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É COM MUITO PRAZER e honra que me associo ao lançamento deste Atlas. Apesar de sociólogo, sempre tive um especial afecto pela geografia (e pela sua prima direita, a demografia...), de que sou infelizmente apenas um amador. Tenho nas minhas estantes dezenas de Geografias e Atlas, livros que nunca me canso de ler ou ver e que ajudam a perceber melhor as difíceis relações entre o permanente e o mutável, entre as condicionantes e a liberdade ou entre as continuidades e as rupturas.
Cumprimento e felicito o Instituto de Geográfico Português e os seus dirigentes, assim como a equipa de colaboradores coordenada pela Professora Raquel Soeiro de Brito e pelos Professores Rui Pedro Julião e José Norberto Fernandes.
Permitam-me uma palavra especial para a Professora Raquel Soeiro de Brito. Conheci-a na Universidade Nova de Lisboa há quase trinta anos. Sem que ela saiba, leio-a há décadas. Desde a monografia sobre a ilha de São Miguel, até ao seu recente “Portugal, Um perfil geográfico”, passando por uma recente introdução geográfica à História de Portugal, neste caso na obra organizada por José Mattoso e por um trabalho sobre a mudança no Alentejo. Há muito que ela faz parte da minha galeria de honra.
E gostaria também de evocar um mestre, um dos académicos portugueses que mais respeito, Orlando Ribeiro, que ficaria contente se estivesse aqui hoje. A sua obra é talvez a minha mais perene companheira de sempre: durante os meus estudos, no exílio, no regresso a Portugal, nas minhas viagens, na investigação e na docência.
E para terminar estas alusões pessoais, quero referir a presença do meu amigo e colega João Ferrão. Foi uma boa notícia sabê-lo membro do Governo. Não só por ser quem é e pelas suas qualidades, mas também por ser um Geógrafo. É uma disciplina que faz falta aos Governos. Aos nossos, faz mesmo muita falta.
Não me compete, ou antes, não tenho competência para me referir, com pormenor e rigor, aos caminhos da Geografia. Nem aos da Cartografia. São minhas companheiras, ajudam-me e até são objecto de fruição estética, o que é raro em disciplinas académicas. Mas não as conheço o suficiente para sobre elas discorrer. Sinto, todavia, que uma evolução tem marcado a disciplina nestas últimas décadas. Evolução essa que me sugere três observações. Duas gratificantes e uma dolorosa. Começo pela última.
Os actuais e recentes rumos que tem seguido a evolução do sistema de ensino português, nos níveis básico e secundário, não são muito faustosos para a Geografia. Nem a Geografia, nem, aliás, outras áreas. Há programas de certos anos e disciplinas que se propõem dissolver a Geografia em abordagens “multidisciplinares” e “transversais” (supondo que sabemos o que isto quer dizer...). Não creio que isso seja vantajoso. O desenvolvimento do conhecimento exige um razoável domínio dos sentidos do tempo e do espaço. Da História e da Geografia. A sua dissolução em estruturas aleatórias organizadas à volta de ideias ou de conceitos “globalizantes” (como se diz hoje...) é, a meu ver, negativa. O resultado está muitas vezes à vista. Os conhecimentos de geografia, portuguesa ou mundial, física ou humana, dos estudantes que chegam às Universidades, são rudimentares, imprecisos e deficientes. Para não dizer que muitos são absolutamente ignorantes.
Já se tinha perdido, nem sempre por boas razões, a “aprendizagem de cor”, a simples memorização. Os apeadeiros, os afluentes e as montanhas papagueados por ordem já desapareceram. A memorização, tantas vezes negativa, tem no entanto virtudes. Ora, este método teria sido substituído por uma abordagem que privilegiaria a compreensão. Creio sinceramente que se perderam as duas vantagens e se ganharam os dois inconvenientes. Os estudantes não sabem de cor e não compreendem a complexidade geográfica. Estou mesmo convencido de que perderam boa parte do sentido de orientação na região, no país, no continente e no planeta. Não digo, de modo algum, que os estudantes de Geografia não devam associar os seus conhecimentos aos da História, da Sociologia, da Demografia e de outras disciplinas. Devem, com certeza. É indispensável. Há muito que a Geografia, pela sua própria natureza, não cabe dentro das suas fronteiras. O que me preocupa é o efeito de dissolução, porque se perde a capacidade de aquisição de conhecimentos básicos e instrumentais. Só se pode ambicionar à dialéctica da inter e da multidisciplinaridade, quando se dominam os conceitos e os instrumentos de uma disciplina.
