minha “carreira teatral”.

Recordo os presidentes do CITAC daquele meu período: o Emílio Rui Vilar, o Mário Brochado Coelho e o José Manuel Beleza dos Santos. Eu fiz parte da direcção no meu segundo ano e fui presidente no terceiro. A seguir a mim, foi presidente o Octávio Cunha, que já fazia parte da minha direcção. Recordo também alguns dos actores e restante pessoal de teatro com quem fiz amizade: o Hélder Costa, a Eliana Gersão, o Germano Ferreira da Costa, o Fernando Assis Pacheco, o António Montez, a Hermínia Brandão, o Pedro Mendes de Abreu, a Graça Sampaio Cabral, o José Mário Branco, a Margarida Lucas, o Marcelo Ribeiro, o Eduardo Batarda, o Artur Cutileiro, o Mário Silva, o António Rocha, o António Lucena Sampaio e outros.

Naqueles três anos de Coimbra, aprendi política, fiz amigos, namorei muito e estudei pouco. Eu detestava a praxe, mas apreciava a vida associativa. O que de melhor ficou daquele período da minha vida foi o CITAC. Pelo teatro, com certeza, mas também por tudo o resto.

Foi através do CITAC que tive os primeiros contactos com a Censura e a PIDE. Nos nossos espectáculos (tanto aqueles em que representávamos nós, como nos integrados nos Ciclos de Teatro do CITAC que fazíamos todos os anos), era necessário reservar umas cadeiras para aqueles senhores. Quando queríamos encenar uma peça, era necessário enviar previamente várias cópias à Censura, que proibia ou autorizava com ou sem cortes. Por cada uma que autorizava, proibia três ou quatro. Assim foram proibidas, por exemplo, peças do Brecht, do Anouilh e do Luís Stau Monteiro, o “Godot” do Becket, ou “A bengala”, do Prista Ponteiro. Quando os Censores desejavam ser velhacos, cortavam partes de frases, palavras apenas, a fim de impedir que se fizesse a peça, sem que tivesse sido formalmente proibida.

Recordo ainda o modo como a Fundação Gulbenkian apoiava as nossas actividades. É um facto de que guardo uma doce e grata impressão. Apesar da nossa má fama (“todos do reviralho”, “todos comunistas”, um “alfobre de esquerdistas”), que aliás não era injusta, a Fundação sempre nos apoiou com generosidade. Pagava os encenadores, subsidiava os Ciclos de Teatro, financiava os custos com maquinaria e equipamento (luzes, órgão de luzes, gravadores, material de cena, etc.) e atribuía-nos mesmo fundos de maneio para despesas de todo o tipo, do guarda-roupa à caracterização. Pelo que recordo, as pessoas mais influentes nesse apoio eram, além de Azeredo Perdigão, Ferrer Correia e Vítor Sá Machado. As poucas vezes que vim a Lisboa, antes de regressar do exílio, era sempre por causa do CITAC e da necessidade de ir apresentar pedidos ou tratar de dossiers na Gulbenkian. Foi Sá Machado que sempre me recebeu.

Sabia na altura e confirmei mais tarde que a nossa boa reputação na Fundação provinha do facto de termos sempre feito trabalho com muita exigência, qualidade e seriedade. Parece que nos estou a dirigir elogios vaidosos, mas a verdade é que isso correspondia a uma atitude que o CITAC cultivava naquele tempo. Já era assim quando lá cheguei. E certamente que o Luís de Lima, trabalhador incansável, muito ajudou a desenvolver esse espírito. A boa arte e o bom teatro exigem trabalho, estudo, conhecimento e treino, não se compadecem com facilidades e improviso!

