NADA na minha vida anunciava que eu viria um dia dirigir-me a um
Congresso dos Farmacêuticos! Na minha vida profissional, nas minhas funções
passadas ou nas áreas em que tenho algum estudo, nada encontro que me aproxime
da vossa profissão. Mesmo assim, certamente por bondade do vosso Bastonário,
aqui me apresento depois de ter aceitado o seu amável convite, que tanto me
honrou. Apesar do título (“Farmácia, Saúde e Sociedade”), o meu tema será
sempre mais a sociedade do que a Farmácia.
Permitam iniciar com uma recordação ou uma alusão à longínqua época
dos meus doze anos. A minha Tia Maria de Jesus era sócia de uma farmácia. A
Farmácia Castro, na Régua. Era aí que eu passava longas tardes, durante o
Verão, a ouvir as notícias, a ver os clientes, a arrumar medicamentos, por
vezes mesmo a atender fregueses (como se dizia então...), devidamente
supervisionado pelo senhor Coelho, o sócio e farmacêutico. Muita gente vinha a
essa farmácia aviar receitas, mas também pedir conselhos e ajuda. Mais do que
tudo, as pessoas vinham conversar, saber notícias, passar um pouco da tarde.
Queixavam-se da saúde, da própria e da dos outros, mas era a conversa o género
mais procurado. Uns analfabetos vinham mesmo pedir que lhes lessem cartas de
longe. A Farmácia era um local de sociedade e convívio, de ajuda e reunião, de
distracção e coscuvilhice... As pessoas tinham conta na Farmácia, pagavam ao
mês. Ali se deixava recados e encomendas. Algum correio podia ser dirigido para
ali. Foi ali que aprendi coisas que não me ensinavam em casa ou de que só se
falava entre dentes e em murmúrio.
Já direi em breve por que razão entendi aludir a estas recordações.
Antes, acrescento que, mal comecei a pensar nesta reunião, me lembrei imediatamente
não só da Farmácia Castro, da Régua, como também das farmácias Almeida, Barreira,
Baptista e Galeno, todas em Vila Real. Como é possível, com tantas falhas de
memória próprias da minha idade, recordar tão bem as farmácias de Vila Real que
deixei para trás há mais de cinquenta anos? Ao lado das farmácias, vou
evidentemente encontrar a livraria, a pastelaria, o café... São os locais de
iniciação e socialização e as instituições de aprendizagem.
Não me ouvirão fazer a defesa imobilista das velhas instituições e
empresas, nem me ouvirão dizer que antigamente é que era bom e que hoje “tudo
andou para trás”. Não seria verdade. As novas cidades, o novo comércio, as
novas grandes instituições têm muito de bom e de eficaz. Mas nem sempre são
melhores. Ou antes; nem sempre são só isso. Há muito que aprendi que o
“progresso”, com aspas, nem sempre é progresso, sem aspas. Com a evolução
tecnológica e organizativa, ganha-se muito, mas também se perde. Perde-se em
humanidade, em contacto de qualidade com os outros, os vizinhos e até os
familiares. Em tempos de crise, como os que vivemos hoje, as instituições
humanas, as redes de relações de amizade e de família, as empresas civis, as
comunidades locais e autárquicas e o universo associativo seriam ou podem ser
excelentes amparos para os que vivem com dificuldades. E por mais eficazes que
sejam as grandes instituições e empresas, nunca se conseguirá, creio, obter a
qualidade humana que tanta falta faz a quem sofre ou necessita de ajuda.
Como é evidente, tudo isto vem muito a propósito das farmácias. São
quase por definição instituições de pequena dimensão, descentralizadas,
distribuídas pelos bairros, pelas cidades e pelas vilas. São empresas humanas e
humanizadas. São instituições que vivem mergulhadas na sociedade e nas comunidades
locais. São, em poucas palavras, mais do que empresas económicas e mais do que
agências comerciais. Não conheço os problemas dos farmacêuticos e das
farmácias, nem pretendo elogiar-vos só por estar na vossa presença, mas é este
o papel das farmácias que desejo sublinhar, recordar e promover.
É verdade que há problemas das farmácias. Problemas jurídicos,
legais, comerciais, institucionais e outros. Sobre eles pouco poderei dizer e
seria muito oportunista fazê-lo aqui. Sei que as questões das margens legais e
das dívidas do Estado estrangulam as farmácias. Sei que há graves perturbações
no abastecimento de medicamentos motivadas por interesses ilegítimos e de que
sofrem não apenas as farmácias, mas, em primeiro ligar, os cidadãos, os
clientes e os doentes. Sobre esses problemas, as farmácias têm a minha
simpatia. Não por razões de oportunidade, muito menos corporativas. Mas porque
entendo que é relevante o papel das farmácias na qualidade de vida e na
decência tanto das comunidades locais como das sociedades modernas.