Os progressos da Geografia nas Universidades têm-me parecido, pelo contrário, notáveis. Desenvolveram-se os estudos, cresceu o número de doutorados e de investigadores, aumentou o ritmo de publicação de trabalhos de toda a espécie. Não foi fácil, sei-o, ficou a dever-se a muitos e extraordinários esforços, ou por vezes sacrifícios, de profissionais e cientistas. Como a Geografia não parece ser uma disciplina dita “de sucesso”, daquelas que de modo evidente servem para ganhar fortunas, para aumentar a produtividade ou para fazer crescer as receitas fiscais, a Geografia teve que fazer muito com pouco. Tal fica a mérito destes cientistas.
Apesar destes progressos, demorou algum tempo até termos, acessíveis a todos, académicos, estudantes, profissionais e o grande público, as obras de base contemporâneas e vivas. Ainda há pouco tempo se usavam os manuais de Orlando Ribeiro e Lautensach, os Atlas de Amorim Girão e outros vagamente actualizados... Só recentemente começámos a ter acesso a obras de conjunto, de geografias do país actualizadas. Poderia citar numerosos. Raquel Soeiro de Brito publicou trabalhos de síntese. Agora, está em curso de publicação uma obra vasta, coordenada por Carlos Alberto Medeiros e na qual colaboram alguns dos conhecidos geógrafos, incluindo das novas gerações. Vários volumes de divulgação estão também disponíveis. Faltava o Atlas, que agora temos.
Parece, finalmente, que as saídas profissionais para os geógrafos têm registado algum aumento. Não sei se suficiente, mas a notícia, mesmo incerta, é boa. Espero que isto queira dizer que tanto a Administração Central como as Autarquias têm vindo a sentir a necessidade de se socorrerem destes especialistas. E que isto se traduza em mais cuidado com o território, mais atenção ao desenvolvimento urbano, mais preocupação com a natureza e mais cautela com o ambiente.
A Geografia é uma ciência cada vez mais indispensável. A dimensão das grandes obras humanas exige-o. Estradas, barragens, grandes conjuntos habitacionais, planos directores municipais, reorganização agrícola, regadios, aproveitamentos turísticos de grande escala e explorações económicas de toda a espécie já não se podem fazer sem o conhecimento e o cuidado próprios dos geógrafos. Tantos disparates foram cometidos nestas últimas décadas! Tantos erros, cujas facturas pagamos hoje! Tanta fealdade espalhada pelo país! Tanta desordem de que sofrem sobretudo os menos afortunados! Tanto desperdício, diante dos nossos olhos, num país pobre que deveria bem aproveitar os seus recursos! O geógrafo não é seguramente o santo milagreiro para tantos males. Mas se ele estivesse presente sempre que importa, talvez não tivéssemos hoje tanta razão de queixa.
Portugal mudou muito. Este Atlas dá-nos o retrato do momento a que chegámos. Como não é também um Atlas histórico (do que tenho pena...) e limita quase sempre a evolução à última década, nem sempre temos a visão dessa mudança. Mas ficamos agora na posse de um retrato actual, de um panorama do país que fizemos. Os que têm em mente o que éramos há vinte ou trinta anos sabem reconhecer as diferenças. Portugal mudou muito, repito. Não só as pessoas, os comportamentos e as relações sociais, mas também a paisagem.