O CITAC foi uma verdadeira iniciação. Às artes e ao teatro, assim como à política. E aos costumes. No CITAC, cultivava-se o moderno, a vanguarda e o subversivo. Mesmo certas peças clássicas, como as de Gil Vicente ou de Molière, eram por nós representadas com uma tentativa de reinterpretação moderna. Vem a este propósito citar a “rivalidade” que existia entre o CITAC e o TEUC. Apesar de ambos estarem bem identificados com o que na altura se designava por “movimento associativo” (e que tinha também evidentes conotações políticas), as diferenças entre os dois grupos eram reais. O CITAC queria ser “moderno”, o TEUC era “clássico”. Além disso, nos bastidores, dizia-se descaradamente que o CITAC era realmente de esquerda e revolucionário, enquanto o TEUC era “só” democrático, eventualmente social-democrata. Estou convencido que estas últimas diferenças eram mais forjadas do que reais. A principal distinção era a do género de teatro que fazíamos. Mas nem sequer se pode dizer que o TEUC era “conservador” e o CITAC “progressista”, epítetos utilizados na altura, mas que não eram realmente verdadeiros. Por outro lado, o TEUC vivia muito sob a direcção permanente e longa de Paulo Quintela, professor catedrático de Letras (e um grande intelectual, tal como um dos maiores tradutores de poesia e teatro para a língua portuguesa). Era, justamente, a sua figura tutelar. Nós não conhecíamos tal situação. O CITAC vivia em autogestão estudantil, pode dizer-se.

Estas actividades culturais (que eram sempre muito mais do que isso) tinham na altura uma designação oficial: actividades circum-escolares. Era assim que o regime lhes chamava. E, aliás, tentava controlar, com a famigerada legislação do decreto-lei 40.900 e outras que se lhe seguiram. Por via do estatuto da Associação Académica de Coimbra, os estudantes tinham conseguido uma escapatória: alguns grupos pertenciam à Associação Académica, mas eram os chamados “organismos autónomos”, o que nos dava toda a liberdade. As nossas direcções eleitas, por exemplo, não tinham de ser reconhecidas e aceites pelo governo, o que era uma grande vantagem.

À distância, fica-me uma sensação indelével: o CITAC não era um intruso na vida académica. Não era uma “derivação”. Era simplesmente uma parte integrante e essencial da vida universitária. Infelizmente, hoje, pensa-se cada vez mais que as Universidades servem para fazer profissionais ou técnicos e que a sua missão é primordialmente a de ensinar e formar profissionais. Não é verdade. A função cultural das Universidades é pelo menos tão importante quanto a científica. Mas isso... são outros contos...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

domingo, 9 de agosto de 2009

Prémio Montaigne 2004 da Fundação Alfred Toepfer


A FUNDAÇÃO ALFRED TOEPFER
e o Júri da Universidade de Tübingen acharam por bem mencionar, em simultâneo, o meu trabalho na Academia, a minha actividade política passada e a minha colaboração permanente na imprensa. Fizeram-no com generosidade, mas sabem com certeza que são actividades que vivem, desconfiadamente, em coexistência conflituosa. A Academia e o jornalismo de opinião são feitos para se desentenderem. Feitos para uma coexistência pouco pacífica. Mais ainda quando vivem na mesma pessoa.


A liberdade é certamente condição de procura da verdade, mas os caminhos de uma e de outra são muito diferentes. Certo é que, no entanto, cada uma tem de prestar atenção às regras e às tradições da outra. A Academia não pode afastar-se excessivamente da condição real dos homens e das mulheres do seu tempo. Nem o jornalismo de opinião ou a política se podem permitir abster-se de rigor ou de veracidade. E nenhuma delas deve, se não queremos destruir uma das fundações do espírito humano e europeu, renunciar ao esforço pela isenção e pela responsabilidade.

Por mais que os cientistas modernos procurem demonstrar a unidade da razão e das emoções, do pensamento e dos sentimentos, a verdade é que o conflito persiste. A ciência e a política, a Academia e o jornalismo de opinião, constituem pares eternamente desavindos, mas condenados a estimularem-se mutuamente. E, sobretudo, a satisfazer a nossa infinita curiosidade.

Pela Fundação Alfred Toepfer e pela lista de laureados que me precede, este prémio é fardo pesado. Mas também pelo seu patrono, Montaigne, que não se ilustrou pelo espectáculo, pelas armas ou pelo dinheiro, muito menos pelo poder, nem sequer pelas laboriosas construções políticas europeias (umas vezes livres, outras despóticas), mas sim pelo pensamento e pela atenção prestada ao essencial, à natureza humana e à herança comum dos povos europeus que reside, primordialmente, no espírito. Nestes tempos de efémero e de circunstância, de banalidade e de lugar-comum, é-me salutar recordar Montaigne, mais interessado no permanente universal do que na futilidade passageira.