Gostaria que as farmácias tivessem mais liberdade, mais autonomia e
mais capacidade. E que fossem sempre instituições dos bairros onde estão
instaladas. Mais uma vez, não é melancolia reaccionária. Não é nostalgia. É
vontade e esperança de ver sociedades institucionalmente enriquecidas. Há
países bem mais desenvolvidos do que Portugal, como os escandinavos ou os
Estados Unidos, onde é frequente ver farmácias e outras empresas de bairro
prosseguirem a desempenhar um papel crucial na organização das comunidades e na
salvaguarda de valores humanos e humanistas. Com certeza que as grandes
superfícies, as grandes lojas e as grandes cadeias de distribuição trouxeram
vantagens, algumas vantagens. Mas também trouxeram inconvenientes. Nem tudo o
que é moderno é progresso. Como disse acima, há muito progresso negativo.
Não se pense também que as farmácias pertencem a uns senhores e
umas senhoras de grande idade, com pouca formação e reduzidos conhecimentos, em
formato de velhos caciques locais, uma espécie de museu vivo de outras épocas!
Bem pelo contrário! Fui ver os números e verifiquei que a rede de farmácias e a
profissão de farmacêutico poderá mesmo ser do que de mais moderno existe.
Ostentam dados bem na média europeia, seja na cobertura territorial, seja na
cobertura da população. Estão, na Europa, entre as que mais farmacêuticos
diplomados empregam. São, em Portugal,
um dos sectores proporcionalmente mais qualificados e mais jovens. Mais de um
terço dos seus trabalhadores têm grau superior. Cerca de 40% têm menos de 35
anos e quase 70% têm menos de 45 anos! Tomaram muitos sectores económicos ou
sociais do nosso país exibir dados semelhantes!
Mais ainda. Sem falar da dimensão social e de convívio de que
falava acima, a rede de farmácias presta formidáveis serviços públicos não
remunerados, não contabilizados, sem encargos para os cidadãos e sem custos
para o Estado. A intervenção das farmácias e dos farmacêuticos directamente em
programas e acções de grande envergadura, como sejam o acompanhamento na
diabetes, a troca de seringas, a recolha de radiografias, a destruição de
medicamentos fora de prazo, a vacinação e outras boas práticas permitem
incalculáveis poupanças, mas sobretudo inestimáveis vantagens de cuidado e
humanização.
Permitam-me alargar um pouco a reflexão. Os critérios e princípios
que se aplicam às farmácias e ao seu papel na sociedade não são exclusivos
deste sector de actividade. Bem pelo contrário. Em tempos tão difíceis como os
que vivemos, é indispensável que as instituições humanas, sociais e civis
estejam presentes, não sejam destruídas e sejam aproveitadas. Não são as
repartições nem as grandes organizações que vão salvar, no dia-a-dia, as
pessoas e as famílias. Ao lado da grande política e dos grandes dispositivos
financeiros e legais, são as instituições humanas que tratam das pessoas. E são
as mesmas instituições que devem ser chamadas a participar e colaborar no
esforço colectivo. Nesta crise, cujo fim não se conhece, é cada vez mais
evidente e necessário governar com os cidadãos, as empresas e as instituições.
É cada vez mais importante partilhar os problemas e as soluções, evitando assim
esta prática corrente dos últimos anos de tomar medidas como quem atira armas
de arremesso contra as populações. Os últimos governos têm-se distinguido nessa
especialidade, a de governar sem dizer nada antes nem durante, só depois.
Faça-se a analogia. Pense-se que a
rede de farmácias é também a rede de empresas, de instituições, de associações
e de sociedades. Imagine-se o papel que poderão ou poderiam desempenhar na
análise dos factores de crise, na detecção de situações difíceis, na procura de
soluções razoáveis, mesmo duras, mesmo difíceis. Esta força interior poderia
ser um travão dos erros de análise, previsão e cálculo tão frequentes. Como
poderia ser um ser um antídoto para a falta de conhecimento da realidade. Lamento
que o meu país esteja a receber ordens da maneira mais primitiva que se possa
imaginar. Chegam brigadas de técnicos e especialistas organizar os sectores e
as áreas de actividade, trazendo consigo ementas de serviços de grande
qualidade e de enorme competência, mas destituídos de conhecimento, de
sensibilidade e de contacto directo. Lamento que o meu país não tenha sabido
evitar o ponto a que chegámos. Lamento que as nossas elites, os nossos partidos
políticos e as nossas autoridades não tenham prevenido, nem saibam ou queiram
cuidar. Lamento que possa parecer que não há outra solução que não seja a de
receber instruções...
Esta ligação das autoridades e dos
governos à população revela-se essencial, não para suavizar ou repetir erros e
dívidas, mas para melhor cuidar dos cidadãos e associá-los ao esforço comum. É
tanto mais essencial quanto a confiança dos cidadãos na política, nos
políticos, nas instituições e nas administrações públicas está em perigoso
declínio. Estudos a publicar brevemente mostram que, em dez a vinte anos, a
confiança dos cidadãos desceu de valores próximos dos 50% a 70% para níveis de
14% a 30%.
Viver com as farmácias, jovens,
competentes e próximas da população, pode ser uma metáfora para a política
necessária para todo o país em tempos de crise.
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Congresso Nacional dos Farmacêuticos
Lisboa, 2 de Novembro de 2012