As pessoas mudaram. São mais velhas, duram mais tempo, vivem mais sozinhas e já são em maior número do que os jovens. A natalidade diminuiu, a fecundidade também, assim como a dimensão média das famílias. Os portugueses têm menos filhos, reúnem-se em famílias mais pequenas, mas também de vários tipos. A mortalidade infantil baixou drasticamente, naquele que foi um dos desenvolvimentos mais notáveis das últimas gerações. Os portugueses deixaram o interior e dirigiram-se para o litoral e as grandes áreas metropolitanas. Abandonaram a agricultura, a silvicultura, a extracção de minério e as pescas. Trabalham sobretudo nos serviços, na construção, na administração e, também, menos, na indústria. Continuam a emigrar, mas muito menos do que no passado. E passaram a receber, na que foi uma das maiores novidades da história recente de Portugal, centenas de milhares de imigrantes estrangeiros. Com talvez mais de 6% de estrangeiros, além dos naturalizados, a população portuguesa é ou começa a ser uma população diversa e que forma uma sociedade plural. As novas gerações contemporâneas não se dão conta da mudança ocorrida a este propósito. Mas a verdade é que esta será uma das mais radicais transformações sociais e que rompeu com a tradição de pelo menos dois ou três séculos. No continente, ou na metrópole, Portugal já foi país de variedade, mas o Portugal moderno tinha sido de crescente homogeneização étnica, cultural, linguística e religiosa. Eis que está diferente. Facto que, mau grado os sérios problemas que causam sempre as grandes migrações, teve já a vantagem de rejuvenescer e “refrescar” a população residente. Sem esquecer que é provável que haja mais liberdade numa sociedade plural.
Outra alteração decisiva, que o Atlas talvez não exiba imediatamente, mas que lá se percebe, foi o encurtamento de distâncias. Apesar de pequeno, Portugal era, há três ou quatro décadas, um país de difícil comunicação. E de reduzida mobilidade entre regiões. Muitas comunidades viviam isoladas ou, pelo menos, separadas. As instituições e os serviços nacionais (como a educação, a saúde, a segurança social, os correios, a energia, a água, o saneamento...) asseguravam mal a cobertura de todo o território e de toda a sociedade. Os residentes de uma região conheciam mal ou não conheciam de todo as outras regiões. Quantos Transmontanos ou Beirões não morreram, já na segunda metade do século XX, sem nunca ter visto o mar ou visitado Lisboa? Eis que também esta separação se pode considerar terminada. O Estado de protecção social e os serviços públicos cobrem todo o país. As actividades secundárias e terciárias incentivaram a mobilidade geográfica e social. As migrações, tanto internas como externas, misturaram as populações. Até as guerras ultramarinas contribuíram para essa mistura. E, finalmente, o desenvolvimento das vias de comunicação, a começar pelo das estradas, fez um país diferente. Ou, se quiserem, um modo de viver diferente no mesmo país.
Finalmente, a urbanização intensa constitui uma das mais significativas mudanças destas últimas décadas. Impressiona a rapidez com que foi feita. Estudos comparativos mostram que, de facto, em Portugal, aquela se processou a um ritmo acelerado. São várias as razões para esse fenómeno. Primeiro, o seu carácter tardio. Segundo, a vaga de industrialização ocorrida desde o início dos anos sessenta, parcialmente ligada à participação portuguesa na EFTA. Terceiro, a pobreza instalada nos campos e que esteve também na origem das migrações internas. Quarto, as guerras no Ultramar retiravam homens ao sector primário, que, terminada a sua missão, já não regressavam ao campo ou à aldeia, ficavam-se pela cidade. Quinto, o regresso de algumas centenas de milhares de repatriados de África e que, em grande maioria, ficaram nas áreas metropolitanas e nas cidades. A estes factos poder-se-ão acrescentar outros de mais difícil avaliação, mas que, creio, exerceram real influência. Tanto a fundação do Estado democrático como a instabilidade política vivida durante vários anos, após a revolução de 1974, terão sido estímulos à urbanização. A criação do poder autárquico democrático exerceu influências no mesmo sentido. Finalmente, o clima de permissividade e complacência que reinava (ou reina ainda?...) a propósito da construção de habitações também pode ter funcionado como incentivo à migração interna.