Uma Fundação alemã atribui, a um português, um prémio com nome de um grande pensador francês! Esta é a Europa de que gosto! Não certamente por me ter escolhido, mas porque traduz a mais rica das ideias europeias, a da sua pluralidade, da sua irreversível diversidade. Sabemos que, a este propósito, vivemos tempos quase dramáticos de decisão. Entre este ano e o próximo, os povos europeus serão chamados, uns directamente, outros por intermédio dos seus representantes, a redesenhar e votar os contornos institucionais da União Europeia. Seja qual for a decisão, sabemos que está em causa o confronto, sempre actual, entre a unidade e a diversidade. Apesar do cepticismo, quero esperar que se evitem os erros frequentes do império do mais forte e da uniformização excessiva. Nesta reside, não duvido, a maior ameaça contra o futuro desta formidável realização da humanidade que é a União em que poderemos viver.

Os portugueses têm uma especial e grata visão da Europa. Foi, durante décadas, terra de emigração e trabalho. Mas também de esperança no que nos faltava: prosperidade, cultura e liberdade. Quando, na década de setenta, fundámos um Estado democrático e pusemos termo às obsoletas guerras coloniais em África, corremos todos os riscos das revoluções e sentimos a vertigem de quem percorre caminhos desconhecidos, de quem rompe definitivamente com a História e com os espaços familiares do Atlântico, de África e da Ásia. Nessa altura, a Europa desempenhou novo papel, o de lar acolhedor. Sem favores, sem paternalismo, os europeus abriram portas que nos permitiram, depois de saber o que abandonávamos, conhecer um novo destino. É talvez essa a razão pela qual os portugueses, apesar de recearem os eventuais prejuízos, parecem não condenar o alargamento da União nem o acolhimento devido a novos povos e Estados do Sul, do Centro e do Leste europeus.

Com as descobertas dos séculos XV e XVI, a colonização ulterior e as grandes migrações dos séculos XIX e XX, os portugueses habituaram-se, para o melhor e o pior, a conhecer os outros e a conviver com eles. Raramente o fizeram aqui, no seu território original, o Portugal europeu. Tudo isto mudou recentemente. Povos de todos os horizontes, americanos, africanos e europeus habitam agora connosco. Como nós, desde os anos sessenta, nos cruzámos com os outros europeus, em casa deles. Eis que dá um novo destino ao nosso país, que só no quadro europeu se pode realizar. Eis que promove a mestiçagem de povos, criando, apesar dos riscos, um clima favorável à tolerância e propício conhecimento. Ou, para voltar a Montaigne, “à frotter et limer notre cervelle contre celle d’autrui”. Viver com os outros! Não há melhor programa para a Europa!

25 de Outubro de 2004

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Luz - Velha Pitões

.
Na famosa mas perdida aldeia de Pitões das Júnias, no Norte de Trás-os-Montes, à beira do Alto Minho, já quase dentro de Espanha: uma velha descansa ao sol, à entrada de casa. Nem deu conta dos forasteiros ou do fotógrafo. (1982).

domingo, 2 de agosto de 2009

A certeza da saúde


POUCOS ANIVERSÁRIOS PÚBLICOS me proporcionariam mais prazer do que o do Serviço Nacional de Saúde. É certamente uma das realizações da democracia de que me sinto, como cidadão, mais orgulhoso. O SNS não é inédito, nem único. Não foi o primeiro, nem sequer é exemplar. Não é propriamente português, nem foi uma novidade para o mundo. Mas é, em certo sentido, o exemplo do que de melhor se pode fazer como reforma: estudar o que os outros fizeram; adaptar ao país; reunir forças e meios; associar a opinião pública, os profissionais e os interessados; iniciar com força e ir realizando com vagar e cautela. Tudo ao serviço de uma ideia central, de um desígnio político e social que pretende satisfazer necessidades sentidas das populações.

Mas este aniversário tem mais razões para me interessar. Ao analisar os 35 anos de democracia, o Serviço Nacional de Saúde sobressai como realização ímpar. Apesar de discutida, contestada, ameaçada, defendida e protegida, esta obra soube recolher os apoios de várias forças políticas, quase todas. Assim como o empenho de vários profissionais, quase todos. O SNS é, de todas as criações institucionais e políticas das últimas décadas, talvez a única que conquistou o carinho e a adesão de grande maioria da população. E mesmo os que gostariam de ver o SNS desmantelado têm dificuldade em afirmá-lo publicamente. Mais do que política, é uma vitória semântica, sem a fatuidade do habitual “politicamente correcto”.

