Amanhã, é dia de voto. Nada se lhe compara. Não há ocasião, local ou gesto que o substitua: é o momento exacto em que voto, escolho uma pessoa (ou partido) e decido quem quero que me represente. Nesse instante, sou soberano. Não há medo nem receio, não há vergonha ou vaidade, não há exibição ou sedução: há um gesto solitário, sem visibilidade, sem cópia nem publicidade.
Posso ter hesitado antes, durante dias ou semanas. Posso ter mudado de opinião. Posso ter defendido, sucessivamente, pontos de vista, pessoas e partidos diferentes. Posso ter tido apenas uma ideia, sempre a mesma, uma espécie de fidelidade inamovível. Posso ter querido recompensar quem o mereça; ou castigar quem deva sê-lo; ou promover quem necessite; ou ajudar quem precise para ter voz; os meus motivos podem ter sido variáveis, mas o gesto, esse, fica comigo. E ninguém, jamais, saberá com certeza o que fiz.
Ao votar, sentirei que milhões estão a fazer o mesmo, aqui e alhures. Que milhões farão o mesmo, amanhã ou depois. Saberei que centenas de milhões nunca o fizeram em liberdade. E que muitos milhões nunca tiveram sequer a oportunidade. Sentirei que foram necessários séculos, muitos séculos, para chegar àqueles breves segundos, diante de uma urna, com uma caneta na mão e uma cortina ou biombo de protecção.
O voto depende de mil variáveis. Do país a que pertenço. Da classe social de que faço parte. Dos amigos, colegas, companheiros e camaradas com quem convivo. Do partido a quem me ligam ideias e interesses. Da família que me aquece ou protege. Da igreja ou do culto que sigo. Do mestre que me ensinou. Da ideologia que faço minha. Da empresa que me emprega. Dos meus sonhos e das minhas frustrações. Depende de tudo um pouco. Ou até de um impulso de última hora, de uma intuição ou de um instinto. Mas aquela decisão única depende de mim e da minha vida.
É o momento social mais verdadeiro da minha liberdade. Ninguém saberá se votei de uma maneira e o digo de outra, se não votei em ninguém, se votei em branco, se anulei o voto para castigar toda a gente ou para me opor ao sistema e a todos. Só eu o saberei, é essa a minha liberdade. Reforçada pelo facto de não usar esse meu direito para conquistar outros votos.
Sei que o meu voto vai contar, no apuramento e na estatística. Sei que se vai acrescentar a milhares ou que vai faltar a outros tantos. Sei que poderei ganhar por muitos, perder por imensos ou empatar. Sei que o meu voto nunca foi inútil, nunca será ineficaz, jamais poderão dizer que é supérfluo. Como sei que, entre milhares ou milhões, o meu voto pode parecer dispensável. Mas sei que nunca o é, porque a vontade colectiva faz-se de milhares de vontades individuais e livres.
Nunca considerei o meu voto um dever. Ninguém me pode obrigar a usar a minha liberdade. Não é possível que alguém me force a colaborar. Como não aceito que o meu voto faça parte de um desígnio colectivo. Pelo contrário, a vontade geral, esse desígnio comum de que tanto se fala, essa missão, esse bem público ou bem geral, são o resultado da minha vontade individual e da de todos os meus compatriotas.
O meu voto é o meu direito. Na sua mais simples expressão, é o primeiro dos meus direitos cívicos. É um direito que usarei sempre como quero, como me interessa, como sinto e penso, nunca como me dizem ou me impõem. Por isso considero que o voto aberto, o voto obrigatório, o voto de braço levantado, o voto censitário, o voto por grupo ou família, o voto de tribo ou sindicato, o voto por procuração e a disciplina de voto são perversões deste direito antigo e fundamental.
Diante da urna de voto, estou eu e a minha liberdade. Estamos todos e a nossa liberdade. Não há talvez sítio onde haja mais liberdade com a qual escolherei sem obrigações e sem amarras. Também é difícil encontrar local onde haja mais igualdade: homem e mulher, novo e velho, rico e pobre, famoso e anónimo: somos todos absolutamente iguais, os nossos votos valem exactamente todos o mesmo.
É verdade que, apesar do seu fundamento individual, o voto tem também um sentido colectivo, na medida em que se confere a todos os votos e à sua maioria um valor de decisão e um significado de vontade. Num dos mais felizes “slogans” da história da democracia portuguesa, dizia-se “O voto é a arma do povo”! Não o cortejo ou a romaria, não a força ou a polícia, não o levantamento ou o motim, não a greve ou a sublevação, não a insurreição ou a rebelião. Mas o voto! Contra a velha ditadura e a nova tirania, uma arma era a eleita: o voto! E mesmo naqueles momentos difíceis, mesmo diante de movimentos sociais perigosos, o voto de um indivíduo, o voto solitário e livre e a escolha pessoal faziam a diferença e fizeram história. Foram os indivíduos que “salvaram” o país e a democracia, não o contrário.
Como em todas as eleições, amanhã também, calem-se os dirigentes e os iluminados, os heróis e os visionários, os comentadores e os que tudo sabem, os que previram e os que analisam, os justiceiros e os que querem fazer “limpezas”, calem-se os doutores e os analfabetos, amanhã é o meu voto que conta. Durante uns segundos, protegido por frágil divisória, serei soberano. Da minha liberdade, resultará a democracia para a minha cidade.
Parece banal, simples e cliché, mas não é. É bom que tenhamos consciência: a democracia está em recuo em todo o mundo. Na América do Norte e do Sul, em África, na Ásia e na Europa, são múltiplos os exemplos de países, de Estados, de governos e de regiões que disfarçam a democracia e cujos dirigentes políticos capturaram o sistema de governo, sempre com os mesmos argumentos, a pátria e o bem comum à cabeça.
Amanhã, elegemos as autarquias. Dentro de dois anos, o Parlamento e o governo. Depois, seguir-se-ão o Parlamento Europeu e o Presidente da República. São votos diferentes, de consequências diversas, mas cuja sequência trará ao nosso país um sentido político. Veremos as grandes tendências e estudaremos o sentido da evolução. Tentaremos perceber o sentido do voto e a vontade do eleitorado. Procuraremos compreender o que comanda o voto, interesses, ideologia, reconhecimento, identidade e sentimentos. Mas saberemos que o princípio e o fim de tudo está naquele pedaço de papel com uma cruz.
Público, 25.9.2021