A rapidez da urbanização não pode ser separada das circunstâncias históricas em que se fez. Circunstâncias essas que explicam a desordem urbanística, a falta de planeamento, a deficiente rede de transportes públicos e o desenvolvimento da construção ilegal, incluindo das barracas e dos alojamentos precários de toda a espécie. A tudo isso, acrescentem-se as consequências da emigração de portugueses para o estrangeiro. Centenas de milhares mandaram, tarde ou cedo, construir as suas casas nas aldeias e nas cidades de província e com isso contribuíram igualmente para o surto acelerado de urbanização. Depois da fundação da democracia, também o poder autárquico, por vocação e por interesse político, deu enorme estímulo à urbanização, nomeadamente através das obras de infra-estrutura (saneamento básico, água canalizada, electricidade, telefones, etc.) que já faziam falta.
Uma vez mais, este não é um Atlas histórico capaz de revelar a cartografia dessa mudança que ocorreu em cerca de vinte ou trinta anos. Mas o retrato que nos dá, “à chegada”, permite perceber as causas e as consequências desta urbanização rápida.
Em muitas áreas de Portugal, temos hoje um país feio e desorganizado. Um país desconfortável e agressivo. Não se trata apenas de uma questão estética, tão discutível, é sobretudo um problema de qualidade de vida e de bem-estar. Assim como de desperdício de recursos e de destruição de equilíbrios. As áreas metropolitanas, sobretudo os chamados arredores e subúrbios, são frequentemente localidades sujas e pouco higiénicas, desumanizadas e até violentas. A construção, legal ou ilegal, ou antes, para ser mais preciso, ilegal mas depois legalizada, dominou a urbanização. Dos proprietários aos promotores e dos construtores aos autarcas, todos se coligaram para fazer crescer na desordem as áreas metropolitanas e as cidades de média dimensão. Desordem que até do ponto de vista estatístico se faz sentir. Com efeito, não parece possível determinar com algum rigor, a população urbana portuguesa. O Atlas faz-se eco dessa dificuldade. Não se pode confiar numa estimativa real da população urbana e respectiva distribuição. Não é possível fazê-lo com os critérios oficiais reconhecidos. As cidades “oficiais” podem ter 1.000 ou 2.000 habitantes... E há vilas com dezenas de milhares que não estão classificadas como cidades. Por outro lado, os limites geográficos das populações e dos aglomerados urbanos não estão definidos. Em conclusão, não é possível cartografar ou representar a população urbana... Além de que, do ponto de vista sociológico, os critérios territoriais e demográficos não são suficientes. Com efeito, a vida urbana, hoje, invadiu a sociedade rural.
Senhoras e Senhores, basta de palavras. Um Atlas deve ser visto. Manuseado. Estudado. Consultado. E, esperemos, renovado e desenvolvido no futuro. Vejam o Atlas que já têm ou vão ter nas suas mãos. Sintam o prazer de ter, a partir de agora, uma nova e actualizada obra de referência. Clássica sob vários pontos de vista, mas inovadora também e aberta aos novos conhecimentos. Vejam, por exemplo, o espaço dedicado ao mar Atlântico, elemento formador da nacionalidade e condicionante histórica de excepcional importância. Vejam também os capítulos modernos, se assim lhes podemos chamar, sobre as políticas públicas, o desenvolvimento regional, a ecologia, a economia, as comunicações internas, a habitação e as relações externas. Sem esquecer as impressionantes imagens do país dos incêndios florestais. Partilhem com outros o orgulho de termos à mão obras de referência, de base e eruditas, daquelas que duram e não se perdem nas correntes da superficialidade.
Uma vez mais, parabéns aos seus autores e promotores. Parabéns e obrigado.