O SNS faz parte de um sistema ou de um sector mais geral que é o da saúde. Ora, este é, de longe, entre todos os sectores dos grandes serviços públicos, de todas as áreas sociais, o que melhor se tem portado, o que oferece melhores resultados e o que revela provas empíricas e quantificadas da sua obra.

O sistema de saúde e o Serviço Nacional de Saúde, em particular, foram capazes, melhor do que outros serviços públicos, de se adaptar a uma sociedade que mudou intensamente, mas sobretudo rapidamente. Nestes trinta e cinco anos, cresceram as cidades de modo desordenado; envelheceu muitíssimo a população; diminuiu a natalidade; desapareceram comunidades rurais; quase morreram as actividades primárias; multiplicaram-se os serviços; democratizou-se a sociedade em todos os sentidos; a população conheceu movimentos inéditos de emigração, imigração e regresso de emigrantes; liberalizaram-se os costumes; progrediu a ciência e a tecnologia; aumentaram as desigualdades, apesar de todas as classes sociais terem conhecido um notável acréscimo de conforto e bem-estar; e surgiram novos costumes e novas doenças, assim como novas exigências sanitárias, nova procura de cuidados e mais meios de exame e diagnóstico. Em linhas gerais e sem pormenores, creio que a saúde e o Serviço Nacional de Saúde conseguiram adaptar-se, desenvolver-se e consolidar-se. A saúde portuguesa preparou-se melhor para a era da globalização, da União Europeia, do desaparecimento de fronteiras e do escrutínio internacional permanente, do que outros sectores da vida pública.

Quando o SNS começou, acabava-se a sociedade rural, surgia diante de todos nós a nova sociedade urbana. E novas comunidades. Nesta população integrada, urbanizada, eventualmente mais instruída e com mais facilidades de comunicação, a consciência da saúde e da doença aumentou. E aumentou a procura de cuidados médicos.

A alteração rápida dos padrões de ocupação do território e, por consequência, de distribuição da população, foi um dos factores que mais pressão exerceu sobre os sistemas de saúde. Foi também, talvez, uma das áreas de organização colectiva que sofreu mais vicissitudes, pois nem sempre se soube reformar paulatinamente, colhendo a cada passo as lições da experiência. Mesmo assim, a cobertura sanitária nacional reforçou-se e manteve-se sem rupturas graves.

Foi ainda durante estes anos que se fundou o Estado de protecção social, agora universalizado. A democracia trouxe consigo um fenómeno novo, o dos “direitos sociais”, entre os quais o “direito à saúde”. O que era uma faculdade, eventualmente uma caridade, transformou-se em direito. O SNS e os sistemas de saúde tiveram de responder, ainda recém-criados, a esta enorme pressão. A minha opinião é a de que venceram a prova. Outros países criaram os seus serviços nacionais de saúde antes mesmo de reconhecerem constitucionalmente os direitos sociais. Nós, portugueses, amigos e viciados nas formas jurídicas, chegámos atrasados, começámos pelos direitos reconhecidos juridicamente, só a seguir criámos os serviços respectivos. Mas, neste caso, não nos ficámos pela letra da lei, bela, morta e inútil: fez-se o serviço e os cidadãos puderam dele usufruir.

No quadro da evolução recente da sociedade, há cada vez mais procura de saúde e de medicina; mais consciência das questões de saúde; mais obsessão com a saúde, a harmonia física e psíquica; mais medo da morte; mais esperança de viver um século. E não sabemos se não há quem aspire à imortalidade. A obsessão com a saúde é tal que se transformou num dos temas mais procurados pelos produtores de televisão e cinema, assim como pelos espectadores. Numa só semana, em Portugal, é possível encontrar meia dúzia de programas nacionais e importados dedicados à saúde, aos hospitais e à doença. Descobriu-se, pelos vistos, que a saúde e a doença são fotogénicas! E os jornais vendem saúde e doença, em quantidades iguais.

