A lei aprovada pelo Parlamento, promulgada pelo Presidente da República e referendada pelo Governo acaba de criar um regime de orientação, vigilância, censura à posteriori, delação e controlo da liberdade de expressão, inédito na democracia e só parecido com algo em vigor durante a ditadura salazarista.
A lei (Nº 27/21 de 17 de Maio) foi aprovada pela esquerda, pela direita e pelo centro (PS, PSD, BE, CDS, PAN, Joacine Moreira e Cristina Rodrigues). Ninguém votou contra. Abstiveram-se o PCP, o PEV, o Chega e a IL.
Esta lei consiste no mais atrevido ataque à liberdade de expressão desde há quase um século. A lei é uma tentativa violenta de impor uma moral, de regular o pensamento, de orientar as mentalidades e de condicionar convicções. A lei delega poderes públicos em instituições, entidades e empresas, privadas ou públicas, a fim de orientar o pensamento, de vigiar a opinião e de condicionar a liberdade de expressão.
Com excepção de menos de uma dúzia de comentadores, quase ninguém do mundo da política e do jornalismo, da edição e da comunicação, se exprimiu sobre esta lei. Que se passa com os intelectuais, os jornalistas, os académicos e os artistas que não prestaram atenção a esta lei repressiva e embrionariamente totalitária que leva a designação cínica de “Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital”? Que se passa com os sindicatos, as confederações, os magistrados e as sociedades profissionais tão alheios à aprovação desta lei?
Que se passa com os partidos que votaram a favor do condicionamento da liberdade de expressão e de pensamento? Que se passa com a Assembleia de deputados e o Presidente da República que não se aperceberam do que aprovaram com tanta desfaçatez? Que se passa com os partidos que se abstiveram? Que se passa com 230 deputados portugueses, eleitos pelo povo, que não criticaram o mais grave atentado contra a liberdade de expressão desde a aprovação da Constituição de 1933?
Que se passa com os cidadãos deste país que não viram o que estava a acontecer e que assim permitem que o Estado venha a ter um papel determinante na definição dos limites do pensamento e do tom da sua expressão?
Ou antes, talvez mais verdadeiro, que se passa com toda esta gente que prestou atenção, viu, leu bem, aprovou, concordou e aplaudiu uma lei directamente ameaçadora da liberdade de expressão, orientada para a formação de opiniões, e destinada a condicionar a orientação cultural, política e filosófica de cada um?
É um dos piores sinais de evolução de um povo e das suas elites: colaborar na sua própria opressão. O despotismo nacional que sempre espreita e a falta de tradição democrática e liberal ajudam a explicar esta vontade de impor uma virtude, de regular a opinião, de filtrar crenças e de certificar convicções. Há, entre nós, muita gente que espera que o Estado (de direita ou de esquerda) se ocupe das consciências e da moral pública. Para bem de todos, com certeza.
Previsivelmente, esta lei presta atenção a todos os novos direitos, novos clientes e novos públicos, aos fracos e vulneráveis, às questões de género e de raça, a tudo quanto está na moda. E sobretudo à verdade e à virtude. Muito bem. Outros já fizeram o mesmo. Por exemplo, o famoso artigo 8º da Constituição de 1933, do Estado Novo de Salazar, dizia que “a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma (…) é um direito e uma garantia individual do cidadão”. Mas também dizia que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento (…) devendo prevenir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos”.
O pior desta lei, depois do seu intuito virtuoso, é o que define as funções do Estado. Este deve proteger a sociedade contra “os que produzam, reproduzam ou difundam” narrativa considerada desinformação. O que é a narrativa e o que é a desinformação estão no centro da tentativa autoritária. O que é “falso e enganador”, o que é feito “deliberadamente para obter vantagens económicas ou para enganar o público”, o que é susceptível de “causar prejuízo público”, o que é “ameaça aos processos políticos democráticos aos processos de elaboração de politicas públicas (o que isto quer dizer só “eles” sabem…) e a bens públicos”. Com toda esta narrativa, ficam em causa a publicidade, a propaganda, a campanha eleitoral, o discurso político, o debate laboral e até mesmo a criação artística. Há décadas que não se via nada de semelhante.
É verdade que a lei é mal feita, mal escrita e perversa. Talvez seja mudada a curto prazo ou nunca venha a ser aplicada, tudo é possível neste país embrulhado no vórtice da manipulação (que dizem democrática…) de consciências. Mas o que é certo é que o dispositivo autoritário está criado. Pode ser aplicado em qualquer altura.
Através da ERC, de agências e serviços a criar, de “estruturas de verificação” a acreditar, de associações a reconhecer, de jornais ou televisões a certificar, de “selos de qualidade” a distribuir, de institutos universitários e centros de estudos académicos em que delegar competências, o Estado prepara-se para pagar o funcionamento de uma rede infernal de delação, supervisão e vigilância, enquadrada num esforço estatal de defesa da verdade, da narrativa autêntica e de elevação moral, assim como da protecção dos fracos, dos vulneráveis e de todos os públicos especiais, o que quer dizer, de toda a gente.
Salazar não faria melhor! Salazar não fez melhor! Polacos, Húngaros e Turcos não fariam melhor! Fascistas e comunistas não fariam melhor. Porquê? Porque agora utiliza-se a democracia para fazer as mesmas coisas. Usa-se a democracia para fazer o serviço sujo. Recorre-se à democracia para manipular, orientar e proibir. Emprega-se a democracia para favorecer e privilegiar. Utilizam-se todos os meios e recursos democráticos para limitar, condicionar, espiar e vigiar!
Como se explica esta deriva? Intenção de fazer bem e de proteger os vulneráveis? Talvez. Vontade despótica? Provável. Necessidade de tentar controlar a população e manipular as consciências? Com certeza. Medo da liberdade dos outros? Possível. Receio das redes sociais? Certamente. Paranóia relativamente aos inimigos da democracia? Provavelmente. Defesa dos privilégios das actuais elites políticas e dos actuais partidos? Absolutamente exacto. Superioridade moral e presunção virtuosa? Sem dúvida.
Os autores e os que aprovaram esta lei vão ficar na história. Pelas piores razões.
Público, 29.5.2021