-É COM MUITO PRAZER e honra que me associo ao lançamento deste Atlas. Apesar de sociólogo, sempre tive um especial afecto pela geografia (e pela sua prima direita, a demografia...), de que sou infelizmente apenas um amador. Tenho nas minhas estantes dezenas de Geografias e Atlas, livros que nunca me canso de ler ou ver e que ajudam a perceber melhor as difíceis relações entre o permanente e o mutável, entre as condicionantes e a liberdade ou entre as continuidades e as rupturas.
Cumprimento e felicito o Instituto de Geográfico Português e os seus dirigentes, assim como a equipa de colaboradores coordenada pela Professora Raquel Soeiro de Brito e pelos Professores Rui Pedro Julião e José Norberto Fernandes.
Permitam-me uma palavra especial para a Professora Raquel Soeiro de Brito. Conheci-a na Universidade Nova de Lisboa há quase trinta anos. Sem que ela saiba, leio-a há décadas. Desde a monografia sobre a ilha de São Miguel, até ao seu recente “Portugal, Um perfil geográfico”, passando por uma recente introdução geográfica à História de Portugal, neste caso na obra organizada por José Mattoso e por um trabalho sobre a mudança no Alentejo. Há muito que ela faz parte da minha galeria de honra.
E gostaria também de evocar um mestre, um dos académicos portugueses que mais respeito, Orlando Ribeiro, que ficaria contente se estivesse aqui hoje. A sua obra é talvez a minha mais perene companheira de sempre: durante os meus estudos, no exílio, no regresso a Portugal, nas minhas viagens, na investigação e na docência.
E para terminar estas alusões pessoais, quero referir a presença do meu amigo e colega João Ferrão. Foi uma boa notícia sabê-lo membro do Governo. Não só por ser quem é e pelas suas qualidades, mas também por ser um Geógrafo. É uma disciplina que faz falta aos Governos. Aos nossos, faz mesmo muita falta.
Não me compete, ou antes, não tenho competência para me referir, com pormenor e rigor, aos caminhos da Geografia. Nem aos da Cartografia. São minhas companheiras, ajudam-me e até são objecto de fruição estética, o que é raro em disciplinas académicas. Mas não as conheço o suficiente para sobre elas discorrer. Sinto, todavia, que uma evolução tem marcado a disciplina nestas últimas décadas. Evolução essa que me sugere três observações. Duas gratificantes e uma dolorosa. Começo pela última.
Os actuais e recentes rumos que tem seguido a evolução do sistema de ensino português, nos níveis básico e secundário, não são muito faustosos para a Geografia. Nem a Geografia, nem, aliás, outras áreas. Há programas de certos anos e disciplinas que se propõem dissolver a Geografia em abordagens “multidisciplinares” e “transversais” (supondo que sabemos o que isto quer dizer...). Não creio que isso seja vantajoso. O desenvolvimento do conhecimento exige um razoável domínio dos sentidos do tempo e do espaço. Da História e da Geografia. A sua dissolução em estruturas aleatórias organizadas à volta de ideias ou de conceitos “globalizantes” (como se diz hoje...) é, a meu ver, negativa. O resultado está muitas vezes à vista. Os conhecimentos de geografia, portuguesa ou mundial, física ou humana, dos estudantes que chegam às Universidades, são rudimentares, imprecisos e deficientes. Para não dizer que muitos são absolutamente ignorantes.
Já se tinha perdido, nem sempre por boas razões, a “aprendizagem de cor”, a simples memorização. Os apeadeiros, os afluentes e as montanhas papagueados por ordem já desapareceram. A memorização, tantas vezes negativa, tem no entanto virtudes. Ora, este método teria sido substituído por uma abordagem que privilegiaria a compreensão. Creio sinceramente que se perderam as duas vantagens e se ganharam os dois inconvenientes. Os estudantes não sabem de cor e não compreendem a complexidade geográfica. Estou mesmo convencido de que perderam boa parte do sentido de orientação na região, no país, no continente e no planeta. Não digo, de modo algum, que os estudantes de Geografia não devam associar os seus conhecimentos aos da História, da Sociologia, da Demografia e de outras disciplinas. Devem, com certeza. É indispensável. Há muito que a Geografia, pela sua própria natureza, não cabe dentro das suas fronteiras. O que me preocupa é o efeito de dissolução, porque se perde a capacidade de aquisição de conhecimentos básicos e instrumentais. Só se pode ambicionar à dialéctica da inter e da multidisciplinaridade, quando se dominam os conceitos e os instrumentos de uma disciplina.