A criação e o desenvolvimento do SNS não se fizeram sem conflitos e perturbações. Não vou resumir a sua história, outros o farão melhor do que eu. Mas recordamos seguramente os vários momentos em que profissionais, sindicatos, autoridades, autarquias, utentes e partidos políticos se envolveram em amargas discussões ou confrontos. De registar que, ao longo das décadas, muitas lutas institucionais quase se substituíram a episódios mais antigos de lutas das classes. O caso da saúde pública constitui uma boa ilustração deste fenómeno. É um dos sectores onde se registaram mais conflitos, protestos e fricções institucionais. Apesar de ser um dos sectores sociais onde mais progressos se realizaram.

A cobertura nacional e a universalização estão asseguradas. Os dados quantitativos do sistema revelam que Portugal está longe dos tempos de carência absoluta e de contraste flagrante com os outros países europeus. Os números de consultas e de urgências mostram um colossal crescimento da procura e da oferta. Os números de médicos, de enfermeiros, de centros de saúde, de camas hospitalares e de equipamentos estão hoje a par das médias europeias, mesmo dos países mais desenvolvidos. Em certos indicadores, Portugal revela uma situação mais favorável do que vários países europeus com mais meios e mais tradições de serviços públicos de saúde.

O crescimento da despesa pública e da despesa privada foi, nestas últimas décadas, muito considerável. Será talvez hoje, em proporção do PIB, uma das mais elevadas da Europa. É verdade que nem sempre gastar muito significa gastar bem. Mas os números não enganam. Com uma despesa nacional superior a 10% do PIB (que compara com pouco mais de 2% no início da década de 1970, pouco antes de ser criado o Serviço Nacional de Saúde), temos a medida do enorme esforço feito pela população. Esforço esse medido por duas realidades: a elevada prestação pública e a elevada despesa das famílias.

De qualquer modo, sentimo-nos obrigado a perguntar: será bem gasto? Haverá desperdício? Há quem diga que há muito desperdício. O Tribunal de Contas, por exemplo, denuncia, creio que com razão, um enorme desperdício de recursos. E muitas são as opiniões que sublinham o facto de a principal deficiência da saúde se situar na organização, não nos recursos humanos ou financeiros. Apesar deste desperdício, mau grado as deficiências de organização, de eficácia e de racionalidade, mantenho a afirmação feita acima: a saúde portou-se melhor do que outros sectores sociais e públicos.

Perguntemo-nos então: por que razão o SNS e os sistemas de saúde fizeram melhor? E como se prova essa superioridade de resultados? Na saúde, é fácil quantificar. Os progressos da saúde pública, ajudados, é certo, pelos progressos do saneamento básico e da educação, são simplesmente indiscutíveis. Os números certificam. Médicos e enfermeiros por habitante, consultas, actos médicos em geral, recurso aos meios de diagnóstico, camas hospitalares e estabelecimentos de saúde: todos se desenvolveram de modo favorável. Mais do que os progressos meramente quantitativos, temos os resultados efectivos: a esperança de vida aumentou, a mortalidade infantil e materna reduziu-se dramaticamente (naquele que é talvez o maior triunfo da sociedade democrática portuguesa), as doenças contagiosas diminuíram e as doenças de tratamento eficaz fizeram proporcionalmente menos vítimas. Morre-se menos e morre-se melhor. Os dados relativos à vacinação, aos cuidados pós-parto e à morbilidade por doença contagiosa, bem reveladores da eficiência e da qualidade de um serviço, são suficientemente claros para mostrar os progressos alcançados.

As comparações com a educação, a segurança social, a justiça, a administração e outros serviços mostram a superioridade dos resultados da saúde. Com a educação, em particular, que registou progressos quantitativos pelo menos tão surpreendentes, o cotejo é significativo. A educação está em muito pior estado, mais instável, com menos qualidade, mais medíocre nos resultados, mais disputada e contestada, em clima social e psicológico mais tenso e, por vezes, quase em guerra. Também a justiça revela uma situação em degradação constante e cada vez mais longe das aspirações e das necessidades dos cidadãos.

Se a medida do progresso e dos resultados parece indiscutível, pergunte-se a seguir: por que razão, então, a saúde exibe um balanço bem mais positivo? As razões são muitas, mas as principais podem ser isoladas. Em primeiro lugar, a maior estabilidade das políticas e das orientações. Apesar das divergências partidárias e mau grado a existência excessiva de um elevado número de ministros em três décadas, as mudanças erráticas e caprichosas de políticas foram menores. Não obstante o discurso político e partidário, que frequentemente anuncia mudanças radicais e reformas totais, houve mais estabilidade política neste sector.