Os progressos da Geografia nas Universidades têm-me parecido, pelo contrário, notáveis. Desenvolveram-se os estudos, cresceu o número de doutorados e de investigadores, aumentou o ritmo de publicação de trabalhos de toda a espécie. Não foi fácil, sei-o, ficou a dever-se a muitos e extraordinários esforços, ou por vezes sacrifícios, de profissionais e cientistas. Como a Geografia não parece ser uma disciplina dita “de sucesso”, daquelas que de modo evidente servem para ganhar fortunas, para aumentar a produtividade ou para fazer crescer as receitas fiscais, a Geografia teve que fazer muito com pouco. Tal fica a mérito destes cientistas.
Apesar destes progressos, demorou algum tempo até termos, acessíveis a todos, académicos, estudantes, profissionais e o grande público, as obras de base contemporâneas e vivas. Ainda há pouco tempo se usavam os manuais de Orlando Ribeiro e Lautensach, os Atlas de Amorim Girão e outros vagamente actualizados... Só recentemente começámos a ter acesso a obras de conjunto, de geografias do país actualizadas. Poderia citar numerosos. Raquel Soeiro de Brito publicou trabalhos de síntese. Agora, está em curso de publicação uma obra vasta, coordenada por Carlos Alberto Medeiros e na qual colaboram alguns dos conhecidos geógrafos, incluindo das novas gerações. Vários volumes de divulgação estão também disponíveis. Faltava o Atlas, que agora temos.
Parece, finalmente, que as saídas profissionais para os geógrafos têm registado algum aumento. Não sei se suficiente, mas a notícia, mesmo incerta, é boa. Espero que isto queira dizer que tanto a Administração Central como as Autarquias têm vindo a sentir a necessidade de se socorrerem destes especialistas. E que isto se traduza em mais cuidado com o território, mais atenção ao desenvolvimento urbano, mais preocupação com a natureza e mais cautela com o ambiente.
A Geografia é uma ciência cada vez mais indispensável. A dimensão das grandes obras humanas exige-o. Estradas, barragens, grandes conjuntos habitacionais, planos directores municipais, reorganização agrícola, regadios, aproveitamentos turísticos de grande escala e explorações económicas de toda a espécie já não se podem fazer sem o conhecimento e o cuidado próprios dos geógrafos. Tantos disparates foram cometidos nestas últimas décadas! Tantos erros, cujas facturas pagamos hoje! Tanta fealdade espalhada pelo país! Tanta desordem de que sofrem sobretudo os menos afortunados! Tanto desperdício, diante dos nossos olhos, num país pobre que deveria bem aproveitar os seus recursos! O geógrafo não é seguramente o santo milagreiro para tantos males. Mas se ele estivesse presente sempre que importa, talvez não tivéssemos hoje tanta razão de queixa.
Portugal mudou muito. Este Atlas dá-nos o retrato do momento a que chegámos. Como não é também um Atlas histórico (do que tenho pena...) e limita quase sempre a evolução à última década, nem sempre temos a visão dessa mudança. Mas ficamos agora na posse de um retrato actual, de um panorama do país que fizemos. Os que têm em mente o que éramos há vinte ou trinta anos sabem reconhecer as diferenças. Portugal mudou muito, repito. Não só as pessoas, os comportamentos e as relações sociais, mas também a paisagem.