A estabilidade profissional, social e orgânica foi também superior. Houve greves, é certo. Conflitos de monta. Animosidades venenosas entre ministros e profissionais. Conflitos que duraram meses e anos. Erros de decisão e de reacção. Nada faltou. Mas, tudo somado, tudo pesado, houve menos agitação estéril, menos despotismo governamental e menos oscilações gratuitas de orientação. E talvez mais sentido da responsabilidade por parte dos profissionais.

Casos houve e não foram poucos em que as normas e as orientações transitaram de um ministro para outro, de um governo para outro, apesar das diferenças políticas e partidárias. Nalguns sectores, isso foi essencial. Para a baixa da mortalidade infantil, por exemplo, foi determinante o facto de se ter mantido uma política constante ao longo dos anos. Como foi crucial o facto de os médicos, os enfermeiros, os profissionais e os cientistas terem desempenhado um papel relevante. Em casos como este, a sabedoria dos ministros foi a de ter reconhecido que a competência técnica deve pertencer aos técnicos. “Ao cientista o que é da ciência, ao médico o que é da medicina e ao político o que é da política”, poderia ser o lema resumo da vida do Serviço Nacional de Saúde.

Não se pense que pretendo retirar o governo da política da saúde e do SNS. Se pensarmos que os interessados são mais de dez milhões e que estão em causa mais de 10% do produto nacional, rapidamente verificamos que é colossal a soma de interesses envolvidos. São ainda dezenas de milhares de profissionais especializados, centenas de instituições e de empresas, dezenas de milhares de trabalhadores. Sem falar nas autarquias, cada vez mais empenhadas nas questões de saúde. É natural que, com este panorama, sejam muito fortes os interesses em jogo, as contradições reais e os conflitos potenciais. Por isso o papel das autoridades e da legitimidade democrática é essencial para a realização de equilíbrios sociais e políticos, para a arbitragem de conflitos, para a regulação dos sistemas e para a concretização de um compromisso essencial com a população. Notemos que estes objectivos têm um denominador comum: a combinação entre a estabilidade do sector ou a continuidade das políticas, por um lado, e as mudanças graduais, por outro. Têm ainda as autoridades duas funções primordiais: a de evitar que quaisquer predadores tenham vantagens e benefícios injustificados e a de garantir que o cidadão ou o utente seja a principal preocupação e o primeiro critério do sistema e do Serviço. Não quero retirar a política nem os governos da saúde. Apenas quero dar-lhes o papel que é o seu. Com necessidades tão prementes e com tão vastos recursos em causa, é natural que a cupidez procure satisfazer-se. É à política que compete evitá-lo. Como é natural que aspirações ao poder surjam e que as exigências excessivas dos corpos profissionais se manifestem. É ainda à política que compete moderá-las.

Mas há mais. A saúde recebe mais benefícios de dois outros factos: o de ser um sistema mais aberto e o de estar mais ligado à ciência e menos à ideologia. O sector é mais “aberto” do que outros, os da educação e da justiça, por exemplo. Há alternativas e emulação, ou até concorrência. A pressão da sociedade é mais forte. A tradição científica é universal. A informação é global. Os padrões de organização e de trabalho são internacionais. O “ethos” científico integra a profissão médica e a organização hospitalar, o que contrasta com o excesso ideológico da educação e da justiça. Ao contrário das teorias pedagógicas e judiciárias, tantas vezes impregnadas de ideologia e de nacionalismo, as ciências médicas são universais e, por definição, abertas à discussão e ao confronto. A ser verdade, estes factos confirmam a ideia geral de que os sistemas fechados são mais dificilmente reformáveis, mais impermeáveis às aspirações sociais e às exigências técnicas e de mais difícil modernização. Isto não quer dizer que a saúde pública portuguesa não tenha defeitos, seja insensível às desigualdades, esteja sempre bem organizada, não desperdice e não conheça os fenómenos frequentes de privilégio. Não, não quer dizer isso. Mas quer dizer que, no cômputo geral, a saúde progrediu mais e melhor do que os outros sectores públicos e sociais.

Em resumo, três regras de ouro: prioridade à técnica e à ciência; estabilidade institucional; e continuidade de políticas. A haver mudanças, como se deve e é inelutável, que sejam paulatinas e graduais, baseadas na experiência.

Nunca se conseguirá que as condições sociais da doença e do cuidado médico sejam neutras do ponto de vista político, social, familiar e ambiental. Mas um objectivo das sociedades e dos Estados modernos consiste justamente em distanciar o essencial dos serviços de saúde das opções ideológicas e dos confrontos partidários. A saúde pública e a protecção social dependem das condições sociais e económicas, assim como das condições políticas. Foram condições políticas e sociais muito particulares que levaram à criação do National Health Service, na Grã-Bretanha, e do Serviço Nacional de Saúde, em Portugal. Isso é certo e reforça a ideia de que as políticas de saúde também dependem da política. Mas, para a sua eficácia, foi determinante que a saúde tenha sofrido menos contágio ideológico do que outros serviços sociais, como a educação, por exemplo. Não esqueçamos que o desenho do National Health Service foi feito por um Liberal, a pedido de um Conservador e posto em prática por Trabalhista!

Voltemos aos problemas. Entre os mais evidentes do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de saúde em geral, conta-se o desperdício de recursos financeiros e humanos. Portugal começa a estar em linha com os indicadores de saúde europeus, o que é excelente, mas mantém alguns pontos negros. A baixa produtividade dos profissionais e dos equipamentos é notória. Há, em Portugal, mais profissionais de saúde do que em muitos países europeus. Gasta-se proporcionalmente mais do que a média europeia e da OCDE. No entanto, nas observações internacionais, Portugal continua a manter notações negativas no que às filas de espera diz respeito. Tal como à produtividade dos profissionais e ao rendimento dos equipamentos. É pois uma questão de organização e de orientação. Também será, inevitavelmente, uma questão política. Com efeito, o desperdício significa geralmente que existem pessoas, organizações e empresas que beneficiam com a aparente desorganização.

Além das questões clássicas da desigualdade social no acesso e do atendimento desumanizado em muitos estabelecimentos, outro dos problemas que afecta a saúde em geral e o Serviço Nacional de Saúde em particular é o da confusão entre medicina pública e privada. Ainda hoje estou convencido de que esta confusão é prejudicial para os doentes, para a produtividade do sector e para as finanças públicas. Os dois sectores não devem, a meu ver, declarar guerra, nem ignorar-se. Mas as suas relações deveriam ser mais saudáveis. Para isso, a primeira condição é a separação completa. A segunda é a organização de um sistema que permita a liberdade de escolha. Mas uma liberdade de escolha real, entre dois sistemas, entre dois métodos, entre duas produtividades e entre dois médicos. Se a liberdade de escolha é entre o médico A e o médico A em dois locais diferentes, não estamos a falar de escolha real.

De toda a maneira, a pressão financeira tem efeitos em todo o sistema e em todo o Serviço. Filas de espera? Taxas de ocupação dos blocos cirúrgicos? Recurso aos genéricos? Uso da unidose? Desenvolvimento dos tratamentos paliativos? Troca de informação entre serviços e tipos de cuidados? Especial atenção a doentes crónicos? Esforço na despistagem e na prevenção? Em qualquer destes aspectos, parece haver consenso quanto aos meios, os objectivos e até as estratégias, mas a questão financeira avoluma-se sempre.

Gostava de poder dizer: para a saúde não deve haver limites! Ou então, em tom mais de comício, “Para a saúde, tudo”! Mas não digo. A verdade é que a saúde gasta muito, talvez de mais. E não é possível pensar que a factura da saúde possa continuar a subir, sem limites nem contenção. Isto é verdade em Portugal, como em todos os países do mundo. E a verdade é que, nos países ocidentais que conhecemos e com os quais nos comparamos, todos os sistemas de saúde estão sob enorme pressão financeira e demográfica. Por isso as reformas, o aperfeiçoamento de desempenho e o rigor na gestão são tão importantes. São mesmo necessários, se queremos salvar o Serviço Nacional de Saúde.