As pessoas mudaram. São mais velhas, duram mais tempo, vivem mais sozinhas e já são em maior número do que os jovens. A natalidade diminuiu, a fecundidade também, assim como a dimensão média das famílias. Os portugueses têm menos filhos, reúnem-se em famílias mais pequenas, mas também de vários tipos. A mortalidade infantil baixou drasticamente, naquele que foi um dos desenvolvimentos mais notáveis das últimas gerações. Os portugueses deixaram o interior e dirigiram-se para o litoral e as grandes áreas metropolitanas. Abandonaram a agricultura, a silvicultura, a extracção de minério e as pescas. Trabalham sobretudo nos serviços, na construção, na administração e, também, menos, na indústria. Continuam a emigrar, mas muito menos do que no passado. E passaram a receber, na que foi uma das maiores novidades da história recente de Portugal, centenas de milhares de imigrantes estrangeiros. Com talvez mais de 6% de estrangeiros, além dos naturalizados, a população portuguesa é ou começa a ser uma população diversa e que forma uma sociedade plural. As novas gerações contemporâneas não se dão conta da mudança ocorrida a este propósito. Mas a verdade é que esta será uma das mais radicais transformações sociais e que rompeu com a tradição de pelo menos dois ou três séculos. No continente, ou na metrópole, Portugal já foi país de variedade, mas o Portugal moderno tinha sido de crescente homogeneização étnica, cultural, linguística e religiosa. Eis que está diferente. Facto que, mau grado os sérios problemas que causam sempre as grandes migrações, teve já a vantagem de rejuvenescer e “refrescar” a população residente. Sem esquecer que é provável que haja mais liberdade numa sociedade plural.
Outra alteração decisiva, que o Atlas talvez não exiba imediatamente, mas que lá se percebe, foi o encurtamento de distâncias. Apesar de pequeno, Portugal era, há três ou quatro décadas, um país de difícil comunicação. E de reduzida mobilidade entre regiões. Muitas comunidades viviam isoladas ou, pelo menos, separadas. As instituições e os serviços nacionais (como a educação, a saúde, a segurança social, os correios, a energia, a água, o saneamento...) asseguravam mal a cobertura de todo o território e de toda a sociedade. Os residentes de uma região conheciam mal ou não conheciam de todo as outras regiões. Quantos Transmontanos ou Beirões não morreram, já na segunda metade do século XX, sem nunca ter visto o mar ou visitado Lisboa? Eis que também esta separação se pode considerar terminada. O Estado de protecção social e os serviços públicos cobrem todo o país. As actividades secundárias e terciárias incentivaram a mobilidade geográfica e social. As migrações, tanto internas como externas, misturaram as populações. Até as guerras ultramarinas contribuíram para essa mistura. E, finalmente, o desenvolvimento das vias de comunicação, a começar pelo das estradas, fez um país diferente. Ou, se quiserem, um modo de viver diferente no mesmo país.
Finalmente, a urbanização intensa constitui uma das mais significativas mudanças destas últimas décadas. Impressiona a rapidez com que foi feita. Estudos comparativos mostram que, de facto, em Portugal, aquela se processou a um ritmo acelerado. São várias as razões para esse fenómeno. Primeiro, o seu carácter tardio. Segundo, a vaga de industrialização ocorrida desde o início dos anos sessenta, parcialmente ligada à participação portuguesa na EFTA. Terceiro, a pobreza instalada nos campos e que esteve também na origem das migrações internas. Quarto, as guerras no Ultramar retiravam homens ao sector primário, que, terminada a sua missão, já não regressavam ao campo ou à aldeia, ficavam-se pela cidade. Quinto, o regresso de algumas centenas de milhares de repatriados de África e que, em grande maioria, ficaram nas áreas metropolitanas e nas cidades. A estes factos poder-se-ão acrescentar outros de mais difícil avaliação, mas que, creio, exerceram real influência. Tanto a fundação do Estado democrático como a instabilidade política vivida durante vários anos, após a revolução de 1974, terão sido estímulos à urbanização. A criação do poder autárquico democrático exerceu influências no mesmo sentido. Finalmente, o clima de permissividade e complacência que reinava (ou reina ainda?...) a propósito da construção de habitações também pode ter funcionado como incentivo à migração interna.