Ainda por cima, vivemos num sector em que a redução de necessidades é impensável. As aspirações são ilimitadas, como em quase tudo na vida. Mas na saúde, há uma espécie de ratoeira. É o paradoxo da saúde: “Mais saúde e mais vida implicam mais doença”! O prolongamento da vida e da saúde envelhece a população e, como é sabido, são os idosos que mais gastam. Parece que 80% dos custos com a saúde de um indivíduo ocorrem nos últimos cinco a dez anos de vida de um idoso. Eis um facto indiscutível. E que pode ser a causa do desastre financeiro da saúde pública. Por isso é necessário acudir a tempo.

Há uma enorme pressão sobre a medicina; pressão sobre a saúde pública; pressão sobre as finanças públicas; pressão sobre os equipamentos, as instalações e o pessoal. E não creio que seja possível inverter a situação. Até porque os políticos fizeram da saúde um dos sectores privilegiados para as suas propostas e as suas promessas. Paralelamente, outros factores influenciam o crescimento da procura: as descobertas científicas, os novos medicamentos, os novos equipamentos e os novos cuidados. Além disso, os produtores de equipamentos, de medicamentos e de cuidados exercem uma permanente pressão sobre os utentes e sobre as autoridades para aumentar os consumos. E não creio que seja possível inverter esta tendência para mais procura, mais oferta e cuidados cada vez mais caros. Mais: as novas doenças do meio e dos modos de vida têm uma influência marcante na procura. A população mais idosa continua em crescimento, o que está na origem de cada vez mais doenças crónicas e cada vez mais doentes prolongados. Também aqui não é possível inverter a tendência.

Chegámos já, no mundo ocidental, a uma situação de grande dificuldade. A subida geral de custos e o aumento veloz da procura criaram um problema de muito difícil resolução, que é o da sustentação financeira. A ponto de que quase todas as forças políticas de vocação governamental pretendem reduzir custos e estreitar os benefícios e as coberturas sociais. Ora, a carga política dos cuidados de saúde é muito elevada. Repare-se que quase todos os partidos políticos ocidentais, também os portugueses, fizeram do princípio do serviço nacional de saúde um seu património ideológico. Está hoje incluído naquilo que vulgarmente se chama o “modelo social europeu”. Mas o seu financiamento integral e universal colide com a capacidade financeira dos Estados e a disposição do contribuinte. Há, aqui, uma contradição evidente, que só pode agravar-se nos próximos anos. Não sei qual é a solução. Nem creio que esta seja conhecida por alguém. Sei que não se pode continuar assim, com as tendências actuais. Mas também sei que as populações europeias reagiriam muito mal se fossem espoliadas dos seus serviços sociais de saúde.

Os dados conhecidos sobre o grau de satisfação das populações relativamente aos serviços de saúde são controversos e contraditórios. Mas deles se podem recolher alguns ensinamentos. A saúde é quase sempre o sector prioritário. Mas também aquele sobre o qual existe muita queixa. Esta é, todavia, muito especial. Na verdade, as pessoas queixam-se do sistema, mas querem o sistema que têm. Os utentes queixam-se dos médicos, mas querem guardar o que têm. Os cidadãos queixam-se dos hospitais, mas estão gratos aos seus.

Os estudos publicados regularmente pelos serviços oficiais, mas também alguns trabalhos independentes, como os de Manuel Villaverde Cabral (que ouviremos dentro de pouco tempo), mostram um razoável estado de satisfação, sobretudo se estiver em causa o caso pessoal e familiar de cada um. Não tenho dúvida de que o rumor urbano, a imprensa sensacionalista e a demagogia política criam uma situação ou um clima nem sempre conforme às experiências individuais.

De qualquer modo, as responsabilidades políticas parecem indiscutíveis. Preservar o Serviço Nacional de Saúde é um imperativo social, político e nacional. Para tal, é indispensável melhorar, cuidar e reformar, a fim de evitar a espiral de custos e a falência. Os pontos-chave são o desperdício e as deficiências de organização. A relação entre os sectores públicos e privados está também no centro dos problemas que necessitam de mais atenção. Assim como, do ponto de vista do utente, a sua liberdade de escolha. Esta não pode, nem deve ser incompatível com a existência de um Serviço Nacional de Saúde robusto e humanizado. Este é, creio, o objectivo essencial do tempo presente.

-
Os 30 anos do SNS
Centro Cultural de Belém
Lisboa, 8 de Julho de 2009