A rapidez da urbanização não pode ser separada das circunstâncias históricas em que se fez. Circunstâncias essas que explicam a desordem urbanística, a falta de planeamento, a deficiente rede de transportes públicos e o desenvolvimento da construção ilegal, incluindo das barracas e dos alojamentos precários de toda a espécie. A tudo isso, acrescentem-se as consequências da emigração de portugueses para o estrangeiro. Centenas de milhares mandaram, tarde ou cedo, construir as suas casas nas aldeias e nas cidades de província e com isso contribuíram igualmente para o surto acelerado de urbanização. Depois da fundação da democracia, também o poder autárquico, por vocação e por interesse político, deu enorme estímulo à urbanização, nomeadamente através das obras de infra-estrutura (saneamento básico, água canalizada, electricidade, telefones, etc.) que já faziam falta.
Uma vez mais, este não é um Atlas histórico capaz de revelar a cartografia dessa mudança que ocorreu em cerca de vinte ou trinta anos. Mas o retrato que nos dá, “à chegada”, permite perceber as causas e as consequências desta urbanização rápida.
Em muitas áreas de Portugal, temos hoje um país feio e desorganizado. Um país desconfortável e agressivo. Não se trata apenas de uma questão estética, tão discutível, é sobretudo um problema de qualidade de vida e de bem-estar. Assim como de desperdício de recursos e de destruição de equilíbrios. As áreas metropolitanas, sobretudo os chamados arredores e subúrbios, são frequentemente localidades sujas e pouco higiénicas, desumanizadas e até violentas. A construção, legal ou ilegal, ou antes, para ser mais preciso, ilegal mas depois legalizada, dominou a urbanização. Dos proprietários aos promotores e dos construtores aos autarcas, todos se coligaram para fazer crescer na desordem as áreas metropolitanas e as cidades de média dimensão. Desordem que até do ponto de vista estatístico se faz sentir. Com efeito, não parece possível determinar com algum rigor, a população urbana portuguesa. O Atlas faz-se eco dessa dificuldade. Não se pode confiar numa estimativa real da população urbana e respectiva distribuição. Não é possível fazê-lo com os critérios oficiais reconhecidos. As cidades “oficiais” podem ter 1.000 ou 2.000 habitantes... E há vilas com dezenas de milhares que não estão classificadas como cidades. Por outro lado, os limites geográficos das populações e dos aglomerados urbanos não estão definidos. Em conclusão, não é possível cartografar ou representar a população urbana... Além de que, do ponto de vista sociológico, os critérios territoriais e demográficos não são suficientes. Com efeito, a vida urbana, hoje, invadiu a sociedade rural.
Senhoras e Senhores, basta de palavras. Um Atlas deve ser visto. Manuseado. Estudado. Consultado. E, esperemos, renovado e desenvolvido no futuro. Vejam o Atlas que já têm ou vão ter nas suas mãos. Sintam o prazer de ter, a partir de agora, uma nova e actualizada obra de referência. Clássica sob vários pontos de vista, mas inovadora também e aberta aos novos conhecimentos. Vejam, por exemplo, o espaço dedicado ao mar Atlântico, elemento formador da nacionalidade e condicionante histórica de excepcional importância. Vejam também os capítulos modernos, se assim lhes podemos chamar, sobre as políticas públicas, o desenvolvimento regional, a ecologia, a economia, as comunicações internas, a habitação e as relações externas. Sem esquecer as impressionantes imagens do país dos incêndios florestais. Partilhem com outros o orgulho de termos à mão obras de referência, de base e eruditas, daquelas que duram e não se perdem nas correntes da superficialidade.
Uma vez mais, parabéns aos seus autores e promotores. Parabéns e obrigado.
Instituto Geográfico Português - Sociedade de Geografia
Lisboa, 29 de Março de 2006